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Modos de vida e processos de subjetivação na experiência de envelhecimento entre homens homossexuais na cidade de Florianópolis/SC

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MODOS DE VIDA E PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO NA EXPERIÊNCIA DE ENVELHECIMENTO ENTRE HOMENS

HOMOSSEXUAIS NA CIDADE DE FLORIANÓPOLIS/SC

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do Grau de Mestre em Psicologia. Orientadora: Profa. Dra. Mara Coelho de Souza Lago

Florianópolis 2012

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Daniel Kerry dos Santos

Modos de vida e processos de subjetivação na experiência de envelhecimento entre homens homossexuais na cidade de

Florianópolis/SC

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Curso de Mestrado, Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina, pela seguinte banca examinadora:

Florianópolis, 08 de fevereiro de 2012

___________________________ Dra. Maria Aparecida Crepaldi (Coordenadora – PPGP/UFSC)

___________________________ Dra. Mara Coelho de Souza Lago (UFSC – PPGP – Orientadora)

___________________________ Dra. Maria Juracy Filgueiras Toneli (UFSC – PPGP – Examinadora)

___________________________ Dr. Fernando Altair Pocahy (UNIFOR – PPGP – Examinador)

___________________________ Dr. Pedro de Souza (PPGL – UFSC – Examinador)

___________________________ Dr. Leandro Castro Oltramari (PSI – UFSC – Suplente)

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AGRADECIMENTOS (A ordem não significa uma hierarquia de importância...)

Agradeço aos meus pais, Isaura e Jurivaldo e à minha irmã, Lais, por estarem sempre presentes (mesmo distantes geograficamente) e sempre me apoiando em minhas escolhas. O apoio de vocês foi/é imprescindível para eu continuar nesses meus caminhos e realizando meus pequenos e grandes sonhos;

Agradeço à minha tia Bete por também sempre incentivar, apoiar e compartilhar as alegrias com seus sobrinhos queridos.

Agradeço à minha querida orientadora, Dra. Mara Lago, que mais do que me orientar nesta pesquisa, inspirou-me com seu conhecimento, com seu amor pelo trabalho e pela sua profissão. Muito obrigado pelo carinho e pela confiança depositada em mim;

Agradeço à minha pequena Marília Amaral, essa prenda dos pampas que tive a sorte grande de conhecer desde o início do mestrado e que depois não largou mais de mim (ainda bem!). Essa me ajudou, me acolheu, me deu colo e conseguiu me reerguer em meio a terríveis furacões e tempestades. Um presente todo enfeitado que não me canso de agradecer por ter conhecido;

Agradeço a uma das pessoas mais doces que já conheci, Rafael Marques, que com sua paz e sabedoria trouxe vida durante o frio do inverno. Minha gratidão pela sua insistência em cuidar de mim, pelo seu amor e carinho não podem ser traduzidos em tão poucas palavras. Sem sua companhia e afeto com certeza não teria conseguido terminar esta dissertação;

Ao Lucas (Luth) Serafim, que veio se juntar a mim nessa tal de “Ilha da Magia” e também foi muito importante em momentos difíceis;

Ao Rafinha, pela preciosa revisão deste trabalho. Amigo de anos que guardo com carinho no coração;

Ao Paulinho, meu irmão eletivo que está sempre comigo, mesmo distante pelo espaço físico. Pessoas como ele me fazem ter certeza que um amor fraternal existe independentemente da distância.

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À Larissa Mendes, outra que mesmo distante nunca saiu do meu coração e que sempre me contagia com sua potência de vida inigualável (ainda vamos voar sobre o arco-íris, tão alto...!);

Ao Ovídio, meu outro irmão, pelos calorosos abraços que me doa quando nos vemos e pela alegria de nossa amizade;

À Bárbara Cardoso, pela iniciativa de ajudar a ampliar minha vida com outras vidas como a minha;

Ao Thiago Belluf, por aparecer na minha vida e fazer com que eu não me sinta sozinho e por dizer que podemos viver muito bem!

À Denise Stucchi, pelas conversas intermináveis, pelos vinhos, pela arte, por Clarice, pelos encontros profundos e alegres. Obrigado pelas inspirações e provocações;

Ao Fernando Salgado (vulgo Nega Nanda), pelas companhias lunáticas e alegres.

A minha queridíssima Juracy Toneli, por ter me “adotado”, ter me recebido com braços abertos e me ensinado muita coisa, tanto em nível pessoal como acadêmico. Uma grande pessoa, a qual admiro pela força e pela potência.

Ao querido Daniel Toneli (in memoriam) por ter estendido o braço num momento difícil. Querido amigo, onde você estiver, muito obrigado!

Ao Pedro de Souza, pela humildade e doçura nas palavras;

Ao Fernando Pocahy pela amizade receptiva, pela alegria dos nossos encontros, pelos bons drinks e pela inspiração que seus textos me trazem já há algum tempo...;

Aos amigos Terson, Arthur, Ju Ried, Talita, Alexandre, Renata, Gabriela, Karla, Mariana, Flávia, Marcos Leal, Paulo, Pedro, Ângela, Ada, Regina e Zuleica

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Aos importantes e queridos professores que me ensinaram muito durante o mestrado: Kátia Maheire, Marco Aurélio Prado, Maria Chalfin, Kléber Prado, Mériti de Souza.

Aos interlocutores dessa pesquisa, que compartilharam gentilmente histórias de suas vidas e me mostraram outras possibilidades de existência.

Ao proprietário do bar onde realizei a pesquisa, pelo carinho, pela receptividade e pela alegria em promover bons encontros.

Às pessoas da ONG ADEH, por me ensinarem que a vida percorre os mais múltiplos caminhos;

À Mãe-Natureza maravilhosa desta Ilha, que me recebeu e que me agracia com suas lindas paisagens.

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RESUMO

Este trabalho problematiza algumas estilizações possíveis das experiências de envelhecimento entre homens homossexuais. Inicialmente, tracei linhas de alguns campos discursivos sobre os quais a velhice e a homossexualidade estariam remetidas, considerando que tais cartografias sinalizam pistas importantes em pesquisas sobre essa temática. Desse modo, procurei demarcar um campo político-epistemológico crítico que historicizasse e politizasse as experiências de sujeitos e grupos e os modos de subjetivações. Para acompanhar tais processos, habitei um bar gay na cidade de Florianópolis frequentado principalmente por homens mais velhos. Busquei por expressões e intensidades que reinventassem e recompusessem corporeidades, apontando que a materialidade dos corpos, apesar de estar remetida a um sistema de regulação, pode ganhar novas significações onde a abjeção (ou um fantasma de abjeção) possa ser politizada e transformar-se num instrumento de contestação política, mesmo que em instantes fugazes e de forma provisória. Considerei que os homossexuais mais velhos estariam habitando uma fronteira, um limite de um regime discursivo que estabelece, por um lado, um campo de legitimidade e de inteligibilidade e, por outro, uma zona de ininteligibilidade, um exterior constitutivo. Com esta pesquisa tentei mostrar que habitar essa fronteira discursiva que toma o corpo utópico como prerrogativa e ideal regulatório, não necessariamente constitui uma vida abjeta. Essa zona de tensão incita resistências, cria modos de vida alternativos e ativa subjetivações que reinventam e alargam os campos de inteligibilidade. Olhar mais de perto para essas vidas, para esses corpos que exibem a velhice e, ao mesmo tempo, desejam, gozam, têm tesão e inventam outras formas de experimentar o homoerotismo e a homossexualidade seria uma aposta política que desestabiliza as estratégias de homogeneização, de exclusão e de abjeção. A velhice e a homossexualidade, nesse sentido, podem ser pensadas a partir da da perspectiva da diferença e da alteridade e não a partir de critérios identitários totalizantes. As narrativas ouvidas e as afecções experienciadas durante as cartografias realizadas no território habitado apontaram para algumas formas de relação consigo mesmo, para uma territorialidade alternativa e para uma heterotopia de corpos (in)desejáveis. Muitas vezes as experiências de envelhecimento entre homossexuais podem estar remetidas a enunciados de sujeição, mas, por outro lado, pode produzir subjetivações e resistência aos ideais regulatórios contemporâneos. O homoerotismo e a homossexualidade

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foram pensados aqui como possibilidades de potência na velhice, onde a experiência de envelhecimento possa ser vivida como uma experiência ética e estética e não como mais um modo de assujeitamento.

Palavras-chave: Homossexualidade. Envelhecimento. Corpo. Gênero. Subjetivação.

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ABSTRACT

This work problematizes some possible stylizations of aging experiences among homosexual men. Initially, I traced lines of some discursive fields on which the old age and the homosexuality are sent, considering that such cartographies suggest important tracks on researches with this theme. Thereby, I tried to demarcate a critical political and epistemological field that historicizes and politicizes the subjects’ and groups’ experiences and the modes of subjectivation. To follow these processes, I dwelt in a gay bar in the city of Florianópolis (Brazil) mainly frequented by older men. I sought for expressions and intensities that reinvented and recomposes corporeality, indicating that the materialities of the bodies, despite of being sent into a regulation system, can earn new meanings in which the abjection (or an abjection’s ghost) can be politicized and becomes an instrument of political contestation, even in fleeting moments and provisionally. I considered that older homosexuals would be inhabiting a frontier, a limit of a discursive regime which establishes, on one hand, a field of legitimacy and intelligibility and, on the other, an unintelligibility zone, an constitutive outside. With this research I tried to show that inhabiting this discursive frontier, which takes the utopist bodies as a prerogative and regulatory ideal, not necessarily constitutes an abject life. This tension zone encourages resistances, creates alternative ways of life and activates subjectivations that reinvents and extends the fields of intelligibility. Looking closer to these lives, to these bodies that exhibit the old age and, at the same time, desire, enjoy, get excited and invent other ways to experiment the homoerotism and the homosexuality would be a political bet that destabilizes the strategies of homogenization, exclusion and abjection. The old age and the homosexuality, in this sense, can be thought in the perspective of the difference and alterity, and not from totalizing identitaries criteria. The narratives listened and the affections experienced during the cartographies made in the territory inhabited indicated some forms of relations with itself, an alternative territoriality and a heterotopy of (un)desirable bodies. Usually, the aging experiences among homosexual men are sent into subjection statements, but, on the other side, it can produce subjectivations and resistances against the contemporary regulatory ideals. The homoerotism and the homosexuality were thought here as possibilities of “power” during the old age, where the experience of aging can be lived as an ethical and aesthetic experience and not as one more way of subjection.

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SUMÁRIO

1 Introdução ... 15

2 Dispositivos de controle e constituição do sujeito: as produções discursivas sobre a velhice e a sexualidade ... 23

2.1 Notas sobre a questão da velhice ... 29

2.1.1 O dispositivo da idade e a produção da velhice ...34

2.2 Sexualidades, gênero e performatividades ... 43

2.3 Quais velhices possíveis entre homens homossexuais? ... 54

3 Cartografias: éticas e estéticas nos modos de envelhecer entre homens homossexuais ... 61

3.1 Algumas pistas cartográficas. ... 67

3.2 Habitando territórios e acompanhando as paisagens. ... 73

4 Entre coroas, ursos e maduros ... 77

4.1 Sobre encontros de corpos: diferenças e afetações ... 83

4.2 Territorialidades marginais: (re)invenções dos corpos ... 88

4.3 Cenas de uma heterotopia de corpos (in)desejáveis ... 113

5 Estilísticas e estéticas do envelhecimento: narrativas de si ... 125

5.1 Das prisões identitárias ao “prazer que acontece”... ... 133

5.2 Corpo, envelhecimento e produção si ... 146

5.3 “Sou velho porque dizem”: a velhice como performativo ... 154

6 Considerações finais: por uma ética do envelhecimento ... 159

Referências ... 165

Apêndice ... 177

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1 INTRODUÇÃO

Esta dissertação de mestrado situa-se em áreas de investigações sobre as quais venho me ocupando desde minha graduação em Psicologia, na Universidade Estadual Paulista – Unesp (Câmpus de Assis/SP), como os estudos de gênero, teorias feministas e estudos queer. Busquei neste trabalho acompanhar algumas formas de estilização do envelhecimento entre homens homossexuais. Procurei olhar para a velhice como uma estilística e uma estética da existência, ou seja, como uma possibilidade de invenção da vida que pode portar valores estéticos (inventivos e criativos) que são conduzidos a partir de determinados estilos/modos de vida. Nesse sentido, tentei apreender velhices possíveis a partir das experiências de envelhecimento de homens que vivem a homossexualidade.

Tal interesse de investigação surgiu quando ainda estava desenvolvendo uma pesquisa de iniciação científica1, cujo tema era a homofobia, os processos de subjetivação e as construções de identidades de gênero em uma cidade do interior paulista. Nessa pesquisa, problematizei as formas pelas quais a heteronormatividade regula, de forma mais vigilante, policiada e cerceadora, as vidas das pessoas que vivem em uma cidade pequena do interior. Observei que lá as estratégias de controle sobre a homossexualidade se estabeleciam principalmente pelo elemento da pessoalidade (a maioria das pessoas da cidade se conhece), lugar este onde o anonimato é praticamente impossível. A vida íntima/privada é, nesses casos, muitas vezes exposta ao domínio público, no qual ela é injuriada e violentada (física, verbal ou simbolicamente). Procurei acompanhar as estratégias do desejo na cidade do interior, buscando apreender as maneiras pelas quais as pessoas podiam vivenciar e inventar a homossexualidade nesses ambientes mais rígidos e limitados.

Durante essa pesquisa, conversei e entrevistei pessoas de gerações diferentes, nativas da cidade. Foi durante a interlocução com um homem de 62 anos que pude tomar contato com algumas questões dos homossexuais mais velhos. Além desse informante, também tive uma relação de muita proximidade com outro homem de 70 anos, dono

1

Pesquisa de iniciação cientifica intitulada: “Homofobia, processos de subjetivação e construções de identidades de gênero na cidade de Assis”, orientada pelo professor Dr. Fernando Silva Teixeira Filho e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

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de um “boteco” famoso por seu estilo boêmio e que agregava prostitutas, andarilhos, travestis, “bêbados” e uma pequena faixa de estudantes universitários (da qual eu fazia parte) que se identificavam com o ar de inadequação do local em relação à cidade. O espaço era velho e trazia em cada objeto disposto em seu interior uma história singular, sobre o próprio dono ou sobre a cidade. Ao som de uma antiga jukebox ainda em funcionamento, ouvi muitas histórias desse homem, assumidamente homossexual. Suas peripécias sexuais atuais e de quando era mais jovem, sua relação com a cidade e com o preconceito, seus amores, seus gostos, seus desejos e seus medos.

As histórias desses homens reconstruíam um passado no qual a homossexualidade era vivida de outra maneira, estranha a mim. Além disso, suas narrativas também falavam de suas vidas presentes e os modos como vivenciam a sexualidade. Antes de ter tido contato com homossexuais mais velhos (sim, porque a juventude da qual faço parte produz um modo de vida que exclui o gay velho para fora dos seus contornos, pois ele espelha aquilo que ela não suporta ver), tinha um pensamento sobre os mesmos que beirava ao caricato: “os gays velhos devem ser sozinhos, tristes...”, achava eu. Mas naquela época passei a conhecer esses sujeitos e fui surpreendido por narrativas que adorava escutar. A primeira coisa que me chamou a atenção foi que os gays velhos não eram nada daquilo que “eu” pensava. Engoli um preconceito barato e irrefletido, o que no fim das contas sempre é muito bom. Esses sujeitos com quem conversei, falavam de suas vidas e de seus prazeres atuais. Aqueles homens não deixaram de ter seus amantes, de relacionarem-se com outros homens, velhos, “maduros” e até mesmo jovens. As lembranças de suas juventudes também narravam uma parte silenciada da história. Eram homens que viveram uma época quando seus prazeres eram considerados anomalias, perversidades, doença mental e, em alguns casos, até crime. Claro, numa cidade do interior isso era ainda mais evidente. Mas o que para mim era novo, era o fato de que havia uma vida possível, seja quando esses sujeitos eram mais jovens (e não faltam histórias que dizem sobre como sobreviver e viver a homossexualidade naquele contexto mais controlador e heteronormativo), seja no atual momento de suas vidas. Havia uma estilística, uma estética e uma ética da existência que me escapava, mas que ao mesmo tempo produzia em mim um efeito de fascinação, uma vontade de ouvir aquelas histórias que no fundo pareciam dizer de um passado de um semelhante.

Passei a interessar-me por esses modos de reinvenção de si, de conduzir-se frente a um campo moral no qual alguns sujeitos resistem.

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As experiências com essas pessoas levaram-me a pensar não só sobre a condição e a vida dos homossexuais mais velhos, mas também sobre aquilo que Foucault (apud CARDOSO, 2005) considera a demanda ética da subjetivação: afinal, “o que estamos fazendo de nós mesmos?”. Trata-se de uma questão ética, pois nela está implícita uma reação aos jogos de verdade que regulam as existências. Se os homossexuais mais velhos “devem ficar escondidos e silenciados”, como prevê um regime discursivo que os exclui, por que não nos perguntarmos quais mecanismos produzem essas exclusões? E para nos questionarmos a esse respeito, por que não dar voz e visibilidade aos modos que esses sujeitos estilizam o envelhecimento e a homossexualidade? Com isso, é possível estudar o poder a partir das posições de resistência, como indica Foucault (1995), e a partir de estilísticas que afrontam e contestam as normas, mesmo que de maneira provisória e fugidia. Questionar o que fazemos com as pessoas de mais idade, sejam elas homo ou heterossexuais, é questionar as próprias condições políticas que nos afetam e que produzem hierarquias sociais e desigualdades. Considerando que todos/as estamos imersos/as e somos constituídos/as por mecanismos regulatórios e por relações de poder, é imprescindível que consideremos e problematizemos as vidas daquelas pessoas que habitam as margens dos campos de inteligibilidade. No limite, pensar politicamente tais questões significa pensar sobre nós mesmos. Tenho prezado, nesse sentido, por uma perspectiva ética e política que orienta este trabalho.

Diante dos movimentos e dos encontros que aconteceram durante aquela pesquisa de iniciação científica, a questão do envelhecimento entre homens homossexuais passou a mobilizar-me, de modo que decidi ampliar e aprofundar tal temática, exercício este que se concretizou nesta dissertação de mestrado.

A princípio, é preciso dizer que não estabeleci um critério rigoroso para definir o que é uma pessoa velha. Segundo Debert (1998, p. 61), não devemos supor que a essência definidora de uma população seja a idade legal ou o estado de envelhecimento biológico. A determinação e significação do que é a velhice, como apontado no capítulo dois, decorre de dispositivos de poder e é estabelecida num campo discursivo historicamente localizável. Assim, a velhice pode ser demarcada por critérios médicos, psicológicos, jurídicos, sociológicos e/ou ainda por definições geográficas, culturais, étnicas, sociais e subjetivas. O que me interessa, de fato, são as experiências que se pode fazer de si mesmo a partir da interpelação de um dispositivo de idade que produz um marcador etário socialmente depreciado e evitado. A

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velhice, nesse sentido, interpela-nos e, de forma performativa, diz e produz um “alguém” que traz a marca do tempo em seu corpo. Quais efeitos disso sobre o sujeito? O que é possível pensar sobre si mesmo a partir desses atos de linguagem que passam a demarcar cada vez mais rigidamente uma fronteira entre um corpo legítimo e um corpo ilegítimo? Tais questões foram dando um contorno para este texto e funcionando como uma preocupação a ser considerada.

Atualmente, algumas áreas das ciências humanas e sociais despendem esforços para mostrar que a velhice não pode ser vista e estudada como uma categoria homogeneizadora, como se fosse possível falar em uma população unificada e linear de velhos/as. Tal totalização da velhice talvez seja útil num plano macropolítico, que faz uso das lógicas identitárias para efetuação de políticas públicas voltadas aos idosos. Mas essas generalizações deixam escapar a multiplicidade e a complexidade das experiências de envelhecimento. As velhices podem ser vivenciadas de formas muito diferentes entre um velho de 60 anos e outro de 80, um pobre e um rico, um que tem família e/ou um lar e outro que vive nas ruas ou em asilos, um velho e uma velha, um/a negro/a, um/a indígena e um/a branco/a, um/a heterossexual, uma lésbica, uma transexual e um gay, e assim por diante. Mas geralmente consideramos que velho é velho, em qualquer lugar, em qualquer contexto. Tais generalizações simplificam o campo das experiências e reduzem uma multidão a uma identidade massificada, serializada e aparentemente estável.

O mesmo é possível dizer sobre a homossexualidade e o gênero. As críticas às políticas identitárias sinalizam os perigos epistemológicos de considerar-se uma identidade homossexual como possuidora de uma substância essencial e/ou ontológica. Tais posições críticas frente às noções de identidades estão alinhadas às perspectivas pós-estruturalistas que sinalizam, por exemplo, que não é possível pensar um ser “a-histórico” e que não esteja sujeito às enunciações coletivas e a uma ordem do discurso. Ao considerar as sexualidades e as relações de gênero dentro de uma contingência histórica e discursiva, desestabilizamos alguns pressupostos caros à ciência moderna, como a razão, a objetividade e a neutralidade. Muitas teóricas feministas e queers denunciaram o falocentrismo, a heteronormatividade e o sexismo implícitos nas construções teóricas e nos vários sistemas de pensamento que sustentam as diversas disciplinas das ciências humanas e sociais. Essas linhas teóricas nos mostram que nossos fundamentos epistemológicos são sempre contingentes (BUTLER, 1998) e que os

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saberes e reflexões que produzimos em nossas pesquisas são sempre localizados (HARAWAY, 1995).

Com o intuito de visualizar algo a mais, para além das estratégias de homogeneização de uma população, passei a interessar-me por uma forma dissidente das velhices, aquelas que seriam possíveis entre homens homossexuais. Para muitos poderia até soar estranho associar velhice à homossexualidade, uma vez que a velhice geralmente não nos remete à sexualidade e a homossexualidade não nos remete à velhice. Temos aqui um duplo problema. Primeiro: a velhice não nos remete à sexualidade e muito menos à homossexualidade. Tenho considerado que há uma matriz heterossexual que regula os modos de inteligibilidade da velhice. Nesse sentido, as pessoas velhas, quando pensáveis, já são pressupostamente heterossexuais. É como se não houvesse uma posição de sujeito possível para um/a velho/a que não se conformasse com a lógica heteronormativa que regula a materialidade dos corpos. Se a velhice legítima seria, a priori, heterossexual, pressupõe-se também, portanto, que o/a velho/a teria estabelecido, ao longo da sua trajetória, um modo de vida que expressasse essa prerrogativa: família, filhos, casamento, netos, etc. Segundo problema: a homossexualidade não nos remete à velhice. Considerando que atualmente vemos um modelo hegemônico que normatiza os modos de ser homossexual, e que tal modelização está baseada numa supervalorização de um corpo jovem, bonito, sarado, etc., aqueles sujeitos que não estão formatados dentro dessa lógica estariam às margens do que poderia ser considerada a homossexualidade aceitável/tolerável2. O gay velho, nesse sentido,

2

Uma “experiência” interessante que pode mostrar, pelo menos grosseiramente, as representações hegemônicas que se fazem da velhice (a partir de uma matriz heterossexual) e da homossexualidade (a partir de um ideal de juventude e de beleza) é pesquisar por esses dois termos, separadamente, no site Google Imagens (http://images.google.com.br/). As imagens correspondentes à velhice são, na maior parte, de um casal de um homem e uma mulher, sozinhos ou com filhos e netos. Os/as velhos/as nessas situações estão sempre felizes, sorridentes e com aparência saudável. Quase todas as imagens são de pessoas brancas a aparentando ser de classe média. As imagens que retratam uma velhice mais “decadente” são de número bem menor e sempre mostram o/a velho/a sozinho/a e/ou abandonado/a. Nessas situações, é mais comum observar imagens de velhos/as de outras etnias: negros, indígenas, etc.. É também significativo que, ao pesquisar o termo velhice, o site Google sugira outros termos, inferindo que o usuário quisesse dizer: “velhice feliz” ou “velhice saudável”. Já os resultados da pesquisa com a palavra gay são, em sua maioria esmagadora, imagens de homens (sozinhos ou em grupo) sarados, sem camisa, jovens, lisos, brancos,

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passa a ser um sujeito sem espaço nesse meio e a velhice torna-se algo a ser excluída do campo do legítimo a partir dessas homonormatividades3. Em função dessas considerações acima, o que pretendi anunciar com esta pesquisa foram momentos fugazes, territórios insólitos, subjetivações sempre em processos de (des)montagens. A territorialidade, as cenas e as narrativas sobre as quais detive minha atenção e com as quais me envolvi, não intencionam generalizações ou a afirmação de um modelo sobre o que é a velhice entre homens homossexuais. Isso seria restritivo e limitador. Por isso que lancei mão da ideia de que as velhices podem ser estilizadas, ou seja, podem ser experienciadas a partir de um estilo de conduzir, seja por um sujeito, seja por um coletivo ou uma multidão que potencialmente pode contestar uma sexopolítica (PRECIADO, 2004).

A fim de acompanhar essas estilísticas possíveis do envelhecimento entre sujeitos que deslizam entre prazeres homoeróticos, escolhi habitar o que considerei ser um território alternativo que abriga e acolhe aqueles corpos dissidentes de uma geografia erótica da cidade. Tal território é um bar GLS4 de Florianópolis, frequentado principalmente por homens mais velhos e por ursos (nome dado a identidade de um grupo ligado a uma sub-cultura homossexual de homens gays, geralmente gordos e peludos). No capítulo quatro desenvolvi uma cartografia deste local, destacando algumas cenas e suas potencialidades inventivas. Minhas análises sobre esse território levaram-me a considerar o que chamei de uma heterotopia de corpos

bonitos, desfilando em paradas da diversidade ou em praias. Não encontrei nenhuma referência a homossexuais mais velhos. Por outro lado, ao pesquisar o termo “gay idoso”, encontrei poucas imagens que fizessem alusão aos gays velhos. Nesse caso, as imagens costumam aparecer em um contexto de caricatura e/ou de piada.

3

É importante salientar que estou direcionando minha atenção à velhice, mas as homonormatividades, que prescrevem certos estilos de vida baseados em algumas “elites gays” (de classe média/alta, branca, com corpos sarados, etc.), excluem também aqueles sujeitos que não se conformam com uma homossexualidade higienizada e tolerada socialmente, sejam eles os gays afeminados, travestis, gays pobres, negros, etc.

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GLS é uma sigla para gays, lésbicas e simpatizantes, geralmente usada para designar espaços e/ou eventos com fins comerciais, diferentemente de LGBTTT, sigla para lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros, usada para referir-se ao movimento social que representa essa população.

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(in)desejáveis, um espaço outro, onde é possível (re)compor novas corporeidades e produzir outras formas desejantes.

A partir desse território, estabeleci contato com alguns homens com os quais pude conversar em outras ocasiões, em suas casas e de forma mais delongada. Nesse momento, pude ouvir algumas de suas narrativas, numa interlocução pela qual eles foram me contando sobre suas relações com a velhice. A partir dessas falas, desenvolvi uma reflexão, no capítulo 5, sobre as narrativas de si em relação à experiência do envelhecimento e da homossexualidade.

Por fim, o que tentei mostrar nesta dissertação foi que o envelhecimento e a sexualidade estão necessariamente remetidas a um campo político e discursivo e é a partir desse campo que as estilizações dessas experiências são conduzidas e performatizadas. É importante destacar que durante esta pesquisa estive e conversei com pessoas de diversas classes sociais, mas quase todas elas possuem um padrão de vida razoável, uma casa e algum tipo de fonte de renda, mesmo que seja a aposentadoria. Existem outros contextos que não foram contemplados neste estudo, como a realidade de gays velhos em asilos, moradores de ruas, de comunidades pobres ou de cidades pequenas e afastadas dos grandes centros. Espero que com esta pesquisa novos horizontes sejam reafirmados, ampliando as problematizações sobre as desigualdades de gênero, sexuais e geracionais.

As discussões sobre as experiências de envelhecimento entre homossexuais ainda são tímidas e necessitam de mais pesquisas e de maior visibilidade, tanto teórica quanto política. Tais questões ainda carecem de estudos no Brasil. A realidade de homossexuais mais velhos é muito pouco conhecida e debatida, seja no movimento LGBT, na academia ou nos movimentos de idosos. Um dos grandes desafios, no meu entender, é a complexidade da interseccionalidade entre campos de estudos que possuem certa autonomia, mas que precisam dialogar entre si, a saber, os estudos sobre gênero e sexualidades (estudos de gênero, feministas, gays e lésbicos e estudos queer) e os estudos sobre velhice e envelhecimento (como a gerontologia, por exemplo). Se há algo em comum que podemos destacar entre esses dois campos é a questão do poder: como as relações sociais se constituem a partir de relações de poder que marcam os sujeitos e produzem hierarquizações, normatividades, formas de inteligibilidade? O poder, em sua forma moderna, difuso e sutil, age e produz, assujeita, mas também possibilita resistências, reinvenções cotidianas de modos de vida, de estéticas outras num campo de possíveis. Se na contemporaneidade as trajetórias de vida e as experiências da sexualidade já não podem mais ser

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apreendidas a partir de uma previsibilidade fixa, nem de uma estabilidade e permanência (BOZON, 2009; SANTOS, 2009, 2010), precisamos direcionar nossos olhares para as multiplicidades existenciais, para as diferenças e as alteridades, dando voz aos modos de vida que resistem ao instituído. A velhice e a homossexualidade, nesse sentido, são emblemáticas nessa discussão: na tensão entre um fantasma de abjeção e as reinvenções ético-estéticas das subjetividades, embarcamos num entre e vislumbramos expressões da diferença que pedem passagem e desestabilizam o homogêneo.

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2 DISPOSITIVOS DE CONTROLE E CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO: AS PRODUÇÕES DISCURSIVAS SOBRE A VELHICE E A SEXUALIDADE

Velhice e sexualidade são conceitos/ideias de alcance extremamente amplo no discurso social, nas instituições, nas mídias, nos modos de agir e de se relacionar das pessoas. Parecem-nos, à primeira vista, dimensões autoevidentes da vida humana, afinal envelhecer e “ter” sexualidade seriam questões óbvias relativas à existência. Há de fato, atualmente, grandes preocupações, polêmicas e uma proliferação discursiva sobre esses dois temas.

As inquietações em torno da finitude humana e das transformações corporais advindas do efeito do tempo sobre a matéria, às quais estamos todos sujeitos, aparecem como produtora de discursos alicerçados sobre os mais diversos campos de saber: científico, religioso, psicológico, jurídico, filosófico, antropológico. No entanto, é no campo da ciência, especialmente das ciências médicas e biológicas, que encontraremos a hegemonia de discursos que enunciarão verdades sobre a velhice e sobre o corpo: corpo-velho saudável, corpo-velho produtivo, corpo-velho máquina, corpo-velho ativo, corpo-velho normal, corpo-velho jovem, corpo-velho velho, etc.

A sexualidade, da mesma forma, a partir do século XVIII, constitui-se como um dispositivo histórico (FOUCAULT, 1988): o sexo, os prazeres, o desejo e o corpo passam a ser colocados em discurso e a ser enunciados a partir do saber médico, científico e jurídico. Dentro do campo da ciência moderna positivista, as discursividades sobre o sexo proliferam-se ao mesmo tempo em que se produz um efeito dissimulador do mesmo, de esquiva. A ciência, em sua aura de neutralidade e imparcialidade passa a categorizar formas de desejo e de prazeres, corpos normais e anormais, práticas dóceis e delinquentes/desviantes. Um vasto leque de binarismos começa a desenhar aquilo que se entende por sexualidade humana, configurando campos de inteligibilidades de gênero e sexuais, do que é humano e daquilo que não pode alçar status de humanidade e de sujeito (BUTLER, 2006). Os discursos da proibição, da interdição e da repressão da sexualidade surgem, segundo Foucault, a partir da própria vontade de saber do sexo, ou ainda, de uma scientia sexualis (ciência sexual) intrinsecamente subordinada a uma moral, a qual se atualizaria principalmente a partir das normas médicas e jurídicas. Alguns enunciados se perpetuam: o antigo sodomita, pecador que sucumbe aos prazeres da carne com alguém do mesmo sexo, passa a ser classificado

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dentro de uma forma específica de desejo, a homossexual, cuja expressão seria estruturalmente perversa e patológica. Surge o sujeito homossexual (mais uma, dentre outras figuras/objetos de saber), portador de uma interioridade e uma ontologia peculiar, desviante de uma moral e uma norma heterossexual e que deveria ser submetido ao tratamento e a cura.Considero a idade e a sexualidade como dispositivos que (des)organizam, controlam, homogeneízam e normatizam o campo social. Esses dão visibilidade e enunciam determinadas forças, ao mesmo tempo em que invisibilizam e silenciam outras. Nesse sentido, tais dispositivos exercem efeitos de constituição dos sujeitos, que são marcados por fluxos discursivos e materiais, num campo de relações de poder e saber.

O conceito de dispositivo, portanto, parece relevante numa análise que pretende acompanhar as formas de objetificação dos sujeitos, a produção das margens nas quais os mesmos são alocados e as formas de resistência e subjetivação que emergem como estratégias éticas na constituição de si. Penso que a ideia de dispositivo é uma ferramenta útil na tentativa de se trabalhar intersecções entre idade/geração e sexualidade/gênero.

Mas o que seria um dispositivo? Primeiramente, é preciso dizer que se trata de um conceito utilizado por Michel Foucault em seus trabalhos genealógicos, aqueles nos quais o filósofo buscou traçar as condições de possibilidade de aparecimento de determinadas práticas, instituições e relações de poder. Em Microfísica do Poder (1979, p. 244), o autor define dispositivo a partir de três sentidos:

um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados cientificos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas [...] o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos.

Ao demarcar a natureza da relação que pode existir entre estes elementos heterogêneos, o autor prossegue em sua definição:

[...] tal discurso pode aparecer como programa de uma instituição ou, ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda. Pode ainda funcionar como

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reinterpretação desta prática, dando-lhes acesso a um novo campo de racionalidade. Em suma, entre estes elementos discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser muito diferentes.

Em terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de formação que, em um determinado momento histórico, teve como função principal responder a uma urgência. O dispositivo tem portanto uma função estratégica dominante.(FOUCAULT, 1979, p. 244)

Os dispositivos podem abranger uma pluralidade de forças e atuar de forma difusa a serviço da manutenção de uma ordem e uma norma social. Seus processos de controle apresentam-se a partir de uma determinação funcional, tendo efeitos positivos ou negativos, numa relação de ressonância e/ou contradição, onde elementos heterogêneos precisam se rearticular e se reajustar continuamente.

Deleuze (1989) em sua leitura sobre o conceito foucauldiano, salienta a natureza multilinear do dispositivo: um emaranhado de linhas com vetores e direções distintas que não conformariam sistemas homogêneos. Tais linhas que compõem os dispositivos, sempre em movimento e num campo de tensão são, segundo Deleuze:

[...] linhas de visibilidade, de enunciação, linhas de força, linhas de subjetivação, linhas de ruptura, de fissura de fratura, e todas se entrecruzam e se misturam, de modo que umas repõem as outras ou suscitam outras, através de variações ou mesmo de mutações de agenciamento. (DELEUZE, 1989, p. 03)

Assim, os sujeitos, os objetos, as enunciações e as relações de forças se configurariam como vetores em tensão que não se encerram em contornos e/ou em algo fechado e acabado. Os dispositivos, como máquinas de fazer ver e fazer falar, constituem curvas de visibilidade e curvas de enunciação, ou seja, movimentam forças do campo social de forma a clarificar materialidades (não pré-discursivas e como efeito do próprio dispositivo) e compondo regimes discursivos e linguísticos que constituem e fazem circular saberes e relações de poder. Isso quer dizer, segundo Benevides (1997, p. 185) que “em cada formação histórica há

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maneiras de sentir, perceber e dizer que conformam regiões de visibilidade e campos de dizibilidade. [...] que em cada época [...], existem camadas de coisas e palavras, formas e substâncias de expressão[...], de conteúdo”.

O dispositivo da velhice (SAIS, 2011) e/ou da idade (POCAHY, 2011b), por exemplo, visibiliza o corpo que envelhece como um problema de governo de si e dos outros. Assim, a produção discursiva sobre o envelhecimento responde a determinadas urgências que alguns contextos políticos e sociais demandam. A idade-dispositivo lança luz sobre os corpos e exige dos mesmos um arsenal de técnicas de autoconhecimento, autorregulação, autocontrole e vigília de si. A subjetivação dos regimes de enunciação, ou seja, a dobra dos discursos sobre si mesmo, irá dar contornos às subjetividades e uma aparente interioridade, uma ficção que regula modos legítimos de existir a partir da demarcação etária. É assim que vemos nascer no ocidente o sentimento e a noção de infância (ÁRIES, 2006), da adolescência, do idoso e mais recentemente da terceira idade (DEBERT, 1999; PEIXOTO, 1998) e, juntamente a essas classificações, modos de sujeições e de subjetivações correspondentes.

O dispositivo da sexualidade, por sua vez, ao anunciar uma verdade sobre o sexo, institui estratégias de saber-poder que configuram formas de sujeição que aperfeiçoam o controle do Estado Moderno. Assim, sexualidades não procriativas são consideradas perversas e patológicas; o corpo da mulher é histericizado, medicado e controlado; o corpo das crianças é pedagogizado e higienizado e a criança masturbadora torna-se um problema médico, pedagógico e moral; o controle de natalidade e de procriação, direcionado ao casal malthusiano, propõe uma organização familiar compatível à Razão do Estado Moderno. O sexo, portanto, é anexado a um campo de racionalidade e nossos corpos alocados sob o signo do desejo (FOUCAULT, 1988, p. 88)

Nota-se que os dispositivos fazem produzir uma série de conceitos, objetos e enunciações que passam a circular no discurso social das instituições, do Estado e dos sujeitos, sedimentando camadas de saberes e atuando na constituição dos corpos e das subjetividades. São as linhas de força dos dispositivos que fazem com que os mesmos ganhem consistência ao retificar e/ou tensionar as outras linhas. Elas atravessam todo o dispositivo e atualizam jogos de verdade.

Mas como escapar ou transpor tais linhas de força que nos prendem aos regimes normativos dos dispositivos e nos aprisionam a posições de sujeitos rígidas e aparentemente fixas? A alternativa que

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Foucault (1984) postula assenta-se sobre a ética, ou seja, as formas de relações consigo mesmo através das quais o indivíduo se constitui como sujeito. O voltar-se sobre si trata-se de um ato reflexivo sobre as próprias ações, um modo de subjetivação. Isso não implica dizer que esse si mesmo seja uma dimensão pré-existente de um sujeito auto-constituído. Esse trabalho ético, ou seja, a “maneira pela qual um indivíduo deve constituir tal parte dele mesmo como matéria principal de sua conduta moral” (FOUCAULT, 1984, p. 27) exige um embate com as linhas de força dos dispositivos. Isso acontece quando a força entra em relação com ela mesma, ou seja,

a força, em lugar de entrar em relação linear com outra força, se volta para si mesma, exerce-se sobre si mesma ou afeta-se a si mesma. [...] Também aqui uma linha de subjetivação é um processo, uma produção de subjetividade num dispositivo: ela está pra se fazer, na medida em que o dispositivo o deixe ou o faça possível. É uma linha de fuga. Escapa às linhas anteriores, escapa-lhes. O si-mesmo não é nem um saber nem um poder. É um processo de individuação que diz respeito a grupos ou pessoas, que escapa tanto às forças estabelecidas como aos saberes constituídos: uma espécie de mais-valia. (DELEUZE, 1989, p. 03)

A partir das linhas de subjetivação decorrentes dos próprios dispositivos (ora como formas de resistência, ora como sujeição a outras normas), podemos acompanhar aquilo que Foucault chamou de artes da existência e ou técnicas de si, as quais compreenderiam

práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta, como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo. (FOUCAULT, 1984, p. 15)

Encontramo-nos, portanto, diante da complexidade dos dispositivos: eles compreendem relações de forças de saber e de poder, que conformam, legitimam e autorizam determinadas práticas; e de subjetivação, que fazem com que os indivíduos se reconheçam (ou não)

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como sujeitos. Eles são multiplicidades e como tais não podem funcionar como preditivos quanto às produções de sujeito que eles possibilitam. Isso quer dizer que as cartografias dos dispositivos, traçar seu mapa (sempre móvel), desemaranhar e acompanhar suas linhas, leva-nos a terras desconhecidas, à heterogeneidade que podem os corpos.

Penso que antes de acompanhar as linhas de subjetivação ou como os sujeitos são levados a pensar sobre si mesmos a partir da interpelação dos dispositivos da idade e da sexualidade, faz-se necessário destacar algumas linhas de suas composições históricas. Desse modo, apontarei mais adiante algumas problematizações sobre as relações de forças que foram configurando jogos de verdade na constituição do que se pode considerar como velho e/ou homossexual. Inspirando-me numa perspectiva foucauldiana, trato de problematizar, ainda que sucintamente, por meio de quais jogos de verdade o sujeito pensa sobre seu ser quando se percebe como velho e como homossexual, como um gay velho ou um velho gay. Não se trata de uma história do que pode haver de verdadeiro nesses processos, mas sim de “uma análise dos ‘jogos de verdade’, dos jogos entre o verdadeiro e o falso, através dos quais o ser se constitui historicamente como experiência, isto é, como podendo e devendo ser pensado” (FOUCAULT, 1984, p. 12). Acrescentaria ainda, em consonância ao pensamento de Butler (2006, 2002a) que se trata de um jogo entre o legítimo e o ilegítimo, o inteligível e o ininteligível, o humano e o inumano, sujeito e abjeto.

Uma breve cartografia desses dispositivos situa-nos num contexto macropolítico das produções discursivas que engendram e sustentam um campo de normas e delineiam paisagens sociais. A partir dos enunciados visibilizados, podemos então problematizar as micropolíticas das performatividades que os mesmos agenciam: performatividades geracionais, de sexualidade, de gênero e corporais (BUTLER, 2002a; POCAHY, 2011a, 2011b).

A seguir, pretendo problematizar/desemaranhar algumas linhas dos dispositivos da idade (e a produção da velhice) e posteriormente da sexualidade (e suas relações com gênero) a fim de situar o terreno discursivo sobre o qual venho trabalhando e evidenciar sua contingência histórica.

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2.1 NOTAS SOBRE A QUESTÃO DA VELHICE

A problematização sobre a velhice no campo das ciências sociais e humanas imprescinde de um olhar que considere as formas pelas quais ela foi tratada durante a história e os discursos que a enunciaram como questão objetivável de controle e gestão dos corpos e das populações. Se em determinados estratos históricos o envelhecimento foi considerado a fatalidade de um estágio biológico natural e que representava o declínio das funções vitais, em outros contextos, mais contemporâneos, as fases avançadas da vida serão reinvestidas de significados que positivarão os corpos envelhecidos, produzindo sujeitos dotados de capacidade produtiva, porém, como sinalizam alguns críticos como Guita Debert (1999) e Francisco Ortega (2008), desinvestidos de potência política, docilizados e muitas vezes infantilizados.

Como já apontava Simone de Beauvoir (1990) em seu clássico estudo sobre a condição dos velhos na França, as afirmações que tentam generalizar a velhice devem ser rejeitadas. Isso porque, como a própria autora nos diz, não podemos definir a velhice: “ela assume uma multiplicidade de aspectos, irredutíveis uns aos outros”. Que aspectos seriam esses? Beauvoir salienta bem a questão das classes: a condição entre exploradores e explorados criaria um abismo crucial na diferenciação entre os modos de vivenciar o envelhecimento. A posição social, no contexto histórico analisado pela autora, foi tomada como determinante da situação de completo abandono e miséria ou da possibilidade de receber cuidados. Autoras e autores recentemente vêm discutindo a velhice a partir de aspectos também importantes como o gênero, a raça/etnia, saúde mental, mobilidade, institucionalização, sociabilidade, trabalho, consumo.

De fato, a temática “velhice” não pode ser reduzida a alguma determinação estática, pois trata-se de um processo sempre em curso e implicado à ideia de mudança (BEAUVOIR, 1990). Beauvoir salienta, no entanto, que não se trata de qualquer tipo de mudança, de desequilíbrios que se reconquistam, mas, tratando-se do envelhecimento, de uma mudança mais específica: “algo irreversível e desfavorável – um declínio”. Claro que a autora não desconsidera que à palavra “desfavorável” subjaz um julgamento moral. Desfavorável para quem? Beauvoir (p. 18) lembra que “não há progresso ou regressão a não ser em relação a um objeto visado”. Logo, podemos pensar que a velhice se conforma como tal, tanto discursiva como materialmente, a partir de sistemas regulatórios e de inteligibilidade do corpo. Pessoas de mesma idade podem ser consideradas velhas ou não, dependendo do seu

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contexto, das formas pelas quais seu corpo é enunciado, das performatividades estilizadas. Para Beauvoir (1990, p.19)

não se falará de envelhecimento enquanto as deficiências permanecerem esporádicas e forem facilmente contornadas. Quando adquirem importância e se tornam irremediáveis, então o corpo fica frágil e mais ou menos impotente: pode-se dizer, sem equívoco que ele declina. Mas se esse “declínio” em alguns contextos históricos significava algo inevitável e lastimável, em outros poderá ser tomado como alvo de atenção a si mesmo, de vigilância e de negação da própria finitude. O que é considerado “decadente” dependerá das valorações sobre o corpo que determinado grupo social produz. Numa sociedade ocidental, moderna e capitalista como a nossa, que supervaloriza a jovialidade, o corpo produtivo e a beleza, a velhice será evitada, seja por meio das tecnologias médico-farmacológicas, seja por meio de tecnologias sociais que visam normatizar o corpo velho (ORTEGA, 2008). Logo, na nossa cultura contemporânea, a problemática do “declínio” será encarada de forma muito diferente do que há algumas décadas.

De maneira geral, a questão da velhice coloca-nos num campo de discussão, entre outras coisas, sobre corpo, família, solidão, qualidade de vida, saúde, espaços público e privado, morte e finitude. Esses temas surgem socialmente ora como algo a ser evitado, preferível que seja silenciado, ora como objeto de investimento político por parte de movimentos sociais, das políticas públicas e da própria dinâmica do mercado. Nota-se uma tensão entre discursos, alguns que enunciam a velhice como uma dramática fase da vida, outros que exaltam essa faixa etária como um momento de descanso do trabalho, de desfrute dos prazeres que não se pôde ter durante a vida, enfim, de viver o que se tem chamado de a “melhor idade”. Essa confluência de discursos surge a partir de deslocamentos históricos em relação às formas de se representar a velhice e à construção da ideia de que a camada da população com mais idade deve ser alvo de preocupação e gestão social. Debert (1999, p. 73) aponta que os estudos contemporâneos sobre velhice são marcados por dois modelos antagônicos de pensar o envelhecimento:

no primeiro deles, trata-se de construir um quadro apontando a situação de pauperização e abandono a que o velho é relegado, em que ainda é,

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sobretudo, a família que arca com o peso dessa situação. Esse modelo é criticado porque estaria, sem pretender, alimentando estereótipos da velhice como um período de retraimento em face da doença e da pobreza, uma situação de dependência e passividade que legitima as políticas públicas, baseadas na visão do idoso como ser doente, isolado, abandonado pela família e pelo Estado. No segundo, trata-se de apresentar os idosos como seres ativos, capazes de dar respostas originais aos desafios que enfrentam em seu cotidiano, redefinindo sua experiência de forma a se contrapor aos estereótipos ligados à velhice. Levando ao extremo, esse modelo rejeita a própria ideia de velhice ao considerar que a idade não é um marcador pertinente na definição das experiências vividas [...]. Esse segundo modelo, também sem pretender, acaba fazendo coro com os discursos interessados em transformar o envelhecimento em um novo mercado de consumo, prometendo que a velhice pode ser eternamente adiada através da adoção de estilos de vida e formas de consumo adequadas. Esses dois modelos nos quais se centram os estudos sobre envelhecimento mostram que o olhar contemporâneo para a velhice se compõe a partir de uma sobreposição de saberes e visões definidoras do objeto “velho” e, por conseqüência, da própria noção de corpo. Essas visões, que variam entre um cientificismo, uma moralidade do corpo e uma racionalidade de controle, produziram-se a partir de diversos enunciados sobre a velhice, o envelhecimento e o corpo. Esses enunciados se atualizam e circulam no campo social atravessando sujeitos. É por esse motivo que devemos dar atenção às formas como a velhice foi enunciada para tentar apreender as sutilezas e diferenças como a cultura ocidental lidou com os/as velhos/as e como os sujeitos são marcados por esses discursos.

Segundo Nízia Vilaça (2000) as visões filosóficas sobre o corpo oscilam entre “uma denúncia do corpo como obstáculo, prisão e lugar de alienação e a exaltação do mesmo, como espaço de prazer, como meio de liberação individual e coletiva”. Essas duas visões, ou essas duas matrizes discursivas a partir das quais se objetificam os corpos (velhos, doentes, jovens, produtivos, corpos-dóceis, etc.) coexistem numa mesma época e compõem uma visão

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tensional sobre o objeto corpo (VILAÇA, 2000). Percebe-se, nesse sentido, que as concepções de envelhecimento estão intimamente atreladas a concepções filosófico-morais de corporalidades. Conceitos co-existentes e co-produzidos: a velhice se visibiliza a partir da enunciação de um corpo que, por sua vez, ganha inteligibilidade a partir de um referente etário. Ainda segundo a autora citada, o menosprezo ou a inferiorização em relação à matéria estaria remetida a uma hierarquia platônica, na qual a alma, divina e imortal, ocuparia uma importância maior em relação ao corpo material, frágil e finito. Por outro lado, a modernidade traz novos olhares sobre o corpo a partir do Renascimento e da ciência, contribuindo com concepções cuja saúde corporal e um ótimo funcionamento orgânico ganham centralidade e a velhice passa a ser tratada como um problema.

Beauvoir já nos apontava que diferentes culturas e sociedades estabelecem diversas formas de hierarquização a partir das idades cronológicas. Debert (1998, p. 50) chama a atenção para o fato de que a velhice não pode ser tomada como uma categoria natural e universal. Para a antropóloga “as representações sobre a velhice, a posição social dos velhos e o tratamento que lhes é dado pelos mais jovens ganham significados particulares em contextos históricos, sociais e culturais distintos”. As pesquisas antropológicas deixam evidente que as fases da vida, sejam elas quais forem, não constituem categorias substanciais (DEBERT, 1998; MINAYO & COIMBRA, 2002), mas são modos de organização social e de elaborar simbolicamente um processo biológico. Isso significa que o esquadrinhamento de pessoas a partir de conceitos como “idade”, “geração”, “maturidade” seria algo completamente arbitrário e sujeito a determinações culturais, sociais e políticas. O próprio sistema de datação baseado nas idades cronológicas está ausente na maioria das sociedades não ocidentais (FORTE, 1984, apud DEBERT, 1999).

Segundo Debert (1998) a cronologização da vida seria uma consequência da modernidade que institucionaliza o curso de vida a partir da idade cronológica. Para a autora,

os critérios e normas da idade cronológica são impostos nas sociedades ocidentais não porque elas disponham de um aparato cultural que domina a reflexão sobre os estágios de maturidade, mas por exigência das leis que determinam os deveres e direitos do cidadão. (DEBERT, 1998, p. 47)

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De acordo com Alda Britto da Motta (2002, p. 38) “a modernidade capitalista construiu uma visão segmentar das idades: periodiza as gerações, constrói e ‘desconstrói’ idades, quase a cada século inventa mais uma”. Mas essa segmentaridade, que nos binariza, deixa escapar as micropolíticas e as multiplicidades existenciais possíveis como nos apontam Deleuze e Guattari (2008). É o que também nos lembra Myriam Lins de Barros (2006), ao mostrar que as pesquisas sobre velhice vêm empreendendo um esforço para evidenciar a heterogeneidade de experiências de envelhecimento e para apontar que as periodizações das fases da vida são determinadas por diferentes padrões que coexistem entre si.

Os modos de classificação de indivíduos a partir da idade cronológica estabelecem relações de poder que se reificam a partir da naturalização do envelhecimento. Se por um lado o “envelhecer” está atrelado a um fato biológico, por outro a experiência de envelhecimento é discursivamente construída, tendo por efeito a ativação de modos de subjetivação heterogêneos. Não pretendo com isso dizer que o “corpo biológico que envelhece”, assim como qualquer outro, não esteja também habitado por múltiplos discursos (BUTLER, 2002b): ele só ganha materialidade e inteligibilidade a partir de seus agenciamentos de enunciação. Portanto, nem mesmo o fato biológico do envelhecimento pode ser tomado como fora do discurso, uma vez que é no interior dele mesmo que se produzem realidades bem concretas como a estigmatização, a exclusão e o abandono por um lado, e o investimento de tecnologias que mascaram a existência de um corpo que se transforma, por outro. As problematizações sobre corpo no campo de estudos de gênero e feministas já apontam, desde os anos 60, os problemas e consequências das correlações ideológicas entre “natureza” e “mulher”. No entanto, como nos mostra Britto da Motta (2002), a recusa a esse determinismo bioideológico em relação ao corpo, sexo, gênero e sexualidades, amplamente discutido entre feministas, ainda não parece ter atingido de forma satisfatória os modos como nos relacionamos com a velhice e como olhamos para o corpo velho, sobreinvestido de discursos biologicistas e essencialistas.

Se o dispositivo da idade cria condições de inteligibilidade ao sujeito é porque ele está submetido a uma série histórica de valorações sobre o corpo, a um conjunto de normas e a um campo de disputa política sobre a vida. Apontarei a seguir algumas linhas que ilustram esses jogos de verdades/legitimidades/inteligibilidades.

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2.1.1 O DISPOSITIVO DA IDADE E A PRODUÇÃO DA VELHICE Com a criação do Estado Moderno, torna-se necessário otimizar formas mais eficazes de governamentalidade, seja no âmbito econômico, do controle social, da saúde, da família e em todas as áreas por onde o “social” se dissemina e se visibiliza, como nos apontam Foucault (1988, 2002) e Donzelot (1986). A institucionalização da idade cronológica está intimamente relacionada às mudanças na economia (DEBERT, 1998) pois ela será um dos indicadores de quais camadas da população será economicamente ativa (mendigos, velhos, loucos e toda a ordem de corpos “degenerados” e improdutivos precisarão ser “remanejados” a partir de dispositivos de segregação e exclusão – presídio, asilos, hospitais - com a finalidade de não atrapalhar o bom funcionamento do Estado que precisa se fortalecer). Nesse sentindo, agrupar estratos populacionais a partir da idade seria uma estratégia governamental que institucionalizaria o curso de vida a fim de regular as etapas da vida e aperfeiçoar formas de gestão das populações. As taxas de natalidade, a escolarização, o mercado de trabalho, a aposentadoria, tudo isso pode ser melhor racionalizado a partir de categorias etárias bem delimitadas, que dizem mais respeito à otimização do controle do que às múltiplas valorações possíveis sobre o curso de vida. Além disso, o sistema de datação baseado nas idades cronológicas é crucial para a construção do sujeito “cidadão”, pois determinará direitos e deveres a partir dos marcadores etários. Como sublinha Debert (1998, p. 48) “a idade cronológica só tem relevância quando o quadro político-jurídico ganha precedência sobre as relações familiares e de parentesco para determinar a cidadania”.

A partir desse ponto de vista, a velhice passa a constituir-se como um objeto biopolítico, ou seja, um aspecto da vida sobre o qual a política irá incidir suas ações. Para Almir Pedro Sais (2011) a velhice é mais que um fenômeno do curso de vida, é uma tecnologia centrada na vida, a qual regula os hábitos e os comportamentos. Para esse autor, o conceito de velhice, a experiência de envelhecer e estar velho não são sinônimos, mas seriam efeitos do que ele considerou ser um dispositivo da velhice. Isso me interessa, uma vez que procuro, nesta pesquisa, acompanhar as performatividades estilizadas por sujeitos interpelados pelo dispositivo da idade, ou seja, como o envelhecimento é performativamente produzido. Mas sob quais condições de possibilidade, quais forças históricas a velhice passa a ser entendida como um problema e como parte de um plano de gestão da vida? Quais

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mecanismos de poder e relações de força vão dando contorno ao que hoje se toma como inteligível o sujeito velho?

Com o fim das monarquias e do poder soberano e com a emergência dos Estados Nação, o poder jurídico e da lei, segundo Foucault (1988), mostra-se insuficiente para a consolidação do Estado Moderno. Desse modo, o poder sobre a vida, ou seja, uma forma de poder que faz viver e deixa morrer (por uma razão de Estado liberal e capitalista) mostra-se mais eficiente quando utiliza das normas como estratégia de controle. Se o soberano tinha poder sobre os indivíduos, o Estado passa a ter controle sobre toda uma população. Os dispositivos de dominação não estariam exclusivamente restritos ao procedimento da lei e da interdição. Os novos mecanismos de poder que surgem a partir do século XVIII, que tomam a vida como alvo de gestão, funcionam, segundo Foucault (1988, p. 100) “não pelo direito mas pela técnica, não pela lei mas pela normalização, não pelo castigo mas pelo controle”.

As condições de possibilidades para que a velhice possa ser pensada como um problema social começam a emergir a partir da transformação dos mecanismos de poder no Ocidente. Com a falência dos sistemas de soberania e com a ascendente forma de governo burguesa, ou seja, com a instauração do Estado Moderno, as formas de governamentalidade passam a se preocupar não mais em destruir forças, mas em torná-las produtivas. O poder de morte conferido aos soberanos desloca-se para um tipo de poder que maximiza a vida, com a óbvia finalidade de constituir um corpo social que se autorregule. As guerras não são mais em nome do soberano, mas em nome de toda uma população, sua salvação e preservação. Foucault aponta para essa transição na mecânica do poder, propondo que a concepção deste enquanto lei, soberania e interdição, deva ser reformulada para se construir uma analítica do poder que não tome mais o direito como modelo e código (FOUCAULT, 1988, p. 100). Segundo a concepção do filósofo, o poder repressivo seria limitado e ineficiente, pois estaria baseado num modelo essencialmente jurídico, “centrado exclusivamente no enunciado da lei e no efeito de obediência.” e que seria incapaz de invenção, estando condenado a repetir-se sempre, além de só ter a potência de colocar limites aos indivíduos. (FOUCAULT, 1988, p. 96).

Essa nova forma de poder sobre a vida, que Foucault (1988) denominou biopoder, desenvolve-se a partir do século XVII e se centra a partir de dois pólos: um que se direciona ao corpo máquina, que o adestra, dociliza e extrai suas forças a partir da disciplinarização anátomo-política do corpo humano; e outro que se volta ao corpo espécie, ou seja,

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o corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população. [...] A velha potência da morte em que se simbolizava o poder soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida. [grifos meus]. (FOUCAULT, 1988, p. 152)

O biopoder irá instaurar, ao final do século XVIII, o que Foucault, ao longo de seus trabalhos, chamou de uma "biopolítica da espécie humana". O poder atuante sobre ser vivo / biológico, ou como diria Foucault (2002), o poder que gera "a estatização do biológico", ou ainda, a biopolítica como estratégia do biopoder, entende-se como um conjunto de processos e/ou problemas, relacionados a um conjunto de seres vivos constituídos em populações. Dessa forma, o Estado cria formas de controle e tecnologias de gestão das populações na tentativa de racionalizar os problemas da prática governamental. Segundo Foucault, é nesse momento que surge a ideia de população (em contraponto à ideia de sociedade) como um problema político e econômico

não é exatamente com a sociedade que se lida nessa nova tecnologia de poder [...]; não é tampouco com o indivíduo-corpo. É um novo corpo: corpo múltiplo, corpo com inúmeras cabeças, se não infinito pelo menos necessariamente numerável. É a noção de “população”. A biopolítica lida com a população, e a população como problema político, como um problema a um só tempo científico e político, como problema biológico e como problema de poder [...] (FOUCAULT, 2002, p. 292).

A preocupação com a vida faz parte do um projeto de Estado, mas isso não quer dizer que desde então a velhice se constituiu como um problema de governo. Segundo Donzelot (1986, p. 54) os grandes

Referências

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