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Graça e Livre Arbítrio em Blaise Pascal

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Academic year: 2021

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GRAÇA E LIVRE ARBÍTRIO EM BLAISE PASCAL

*

LUÍS CÉSAR GUIMARÃES OLIVA**

Departamento de Filosofia/FFLCH Universidade de São Paulo

Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 05508-900 SÃO PAULO, SP lcoliva@uol.com.br

Resumo: As relações entre graça e livre arbítrio em Pascal são melhor compreendidas através da

recusa de dois modelos antagônicos: o molinismo (em que o livre arbítrio é pleno, como o de Adão, e a graça é mera conseqüência do esforço humano) e o calvinismo (em que o livre arbítrio é desde sempre aniquilado e a graça é totalmente incondicionada). Pascal assume a força da graça, à maneira dos calvinistas, mas faz da condição de Adão um estado de livre arbítrio pleno, à maneira dos molinistas; estado de onde o homem saiu em conseqüência do pecado original. Além disso, Pascal resguarda, mesmo na nossa condição atual, um espaço para o livre arbítrio: a oração.

Palavras-chave: graça; livre arbítrio; oração; pecado original.

Abstract: The relations between grace and free will in Pascal’s philosophy are better understood

through the refuse of two opposite models: molinism (where there is total free will, as in Adam, and grace is just a consequence of human effort) and calvinism (where free will has ever been aniquilated and grace is totally unconditional). Pascal believes in the force of grace, like the calvinists, but make the adamic condition a state of free will, like the molinists; a state that men left because of the original sin. Besides, Pascal gives, even in our condition, a place for free will: the prayer.

Key-words: grace; free will; prayer; original sin.

Toda a filosofia de Pascal dirige-se, de uma maneira ou de outra, a questões teológicas, como indica o fr. 556 dos Pensamentos: “(...) a religião deve de tal maneira ser o objeto e o centro para onde todas as coisas tendem, que quem conhecer os seus princípios poderá explicar a razão de toda a natureza do homem,

* Este trabalho teve o apoio da FAPESP.

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em particular, e de toda a marcha do mundo, em geral.”1 A questão do livre arbítrio, em especial, é tratada por Pascal no interior de querelas teológicas e somente aí pode ser compreendida por inteiro. Deste modo, a visão de Pascal sobre a questão é retratada sobretudo nos Escritos sobre a Graça, onde se encontra a teologia pascaliana.

Estes Escritos, compostos provavelmente entre 1656 e 1658, são esboços de um tratado ou de cartas que Pascal planejava escrever sobre a teologia da graça. Assim, bem como nos Pensamentos, somos obrigados a articular da melhor maneira possível os textos dos quatro Escritos para nos aproximarmos das concepções pascalianas.

Os textos partem da tradição, isto é, da Bíblia e dos Santos Padres, sobretudo Agostinho, além das decisões do Concílio de Trento. Segundo Thomas Harrington, no seu livro Verité et Methode dans les Pensées de Pascal (HAR-RINGTON, 1972, p. 33), Pascal usa nos Escritos basicamente dois métodos: pelo primeiro, Pascal deduz racionalmente pontos contestados a partir de pontos não contestados. Exemplo: “Se, segundo Agostinho, Deus, por sua permissão, providência e

disposição, mistura entre os eleitos alguns justos que não devem perseverar, a fim de manter o medo dos que perseveram através da queda dos que falham, não haveria nada tão contrário

ao desígnio de Deus quanto dar um poder suficientemente próximo àqueles que não caem e assegurar-lhes que tal poder estará sempre presente, já que o exemplo dos outros que caíram no mau uso deste poder não teria nada que devesse necessariamente assustá-los.” (PASCAL, Oeuvres Complètes, p. 1006.) Pelo segundo, Pascal analisa os vários sentidos possíveis de uma proposição e então escolhe um deles segundo a coerência com a tradição. Exemplo: “O objeto deste discurso é mostrar qual é o verdadeiro sentido dos Santos Padres e do Concílio de Trento nestas palavras: Os mandamentos não são impossíveis aos justos. Qual destes dois sentidos é o verdadeiro: 1) Que não é impossível que os justos realizem os mandamentos; 2) Que os mandamentos são sempre possíveis a todos os justos, por este pleno e último poder, ao qual nada falta da parte de Deus, para agir. Os meios que empregaremos para reconhecer qual destes dois sentidos é o

1As citações dos Pensamentos serão feitas a partir da tradução de Sérgio Milliet para a coleção Os Pensadores.

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verdadeiro serão estes: 1) O primeiro será examinar pelos termos da proposição qual é o sentido que ela exprime e que se forma naturalmente; 2) O segundo será examinar pelo objeto que trataram os Padres e o Concílio ao tomar esta decisão; 3) E o terceiro será examinar, pela seqüência do discurso e por outras passagens dos Padres e do Concílio que o expliquem, qual é o verdadeiro sentido.” (PASCAL, Oeuvres Complètes, p. 1012.)

Entendendo o livre arbítrio como espontaneidade da vontade, Pascal coloca a questão inicialmente da seguinte forma: Qual das duas vontades, a humana ou a divina, é a dominante, a fonte, o princípio e a causa da outra? Pascal põe as coisas assim porque entende que, quando estas vontades cooperam, uma delas (a causa primeira) inclui e determina a outra (causa segunda), podendo-se mesmo dizer que só a primeira é efetiva. “Pois a vontade seguinte é tal que se pode dizer em um sentido que a ação provém dela, já que ela para isto concorre, e em um sentido que a ação não provém dela porque ela não é a origem; mas a vontade primeira é tal que se pode bem dizer que a ação provém dela, mas não se pode de modo algum dizer que a ação não provém dela.” (PASCAL, Oeuvres

Complètes, p. 949.) Ora, é certo que Deus não pode nos salvar ou condenar sem

nós, no sentido de que os eleitos querem ser salvos e os condenados querem pecar. Deus e homem querem, mas só uma vontade pode ser realmente determinante. Se considerarmos que Deus quer apenas absolutamente, sem levar em conta a vontade humana, as noções de livre arbítrio e mérito se dissolvem. Se considerarmos que Deus quer por previsão e leva em conta as decisões do livre arbítrio, aquelas noções se resguardam.

Esta discussão não pode ser pensada fora das disputas teológicas da época. Tanto é assim que a própria exposição de Pascal se dá através da apresentação de duas doutrinas erradas e opostas juntamente com a doutrina de Agostinho, a única que seria genuinamente católica. Os extremos com quem Pascal discute são os que recusam o livre arbítrio, e os que o supervalorizam em prejuízo da vontade divina, respectivamente os Calvinistas e os Molinistas. Eles são assim apresentados: “A opinião dos calvinistas é: que Deus, criando os homens, criou uns para daná-los e outros para salvá-los, por uma vontade absoluta e sem previsão de mérito. Que, para executar esta vontade absoluta, Deus fez pecar Adão e não somente permitiu mas causou sua queda.” (PASCAL, Oeuvres

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Complètes, p. 951.) E os Molinistas: “(...) Deus tem uma vontade condicional de

salvar em geral todos os homens. Que para isto Jesus Cristo se encarnou de modo a salvá-los todos sem exceção, e que suas graças sendo dadas a todos, depende apenas da vontade deles e não da de Deus usá-las bem ou mal.” (PASCAL,

Oeuvres Complètes, p. 952.)

Pascal tem de dar conta dos dois extremos, superando-os. Fazê-lo recair em um dos opostos seria fechar os olhos para a batalha teológica jansenista que se dava na época, e também seria ignorar o enorme esforço intelectual de Pascal para resolver a crise. Para isso, o autor apela para Santo Agostinho, ou pelo menos para uma leitura possível de Agostinho: “Eles (os discípulos de Agostinho) pretendem que, para o estado de inocência, Deus teve uma vontade geral e condicional de salvar todos os homens, desde que eles o quisessem pelo livre arbítrio amparado pelas graças suficientes que Deus lhes dava para sua salvação, mas que não os determinavam infalivelmente a perseverar no bem. Mas que Adão, tendo pelo livre arbítrio usado mal esta graça e tendo se revoltado contra Deus por um movimento de sua vontade e sem nenhuma impulsão de Deus, corrompeu e infectou toda a massa dos homens, de modo que ela foi o justo objeto da cólera e da indignação de Deus. Eles entendem que Deus separou esta massa igualmente culpável e digna de danação, que Ele quis salvar uma parte por uma vontade absoluta fundada sobre sua misericórdia toda pura e gratuita, e que, deixando o resto na danação onde estava e onde podia com justiça deixar a massa inteira, Ele previu ou os pecados particulares que cada um cometeria ou ao menos o pecado original de que são todos culpados, e em decorrência desta previsão quis condená-los.” (PASCAL, Oeuvres Complètes, p. 952.)

O estudo de Pascal nos conduz sempre para o ponto nevrálgico de sua filosofia, o pecado original. Este mistério incompreensível é a única explicação para todos os dilemas humanos, sejam filosóficos ou teológicos. Como não poderia deixar de ser, também esclarece a questão do livre arbítrio. A diferença dos dois estados mostra a perfeição do livre arbítrio adâmico, igualmente flexível ao bem e ao mal, onde a razão podia ver o melhor caminho e o homem tinha acesso ao infinito. Porém a grandeza de Adão foi proporcional a sua queda, mancha tão poderosa que danificou toda a humanidade. Tão grande foi a nódua do pecado que somente a morte de um Deus, na pessoa de Jesus Cristo, pôde

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restaurar a possibilidade de salvação. Mas agora o homem tem um livre arbítrio mais fraco que o de Adão. A força da concupiscência o obriga a seguir as paixões mais rasteiras, de modo que a graça habitual de Adão não mais basta para romper os obstáculos carnais. É assim que apenas uma graça eficaz, muito mais poderosa, pode reconduzir o homem para Deus, contudo ela o faz infalivelmente, de modo que o livre arbítrio continua escravo. O coração, órgão que dá os princípios da razão, bem como da vontade, está corrompido pela cupidez. A graça reordena-o inserindo nele os princípios que fazem a vontade se movimentar para Deus.

A previsão do pecado, ainda que apenas o original, justifica a condenação dos pecadores. A salvação incondicional dos eleitos portanto ressalta a misericórdia divina. Assim, não há dúvida de que Deus não tem culpa do mal ao qual alguns se destinam. Mas em que sentido o livre arbítrio se preserva? Pascal destaca que os Molinistas expandiram indevidamente a vontade divina do paraíso para nossa condição presente, colocando tudo em nossas mãos como se tivés-semos o poder de Adão para nos salvar. Os Calvinistas por sua vez expandiram a vontade divina da corrupção para a criação, fazendo que Deus tivesse vontade absoluta de condenar ou danar antes do pecado, já que Ele injustamente obrigou Adão a pecar. Nesta visão, todas as ações humanas são pecados e por isso sequer cooperamos na salvação. Haverá uma outra alternativa real?

Quanto à visão pascaliana, se nos centrarmos apenas na natureza humana corrupta, não veremos grande diferença em relação ao Calvinismo, a não ser pelo fato de que a condenação divina é justificada pelo pecado de Adão. Só a graça pode corrigir e elevar o homem pascaliano. Por mais que o homem controle sua tendência a pecar, nenhuma boa ação humana tem proporção com a infinitude do pecado original. O corte entre as duas condições é insuprimível sem a intervenção transcendental. E mesmo o homem que sequer tem pecados veniais pode ser condenado com justiça devido ao pecado original. Em resumo, as boas ações dos justos se devem a movimentos da graça e a salvação vem exclusivamente da vontade divina. O homem será sempre escravo, seja da graça, seja da concupiscência.

Em sentido pleno portanto, só Adão era livre, só ele se encontrava na indiferença essencial que permite a livre escolha. Quanto ao homem corrupto, sua vontade é sempre arrastada pelo vencedor da batalha entre graça e cupidez.

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Mesmo que estas hipoteticamente sejam iguais e se anulem, o homem não recuperará a liberdade de Adão, mas apenas cairá na inação. Portanto, resta ao livre arbítrio um espaço bem tênue e somente quando o concebemos do ponto de vista do poder ( o qual obedece nosso querer) e não do ponto de vista deste mesmo querer ( que é determinado). Sobre isso, Pascal cita Agostinho: “Porque, como uma coisa é dita em nosso poder quando a fazemos quando queremos, nada está tanto em nosso poder quanto a vontade; mas a vontade é preparada pelo Senhor, portanto é assim que Ele dá o poder.” (PASCAL, Oeuvres Complètes, p. 1032.) Voltando para as considerações iniciais dos Escritos sobre a Graça, seríamos obrigados a reconhecer a vontade divina como única, já que pode-se dizer que a vontade humana é causa de salvação em um sentido, mas não é em outro, enquanto a vontade divina em nenhum sentido deixa de ser causa. “fr553: (...) Jesus, enquanto os seus discípulos dormiam, operou a salvação deles. Deu-a aos justos enquanto dormiam: no nada, antes de nascerem, e nos pecados, depois do seu nascimento.”

No entanto é preciso afastar as acusações de Calvinismo, garantindo um lugar real para o livre arbítrio mesmo após a corrupção. Do contrário, Pascal estaria negando Santo Agostinho: “E Santo Agostinho, para mostrar que não nega a liberdade quando sustenta a graça: É uma impertinência insuportável de nossos inimigos

dizer que, por esta graça que defendemos, não resta nada para a liberdade da vontade. E em

outro lugar: Pois o livre arbítrio não é retirado ao ser socorrido; ao contrário, ele é socorrido

porque não é retirado. E no livro Do Espírito e da Letra, cap. XXIX: Arruinamos o livre arbítrio pela graça? Ao contrário, nós o estabelecemos por ela. Pois o livre arbítrio não é aniquilado, mas estabelecido pela graça, assim como a Lei o é pela fé.” (PASCAL, Oeuvres Complètes, p. 1020.) Deste modo, Pascal, que já havia livrado Deus de qualquer

culpabilidade, precisava ainda de algum movimento legitimamente espontâneo da vontade para consolidar o livre arbítrio.

A resposta para isto pode ser encontrada na conversão do pecador: “fr470:A conversão verdadeira consiste em aniquilar-se diante desse ser universal que tantas vezes tem sido irritado e que pode perder-vos legitimamente a todo momento; em reconhecer que não se pode nada sem ele, e que nada se mereceu dele, senão a perda de sua graça.” É por meio deste momento de purificação do homem corrompido que Pascal achará um movimento realmente espontâneo da

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alma. Na conversão o homem odiará em seu eu tudo que é carnal e orgulhoso, amando somente o infinito ausente. Deste modo, no movimento de repulsa a si mesmo, o homem reencontra o caminho para Deus. Mas será ele o verdadeiro responsável por esta correção ? Vejamos no fr. 282: “(...) Eis porque aqueles a quem Deus deu a religião pelo sentimento do coração são bem felizes e se encontram legitimamente persuadidos. Mas aos que não a têm, só lha podemos dar pelo raciocínio, à espera que Deus lha dê pelo sentimento do coração, sem o que a fé é apenas humana e inútil para a salvação.” A verdadeira conversão é apenas a dada por Deus, não a meramente humana. Logo, à primeira vista, a conversão não resolve o problema do livre arbítrio. Este fragmento não mostra nada além do que os Escritos já diziam: o homem é sempre escravo, seja da concupiscência ou da fé. Ele é o terreno de uma batalha e ao mesmo tempo o prêmio para o vencedor.

A graça, que nos garante um lugar entre os eleitos depende apenas de Deus. Ela sequer é um dom que recebemos e usamos quando e como queremos. A graça eficaz, única que pode corrigir a corrupção, não é um presente que está sempre conosco como era a graça habitual de Adão. Diz Pascal na carta a Mme Perier de 5 de novembro de 1648: “Assim a continuação da justiça dos fiéis não é outra coisa senão a continuação da infusão da graça, e não uma só graça que subsiste sempre; e é o que nos ensina perfeitamente a dependência perpétua em que estamos da misericórdia de Deus, já que, se Ele interrompe o fluxo, a perda decorre necessariamente.” (PASCAL, Oeuvres Complètes, p. 488.) Nossa fé pode cessar a qualquer instante se o fluxo da graça cessar. Apenas o instante presente nos garante entre os fiéis, mas, infelizes que somos, o tempo é inexorável e sempre caminha para o futuro, de modo que temamos a cada instante a condenação. Neste sentido, é difícil imaginar como a graça pode socorrer o libre arbítrio sem destruí-lo.

Contudo, sem abalar a infalibilidade da graça divina, Pascal garante um espaço para a liberdade. Para isso, o autor se utiliza da noção de oração. A oração, como procura sincera e angustiada de Deus é causa da fé. Há uma dupla acolhida, bem como um duplo abandono da parte de Deus. Ele nos dá a oração, com ela lhe rogamos que nos acolha e devido a este pedido Ele nos dá a fé. No abandono, hipótese essencial para manter o temor e a humildade humana, ocorre o mesmo:

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Deus corta o dom da oração, nós o abandonamos com nossos pedidos e Ele nos abandona cortando o dom da fé. Mesmo sem negar a onipotência de Deus, Pascal dá ao homem um lugar na séria causal que leva à salvação. Pascal cita: “(...) São Tomás, falando da predestinação gratuita, sobre a qual não tendes dificuldade,diz que se pode considerá-la ou em comum ou em seus efeitos particulares e falar assim de duas maneiras contrárias; considerando-a em seus efeitos, pode-se alegar causas destes; os primeiros sendo causas meritórias dos segundos e os segundos a causa final dos primeiros; mas considerando-os todos em comum, eles não têm nenhuma causa senão a vontade divina; isto é, como ele explica, a graça é dada para merecer a glória e a glória é dada porque foi merecida pela graça; mas o dom da glória e da graça em conjunto não tem nenhuma causa senão a vontade divina.” (PASCAL, Oeuvres Complètes, p. 979.) O mesmo raciocínio podemos aplicar para a oração com relação à fé: ambas são dadas por Deus, mas uma pode ser dita causa da outra.

Este desdobramento porém torna-se dificilmente compreensível quando vemos que oração e fé estão irremediavelmente unidas. Comentando o canon 22 do Concílio de Trento, o qual afirma que os justos não têm o poder de manter sua justiça no instante seguinte ( quando talvez tenha cessado o fluxo da graça), Pascal diz: “Esta definição do canon 22 acarreta também necessariamente que os justos não têm sempre o poder próximo de perseverar na oração. Afinal, já que as promessas do Evangelho e da Escritura nos asseguram a obtenção infalível da justiça necessária para a salvação se nós a pedimos pelo espírito da graça e da maneira correta, não é indubitável que não há diferença entre perseverar na prece e perseverar na impetração da justiça ?” Trata-se de uma ligação tão estreita que propicia a célebre frase: “Não me procurarias se já não me tivesses encontrado.”

Não há distinção cronológica entre o dom da oração e o dom da fé. Em um instante o homem é descrente, infiel e nenhuma de suas ações pode corrigir o abismo criado pelo pecado original. No instante imediatamente seguinte, o homem é um dos eleitos, ora, teme e tem fé. Não há um momento de transição entre os dois estágios. A ruptura da conversão é tão radical quanto a ruptura do pecado original.

Pascal faz uma classificação dos homens nos Escritos: “E portanto há três tipos de homens: uns que não chegam jamais à fé; outros que chegam mas não

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perseveram e morrem em pecado mortal; e os últimos que vêm à fé e perseveram na caridade até a morte.” (PASCAL, Oeuvres Complètes, p. 953.) Não há uma quarta categoria intermediária de homens que apenas oram e não chegam à fé, o que corrobora a tese da simultaneidade entre fé e oração. É verdade que, nos

Pensamentos, Pascal empreende outra classificação: “fr. 257: Há apenas três espécies

de pessoas: umas servem a Deus, tendo-o encontrado; outras aplicam-se em buscá-lo, não o tendo achado; outras, enfim, vivem sem o procurar e sem o ter encontrado. As primeiras são sensatas e felizes, as últimas, loucas e desgraçadas, as do meio infelizes e sensatas.” Entretanto, esta última divisão não fala da procura iluminada pelo dom da oração, mas de uma procura humana racional. Logo, vê os homens do ponto de vista da razoabilidade de suas vidas. Ora, a razão nada tem a ver com a inspiração divina. São ordens totalmente separadas como diz o fr. 793: “A distância infinita dos corpos aos espíritos figura a distância infinitamente mais infinita dos espíritos à caridade, pois ela é sobrenatural.” De tudo isto, pode-se concluir que, na perspectiva da graça, não há aqueles que procuram sem ter a fé.

Parece então que para nós, seres temporais, a distinção entre o dom da oração e o dom da fé é apenas uma distinção lógica. A oração exerce a função de causa meritória em relação à fé, mas ambas, causa e efeito, são dadas simultaneamente. Aparentemente estamos falando apenas de uma construção teórica que resguarda o livre arbítrio como possibilidade, não como real. O esforço intelectual de Pascal seria louvável da perspectiva da razão, mas da perspectiva prática seria dispensável para nossa salvação.

Veremos que não é assim. No fr. 513, Pascal diz: “Por que Deus estabeleceu a prece: 1) para comunicar a suas criaturas a dignidade da causalidade; 2) para ensinar-nos de quem recebemos a virtude; 3) para fazer-nos merecer as outras virtudes pelo trabalho. Mas, a fim de conservar para si a preeminência, dá a prece a quem lhe agrada. (...)” O segundo ponto destaca que a oração, como procura angustiada, nos faz humildes e conscientes da dependência em que estamos do criador para realizar boas obras. O terceiro ponto destaca que a oração é o que nos dá o mérito e, sem ela, temos apenas a condenação. O primeiro ponto, finalmente, destaca que a oração é o dom através do qual Deus nos dá um lugar na cadeia causal da predestinação. Sem a oração, somos totalmente indignos e alheios ao processo de salvação.

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A vontade absoluta de Deus quanto a nossa salvação continua intocada visto que o dom da oração é incondicional e nada do que façamos poderá fazer-nos merecedores dele. Ao contrário, só de posse do dom da oração é que podemos pensar em algum tipo de mérito. Todavia, esta causa meritória só se manifesta temporalmente quando seu efeito já está dado. A procura que reiteramos a cada instante e a angústia que sentimos são coisas que só vêm para o fiel. Sendo assim, não é uma atividade temporal que pode atuar como causa meritória da fé pois, como já dissemos, não há um só instante intermediário entre descrença e crença. Para vê-la agir como causa meritória, precisamos pensar a oração operando entre dois instantes imediatamente contíguos. Ou seja, a ação causal da oração, embora seja uma ação do homem, um ser temporal, deve se dar fora da temporalidade. Só deste modo ela pode ser causa de um efeito (a fé) que se dá no tempo simultaneamente a ela. O livre arbítrio só pode ser realmente corrigido e reaproximado do livre arbítrio puro de Adão por meio deste milagre assombroso. A grandeza infinita do pecado de Adão é assim compensada por uma verdadeira sobrenaturalização da vontade humana.

A fé é um dom que recebemos passivamente, por determinação de Deus. Ao recebê-lo, nosso coração é imediatamente atraído para a caridade e neste mesmo instante somos justos. Não há portanto espaço para a livre escolha. Já a oração, embora igualmente um dom, é de outra natureza. Nós a recebemos ativamente porque ela é em si uma ação do homem em direção a Deus. Ela é o voltar-se voluntariamente para Deus, coisa que só ocorre fora do tempo, pois na temporalidade somos sempre escravos, seja da graça, seja da concupiscência. Nós só temos consciência desta procura no tempo quando ela já não está mais atuando como causa. A oração é o contínuo “converter-se” que nunca se conclui definitivamente porque jamais sabemos se Deus cortará seu fluxo no instante seguinte. Mais do que um novo princípio que é derramado no coração para direcionar a vontade, a oração é uma reforma do próprio movimento da vontade.

Tamanho milagre só é pensável porque a oração humana tem duplo caráter, é ativa e passiva, é ação do homem e dom de Deus. Nela, a vontade humana não é simplesmente determinada pela vontade divina, mas se une à vontade divina. Associadas, elas constituem um movimento único na existência humana, movimento de real liberdade que reencaminha o homem e leva-o à fé. A

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atemporalidade de Deus, por sua vez, permite que esta ação se dê fora do tempo humano e que portanto, para nossa consciência de seres temporais, a causa e o efeito sejam simultâneos.

Pelos critérios do primeiro Escrito, vemos que apenas nesta estranha mistura a vontade humana se resguarda. Na fé e nas boas obras, as vontades humana e divina são causa, mas em um certo sentido a vontade humana não o é (por ser determinada), enquanto a vontade divina em nenhum sentido deixa de ser causa. Já na oração, as vontades humana e divina são causa; em nenhum sentido se pode dizer que a vontade divina não é causa, mas também em nenhum sentido pode-se dizê-lo da vontade humana. Logo, para Pascal, a vontade humana reencontra sua plena força justamente no instante em que se diminui e se humilha para melhor entregar-se ao criador.

Vimos então que o que aparentava ser apenas uma distinção lógica entre o dom da oração e o dom da fé é na verdade o sinal da intervenção divina na vontade humana, sobrenaturalizando-a e tornando-a causa da salvação. Esta associação milagrosa, ainda que incompreensível, dá um espaço real para as noções livre arbítrio e mérito. E quanto à incompreensibilidade deste fato, remeto-me novamente a Pascal no fr. 430: “(...) Incompreensível ? – Nem tudo que é incompreensível deixa de existir. O número infinito. Um espaço infinito igual ao finito.” e mais à frente, no fr. 434, falando do mistério do pecado original: “Por certo, nada nos choca mais rudemente do que tal doutrina; no entanto, sem esse mistério, o mais incompreensível de todos, somos incompreensíveis a nós mesmos. (...) De sorte que o homem é mais inconcebível sem esse mistério do que esse mistério é inconcebível ao homem.” Vemos portanto que a incom-preensibilidade de algum fato, quando este é necessário para que nossa existência tenha sentido, não é critério de exclusão. Assim é a milagrosa associação das vontades divina e humana na conversão, o que garante o livre arbítrio do homem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HARRINGTON, T. Vérité et Méthode dans les Pensées de Pascal. Paris: Vrin, 1972. PASCAL. B. Oeuvres Complètes. Texto estabelecido por Jacques Chevalier. Paris:

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————. Pensamentos. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Os Pensadores.)

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