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O masculino e o feminino na cultura contemporânea

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL – UNIJUÍ

DHE – DEPARTAMENTDE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO CURSO DE PSICOLOGIA

FERNANDA KUNKEL

O MASCULINO E O FEMININO NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

SANTA ROSA

2015

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FERNANDA KUNKEL

O MASCULINO E O FEMININO NA CULTURA CONTEMPORÂNEA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Graduação em Psicologia do Departamento de Humanidades e Educação da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Psicologia.

Orientador (a): Flávia Flach

SANTA ROSA 2015

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AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar a Deus, por todas as dádivas que tens me dado: saúde, conquistas, trabalho, força, fé, família e amigos. E também, por ter colocado em minha vida uma pessoa muito especial, que me auxiliou na passagem desse momento importante de minha formação.

A toda minha família e meus amigos, que me deram apoio, me incentivarem na busca pelos meus objetivos e auxiliarem nos momentos mais difíceis. Desculpem pelas vezes em que estive ausente devido aos estudos.

Em especial à minha mãe, que pacientemente me ajudou em tudo. Sem você eu não seria quem sou hoje e não teria chegado aonde cheguei.

A todas as colegas da EMEI Pingo de Gente, em especial à diretora, pelo coleguismo e por terem me auxiliado nos momentos em que precisei.

Aos colegas de graduação que fizeram parte de todas as etapas da minha formação, principalmente às minhas amigas Cristiane Closs e Cristiane Theisen. E a todos meus professores do curso de Psicologia, que com seus importantes ensinamentos contribuíram para que este momento se realizasse.

E também, à minha orientadora Flávia Flach, que com suas importantes contribuições, esclarecimentos, sugestões e observações críticas, possibilitou no êxito de meu trabalho.

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RESUMO

Este Trabalho de Conclusão de Curso tem por objetivo apresentar uma pesquisa bibliográfica acerca do masculino e do feminino em nossa cultura contemporânea. Para compreender a construção destes lugares, foi utilizado, primeiramente, um enfoque teórico de ênfase social a fim de pensar a questão de gênero e de realizar um levantamento histórico, que parte da História das Mulheres no Brasil e que apresenta o lugar que era destinado ao homem e à mulher na sociedade tradicional. Fez-se necessário, também, realizar uma pesquisa com um enfoque psicanalítico para compreender como ocorrem a constituição psíquica e as identificações de um sujeito, que se dão a partir da relação que ele estabelece com o Outro e a partir da vivência da experiência edípica e sua relação com a castração. Por fim, levantamos algumas considerações acerca das transformações ocorridas em nossa cultura, que ocasionaram em modificações do lugar destinado ao masculino e ao feminino, visto que a mulher passa a ocupar um lugar de maior valorização, equiparando-se aos homens. E isso, segundo apontam pesquisas, gerou em nossa sociedade moderna uma crise em relação às referências simbólicas e à masculinidade. Os resultados sinalizam que, embora vários autores tenham se debruçado sobre essa questão, ela ainda permanece uma incógnita.

Palavras-chave: Masculino. Feminino. Gênero. Complexo de Édipo. Complexo de

Castração. Sociedade tradicional. Sociedade contemporânea.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 6

1 A CONSTRUÇÃO DO FEMININO E DO MASCULINO NA CULTURA... 8

1.1 Masculino e Feminino: Uma Questão de Gênero... 8

1.2 A História das Mulheres no Brasil... 9

2 CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA DO MASCULINO E DO FEMININO... 27

2.1 Dos primórdios da constituição psíquica ao desenvolvimento da masculinidade e da feminilidade... 29

2.1.1 O Complexo de Édipo nos meninos... 34

2.1.2 O Complexo de Édipo nas meninas... 38

2.2 A constituição da masculinidade e da feminilidade... 42

3 O MASCULINO E AO FEMININO NA CULTURA CONTEMPORÂNEA... 44

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 60

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INTRODUÇÃO

O presente Trabalho de Conclusão de Curso é delimitado pela linha teórica de enfoque social e psicanalítico, e objetiva compreender como se caracteriza o lugar do masculino e do feminino em nossa cultura contemporânea, visto que circula, em nossa sociedade, um discurso de que esses lugares vêm sofrendo mudanças nos últimos tempos. A partir dessa constatação, neste trabalho será realizada uma pesquisa e serão levantadas hipóteses e considerações sobre os fatores que causaram a mudança desses lugares. Esse tema é importante para que possamos compreender como os sujeitos se colocam no social e de que forma os acontecimentos e as transformações que foram ocorrendo em nossa sociedade modificaram o lugar que estes ocupam. Além disso, o tema também permite compreender as consequências dessas mudanças para o psiquismo desses sujeitos.

Para tanto, no primeiro capítulo deste trabalho, esses lugares foram pensados em relação ao gênero. Décadas atrás, o masculino e o feminino eram caracterizados a partir do sexo com que uma pessoa nascia. No entanto, a partir das transformações ocorridas em nossa sociedade, essa ideia foi sendo abandonada, de modo que, hoje, não é a condição biológica que define se uma pessoa irá se identificar como homem ou como mulher, e sim as relações que ela estabelece com o social e com a cultura.

Ainda no mesmo capítulo, realizamos um levantamento teórico a fim de compreender os fatos que levaram à mudança do masculino e do feminino na modernidade. A partir disso, procuramos entender de que forma esses lugares eram caracterizados na sociedade tradicional. Com esse intuito, optamos por utilizar a história das mulheres no Brasil, que possibilita a compreensão do lugar que era destinado tanto à mulher quanto ao homem, pois não é possível falar de um sem falar do outro.

Foi realizada, portanto, uma descrição histórica, social e cronológica, começando pelos indígenas e percorrendo os períodos colonial e burguês, chegando à modernidade. Em cada período, refletimos sobre o lugar que os homens e as mulheres ocupavam (caracterizados, respectivamente, pela dominação e pela submissão), sua relação com a família, com o casamento, com a

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maternidade/paternidade e com o trabalho, bem como sobre as transformações e os movimentos que foram ocorrendo na história e que levaram ao cenário que hoje vivenciamos.

No segundo capítulo – antes de pensarmos de que forma esses lugares são caracterizados nos dias de hoje – torna-se necessário traçar um percurso a fim de compreender como se dá a constituição psíquica do masculino e do feminino. Para tanto, utilizamos o referencial psicanalítico, o qual permite perceber que a constituição de um sujeito tem início nos primórdios, através da relação do bebê com o Outro primordial, e parte para a formação da imagem corporal do sujeito através do estádio do espelho. Após o desenvolvimento do Complexo de Édipo e a relação que ele estabelece com a castração – a partir dos quais o sujeito realiza sua escolha objetal –, ele estabelece suas identificações e desenvolve a masculinidade e a feminilidade.

No terceiro e último capítulo, foram levantadas considerações acerca do lugar que o masculino e o feminino ocupam nos dias de hoje. Isso se mostra relevante visto que os movimentos e as transformações que foram ocorrendo – como a chegada da modernidade, o avanço tecnológico, o movimento feminista e as várias conquistas femininas decorrentes – auxiliaram na mudança do discurso dominante e no enfraquecimento do patriarcado, tecendo um cenário de instabilidade e de fragilidade das referências simbólicas. Frente a isso, o lugar destinado ao masculino e ao feminino sofre mudanças, pois a mulher, através de suas conquistas, tem a possibilidade de ocupar lugares que antes eram destinados somente aos homens. Estes, frente a esse cenário, desestabilizam-se, de modo que aquilo que anteriormente caracterizava a masculinidade entra em crise. A partir disso, nesta pesquisa, procuramos levantar algumas hipóteses acerca de como esses lugares se colocam em nossa cultura diante de todas essas transformações.

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1. A CONSTRUÇÃO DO FEMININO E DO MASCULINO NA CULTURA

1.1 Masculino e Feminino: Uma Questão de Gênero

Para que seja possível pensarmos o feminino e o masculino em nossa cultura, é necessário remetermos à construção social desse lugar, visto que se trata de uma questão simbólica que só pode ser pensada em relação ao gênero.

Segundo Strey (2001), a questão de gênero, em décadas anteriores, era vista em relação ao sexo, ou seja, diferenças anatômicas existentes entre homens e mulheres. Essa visão teve mudanças após a crise da Psicologia Social e após as pressões do movimento feminista, que se iniciaram antes do século XX. Portanto, a autora defende a ideia de que “Sexo não é gênero. Ser uma fêmea não significa ser uma mulher. Ser macho não significa ser um homem. Sexo diz respeito às características fisiológicas relativas à procriação, à reprodução biológica” (STREY, 2001, p. 182).

Para ela, o sexo biológico de uma pessoa é determinado por certas características anátomo-fisiológicas, como os cromossomos, as estruturas gonodais e os hormônios. Sendo assim, não é o biológico que determina um sujeito ou como ele será em relação a seus comportamentos, interesses, estilos de vida, responsabilidades, papéis a desempenhar, sentimentos, características de personalidade, pontos de vista afetivos, intelectuais ou emocionais. Essas questões são desenvolvidas no sujeito a partir de suas relações com o social e com a cultura.

Enquanto as diferenças sexuais são físicas, as diferenças de gênero são socialmente construídas. Conceitos de gênero são interpretações culturais das diferenças de gênero (Oakley, 1972). Gênero está relacionado às diferenças sexuais, mas não necessariamente às diferenças fisiológicas como as vemos em nossa sociedade. O gênero depende de como a sociedade vê a relação que transforma um macho em um homem e uma fêmea em uma mulher. Cada cultura tem imagens prevalecentes do que homens e mulheres devem ser. O que significa ser homem? O que significa ser mulher? Como as mulheres e os homens supostamente se relacionam uns com os outros? A construção cultural do gênero é evidente quando se verifica que ser homem ou ser mulher nem sempre supõe o mesmo em diferentes sociedades ou em diferentes épocas (STREY, 2001, p. 183).

A autora ainda afirma que, após estudos realizados, a questão de gênero passou a ser vista associada às mulheres. Porém, mesmo que esse termo seja

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usado quando se fala de mulheres, é impossível sabermos a respeito dela sem falar no homem, uma vez que

[...] é imprescindível conhecer a história do desenvolvimento de ambos os gêneros, assim como é importante estudar todas as classes para compreender o significado e o alcance da história de como funcionou e funciona a ordem social ou para promover sua transformação (STREY, 2001, p. 184).

Frente a esse fato, para que possamos pensar o masculino e o feminino na sociedade contemporânea (visto que estes conceitos tratam de um processo de construção social) e compreender o lugar que hoje ambos ocupam, é preciso remeter à história e retornar no tempo. Com isso, será possível entender de que forma esse lugar foi sendo construído em nossa cultura, principalmente se olharmos para uma descrição cronológica da história das mulheres no Brasil, o que será apresentado a seguir.

1.2 A História das Mulheres no Brasil

A história das mulheres no Brasil tem início nos grupos indígenas, que foram os primeiros a colonizar nossas terras. A narrativa dessa história parte dos colonizadores americanos, que observaram o Novo Mundo de acordo com padrões e valores bem diferentes da realidade americana, conforme afirma o autor Raminelli (2001). Esses colonizadores observaram e narraram as características e os modos de viver de vários povos indígenas que se instalaram em nosso país, entre eles destacam-se os tupinambás. Portanto, os colonizadores que aqui vieram descreveram a cultura desses povos a partir de um paradigma teológico e de acordo com sua visão, com suas concepções e com a ideia de que eram um povo superior a eles.

A diferença entre homens e mulheres era bem demarcada nas comunidades indígenas. O dia a dia nas tribos, os acontecimentos, os momentos de passagem de uma fase da vida para outra, eram caracterizados por rituais importantes, que já eram vistos desde o nascimento de um tupinambá. Segundo Raminielli (2001), o nascimento de um integrante da tribo era acompanhado por todas as mulheres. O pai, por sua vez, tinha uma importante participação, pois era ele quem comprimia o

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ventre de sua esposa para apressar o nascimento, caso fosse um parto complicado, e era ele também quem cortava o cordão umbilical, caso fosse um menino. Se fosse uma menina, ela recebia os primeiros cuidados de sua mãe.

Depois do parto, a criança era lavada e pintada de preto e vermelho. Se fosse do sexo masculino, o pai lhe oferecia um pequeno tacape, um arco e flechas de penas de papagaio, na esperança de que o filho se tornasse um grande guerreiro. Chegava então o período do resguardo. Alguns relatos de viagem contam que o marido não se contentava apenas em manter um rigoroso jejum; ficava o tempo todo sentado na rede, para que não pegasse nenhuma corrente de ar. As mulheres da tribo consolavam-no da pena e da dor sentida na hora do parto. Se ele deixasse de cumprir os preceitos, a criança poderia morrer ou iria sentir dores violentas no ventre. Para o etnólogo Alfred Métraux, o resguardo paterno – a covada – simbolizava a importância do papel paterno no ato de gerar uma criança (RAMINIELLI, 2001, p. 13, grifo do autor).

Outro ritual percebido nas meninas, segundo o autor, era a transição da infância para a vida adulta, fato que só ocorria após a primeira menstruação. Elas eram submetidas a um ritual de passagem que provocava grande temor entre as índias (pois envolvia cortes profundos) e que objetivava dar a elas um ventre sadio e filhos bem formados. Além disso, as índias utilizavam um fio de algodão nos cabelos para mostrar que eram virgens e, após seu primeiro ato sexual, este era rompido. Havia o pensamento de que maus espíritos entrariam em seus corpos se elas tentassem esconder que não eram mais virgens.

No que se refere à questão matrimonial, Raminielli (2001) afirma que a união entre parentes próximos (filho, pai, mãe, irmão) era proibida e que o casamento entre um homem e uma mulher ocorria por vontade própria. No entanto, esse casamento só poderia ocorrer após o pedido por parte do homem e a posterior permissão do pai da noiva. Caso ele a concedesse, os noivos já eram considerados casados (sem cerimônia) e a união poderia ser desfeita a qualquer momento, de modo que ambos estariam livres para procurarem outros parceiros.

Entre os selvagens era costume, quando o esposo enjoava de sua companheira, presentear outro homem com sua mulher. A maioria dos índios tinha somente uma mulher. A poligamia, porém, era amplamente difundida entre os grandes guerreiros e caciques. Os chefes podiam viver com catorze mulheres sem causar estranhamento. Cada esposa possuía um espaço exclusivo na cabana (RAMINIELLI, 2001, p. 19).

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Ainda segundo o autor, a poligamia entre os bravos guerreiros era símbolo de prestígio, pois quanto maior o número de mulheres, mais valentes eram considerados os homens. Já as mulheres não podiam ter mais de um homem e nem sequer traí-lo; se isso acontecesse, o homem poderia abandoná-la ou até mesmo matá-la.

Fisicamente, a diferença também se inscrevia entre os sexos. Raminielli (2001) aponta que ambos andavam nus e arrancavam todos os pelos do corpo. Assim, o que diferenciava a mulher do homem eram os cabelos, pois ela não os raspava na frente e na nunca. Além disso, também se distinguiam pelo fato de ela não furar os lábios e nem o rosto para enfeitá-lo com pedras, somente pendurando conchas nas orelhas.

A homossexualidade também já era vista nessa época entre as tribos indígenas, de forma que

as perversões sexuais 1 marcaram as representações do índio. Os tupinambás eram afeiçoados ao pecado nefando, e sua prática era considerada uma conduta normal. Os “índios-fêmeas” montavam tendas públicas para servirem como prostitutas. Algumas índias cometiam desvios contra a ordem natural e furtavam-se de contatos carnais com os homens, vivendo um estrito voto de castidade. Deixavam, por conseguinte, as funções femininas e passavam a imitar os homens, exercendo os mesmos ofícios dos guerreiros: “Trazem os cabelos cortados da mesma maneira que os machos, e vão à guerra com seus arcos e flechas“. Cada fêmea guerreira possuía uma mulher para servi-la, “com que diz que é casada, e assim se comunicam e conversam como marido e mulher”.2 (RAMINIELLI, 2001, p. 26-27, grifo do autor).

Outra perversão sexual presente nas tribos indígenas, de acordo com o autor, partia das índias mais velhas, pois, por serem pouco procuradas pelos homens devido a sua debilidade física e à idade avançada, aproximavam-se dos garotos.

1

De acordo com o Dicionário de Psicanálise (Elisabeth Roudinesco e Michel Plon), o termo perversão é utilizado em psiquiatria e pelos fundadores da sexologia a fim de designar, ora de maneira pejorativa, ora de maneira valorativa, as práticas sexuais consideradas como desvios em relação a uma norma social e sexual. A partir de meados do século XIX, o saber psiquiátrico incluiu, entre as perversões, práticas sexuais tão diversificadas quanto o incesto, a homossexualidade, a zoofilia, a pedofilia, a pederastia, o fetichismo, o sadomasoquismo, o travestismo, o narcisismo, o auto-erotismo, a coprofilia, o exibicionismo, o voyeurismo e as mutilações sexuais. Retomado por Sigmund Freud a partir de 1896, o termo perversão foi definitivamente adotado como conceito pela psicanálise, que assim conservou a ideia de desvio sexual em relação a uma norma. Não obstante, nessa nova acepção, o conceito é desprovido de qualquer conotação pejorativa ou valorizadora e inscreve-se, juntamente com a psicose e a neurose, numa estrutura tripartite.

2

Todas as vezes em que aparecerem aspas em citações neste referido trabalho, é porque consta assim no texto original.

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Para isso, elas acabavam conquistando-os com regalias e aproveitando para ensinar a fazer aquilo que eles não sabiam, ou seja, ensinar os prazeres do sexo.

Percebemos, portanto, que neste período a mulher já possuía um lugar diferenciado em relação ao homem e era vista como um sujeito fragilizado. Durante a colonização do Brasil, como vimos, os que aqui chegaram seguiam a tradição cristã e tentaram introduzir, na cultura indígena e nos imigrantes, ideias, concepções e visões religiosas. Nesse período, segundo Raminielli (2001, p. 42), “a Bíblia já havia representado a mulher como fraca e suscetível. Desde Eva, as tentações da carne e as perversões sexuais surgem do feminino”. Essa era a ideia propagada pelos cristãos e que acabou influenciando o modo de ver e de colocar a mulher no período colonial, período este que teve início no século XVI e que se propagou por centenas de anos. Segundo Araújo (2001), durante a colônia,

[...] a toda-poderosa Igreja exerceu forte pressão sobre o adestramento da sexualidade feminina. O fundamento escolhido para justificar a repressão da mulher era simples: o homem era superior, e portanto cabia a ele exercer a autoridade. São Paulo, na Epístola aos Efésios, não deixa dúvidas quanto a isto: “As mulheres estejam sujeitas aos seus maridos como ao Senhor, porque o homem é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja... Como a igreja está sujeita a Cristo, estejam as mulheres em tudo sujeitas aos seus maridos”. De modo que o macho (marido, pai, irmão etc.) representava Cristo no Lar. A mulher estava condenada, por definição, a pagar eternamente pelo erro de Eva, a primeira fêmea, que levou Adão ao pecado e tirou da humanidade futura a possibilidade de gozar da inocência paradisíaca. Já que a mulher partilhava da essência de Eva, tinha de ser permanentemente controlada (ARAÚJO, 2001, p. 45-46).

Nos tempos de colonização, vários eram os discursos e os escritos que menosprezavam a mulher e colocavam-na em um lugar de inferioridade. Para Araújo (2001), os dominicanos alemães Heinrich Krämer e Jakob Sprenger registraram, em 1486, que houve uma falha na formação da primeira mulher, pois ela teria sido criada a partir de uma costela recurva, ou seja, uma costela do peito. Em decorrência dessa falha, ela era vista como um animal imperfeito que causava decepção aos homens. Nesse período, elevaram-na inclusive a uma condição de bruxa, ou seja, praticante das artes do mal.

Para o autor, houve, durante o período colonial, um adestramento da sexualidade da mulher, de modo que ela deveria, em primeiro lugar, respeitar o pai e, depois, o marido. Além disso, desde cedo ela deveria possuir uma educação que era destinada exclusivamente aos afazeres domésticos. Também havia o desejo de

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que ela aprendesse a ler e a escrever; mas isso era apenas para utilizar na vida doméstica, como para preparar receitas e resolver problemas cotidianos.

Durante esse período, as mulheres eram proibidas até mesmo de sair de casa, sendo que o faziam apenas aos domingos para ir à Igreja. Assim, seus sentimentos eram domesticados, abafados e vigiados de perto pela família e pela Igreja (através dos confessionários). Ademais, o casamento era decido pelo pai já na adolescência das meninas.

Frente à sexualidade reprimida da mulher, bastava-lhe seguir as ordens impostas pelo pai e, mesmo sem paixão e contra sua vontade, casar-se com o homem que lhe fora destinado. Para Araújo (2001, p. 52), “na visão da sociedade misógina, a maternidade teria de ser o ápice da vida da mulher. Doravante, ela se afastava de Eva e aproximava-se de Maria, a mulher que pariu virgem o salvador do mundo”.

Para o autor, o desejo e as sensações deveriam ser domados nesse período, Quanto ao casamento, este que poderia ser com um homem bem mais velho, que passava a ser o seu senhor. No entanto, a Igreja exigia que não houvesse nada de excessos e erotismos.

Esse ideal de adestramento, ainda de acordo com Araújo (2001), nunca foi alcançado por completo. Isso ocorreu porque, enquanto muitas mulheres acabaram aceitando passivamente esses valores impostos pela Igreja e pela sociedade, outras não aceitaram ou não suportaram essas proibições. Nesse caso, “as mulheres, então, ou se submetiam aos padrões misóginos impostos, ou reagiam com o exercício da sedução [...] e da transgressão” (ARAÚJO, 2001, p. 65).

Para o autor, algumas das formas empregadas pelas mulheres para que chamassem a atenção e fossem notadas pelos homens consistiam, de um lado, nas roupas com as quais se vestiam e, de outro, na falta delas. Era por meio da maneira de se vestir que as mulheres seduziam e despertavam o desejo dos homens ou até mesmo confirmavam certa posição social. Ainda em relação à vestimenta, é importante mencionar que muitas mulheres não obedeciam às exigências da Igreja, que impunha que elas se vestissem com decência, evitassem mostrar o pescoço e o colo e não exibissem os pés, que eram considerados altamente eróticos.

Outra maneira de a mulher manifestar sua sexualidade reprimida se dava por meio do adultério. Segundo Araújo (2001), durante o período colonial, a mulher se arriscava bastante ao cometê-lo, pois isso era algo que assombrava muito os

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homens pelo fato de terem medo de serem vistos como um marido que não satisfaz sexualmente sua mulher. Por isso, a mulher adúltera arriscava inclusive sua vida, pois a própria lei da época permitia matar a mulher e o amante que cometessem tal crime.

Como vimos, a sexualidade feminina na época colonial manifestava-se sob vários aspectos, sempre esgueirando-se pelos desvãos de uma sociedade misógina e suportando a culpa do pecado a ela atribuído pela Igreja. A mulher podia ser mãe, irmã, filha, religiosa, mas de modo algum amante. O desejo muitas vezes rebentava o grilhão das convenções e das imposições, e aí mesmo, no momento da transgressão, é que o historiador pode aproximar-se do sentimento que, em peças incriminatórias, sobreviveu aos séculos. Aquelas mulheres hoje são pó, são nada, ao contrário de sua dor, seu momento de prazer, seu sentir, que nos chegam aos pedaços, mas com a mesma força da paixão que comoveu, agitou e incitou os corações a reinventarem a cada situação a velha arte de seduzir (ARAÚJO, 2001, p. 73).

Nessa época, a forma de viver era rudimentar, os valores e os ideais eram impostos pela Igreja e as ciências ainda estavam em processo de construção. Desse modo, pouco se conhecia acerca de algumas questões que circundavam o período colonial. Frente a isso, Priore (2001) traz a ideia de que, nesse período, o corpo da mulher era visto tanto pela Igreja Católica quanto pela medicina como algo nebuloso e obscuro, no qual Deus e Diabo se confrontavam. Além disso, qualquer doença que acometesse a mulher era vista como castigo por seus pecados ou como algum sinal diabólico. Para a autora, o corpo feminino, no período em questão, era considerado inferior e os médicos reforçavam a ideia de que

[...] o estatuto biológico da mulher (parir e procriar) estaria ligado a um outro, moral e metafísico: ser mãe, frágil e submissa, ter bons sentimentos, etc. [...] Como explicava o médico mineiro Francisco de Melo Franco em 1794, se as mulheres tinham ossos “mais pequenos e mais redondos”, era porque a mulher era “mais fraca do que o homem”. Suas carnes, “mais moles [...] contendo mais líquidos, seu tecido celular mais esponjoso e cheio de gordura”, em contraste com o aspecto musculoso que se exigia do corpo masculino, expressava igualmente a sua natureza amolengada e frágil, os seus sentimentos “mais suaves e tenros”. Para a maior parte dos médicos, a mulher não se diferenciava do homem apenas por um conjunto de órgãos específicos, mas também por sua natureza e por suas características morais (PRIORE, 2001, p. 79-83).

Havia, nesse momento, um desconhecimento da anatomia e da fisiologia do corpo feminino. Conforme afirma a autora, esse fato deu abertura para que a medicina construísse um discurso de desconfiança em relação à mulher, logo, foram

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realizados estudos acerca da “madre” (nome dado ao útero) a fim de compreender seu funcionamento, pois eram poucos os conhecimentos acerca dela. Acreditava-se que, se ela não fosse utilizada com o propósito de procriar, poderia causar diversas doenças na mulher.

A partir do século XIX, conforme D’Incao (2001), o Brasil passou por intensas transformações, tais como:

[...] a consolidação do capitalismo; o incremento de uma vida urbana que oferecia novas alternativas de convivência social; a ascensão da burguesia e o surgimento de uma nova mentalidade – burguesa – reorganizadora das vivências familiares e domésticas, do tempo e das atividades femininas; e, por que não, a sensibilidade e a forma de pensar o amor (D’INCAO, 2001, p. 223).

Segundo a autora, surge o período do amor romântico e, com ele, uma nova mulher, que agora passa a ter sua intimidade e sua maternidade mais valorizadas. Logo, a sociedade se vê diante de um ambiente familiar mais estruturado, em que a mulher se dedica ao marido e aos filhos e não precisa trabalhar fora de casa. O comando da família patriarcal, no entanto, continua sob responsabilidade do pai, que possui um enorme poder sobre sua família e seus escravos.

Durante o período burguês, de acordo com D’Incao (2001), o Brasil se caracterizava por ser um enorme país rural. A diferença de classes já era bem demarcada, com a dominação de uma elite que era influenciada pela aristocracia portuguesa. Os plebeus e os escravos, por sua vez, pertenciam a outro segmento, responsável pela mão de obra do país.

Quando vamos nos aproximando do século XIX, a cidade brasileira vai se tornando um apêndice do corpo rural: reflete a estratificação rural, mínima população fixa, uns poucos artesãos, mas um grande número de pessoas sem muito o que fazer, sem ocupação determinada, num período minguado em se tratando de atividade econômica de natureza industrial e comercial interna. Com fraca diferenciação e estratificação social, a cidade é habitada por uma população homogênea: pessoas ricas parecem não se distinguir, pela maneira de viver, de outras mais pobres, com as quais se relacionam

(D’INCAO, 2001, p. 224).

Frente a essa “bagunça” vista nas cidades durante o período burguês, houve a criação de políticas públicas, algumas delas sendo caracterizadas por um conjunto de medidas higiênicas que foram criadas pelo Estado durante o Império. Durante essa época, houve a criação da Faculdade de Medicina, que propagou entre as

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famílias de classe alta novas ideias sobre higiene e saúde. De acordo com D’Incao (2001), a cidade estava podre e, por isso, pessoas morriam de doenças desconhecidas.

Ainda segundo a autora, “[...] medidas higiênicas contribuíram para a nova face da vida social urbana brasileira e o discurso médico colaborou para a construção de novos conceitos de vida familiar e higiene em geral” (D’INCAO, 2001, p. 226). Com isso, a pobreza passou a ser vista como problema e não foi mais aceita na Capital.

Por esse motivo, foram criadas campanhas com o objetivo de expulsar as pessoas do centro da cidade, pois elas deveriam ser civilizadas – como eram os franceses e os europeus – e quaisquer ações que não se enquadrassem nessa proposta eram combatidas pela lei e pela imprensa. Assim, as pessoas foram expulsas das ruas e a casa passou a ter um novo significado: era vista como um lugar privado, íntimo e aconchegante, o que deixa claro os limites entre as classes sociais.

Nesses lugares, a idéia de intimidade se ampliava e a família, em especial a mulher, submetia-se à avaliação e opinião dos “outros”. A mulher de elite passou a marcar presença em cafés, bailes, teatros e certos acontecimentos da vida social. Se agora era mais livre – a convivência social dá maior liberdade às emoções -, não só o marido ou o pai vigiavam seus passos, sua conduta era também submetida aos olhares atentos da sociedade. Essas mulheres tiveram de aprender a comportar-se em público, a conviver de maneira educada (D’INCAO, 2001, p. 228).

De acordo com a autora, com o advento da família burguesa, o casamento era visto neste período, entre as famílias ricas, como uma forma de ascensão social ou como uma forma de manter seu status. Às mulheres caberia o papel de corresponder a um modelo de esposa e mãe, pois os homens dependiam da imagem que elas passavam para a sociedade para sustentar essa posição que eles ocupavam. Já para Soihet (2001), a vida familiar, nessa fase, era destinada às mulheres da elite, as quais eram incentivadas ao casamento e aos filhos. Já as mulheres pobres, mestiças, negras e mesmo brancas eram menos protegidas e estavam sujeitas à exploração sexual devido à condição em que se encontravam.

As imposições da nova ordem tinham o respaldo da ciência, o paradigma do momento. A medicina social assegurava como características femininas, por razões biológicas: a fragilidade, o recato, o predomínio das faculdades afetivas sobre as intelectuais, a subordinação da sexualidade à vocação

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maternal. Em oposição, o homem conjugava à sua força física uma natureza autoritária, empreendedora, racional e uma sexualidade sem freios. As características atribuídas às mulheres eram suficientes para justificar que se exigisse delas uma atitude de submissão, um comportamento que não maculasse sua honra. Estavam impedidas do exercício da sexualidade antes de se casarem e, depois, deviam restringi-la ao âmbito desse casamento (SOIHET, 2001, p. 363).

Durante o período de ascensão da burguesia, surge a questão do amor na sociedade e na literatura brasileira. D’Incao (2001) nos afirma que

O período romântico da literatura brasileira, especialmente a literatura urbana, apresenta o amor como um estado da alma; toda produção de Joaquim Manoel de Macedo e parte da de José de Alencar comprovam isso. No romantismo são propostos sentimentos novos, em que a escolha do cônjuge passa a ser vista como condição de felicidade. A escolha, porém, é feita dentro do quadro de proibições da época, à distância e sem os beliscões. Ama-se, porque todo o período romântico ama. Ama-se o amor e não propriamente as pessoas. Apaixona-se, por exemplo, por uma moça que seria a dona de um pezinho que, por sua vez, é o dono de um sapato encontrado. O amor parece ser uma epidemia. Uma vez contaminadas, as pessoas passam a suspirar e a sofrer ao desempenhar o papel de apaixonados. Tudo em silêncio, sem ação, senão as permitidas pela nobreza desse sentimento novo: suspirar, pensar, escrever e sofrer. Ama-se, então, um conjunto de idéias sobre o amor (D’INCAO, 2001, p. 234).

Como podemos perceber, a literatura da época tentou, a partir de suas narrativas, introduzir e evocar uma nova forma de pensar a sexualidade, os relacionamentos, os ideais, os valores, a família e o lugar do homem e da mulher na sociedade burguesa. Além disso, passou a descrever as transformações que foram ocorrendo nesse período.

Um fato merece ser destacado e pode nos ajudar a pensar o lugar do homem e da mulher em nossa cultura, visto que os movimentos que aconteceram pelo mundo contribuíram na forma de agir e de pensar em nossa sociedade. Trata-se do movimento da Filosofia Libertina, que ocorreu no século XVIII (considerado o século das Luzes), na Europa, por meio da literatura Francesa.

Kehl (1996) afirma que somos herdeiros dessa cultura nascida na Europa das Luzes. Ao fazer uma leitura psicanalítica acerca desse movimento, ela afirma que a filosofia libertina pode ser vista, hoje, como uma produção de uma razão delirante, ou seja, um delírio da modernidade, que se origina a partir da burguesia e das ideias iluministas.

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A semelhança entre pensamento abstrato e a loucura consiste no fato de que, em ambos, “tudo é permitido”. O pensamento abstrato prescinde de qualquer lei que não sejam as leis da lógica, onde a base “empírica” da verdade, que depende do imaginário e passa necessariamente pelos afetos, se perde. Assim, o pensamento “enlouquece” por falta de limites à sua capacidade de inventar o real (KEHL, 1996, p. 231).

Sendo, então, a filosofia libertina uma espécie de loucura – em que tudo é permitido –, Kehl (1996) caracteriza os libertinos como sujeitos que pertencem a uma classe superior de homens que possuem direitos ilimitados de gozar3 do outro.

Se as Luzes deslocam Deus do centro do universo e eliminam a tutela divina sobre os homens, os libertinos fazem deste deslocamento uma leitura muito particular, de um anti-humanismo radical: de que a natureza é a razão última do homem (KEHL, 1996, p. 235).

Sendo os sujeitos, para os libertinos, parte da natureza e distinguidos pela crueldade (homem) e pela desigualdade de forças (mulher), estes acreditavam que era o instinto que deveria prevalecer.

Se no século das Luzes a razão era considerada atributo masculino e a mulher identificada à natureza, a filosofia libertina propunha uma erótica em que o homem, investido da onipotência da razão, assumia plenos direitos de submeter a natureza e gozar dela, afirmando sua superioridade “inata” sem nada querer saber da subjetividade da mulher (KEHL, 1996, p. 248).

A autora ainda afirma, que a Igreja influenciou desde os primórdios, na construção do lugar do homem e da mulher. A filosofia libertina, foi contra as ideias propagadas pela Igreja Católica, que, na época, colocava o corpo da mulher como propício à tentação do demônio e pregava que ele deveria permanecer intocável – como um corpo sagrado –, servindo apenas para a procriação e devendo permanecer puro, igualando a mulher à imagem da Virgem Maria.

O cristianismo só concede valor às mulheres se estas forem assexuadas ou mães. Um terceiro discurso dominante no Ocidente, o do amor romântico, também idealiza a mulher enquanto ser distante e intocável. O romantismo tem em comum com a filosofia libertina a associação entre a mulher e a

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GOZO: Segundo o Dicionário de Psicanálise (Elisabeth Roudinesco e Michel Plon,p. 299), o termo gozo tornou-se um conceito na obra de Jacques Lacan. Inicialmente ligado ao prazer sexual, o conceito de gozo implica a ideia de uma transgressão da lei: desafio, submissão ou escárnio. O gozo, portanto, participa da perversão, teorizada por Lacan como um dos componentes estruturais do funcionamento psíquico, distinto das perversões sexuais. Posteriormente, o gozo foi repensado por Lacan no âmbito de uma teoria da identidade sexual, expressa em fórmulas da sexuação que levaram a distinguir o gozo fálico do gozo feminino (ou gozo dito suplementar).

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natureza. Mas enquanto os libertinos, inspirados pelos ideais científicos do iluminismo, despojam a ideia da natureza de todo o mistério – ela está aí para que o homem se sirva dela -, o romantismo, de forte herança cristã, faz da associação mulher-natureza uma fonte de representações excitantes para a imaginação. Assim, a mulher deve se manter distante para preservar seus “mistérios”, e com isto suscitar não somente o desejo como a própria adoração masculina (KEHL, 1996, p. 249).

Para Kehl (1996), há algum tempo atrás, a mulher, para ser valorizada, precisava se colocar em uma posição inacessível; caso contrário, “ela se degrada – como a vítima abobalhada dos libertinos, como a pecadora perigosa dos cristãos, como a cortesã que é a ‘outra’, o avesso da musa dos românticos” (KEHL, 1996, p. 249).

Costa (1979) afirma que os libertinos, por serem vulneráveis ao contágio de doenças venéreas como a sífilis, eram condenados pelo modelo higienista. Caso contaminassem a mulher, poderiam prejudicar seus descendentes (formando filhos com malformações), além de provocar problemas domésticos e sociais, como induzir as mulheres ao adultério e lançar as filhas à imoralidade.

Do cuidado com a prole e com a organização moral da família, a higiene deslizava para o rearmamento moral da sociedade. O libertino sexual desprezava a riqueza, a pontualidade no trabalho e a honestidade. Não hesitava em endividar-se, roubar ou falsificar firmas para continuar usufruindo da libertinagem (COSTA, 1979, p. 242).

Com a chegada do século XX, segundo Engel (2001), há uma série de transformações em nosso país:

[...] as perspectivas de reestruturação das relações de trabalho em novas bases, a ampliação e a complexificação dos espaços urbanos, a Proclamação da República, entre outros aspectos, sinalizavam o advento de um novo tempo” (ENGEL, 2001, p. 322).

O Brasil dos anos 50, caracterizado como o período dos Anos Dourados, passa, de acordo com Bassanezi (2001), por um período de crescimento urbano, de avanço na industrialização, de ascensão da classe média e de aumento nas possibilidades educacionais e profissionais para homens e mulheres. Além disso, surgem a democracia e a participação e há um aumento de possibilidades, para a população, de acesso à informação, ao lazer e ao consumo. A autora enfatiza, ainda, que, devido à forma de relação entre as pessoas e as condições de vida

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existentes na época, as distâncias entre homens e mulheres diminuíram. Apesar disso, continuou existindo uma distinção entre os papeis femininos e os masculinos, pois a mulher permaneceu sendo colocada em uma posição inferior à posição ocupada pelo homem.

Na família-modelo dessa época, os homens tinham autoridade e poder sobre as mulheres e eram os responsáveis pelo sustento da esposa e dos filhos. A mulher ideal era definida a partir dos papéis femininos tradicionais – ocupações domésticas e o cuidado dos filhos e do marido – e das características próprias da feminilidade, como instinto materno, pureza, resignação e doçura. Na prática, a moralidade favorecia as experiências sexuais masculinas enquanto procurava restringir a sexualidade feminina aos parâmetros do casamento convencional (BASSANEZI, 2001, p. 608-609, grifo da autora).

Conforme afirma a autora, essa diferença sexual estava bem demarcada nas revistas da época. Elas apresentavam imagens acerca do universo masculino e feminino e representavam um modelo ideal de família, com papeis bem definidos e regras de comportamento que deveriam ser seguidas, bem como opiniões sobre sexualidade, casamento, juventude, trabalho feminino e felicidade conjugal. Essas imagens expressavam uma ideia que estava fixada no social, acerca da moral e dos bons costumes que deveriam ser seguidos, e promoviam os valores de classe, de raça e de gênero que dominavam na época.

Bassanezi (2001) aponta que, nessa época, a maternidade e o casamento eram considerados o destino das mulheres. Na visão da autora, a maternidade e a vida doméstica marcavam a feminilidade, enquanto que a participação no mercado de trabalho, a força e o espírito de aventura representavam marcas da masculinidade. Assim, as meninas eram educadas desde cedo para se tornarem boas mães e donas de casa exemplares, pois isso era requisito necessário para o casamento, que era visto pelas mulheres como objetivo de vida e realização feminina.

A autora ainda afirma que, nos anos dourados, as moças eram classificadas moralmente pela sociedade como moças de família ou como moças levianas. As primeiras eram respeitadas socialmente e precisavam apresentar um bom comportamento, ter seus gestos contidos, respeitar seus pais, conservar sua inocência sexual e não lhes era permitido ter intimidade física com rapazes. A partir disso, tinham a possibilidade de arrumar um bom casamento e ter uma vida de

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rainha do lar. Já aquelas que não seguiam essas regras de comportamento eram vistas pela sociedade como moças levianas ou prostitutas.

Nesse período, o casamento não era mais escolhido pelo pai da moça, de modo que ela tinha total liberdade para escolher seu pretendente. Afinal, casar sem afeto já estava fora de moda (BASSANEZI, 2001).

Já que os pais não poderiam ser tão rígidos, a preocupação social era educar as moças para o autocontrole. Isso ocorria porque, para o imaginário da sociedade da época, as moças que não possuíssem um comportamento adequado seriam muito procuradas pelos homens e, dessa forma, não seriam dignas de se casarem. Além disso, as moças de família deveriam evitar as moças levianas para que não recebessem sua fama e nem fossem desviadas por seus maus exemplos.

Com os homens, essa situação era diferente. A autora aponta que, para eles, as relações sexuais com várias mulheres eram permitidas e até mesmo incentivadas.

Os rapazes normalmente procuravam em suas aventuras prostitutas ou mulheres com quem não pensavam firmar compromisso, como as chamadas garotas fáceis, galinhas ou biscates que lhe permitiam familiaridades proibidas às moças para casar. A virilidade dos homens era medida em grande parte por essas experiências, sendo comum serem estimulados a começar desde cedo sua vida sexual (BASSANEZI, 2001, p. 613, grifo do autor).

Eram poucos os homens que aceitavam se casar com uma moça “deflorada por outro”, conforme afirma Bassanezi (2001). A lei da época dava, inclusive, a possibilidade de anular o casamento caso o homem percebesse que a moça com quem se casara não era virgem. A virgindade, nos anos 50, “era vista como um selo de garantia de honra e pureza feminina” (BASSANEZI, 2001, p. 613-614).

A partir de tudo isso, a autora sustenta que “podemos reconhecer, ainda hoje, traços dos Anos Durados em certos costumes e valores que definem, unem ou separam, e até estabelecem hierarquias entre homens e mulheres” (BASSANEZI, 2001, p. 637). Muitas das ideias que surgiram nesse período foram superadas e contestadas, mas podem, ainda hoje, causar estranhamento ou repulsa entre as pessoas.

Em meio a esse contexto, é importante ressaltar que a inserção das mulheres no mercado de trabalho, as lutas e as reinvindicações de grupos feministas foram

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fatos importantes na história das mulheres em nosso país. No entanto, apesar de elas terem buscado direitos iguais e maior valorização frente à sociedade, esse foi um processo lento, que foi se desenvolvendo ao longo da história.

Para Soihet (2001), foi durante a “Belle Époque” (1890-1920) – com a instauração da ordem burguesa, a modernização e a higienização do nosso país – que a questão do trabalho se modificou. Ele passou de compulsório para livre e, por esse motivo, foi necessário criar medidas para adequar a população a esse novo modelo. Com isso, as mulheres, principalmente as da camada popular, foram inseridas no mercado de trabalho a fim de auxiliar na subsistência de suas famílias.

Além disso, para Fonseca (2001), houve outro motivo que levou as mulheres a trabalharem fora de casa. Ela afirma que, devido à busca de emprego em lugares distantes, o homem poderia passar anos sem dar notícias à família, abandonando, assim, a mulher e os filhos (principalmente durante as guerras). Sendo assim, as mulheres tinham de trabalhar fora de casa para sustentar sua prole.

As mulheres de classes mais elevadas, da mesma forma, também foram, aos poucos, inserindo-se no mercado de trabalho. Segundo Louro (2001), foi durante esse período que o magistério se tornou uma alternativa de trabalho para a mulher, pois exigia apenas um turno de dedicação e, com isso, ela teria o outro período para realizar suas tarefas domésticas. Logo, o magistério – e também a enfermagem – tornaram-se trabalhos possíveis para a mulher. Por serem profissões que exigiam amor, sensibilidade e cuidado, passaram, consequentemente, a adquirir um caráter mais feminino.

[...] para a mulher, uma concepção do trabalho fora de casa como ocupação transitória, a qual deveria ser abandonada sempre que se impusesse a verdadeira missão feminina de esposa e mãe. O trabalho fora seria aceitável para as moças solteiras até o momento do casamento, ou para as mulheres que ficassem sós – as solteironas e viúvas. Não há dúvida que esse caráter provisório ou transitório do trabalho também acabaria contribuindo para que seus salários se mantivessem baixos. Afinal o sustento da família cabia ao homem; o trabalho externo para ele era visto não apenas como sinal de sua capacidade provedora, mas também como um sinal de sua masculinidade (LOURO, 2001, p. 453).

Houve intensas lutas e movimentos a fim de inserir a mulher na cidadania. Mas foi no ano de 1932, segundo Giuliani (2001), que a mulher conquistou o direito ao voto, podendo escolher livremente seus representantes políticos.

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A definição de cidadania decorre da participação das mulheres no mundo do trabalho, na medida em que este envolve os direitos sociais no emprego, enquanto esfera pública, e nas relações familiares, enquanto esfera privada. A demanda de cidadania social, nesse contexto, refere-se às mudanças que promovem a igualdade entre as trabalhadoras e os trabalhadores, quanto ao acesso ao mercado de trabalho, às carreiras, ao sistema de previdência social e aos serviços de assistência. Também se refere à introdução de modelos capazes de valorizar a “igualdade entre homem e mulher”, através da partilha das responsabilidades, dos processos de decisões na convivência familiar e também na execução de diferentes atividades (GIULIANI, 2001, p. 664-665).

Para Rago (2001), durante a década de 50, houve um aumento na participação das mulheres no mercado de trabalho, principalmente em cargos nos quais antes não eram vistas figuras femininas, como escritórios, comércios, serviços públicos, medicina, assistência social, entre outros. Essas funções exigiram das mulheres maior qualificação e, com isso, elas passaram, consequentemente, a ser mais valorizadas financeiramente, o que acarretou uma mudança no seu status social. Porém, ainda havia a visão de que

[...] o trabalho da mulher fora de casa destruiria a família, tornaria os laços familiares mais frouxos e debilitaria a raça, pois as crianças cresceriam mais soltas, sem a constante vigilância das mães. As mulheres deixariam de ser mães dedicadas e esposas carinhosas, se trabalhassem fora do lar; além do que um bom número delas deixaria de se interessar pelo casamento e pela maternidade (RAGO, 2001, p. 585).

Com a inserção da mulher no mercado de trabalho, surgem questões preocupantes. Para Rago (2001), grande parte do proletariado no Brasil, nas primeiras décadas do século XX, era constituído por mulheres e crianças. Nesse período, surgem vários artigos entre a imprensa operária que denunciavam as investidas sexuais de patrões sobre as trabalhadoras e as situações de humilhação vividas por elas nas fábricas.

Apesar das muitas greves e mobilizações políticas que realizaram contra a exploração do trabalho nos estabelecimentos fabris entre 1890 e 1930, as operárias foram, na grande maioria das vezes, descritas como “mocinhas infelizes e frágeis”. [...] apareciam desprotegidas e emocionalmente vulneráveis aos olhos da sociedade, e por isso podiam ser presas da ambição masculina. [...] Apesar do elevado número de trabalhadoras presentes nos primeiros estabelecimentos fabris brasileiros, não se deve supor que elas foram progressivamente substituindo os homens e conquistando o mercado de trabalho fabril. Ao contrário, as mulheres vão sendo progressivamente expulsas das fábricas, na medida em que avançam a industrialização e a incorporação da força de trabalho masculina. As barreiras enfrentadas pelas mulheres para participar do

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mundo dos negócios eram sempre muito grandes, independentemente da classe social a qual pertencessem. Da variação salarial à intimidação física, da desqualificação intelectual ao assédio sexual, elas tiveram sempre de lutar contra inúmeros obstáculos para ingressar em um campo definido – pelos homens – como “naturalmente masculino”. Esses obstáculos não se limitavam ao processo de produção; começavam pela própria hostilidade com que o trabalho feminino fora do lar era tratado no interior da família. Os pais desejavam que as filhas encontrassem um “bom partido” para casar e assegurar o futuro, e isso batia de frente com as aspirações de trabalhar fora e obter êxito em suas profissões (RAGO, 2001, p. 578-582).

Em relação às lutas em prol da conquista de direitos dos mais variados âmbitos – que mobilizavam tanto homens quanto mulheres neste período –, Giuliani (2001) ressalta que, no início do século XX, alguns segmentos de trabalhadores já haviam reivindicado muitos direitos trabalhistas e proteção previdenciária (fixação da jornada de trabalho, repouso semanal, férias anuais, assistência médica em casos de acidente de trabalho, condições apropriadas de higiene na empresa). No entanto, essas conquistas alcançadas se limitaram ao cotidiano e ao trabalho dos homens, deixando de lado os pontos reivindicados pelas mulheres (GIULIANI, 2001).

Segundo a autora, por volta do final dos anos 60, muitas mulheres de comunidades urbanas já estavam à frente de várias práticas reivindicativas em nossa sociedade. Nos anos 80, por sua vez, houve movimentos por parte das mulheres na luta para remodelar as relações entre família e trabalho e para revisar a imagem social da feminilidade.

Para as trabalhadoras é necessário rever a maneira como seus diversos papéis são exercidos: os papéis de esposa, de mãe, de filha, de organizadora do orçamento doméstico, de provedora, de profissional competente. São questionadas as atribuições domésticas e extradomésticas típicas de homens e de mulheres; o papel da mãe e do pai são confrontados; assim como a responsabilidade da esposa, da chefe de família, da dona de casa, da educadora e da militante sindical. Tais questionamentos mostram que, para renovar o conceito de feminilidade, é indispensável renovar outro conceito, o de masculinidade. O machismo é combatido em seus lares, no trabalho e no próprio sindicato. Os depoimentos nos fóruns de luta sindical rural ilustram claramente a busca para restabelecer a igualdade entre os sexos (GIULIANI, 2001, p. 651, grifo da autora).

No período subsequente, as lutas e as reivindicações pela igualdade de gênero continuaram no Brasil. Em 1988, ocorreu o processo de elaboração da Constituição Federal. Segundo Giuliani (2001), muitas mulheres de diferentes

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segmentos da sociedade participaram dessa elaboração, criticando a desigualdade sexual do trabalho e a desigualdade nas relações com a família.

A partir da Constituição, houve a conquista de muitos direitos relacionados ao trabalho, como o 13º para aposentados, a definição de penosidade nas condições insalubres de trabalho, a criação de incentivos específicos para a proteção do mercado de trabalho da mulher, a ampliação do tempo de licença maternidade, a introdução da licença paternidade, a fixação de limites diferentes de idade para aposentadoria de homens e de mulheres, o reconhecimento do direito de chefe de família para a mulher e o direito de mulheres do campo registrarem em seu nome os títulos de propriedades de terra.

Para Giuliani (2001), foi nesse período que se deu a construção da feminilidade e da masculinidade nas relações de trabalho. Isso ocorreu pelo fato de que a mulher passou a recusar o papel de dona de casa como única atividade a realizar, não reconheceu o trabalho como emancipador e não mais aceitou ser subordinada a uma autoridade patriarcal.

A autora também afirma que as lutas travadas pelas mulheres trabalhadoras na busca de seus direitos sociais impulsionaram modificações complexas na divisão sexual do trabalho. Elas lutaram pelos seus direitos, tentaram acabar com as discriminações de gênero e exigiram igualdade em relação a seus cônjuges nas responsabilidades da família. Segundo Giuliani (2001, p. 666),

[...] graças à ampliação desse fluxo de informações, às reivindicações específicas de homens e mulheres, e graças à construção de formas de representação inovadoras, as trabalhadoras conseguem formular princípios sociais e jurídicos sobre a igualdade de gênero”.

Apesar de todos esses movimentos e reinvindicações por parte das mulheres em nosso país, continuou existindo uma grande distância daquilo que elas tanto lutavam e almejavam. As conquistas dos direitos não foram suficientes para resolver a questão da igualdade pela qual as mulheres tanto reivindicavam. Mesmo com a inserção no mercado de trabalho e a garantia de alguns direitos, elas não deixaram de serem vistas pela sociedade como inferiores, pois, como percebemos na história, elas continuaram a enfrentar a exploração, o menosprezo e a submissão aos homens.

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Ao longo desse capítulo, vimos a construção histórica e social do lugar do masculino e do feminino em nossa cultura. Porém, antes de pensarmos como esse lugar se caracteriza nos dias de hoje, é preciso entender como os sujeitos se situam e constituem-se psiquicamente em relação a ele. Isso se mostra relevante porque, como já afirmado, um sujeito não é caracterizado como homem ou mulher pelo biológico, e sim a partir de sua relação com o social, que é efetuada com base em suas vivências psíquicas, e é sobre isso que será abordado no capítulo subsequente.

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2. CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA DO MASCULINO E DO FEMININO

Vimos, no capítulo anterior, que a construção do masculino e do feminino se dá através de sua relação com o social. Vimos, também, que o sexo com que uma pessoa nasce não determina se ela irá se constituir como homem ou como mulher, pois isso é determinado por meio de sua relação com o social e com a cultura. Agora, torna-se relevante observar como a psicanálise pensa essa constituição e de que forma isso se dá psiquicamente.

Quando nos deparamos com um ser humano, a primeira distinção que fazemos é se o sujeito é homem ou mulher, afirma Freud (1933). Há uma diferença biológica entre ambos, que dá ao masculino e ao feminino características sexuais distintas, utilizadas exclusivamente para funções sexuais. Para o autor, partes do aparelho sexual masculino são encontradas na mulher, mesmo que de forma atrofiada, e o mesmo ocorre de forma inversa. Isso indica que o ser humano é bissexual, ou seja, não é somente homem ou mulher, e sim ambos. Porém, um lado é mais desenvolvido que o outro.

Freud (1925) afirma que há uma bissexualidade inata nos indivíduos e que, através dessa disposição bissexual e de sua herança cruzada, os indivíduos nascem com características tanto femininas quanto masculinas. Além disso, ele declara que a constituição da masculinidade e da feminilidade se dá no decorrer do desenvolvimento de um sujeito. No entanto, o autor vê essa construção teórica como algo incerto e levanta algumas hipóteses, que serão esplanadas no decorrer desse trabalho.

Acerca desse assunto, Kehl (1996, p. 12-13) fazendo uma leitura freudiana, reitera que

[...] ninguém nasce homem, ou mulher; tornamo-nos homens ou mulheres, ao fim de um percurso que exige de cada um o abandono das disposições bissexuais primárias, das potencialidades polimorfas, da indiscriminação infantil. O inconsciente, se é todo sexual, não é sexuado; se para Freud, “anatomia é destino”, isto significa que a partir da “mínima diferença” inscrita em nossos corpos temos de nos constituir homens e mulheres à custa de tudo o que, do ponto de vista do inconsciente, é indiferenciado.

Kehl (1996) afirma, ainda – de acordo com a teoria lacaniana –, que é a cultura que dá destinos diferentes para homens e mulheres e que há a inscrição de

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uma mínima diferença entre ambos no inconsciente dos sujeitos, visto que ele não reconhece diferenças entre gênero e sexualidade. Tudo depende de como os sujeitos se inserem na ordem fálica, que é organizadora do desejo humano.

Para Kehl (2008), é a linguagem que antecede e inscreve os indivíduos em uma determinada posição simbólica que caracteriza o homem e a mulher. Eles são os primeiros significantes que nos são designados assim que nascemos, de modo que não há qualquer possibilidade de escolha, antes mesmo da criança se constituir como um sujeito de desejo.

Somos desde o início e para sempre “homens” ou “mulheres” porque a cultura assim nos designou e nossos pais assim nos acolheram a partir da mínima diferença inscrita em nossos corpos, com a qual teremos de nos haver para constituir, isto sim, o desejo, a posição a partir da qual desejamos, o objeto que haveremos de privilegiar e o discurso a partir do qual enunciaremos nossa presença no mundo (KEHL, 2008, p. 9).

Para a autora, as características sexuais da anatomia presentes nos indivíduos possibilitam diferenciá-los quanto ao gênero homem ou mulher, visto que o sexo biológico é constituído de peculiaridades dadas pela cultura. Diferente do gênero (mas relacionado a ele), há a posição em que um sujeito se coloca no discurso, que é de ordem simbólica e tem relação com a diferença entre ativo e passivo que Freud sugere para o masculino e o feminino.

Kehl (1996) ainda afirma que, independentemente do gênero a que uma pessoa se identifique, qualquer sujeito pode ter os quesitos que caracterizam o masculino e o feminino. A autora pensa na possibilidade de “sexualidades alternativas” em nossa sociedade moderna e, apesar de muitas pessoas insistirem em demarcar e separar os dois terrenos, homens e mulheres possuem uma pequena diferença e podem ser vistos quase como uma coisa só.

Feminilidade(s) e masculinidade(s), vamos encontrá-los distribuídos entre homens e mulheres em combinações tão variadas, que no limite poderíamos pensar numa sexualidade para cada indivíduo. O que torna impossível se agrupar as diferenças em identidades a não ser à custa justamente das pequenas diferenças subjetivas, individuais, que mais nos interessam (KEHL, 1996, p. 13).

A partir desses fatos, é preciso traçar um caminho a fim de compreender como ocorre o desenvolvimento psíquico desses sujeitos desde os seus primórdios

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até a fase adulta, período em que se dá a constituição da feminilidade e da masculinidade. É o que veremos a seguir.

2.1 Dos primórdios da constituição psíquica ao desenvolvimento da masculinidade e da feminilidade

Para Lacan (1949), ao nascer, o bebê vem ao mundo imaturo neurologicamente e, por isso, precisa de cuidados da mãe nos primeiros períodos de vida. É por meio do processo de amamentação que o vínculo entre eles aumenta, de forma que a mãe lança ao filho uma relação de amor objetal. Há, a partir desse processo de identificação, uma relação simbiótica e imaginária entre mãe e bebê, conforme afirma Lacan (1956).

O bebê vê o seio materno como sua primeira fonte de prazer e tem com ele uma relação de objeto. Nessa relação, torna-se necessária a presença de um terceiro elemento - o falo -, que é visto como um significante que complementa a tríade mãe e bebê. Nesse caso, a mãe deseja o falo (por estar desprovida dele) e a criança se coloca nessa posição para satisfazê-la. Ela deseja, no entanto, ser o significante do desejo desse Outro, que no caso se refere à mãe (LACAN, 1958).

Com o passar do tempo, por volta dos seis meses, o bebê passa a esforçar-se para perceber a realidade virtual do esforçar-seu próprio corpo, através do “reflexo no espelho”, como antecipação da sua identificação como Sujeito – fase denominada por Lacan (1949) de estádio do espelho e vivenciada como um drama pelo bebê – dos seis aos dezoito meses de vida (SALES, 2005, p. 139).

De acordo com Dor (1989), o estádio do espelho se caracteriza por uma experiência de identificação da criança com a imagem do seu próprio corpo. Essa identificação primordial a auxilia na estruturação do seu “Eu”. Antes desse estágio, a criança não vê seu corpo como uma totalidade unificada, e sim como algo fragmentado/esfacelado. E é somente mediante essa experiência que ela neutraliza a angústia vivenciada por esse esfacelamento e alcança uma imagem de totalidade e de unidade do seu corpo. Essa experiência, segundo o autor, acontece em torno de três tempos fundamentais que auxiliam a criança na construção progressiva da imagem do seu corpo.

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Dor (1989) afirma que, inicialmente, a criança percebe a imagem do seu corpo como se fosse um ser real, de quem ela procura se aproximar e tomar posse. Logo, a criança se confunde consigo e com o outro, não se reconhecendo imaginariamente como sujeito. Para Lacan (1948, p. 113), “é nesta captação pela

imago da forma humana [...] que, entre seis meses e dois anos e meio, domina toda

a dialética do comportamento da criança em presença de um semelhante.”

O segundo momento, de acordo com Dor (1989), é visto como uma etapa importante nesse processo de identificação, pois a criança descobre que o outro do espelho não é real, mas, sim, uma imagem. Com isso, ela não procura mais tomar posse da imagem, visto que consegue diferenciar a imagem e da realidade do outro.

No terceiro e último momento, a criança está convicta de que o reflexo do espelho é uma imagem e acredita que o que está sendo refletido ali não é nada além de sua imagem, através da qual ela passa a se reconhecer e reconstitui seu corpo esfacelado em uma totalidade unificada. “A imagem do corpo é, portanto, estruturante para a identidade do sujeito, que através dela realiza assim sua

identificação primordial.” (DOR, 1989, p. 80, grifo do autor). Há, dessa maneira, o

esboço de um sujeito nesse período.

Resta dizer que esta conquista da identidade é sustentada, em toda a sua extensão, pela dimensão imaginária, e no próprio fato da criança identificar-se a partir de algo virtual (a imagem ótica) que não é ela enquanto tal, mas onde ela entretanto se re-conhece. Não se trata, pois, de nada mais do que um reconhecimento imaginário, que, por outro lado, é justificado por fatos objetivos. De fato, nessa idade, a maturação da criança não lhe permite ter um conhecimento específico do corpo próprio. O estádio do espelho é uma experiência que se organiza, com efeito, antes do advento do esquema corporal. Por outro lado, se a fase do espelho simboliza a “pré-formação” do Eu (“Je”), ela pressupõe em seu princípio constitutivo seu destino de alienação no imaginário (DOR, 1989, p. 80).

Quando a criança sai do estádio do espelho, não deixa de ter uma relação de fusão com a mãe. Essa relação ocorre porque a criança procura se identificar com quem ela acredita ser o objeto do seu desejo.

Esta identificação, pela qual o desejo da criança se faz desejo do desejo da mãe, é amplamente facilitada, e até introduzida, pela relação de imediação da criança com a mãe, a começar pelos primeiros cuidados e satisfação das necessidades. (DOR, 1989, p. 81).

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Nessa relação, segue o autor, a criança é colocada como sendo um objeto que falta para a mãe. E o objeto capaz de preencher essa falta do outro é o falo. Portanto, a criança coloca-se, na relação com sua mãe, como falo materno e, por esse motivo, fala-se em uma indistinção fusional entre a mãe e a criança, uma vez que esta procura se identificar com o objeto de desejo do outro.

Com efeito, só existe relação fusional com a mãe na medida em que nenhum elemento terceiro parece imediatizar a identificação fálica da criança com a mãe. Mas, inversamente, o que atesta o caráter radicalmente imaginário desta convicção é a própria natureza do objeto fálico com o qual a criança se identifica. De forma que, por mais que a instância mediadora (o Pai) seja aqui considerada estranha à relação mãe-criança, é a própria dimensão da identificação fálica da criança nessa relação que a pressupõe. Em resumo, a identificação com o objeto fálico que elude a mediação da castração convoca-a melhor ainda no terreno de uma oscilação dialética entre ser ou não ser o falo (DOR, 1989, p. 81, grifo do autor).

Torna-se importante esclarecer o fato de que o falo, segundo afirma Dor (1989), é um conceito mal utilizado por alguns autores. Muitos confundem falo com pênis. A referência ao objeto fálico foi pensada inicialmente por Freud e, embora o termo falo encontre-se praticamente ausente em sua teoria, ele utilizou as expressões organização fálica, estádio fálico, mãe fálica. Freud, em todos os casos, fez uso do termo fálico em referência a uma função simbólica, não real. É somente com Lacan que o falo é estabelecido como um significante importante de desejo na triangulação edipiana.

Aparece, já na obra de Freud, que o falo não é o pênis imaginariamente atribuído à mulher sob a forma da mãe fálica, mas que, em contrapartida, o pai só é estruturalmente terceiro na situação edipiana porque o falo é o

elemento significante que lhe é atribuído. Uma primeira precisão parece

estar estabelecida: o objeto fálico é, antes de mais nada, um objeto cuja

natureza está em ser um elemento significante (DOR, 1989, p. 74, grifo do

autor).

A teoria do Complexo de Édipo foi pensada e inaugurada por Freud. Este período do desenvolvimento é estruturante para os sujeitos, afirma Dor (1989). Ele enfatiza, que para Lacan, esse estágio pertence ao período de maturação da criança e a um momento particular do seu desenvolvimento psíquico, ocorrendo logo após o período do Estádio do Espelho. A relação com o objeto fálico é o principal momento da situação edípica e da castração e ocorre em torno da metáfora paterna.

Referências

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