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A atualidade dos movimentos sociais rurais na nova ordem mundiall. Abstract. Resumo

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A atualidade dos movimentos sociais

rurais na nova ordem mundiall

use Scherer-Warren'

Resumo

0 objetivo deste trabalho e analisar e discutir, a Iuz da teoria dos movimentos sociais contemporaneos, as teorias e meta-ideologias sobre democratizacao, e, no tocante a globalizacao, aspectos relevan-tes para o estudo de caracteristicas especificas e universais das awes coletivas rurais, durante a Ultima decada. Nosso objetivo e tambern identificar as transformacOes relativas a organizacao, estrategias de lutas, ideals e objetivos dos movimentos sociais atuais na America Latina, tomando como caso emblematico o MST (Movimento Sem-Terra do Brasil).

Abstract

The aim of this work is to analyse and discuss, based on the

contemporary theories of social movements, the theories and meta-ideologies of

democratization, and, regarding globalization, aspects relevant to

the study of both specific and universal characteristics of rural collective actions, during the last decade. It also aims to identify the transformations that are taking place in the organizations, strategies of struggle, ideals and the goals of recent rural social movements in Latin America, taking as an emblematic case the MST (Movimento Sem Terra from Brazil).

Trabalho apresentado no X World Congress of Rural Sociology, Rio, Jul/Ago 2000.

2 Coordenadora do Nikko de Pesquisa em Movimentos Socials e do Programa de POs-Graduacao

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Apresentacfio

Nao seria necess8rio repetir aqui as iniameras e rapidas transfor-macOes a que estamos sujeitos em decorrencia da globalizacao econOmica, tecnolOgica e informa-cional das taltimas decadas. Apenas gostaria de ressaltar que estas transformacOes trouxeram tambem modificacOes nas formas e nos idearios dos sujeitos coletivos e nos movimentos sociais. Surge neste cenario uma pluralidade de novas problematizacOes para as lutas pela cidadania e pelo reconhecimento cultural, para alem das tradicionais lutas de classe. Destacando-se as questOes de genero, etnicas, ambientais, sobre a saiide, a educacao, a qualidade de vida, a mistica, a religiosidade, etc. Esta multidimensionalidade de questOes identitarias e projetos dos movi-mentos sociais requer urn olhar interdisciplinar, tendo estimulado os diversos campos do conhecimento a se preocupar corn a tematica dos movimentos sociais: das ciencias humanas as ciencias da sairde, aos estudos da economia, do direito, da linguistica e da educacao, incluindo-se na taltima 8rea o interesincluindo-se crescente da educacao fisica pela reflexividade cidada no olhar sobre o corpo. Alem disso, o novo sistema

mundial, tendo diminuido a distancia espaco-temporal entre os tradicionalmente denominados mundo rural" e "mundo urbano", esta implicando em transformacOes nas interacOes entre estes dois mundos", que merecem ser melhor avaliadas. Os movimentos sociais rurais sac) reativos a estas transformacöes e, as vezes, pro-ativos na conflguracao de urn novo cenario politico da sociedade civil global. As teorias precisam retratar este processo. A separacao que a academia fazia entre paradigmas, urn para o estudo dos movimentos sociais rurais (MSR) e outro para os movimentos sociais urbanos ou de outras especificidades, cada vez mais perde sua razao de ser, e o dialogo intelectual de diferentes correntes deve ser estimulado. Seguiremos esta orientacao para a analise dos movimentos sociais rurais da atualidade.

Representacfio do

cen6rio da globalizacfio

pelos Movimentos

Sociais

No sentido reativo, nos discursos dos movimentos sociais da atualidade, destaca-se o combate feito ao neoliberalismo, enquanto

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politica hegem6nica e homoge-nizadora do novo sistema capitalista mundial. Nas conseqUencias desta polftica, apontam especialmente o crescimento do desemprego, de massas excluidas ou desavantajadas no processo produtivo e a decadencia do welfare state. Na dimensao prO-ativa, desejam ser atores na construcao de uma sociedade menos guiada pelas forcas do mercado e onde haja ainda espaco para a voz e participacao da sociedade civil.

Em Seattle, por ocasiao da Conferencia Ministerial da Orga-nizacao Mundial do Comercio (OMC), para alem das manifestacOes de rua, a declaracao conjunta de mais de 2.000 ONGs e movimentos sociais, explicitam o contetido de suas cobrancas em termos de avaliacao: "...deveria se dar respostas sobre o impacto da OMC nas comunidades de marginali-zados, no desenvolvimento, na democracia, no ambiente, na satide, nos direitos humanos, nos direitos trabalhistas e das mulheres e criancas" (REVISTA DEL SUR, 2000, p.15-16). Conferiram a OMC status de antidemocratica, por nao considerar as objecOes da sociedade civil; injusta, por negar aos paises em desenvolvimento uma partici-pacao mais significativa e reveladora

de suas necessidades; falta de transparéncia, pela exclusao de alguns Raises em desenvolvimento nas discussOes de alguns acordos (sala verde); desequilibrio,

favorecendo inte-resses econOmicos de curto prazo, face a interesses mais amplos de eqiiidade e sustentabilidade (Ibid.).

Um pouco da histOria

dos MSR neste cenario

A

crise que abalou a agricultura mundial nos anos 70/80, seguiram-se acordos multilaterais, como na Rodada Uruguaia do GATT (precursor da OMC), e nos blocos regionais como o NAFTA e o MERCOSUL, colocando a agri-cultura latino-americana no cenario das negociacOes da sociedade globalizada. Segundo Favero (1998), este novo cenario mundial da origem a tres categorias de agricultores: os integrados, que se organizam em sindicatos, coope-rativas e associacOes especializadas; os precarios, que participam de associacOes locais e redes; e os

excluidos, que formam movi-mentos.

No ano novo de 1994, o movimento indigena de Chiapas, se auto-denominando de Zapatista,

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vindo das montanhas mexicanas, ocupa varias cidades numa manifestacao contra a NAFTA (North American Free Trade Agreement). Ao mesmo tempo que contestava as novas formas de dominacao global do capital, defendia o direito e o respeito a manutencao das diversidades culturais, no caso a indigena. Através do uso da Internet por seus mediadores, o movimento conse-guiu estabelecer uma rede de apoio e solidariedade internacional. Encontram-se al as sementes de uma articulacao internacional de novo tipo (GADEA, 1999; ROSSIAUD, 1999).

Em 1996, os Zapatistas realizaram urn encontro interna-cional em Chiapas, corn a presenca de cerca de 6.000 ativistas e intelectuais, onde se deu conti-nuidade a um novo desenho para a atuacao da sociedade civil nos problemas globais. Urn ano apOs, num encontro na Espanha, esta articulacao foi denominada de Aga° Global dos Povos (Peoples Global Action), passando a ser coordenada por dez movimentos sociais amplos e inovativos, dentre os quais o Movimento Sem-Terra (MST do Brasil) e o Karnataka State Farmers Union (KRRS da India).

Todavia, esta nao é a primeira articulacao transnacional de MSR. Os povos indigenas e os serin-gueiros do Brasil tern tambern estabelecido importantes aliancas corn movimentos ecologistas internacionais nas Ultimas decadas (SCHERER-WARREN, 1996; DIEGUES, 1996), onde o respeito a diversidade cultural passa a ser construido através desta interacao entre atores rurais e urbanos.

Em 1983, no auge da construcao de grandes projetos de barragens, foi criada em Sao Francisco/EUA a International Rivers Network. A Rede se mantern atuante, contando corn a part-cipacao de agricultores e ecolo-gistas, e o espirito de unidade na diversidade foi registrado pelos participantes do Primeiro Encontro dos Povos Afetados pelas Barragens, realizado em 1997:

e are strong, diverse, and united and our cause is just. To symbolise our growing, we declare that March 14th will from now on become the International Day of Action Against Dams and for Rivers, Water and Life. (SOCIAL MOVEMENT LIST, 2000)

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Por onde andam as

teorias?

Na America Latina, tradicio-nalmente, havia urn predominio das abordagens classicas marxista e leninista para o estudo dos MSR (COSTA e SANTOS, 1998; NAVARRO, 1996). Esta visao centrava-se na explicacao dos condicionantes (ou determinacOes) econOmico-estru-turais das awes coletivas. Os sujeitos eram definidos em torno de categorias abrangentes e uniformi-zadoras (o campesinato, o proletario ou semi-proletario rural), corn urn significado classista generic° (SCHERER-WARREN, 1998a).

Sensiveis as transformacOes do mundo rural nas tiltimas decadas e a heterogeneidade das forcas sociais organizadas no campo, o debate sobre os novos movimentos sociais comeca a ter eco. A nova lOgica busca compreender o mundo da cultura, as relacOes sociais do cotidiano e as identidades coletivas especfficas de cada movimento. As categorias de atores terao maior concretude (indigenas, seringueiros, mulheres agricultoras) ou sera° mais particularizadas (atingidos pelas barragens, quebradeiras de coco, etc.) (Ibid.).

Na atual fase da globalizacao sera interessante entender a lOgica da insercao dos atores nos condicionantes econOmicos da nova ordem mundial; bem como a relocalizacao desta lOgica no interior de suas comunidades especfficas. Alem disso, a internacionalizacäo da economia, corresponde uma transnacionalizacao da politica e da cultura. Os atores, atraves de suas redes, reagem a suas formal de insercao ou de exclusao neste cenario e recriam utopias de transformacao. A informatizacao do mundo reacende nos atores o desejo de terem vozes na esfera palica e de participarem nos mecanismos politicos que regem seus destinos. A democracia coloca-se na ordem do dia, e o debate teOrico nao pode ignora-la.

0 novo "espirito

democratico"

O "espirito democratico" se reacende no seio dos movimentos sociais na nova ordem mundial. Corn a queda do Muro de Berlim, e corn a derrocada de muitos regimes ditatoriais nos paises perifericos, a democracia desponta como valor universal e e apropriada pelo discurso politico dos movimentos

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sociais (ROSSIA(JD e SCHERER-WARREN, 2000). Porem, o "espirito democratico" incorpora novos significados. Nao se trata mais, conforme TOURAINE (1998), do pensamento politico das Luzes, que "tornou-se cada vez mais antidemocratic°, elitista e mesmo repressivo quando identifica uma nacao, uma classe social, uma idade de vida ou genero corn a razao, justificando assim sua dominacao sobre as outras categorias" (p. 102).

Trata-se agora de incorporar na democracia nao mais apenas mecanismos universais abstratos de "igualitarismos" (civis, de direitos politicos, etc.), mas de reconhe-cimentos aos direitos a diferenca (cultural, etnica, de genero, etaria, etc.). As lutas identitarias especificas dos denominados novos movi-mentos socials, que se reafirmaram através da autonomia dos grupelhos", nas decadas de 70/80, agora se legitimam no interior das redes de movimentos multi-ternaticas e translocais (CASTELLS, 1997; SCHERER-WARREN, 1999). Este debate se intensifica no interior dos estudos do multicul-turalism°. Mas al é necessario distinguir uma visa° multiculturalista classica, em que a relativizacao das

diferencas pode implicar na legitimacao dos guetos culturais que reproduzem desigualdades e discriminacOes sociais e levam ao

isolamento politico; de uma

perspectiva interculturalista, pela qual ha o reconhecimento

das diversidades culturais e de legitima possibilidade de partici-pacao dos diferentes segmentos sociais nas esferas piblicas que !hes dizem respeito. Inclui, portanto, as ideias de participacao e de avaliacao continuada do valor da justica social nos processos de construcao da

intersubjetividade coletiva

(SCHERER-WARREN, 1998b). Neste contexto, a ideia de

movimento social,

enquanto categoria analitica, deve ser distinguida das varias praticas concretas denominadas de "movi-mentos sociais" ou "movi"movi-mentos populares". A construcao da categoria deve ser buscada nos processos que transcendem os sujeitos coletivos em suas praticas particulares. Desta forma,

Movimento social é urn conjunto de referencias simbOlicas, num campo de valores e de praticas sociais, que vai sendo construfdo na memória e na acao coletiva, penetrando em varios nix/els, nas relacôes familiares, comunitarias e societarias, no local, no nacional

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e no planetârio" (ROSSIAUD e SCHERER-WARREN, 2000). Passaremos agora a examinar como esta nova forma de ser movimento reflete na organizacao, nas estrategias, nos idearios e objetivos das praticas coletivas. Examinaremos a partir do caso particular do Movimento dos Sem-Terra no Brasil (MST) - por considerslo emblematico -aspectos desta nova tendencia na pratica efetiva de urn "movimento".

0 caso emblematic° do

MST

0 MST constrOi sua meta-ideologia a partir da influéncia de trés principais correntes de pensamento: a simbologia crista, a teoria marxista-leninista (STRAPAllON, 1998) e o "ideario democratico" do novo movimento cidadao globalizado (ROSSIAUD e SCHERER-WARREN, op. cit.). As tendencias, em algumas circunstancias, se complementam no sentido de fortalecer o movimento, outras vezes produzem contradicOes e conflitos no interior da organizacao. A primeira corrente foi hegemOnica na origem do movimento (de 1979 a 1984); a segunda se fortalece a partir de meados dos anos 80 (STRAPAllON, 1997); e a terceira

vai se intensificando no MST, na medida de sua participacao na ampla rede do movimento cidadao planetario ao longo da decada de 90. Neste movimento cidadao nao so o ideario da democracia se fortalece enquanto valor universal, como novos significados vao complexificando esta nocao: "un

mundo donde quepan muchos mundos", dizem os insurgentes neo-zapatistas de Chiapas. 0 reconhecimento e o respeito a diversidade cultural sao integrantes do ideario da democracia, redefinindo os principios classicos de liberdade, igualdade, frater-nidade. Desta forma democracia e socialismo se associam na construcao de uma utopia mais aberta e em permanente construcao (ROSSIAUD e SCHERER-WARREN, 1998).

Utilizarei como recurso ilustra-tivo:

a) Signos do MST, ou seja, lemas oficiais do movi-mento, criados por ocasiao dos Encontros e Congressos Nacionais, e que perma-necem como simbolos dos periodos subseqUentes:

1979 a 1984 - "Terra para quern nela trabalha";

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1984- "Terra nä° se ganha, se conquista"; 1985 a 1988 - "Sem Reforma Agraria nä° ha democracia"; 1986 - "Ocupagäo e a Unica solugdo"; 1989 a 1994 -"Ocupar, Resistir, Produzir"; 1995 a 2000 -"Reforma Agraria: uma luta de todos".

b) Extratos de discursos de liderancas nacionais, espe-cialmente, Ademar Bogo, membro da direcao do MST/ Regional Nordeste; e Joao Pedro Stedile, membro da direcao nacional do MST.

Reflexos na

organizacfio

"Nao quero projetar as pessoas e sim a organizacao, que é a sintese de todas as pessoas". BOGO (1998b) inicia sua fala destacando a importancia do coletivo, enquanto sintese das participacOes individuais. Esta ideia esta presente em toda a histOria do movimento. Todavia, o significado inthnseco a nocâo de coletivo vai se modificando, na medida em que novas mediacOes ideolOgicas vac) sendo introduzidas.

Na simbologia crista, a ideia de coletivo refere-se ao "povo de Deus", que no movimento foi traduzido como as bases da organizacao, constituida especialmente pelos acampados e assentados. A ideia de povo tambern refere-se a uma opcao preferencial pelos pobres e oprimidos, seguindo a teologia da libertacao.

Corn o fortalecimento da mediacao marxista-leninista, o coletivo refere-se a organizacao de massa, corn uma hierarquizacao entre a antiga base e urn quadro de liderancas corn formacao especffica. A massa diz respeito a uma condicâo de classe: "a Onica forma de libertar o ser humano da miseria é a luta de classes" (BOGO, 1998b). Ja na Ultima fase, a do ideario democratic°, os dois referenciais acima não desaparecem, mas convivem corn a ideia de ampliacao do movimento, expresso no lema "reforma agraria: uma luta de todos", e a qual se complementa corn outras lutas cidadas especi-ficas: "nOs queremos que se proliferem outros movimentos sociais e vamos incentivar para que isso aconteca e continue" (Ibid.). BOGO acrescenta aqui a necessidade de construcao de uma nova identidade coletiva: "A nossa identidade tern que ser retomada,

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reformulada em cima de outros paradigmas que nao esses tradicionais de luta pela terra". Esta postura significa o MST nao apenas se solidarizando e apoiando outra lutas especificas (por moradia, emprego, educacao, etc.), mas tambern introduzindo em sua organizacao especificidades dos novos movimentos sociais (ecologia, questOes de genero, etnicas e culturais, etc.), e construindo uma nocao muito mais ampliada de povo:

"Devemos participar ativamente em todas manifestacOes populares, festas religiosas de cada estado, carnaval, eleicties, e lutas massivas, all esta o povo, all esta a consciencia popular" (BOGO, 1998a).

Desta forma a organizacao atual do MST, congrega tres niveis principals de participacao no movimento, expressando, respec-tivamente, as mediacOes crista, marxista-leninista e do movimento cidadao:

a) As bases — os membros dos acampamentos ou assenta-mentos (os sem-terra pro-priamente ditos), sujeitos aos processos de conscien-tizacao a partir da pratica e da convivéncia no movimento ou, conforme BOGO (1998b),

quando afirma que uma das linhas de acao do MST "e para formar novos seres humanos, [pois]... a transformacao de urn latiftindio em pequenas propriedade privadas... nao leva a nada... 0 que constrOi uma sociedade e a mudanca de carater das pessoas, e a mudanca de conduta das pessoas". Ha uma grande diversidade cultural-regional destas bases, e freqiiente-mente os processos de formacao polftica nao sao facilmente assimilados pelas culturas locais e geram resistéricias ou conflitos (Q(1EIROZ, 1999).

b) 'As liderancas — participam na estrutura organizativa do MST, que compreende coordena-cOes locais (de assentamento e acampamento), regionais, estaduais e nacional e direcOes estaduais e nacional, todas sob a forma de coletivos sem presidéncia" (BERGER, 1998, p. 98). Nos quadros politicos do movimento e buscada uma uniformidade de atuacao, seguindo principios organi-zativos da segunda mediacao mencionada acima (as lutas de massa). Neste caso,

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discursivamente o sujeito indMdual se dilui no coletivo como, por exemplo, no uso da expressao "a gente" em lugar de "eu", "eviden-ciando o desejo de apresentar o lugar do lider como urn lugar de apagamento da individuali-dade e de submissao ao coletivo" (QUEIROZ, 1999, p. 200). c) As articulacOes/redes trans-identitarias — referem-se ao nivel da participacao con-junta do MST corn outros movimentos sociais e cidadaos simpatizantes em redes de informacao, de viglia e de resistencia e mani-festacOes massivas locals, regionais, nacionais e transnacionais. Aqui encon-tramos redes mais horizon-talizadas, menos estruturadas e na qual a discursividade sobre o direito a participacao e vigilia cidada sobre decisOes piablicas que the dizem respeito, toma vulto.

As estrategias e as

mobilizaciies

Na mudanca de lemas do MST, encontramos a expressao simbOlica

de transformacOes em suas estrategias de luta e de mobilizacties. 0 lema "Terra para quem nela trabalha" foi construido sob a egide da simbologia crista e legitimou uma das primeiras estrategias de luta: as ocupacOes de terra. A conotacao moral deste lema (STRAPAllON, 1997)) permitiu aos mediadores construir junto as populacOes rurais, tradicionalmente bastante legalistas, a ideia de aceitacao de ocupacao de propriedades rurais que nao cumpriam sua funcao social, a partir da aplicacao de urn principio de justica social, conforme passou a ser traduzido por suas liderancas: "A ocupacao é legtima porque tem em vista a defesa da vida, dos instrumentos para conseguir a sobrevivencia, porque é praticada por gente marginalizada pela sociedade, e se realiza em propriedades de quern as usa mal e nao necessita delas para viver" (STEDILE e SERGIO, 1993, p. 59).

Em 1984, por ocasiao da fundacao do MST como movimento nacional, na passagem ao segundo lema, "Terra näo se ganha, se conquista", a conotacao politica da ideia de ocupacao é que passara a predominar, ou seja, urn "instru-mento de luta para exigir seus direitos. Os sem-terra nab tern como

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fazer greve. Sua forma de pressionar e ocupar os latiffindios" (Ibid). Este o momento histOrico de definicao de autonomia do MST, corn identidade prOpria, distinto da Igreja (espaco de conscientizacao), do sindicato (mais burocratizado) e dos partidos (disputa de cargos governamentais). Inicia-se a ideia de construcao de urn movimento de massa: "Um movimento para todo mundo que quisesse lutar. Um movimento que nao fosse burocratizado e presidencialista

[er ► sua organizacao], que valorizasse formas novas de organizacao, por cornissao, que juntasse homem, mulher e crianga"

(Entrevista de Stedile, in ROSSIAUD e SCHERER-WARREN, 2000).

A estrategia politica da ocupacao se intensifica nos anos seguintes, e o acampamento passa a ser urn espaco de resistencia continuada e de socializacao politica dos "sem-terra" (FERNANDES, 1996). Os lemas da prOxima decada, expressam a radicalizacao do MST nesta direcào: "Ocupacao 6 a anica solugao" e "Ocupar, Resistir, Produzir". Sendo que no Ultimo enfatiza o papel do "sem-terra", enquanto agente econOrnico, enquanto ator relevante no processo produtivo e corn identidade de classe.

O lema intermediario, do Congresso Nacional de 1985, "Sem Reforma Agraria ndo ha democracia", por urn lado, resgata a necessidade de se pensar a dimensao social da democracia e, por outro, coloca a democracia enquanto valor universal.

O lema do 3° Congresso Nacional, "Reforma Agréria: uma luta de todos", amplia o sentido da participacao cidada na construcao de uma democracia corn contend° social. Neste momento, a estrategia politica da mobilizacao massiva, como por exemplo a Marcha Nacional dos Sem-Terra, em abril de 1997, passa a se caracterizar como uma nova forma de luta reivindicativa e de resistencia. Segundo STEDILE (op. cit.), "o principal e compreender que a nossa fora na negociacao e a mobilizacao de massa. E nas mobilizacOes que conseguimos posicOes para negociar. Se apenas sentarmos a mesa, sem lutarmos antes, nä° resolve nada ". Esta estrategia tambem visa, atraves da midia, uma comunicacao mais ampliada corn a sociedade civil,

if

manter urn dialog° corn a sociedade", nas palavras de BOLO (1998b).

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Os valores

Os valores cultivados no interior do MST tiveram influéncia das tres matrizes mencionadas: crista, marxista-leninista e ideario democratic° do novo movimento cidadao. 0 intercruzamento destas influencias e a capacidade de sua introducao na pratica e experiencias cotidianas dos "sem-terra", que participam do movimento, é que vao dando forma a uma meta-ideologia ao MST. 0 documento "A vez dos valores" (BOGO, 1998a), publicado enquanto Caderno de Formacao do MST, e urn Pronunciamento de Bogo (1998b) sintetizam o ideario atual da direcao do movimento:

1) A solidariedade: adquire o

sentido cristio de cloaca°, "... de alguma coisa da gente em prol da coletividade, seja sangue, forga fisica, conhecimento, enfim... se é para melhorar a vida das outras pessoas..."

(1998b). Comporta uma lOgica contraria a de mercantilizacao dos sentimentos, onde "tudo se pode comprar... [e] que embruteceu as pessoas e as trans formou em objetos descartaveis" (1998a). E expressa a resignificacao do valor de fraternidade da

Revolucao Francesa, no sentido dado pelos novos movimentos cidadaos. Desta forma, o MST tenta criar condicCies de sobrevivencia no mundo globalizado se integrando a uma nova concepcao de intercambio, "o comercio solidario", segundo o qual o "bem estar das populacCies envolvidas" é urn requisito basic°. Vern criando urn mercado para os produtos das cooperativas, corn Angola e Mocambique, corn apoio de ONGs europeias (SANTOS,

1999).

2) A beleza: resgata da Biblia a

ideia de que "apOs ter sido criado, Deus colocou o ser humano em um jardim"

(1998a). A perda deste valor é atribuida ao capitalismo, onde a "classe trabalhadora foi educada ou acostumada a rid° admirar, nao aproveitar, nao usufruir a beleza, principalmente a gente que trabalha na terra" (1998b). 0 resgate deste valor é associado a ideia de construcao da dignidade e de transformacao do ambiente fisico do assentamento, corn reflorestamento, controle da mecanizacao pesada e insumos quirnicos, estimulo a estetica e jardinagem (1998 a e b), na

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direcao que vem sendo trabalhada pelo movimento ecolOgico.

A valorizacâo da vida: principio

fundamental da simbologia crista, no movimento "a defesa da vida deve estar acima da defesa do lote de terra, do credit°, da edu cacao, etc. " (1998a). Aqui novamente o desrespeito

a

vida e atribuido classe dominante, "pois sabem que quando urn trabalhador esgota sua forca de trabalho, pode arranjar outro e colocar em seu lugar" (1998a). Este respeito devere significar

"acima de tudo [que] devemos nos preocupar corn a sande e o bem estar das pessoas", nao utilizando agrotOxicos, por exemplo (1998a). Portanto, os valores de qualidade de vida e ambiental estao novamente aqui associados.

0 gosto pelos simbolos: parte do principio cristao de que os simbolos so existem porque antes deles existem as pessoas

gue sao os verdadeiros simbolos da humanidade de todos os tempos" (1998a). Se os "Sem-Terra" tornaram-se tambem um simbolo para alem de sua organizacao, e atribuido

ao fato de terem conseguido respostas a grandes problemas, organizando, produzindo, comercializando, educando criancas e desenvolvendo awes de solidariedade na sociedade ao mesmo tempo, "numa sociedade moderna, onde o grande mercado e o senhor de tudo, onde disputam-se novas tecnologias de ponta... e nao conseguem matar a fome dos seres humanos" (1998a). Os demais simbolos (bandeira, bone, mtisicas, etc.) sao considerados como elementos para a construcao da identidade politica dos "Sem-Terra". Mas reconhecem a necessidade de respeitar os sentimentos e simbolos que sao trazidos de outras tradicOes, "por isso nao nos incomodamos quando alguem leva para as mobili-zacOes a cruz ou a bandeira do divino, ou se dentro do assentamento se praticam varias religities" (1998a). Portanto, prega-se o respeito as diversidades culturais e o reconhecimento a outras lutas histOricas, em consonancia corn os ideal-los do movimento cidadao global.

5) A valorizacâo em "ser povo":

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pobre (povo de Deus) a de verdadeiros brasileiros" (povo-nacao), que deve lutar contra aqueles que buscam "substituir a ideia de nacao por mercado globalizado" (1998a). Povo tambern é aquele que forma identidade coletiva, que onde tiver uma necessidade crie urn movimento social, pelo emprego, moradia, educacao, etc., que "passem a dese-nuoluer uma luta de autodefesa dos dire itos sociais e humanos"

(1998b), de acordo corn suas diversidades e peculiaridades, na linha do novo "espirito democratico".

6) 0 trabalho e o estudo:

é

considerado que o que humaniza a pessoa é a sua capacidade de produzir seus prOprios meios de vida. 0 sistema que cria desempre-gados e desocupados desuma-niza a sociedade. E o estudo entra como fundamental para o desenvolvimento humano e sua capacidade para dirigir o futuro da humanidade. Este é urn principio de responsa-bilidade frente a histOria e o destino das geracOes futuras, já que o estudo possibilita a integracao a complexidade do mundo contemporaneo de

forma analitica e critica. Assim, para o MST, "o trabalho e o estudo sao ualores fundamen-tais, [pois] corn eles transfor-maremos nossa consciéncia para, corn isso,

transfor-marmos o Brasil" (1998a). 7)

A capacidade de indignar-se:

aqui tambem se remete a ideia da necessidade de resgate do "ser humano" na sociedade. Critica-se o sistema neoliberal por ter levado a exclusao social ao limite da desumanizacao, produzindo e mantendo terras, teto e sem-empregos (1998b). "Urn ser humano nao tern o direito de uiver as custas da forga de trabalho de outro ser humano e condena-lo a uiver sem esperangas... [por isso]

deuemos educar nossa cons-ciéncia para que reaja, sempre que identificar uma injustiga cometida contra qualquer ser humano" (1998b). Alern disso, busca-se desenvolver uma capacidade de indignacao, para alem do espaco societario do MST, que esta simbolizada no lema da Marcha Nacional de 1997, "Terra, emprego e justiga".

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Consideracties finais:

do imediato ao utOpico

Em sua homepage, o MST coloca como seus tres s grandes objetivos: a terra, a reforma agraria e uma sociedade mais justa. Na pratica do movimento estes objetivos vem sendo desdobrados numa multiplicidade de acOes coletivas que vac) das reivindicacOes para conquistas imediatas, a luta por direitos de cidadania e trans-formacOes sOcio-politico-culturais a medio prazo e a realizacao de urn projeto utOpico num tempo histdrico mais longo. 0 MST trabalha para que em cada pratica singular a preocupacao corn estes tress niveis esteja presente, para que a partir das coisas mais simples e das praticas cotidianas vao sendo geradas as sementes e as condicOes para transformacOes mais profundas:

Os trabalhadores ao conquis-tarem o seu prOprio espaco, construiram o espaco de soda-lizacao politica... ampliam o sentido da luta pela terra que passa a ser entendida para alem da questao econOrnica, ou seja, e tambem urn projeto sociocultural de transfor-macao de suas realidades. Os efeitos sociais desse movimento sobre as relacOes sociais atinge toda

a sociedade. Estes sao frutos dds conflitos e, tambern, das awes desses sujeitos que tern por objetivo causar transformacOes especfficas e gerais nas relacOes de poder (www.mst — 14/3/2000).

0 objetivo material imediato (a terra) "nä° basta", como dizem, deve vir acompanhado de lutas pelos direitos sociais (a cidadania plena) e em direcao a construcao de uma sociedade mais justa (a socialista). Para atingir este objetivo, que a educacao, considerada como urn direito essencial, deve se desenvolver como urn processo que inclui educacao formal (ensino fundamental) e informal (partici-pacao no movimento, nas mobili-zacOes, em awes de solidariedade, etc.), incluindo neste processo todas as geracOes e generos.

A utopia socialista adquire uma nova complexidade neste cenario. Partindo do pressuposto de que um processo que deve ser incorporado desde ja na vida cotidiana, os processos educacio-nais, de socializacâo e as praticas fecundam-se em urn novo ideario socialista, que se aproxima daquele do novo movimento cidadao global: awes de solidariedade, melhoria na qualidade de vida e ambiental, respeito a diversidades identitarias e culturais, valorizacao da estetica e

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culto a simbolos culturais e politicos e, sobretudo, participacâo no destino da sociedade em seu caminho para a realizacáo da justica social e da paz:

Se o hoje pertence a guerra, o amanhä pertence a paz. E preciso fazer acontecer esta possibilidade (BOGO, 1998a).

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