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A CIDADE E A MODERNIDADE: EQuívocos CONCEITUAIS

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A CIDADE E A MODERNIDADE: EQuívocos

CONCEITUAIS

LÉA FREITAS PEREZ'

As cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nem um nem o outro bastam para sustentar as suas muralhas, De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas,

ITALO CALVINO - As

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c id a d e s in v is í v e is

Há anos dedico boa parte de meu trabalho ao estudo da organização urbana brasileira, e mais particularmente ainda, desde agosto de 1993, desenvolvo um plano de estudos sobre a organização urbana brasileira. Prefiro denominá-Io assim, pois me parece que um plano é mais ambicioso, uma vez que não se limita à circunscrição empírica de um dado objeto, mas de um campo teórico-metodológico de reflexão. Assim percebendo a construção do conhecimento, sou solidária das idéias de Edgar Morin e de Paul Veyne. Diz Morin que "o problema que a teoria coloca não é um problema mais "profundo" que o "saber ver", pois "toda explicação deve tentar recuperar seu ponto inexplicável e, com isso, tentar elaborar o sistema de referência mais amplo que lhe permita se superar para explicar a si própria. Não basta querer compreender para compreender. É preciso querer também compreender a compreensão". Nesta mesma linha afirma Paul veyne que "é mais importante ter idéias do que conhecer verdades", pois "ter idéias significa também dispor de uma tópica, tomar consciência do que existe, explicitá-Io, conceituá-Io, arrancá-Io à mesmice"; mais ainda, "é deixar de ser inocente, e perceber que o que é poderia não ser", uma vez que "o real está envolto numa zona indefinida de compossíveis nâo-reatizados".'

Minhas preocupações dizem respeito a certas temáticas que se situam na interface entre a história, a antropologia e a sociologia e que, mais pontualmente, relacionam-se à formação histórico-social da cidade, à vida Social e às mentalidades no meio urbano e à relação entre tradição,

• Universidade Federal de Minas Gerais

1MORIN, Edgar. P a r a s a ir d o s é c u lo X X . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 74,

170, VEYNE, Paul. Oin v e n t á r io d a s d if e r e n ç a s : história e sociologia. São Paulo: Brasiliense,

1983. p 54,55,

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modernidade e pensamento social no Brasil. Seguindo uma orientação teórico-metodológica de cunho transdisciplinar, minha proposta

é

a de criticar uma certa concepção do Brasil, para a qual, em nosso país, a modernidade é um projeto inacabado porque é persistente a presença da tradição colonial". No lugar das questões que procuram explicar por que no Brasil a modernidade é um projeto inacabado, proponho mudar o registro e ver como a formação histórico-social do Brasil é solidária e contemporânea da modernidade e como a organização da cidade, isto é, a constituição da rede urbana, é um elemento central na estruturação do perfil da sociedade brasileira.

Situado o plano geral de minhas preocupações, passo a seguir a

explicitar o olhar que lanço á cidade com a intenção de propor uma

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o u t r a

le it u r a da formação urbana do Brasil que privilegia a colocação em perspectiva

de nossa formação social com o desenvolvimento da modernidade.

A d o x a corrente no pensamento social brasileiro difunde uma idéia

geral segundo a qual, sendo a formação de base do Brasil de origem rural, não existiria ordem urbana no país antes da segunda metade do século XIX - mas, mesmo assim, tratar-se-ia de um tímido começo de urbanização - já que o "verdadeiro" desenvolvimento urbano dataria dos anos 1930. Assim é que, para um dos mais importantes historiadores brasileiros, refiro-me a Sérgio Buarque de Holanda, a estrutura colonial foi centrada fora do meio urbano, de modo que a ordem social assim constituída, se não era propriamente agrícola, tinha fortes raizes rurais". Nesta mesma linha se situa a análise de Aroldo de Azevedo, que vê na estrutura econômico-social baseada no açúcar um caráter anti-urbano, uma vez que o engenho e a usina de açúcar seriam uma cidade em rniniatura."

Seguindo esse tipo de abordagem, é freqüente encontrarmos

2 Conforme já comentei em outro lugar, de acordo com o mito da modernidade

inacabada, o Brasil seria ainda incompleto, devendo se "modernizar" para "conquistar seu lugar no concerto das nações desenvolvidas". Vale dizer que o país seria ainda uma potencialidade - "o gigante adormecido", "o país do futuro" - e não uma realidade acabada. Seria um "país dual", porque formado por contrastes e por contradições: os "dois Brasis", eterna e irremediavelmente divorciados, de costas um para o outro. Se o país é dual, a sua sociedade só poderia ser uma "sociedade a duas velocidades", cindida entre o moderno e o tradicional, entre a ordem e a desordem, entre a riqueza e a pobreza, entre o norte subdesenvolvido e o sul desenvolvido, entre o cidade e o campo, etc. Esta maneira de ver o Brasil se articula em torno de uma ló g ic a d a f a lt a e opera a partir de oposições binárias,

sobretudo com as oposições tradicional-moderno e centro-periferia. O centro - o moderno - é

a vanguarda. Lá, tudo é criado - de forma original - por isso o seu poder de tudo comandar. A periferia - o tradicional - Mo passa de uma retaguarda. Aqui, tudo é cópia e, em sendo cópia, é sem originalidade. Ver meu artigo "Por uma poética do sincretismo tropical". E s t u d o s t o e r o

-A m e r ic a n o s , Porto Alegre, PUCRS, v. 18, n. 2, p. 43-52, dez. 1992.

3 HOLANDA, Sérgio Buarque de. R a í z e s d o B r a s il. 22. ed. Rio de Janeiro : José

Olympio, 1991. p. 41 .

• AZEVEDO, Aroldo de. Embriões de cidades brasileiras. B o le t im P a u lis t a d e

G e o g r a f ia , São Paulo, n. 25, p. 31-69, p. 53, 1957 (separata).

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descrições da cidade colonial brasileira como sendo atrasada, não passando de um simples vilarejo/aldeia tradicional, sem infra-estrutura, suja, sem vida autônoma, etc. Só poderíamos falar em cidade - "de verdadeiras cidades" _ a partir dos anos 1930, quando todo o país é investido por um grande projeto de modernização, no qual as palavras-chaves são desenvolvimento urbano e industrialização. Segundo este tipo de visão, a modernização (tomada como sinônimo de crescimento econômico segundo os padrões do centro) seria o único caminho para o Brasil sair da marginalidade e da dependência, O ponto focal da mudança, isto é, a industrialização, se bem implantada, agiria no conjunto da sociedade de maneira a aproximá-Ia das sociedades desenvolvidas, Trata-se evidentemente de uma visão messiânica do poder da economia para resolver todos os problemas e de uma lógica claramente evolucionista - os mesmos processos levariam ao mesmo fim _ geradoras de uma confusão entre reformismo, desenvolvimento sócio-econômico e modernidade.

Esta leitura parte do suposto de que o desenvolvimento urbano das cidades européias é o modelo universal, ou seja, é o paradigma de urbanização. O processo de urbanização é tomado como sinônimo de atividade racional, de caráter comercial e/ou industrial - no plano da atividade econômica - de intensa movimentação no plano da vida social -e d-e uma -estrutura d-e -el-em-entos g-eográficos (o sítio, a disposição das ruas, das praças, dos edifícios, etc.), de equipamentos materiais (a infra-estrutura urbana e a malha de construções) - no plano da organização espacial. A análise oa urbanização é, assim, estreitamente associada à problemática do desenvolvimento, este remetendo, como menciona Manuel Castells, ao mesmo tempo, a um nível (técnico, econômico) e a um processo (transformação qualitativa das estruturas sociais), permitindo um crescimento do potencial das forças produtivas. A complexidade da urbanização fica reduzida a um simples movimento acumulativo de recursos técnicos e materiais de uma sociedade."

S~ndo o Brasil um país de formação colonial, seu desenvolvimento urbano teria sido abortado pela exploração colonial, uma vez que a colônia nunca teria passado de uma zona especializada na produção agrícola, onde imperava a grande propriedade depredadora e improdutiva, Certamente não Podemos deixar de reconhecer que a economia política colonial, sobretudo a açucareira, estava longe de ser uma economia política urbana, todavia, freqüentemente esquecemos que, no plano estrutural, a descoberta e a Colonização do Brasil se inserem nos quadros da formação do mundo moderno, num contexto em que as relações da economia urbana e o processo de urbanização ultrapassam as fronteiras das nações para

---5CASTELLS, Manuel. L a q u e s t io n u r b a in e . Paris: Maspero, 1981. p. 32-33.

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assumirem um caráter mundial. Esquece-se que a política urbana que Portugal aplicou em sua colônia tropical era inspirada no modelo europeu todavia as condiçôes locais e os princípios da colonização transformaram o modelo, dando-lhe aspectos singulares. Dito de outro modo: a modernidade é a tradição que estrutura a organização do Brasil desde o começo. A colonização portuguesa seguiu o espírito de seu tempo, isto é, o projeto moderno; todavia, entre o projeto e sua aplicação, há a criação de uma realidade nova e particular - o Brasil - marcada pela combinação de várias racionalidades e modos de organização. Esquece-se igualmente que o espaço não é só uma ordem empírica, isto é, materialmente qualificado, mas que, acima de tudo, é vivido, sendo, portanto, uma ordem qualificante.

Repito aqui o que já falei em outro luqar". O Brasil foi, como permanece ainda hoje, muito mais patrimonial-patriarcal que rural. A grande exploração - de açúcar, de ouro, de café ou de gado - é uma organização econômica complexa, cuja produção se destinava aos mercados urbanos europeus. Um tipo de organização que não tem nenhuma semelhança com a pequena exploração familiar de subsistência, característica do meio rural europeu. Certo, o modo de exploração era depredador dos recursos naturais. Ele correspondia a uma certa lógica, a uma visão particular das relaçôes do homem com a natureza e com o espaço. Uma visão onde a natureza é percebida como inesgotável e o homem seu rei. Nesta concepção do mundo e neste tipo de sistema econômico, a cidade não é uma ameaça, antes pelo contrário. A grande exploração agrícola, mineral ou pastoril não se opõe

à

cidade, pois a cidade nasce como seu complemento, enquanto um entreposto de mercadorias.

Se combinamos a orientação econômica central, isto é, o capitalismo comercial, e sua encarnação social - a família patriarcal - podemos entrar no coração da configuração histórica brasileira: uma ordem mista entre o rural e o urbano -

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r u r b a n a . Este tipo de ordem é uma estrutura de organização

que opera,desde o começo, através de uma profunda ligação entre a cidade e o campo? A grande empresa colonial é, do ponto de vista de sua organização social e de sua orientação econômica, uma estrutura com forte caráter urbano: seu interesse e sua razão de ser são associados à cidade. Não é um simples detalhe sem importância o fato de que o território da

6A respeito da constituição da rede urbana no Brasil, ver meu artigo "A formação da

rede urbana brasileira nos quadros da formação do mundo ocidental moderno". E s t u d o s ! b e r o

-A m e r ic a n o s , Porto Alegre, PUCRS, v. 19, n. 2, p. 117-138, dez. 1993.

7 Segundo Gilberto Freyre, os valores urbanos se impõem facilmente no Brasil pois

eles são móveis e plásticos, mesmo fluidos. Eles podem ser transpostos, sem maiores problemas, das grandes cidades para as pequenas cidades do interior do país, de modo a estender a urbanização àescala rural. FREYRE, Gilberto. S o b r a d o s e m u c a m b o s :introdução à História da sociedade patriarcal no Brasil - 2. Decadência do patriarcado rural e

desenvolvimento urbano. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 1990. p. XXXIV, XXXV.

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cidade colonial era composto do perímetro urbano propriamente dito e das imediações agrícolas. Do mesmo modo, não podemos esquecer que as festas religiosas, a municipalidade (através da Câmara de Deputados) e o mercado local operavam ligações constantes entre a cidade e a zona agrícola.

O que a d o x a corrente expressa é uma visão equivocada de

modernidade e, portanto, de seu correlato - a tradição. Associando a modernidade única e exclusivamente a fatores de ordem técnica, confunde um processo mais geral, relacionado a um dado modo de civilização - a modernidade - com a aplicação de políticas de reforma econômica, social, administrativa, urbana, etc. Dito de outro modo: a idéia de modernidade se confunde com uma concepção puramente endogênea da modernização, tendo como contrapartida uma visão nostálgica e romântica do rural, uma espécie de "mito do campo"."

Este tipo de abordagem opera a partir de um erro de análise. Os pretendidos caracteres rurais e anti-urbanos do Brasil colonial e, conseqüentemente, não-modernos, não são senão uma expressão da ordem patrimonial-patriarcal que estava na base. O colono branco, não se deve esquecer, não vinha para a colônia como um simples trabalhador ou camponês. Ele vinha, antes de tudo e acima de tudo, para ser o dirigente de uma empresa. No caso em que viesse para se estabelecer no campo, ele o fazia na condição de ter uma grande empresa, uma grande exploração, na qual ele seria o senhor. Jamais aceitaria levar uma vida camponesa t o u t

c o u r t . Tanto é que era freqüente que o colono enriquecido abandonasse

seus domínios agrícolas para se instalar na cidade, ou ao menos para nela passar longos períodos. A clássica distinção européia entre a cidade e o

v í f la g e (pequena aglomeração rural) não existe no Brasil. Não conhecemos a

8Como refere Francisco Coelho dos Santos: "Embora a modernidade seja refratária a

se isolar no espaço exíguo do conceito, ela se deixa conhecer pela sua lógica, pela sua maneira de operar. Modo de civilização fundado no racionalismo, na organização da produção visando a otimização dos resultados, numa consciência burguesa e secularizada, assim como nas manifestações mentais ou espirituais que deles decorrem, a modernidade pode ser caracterizada pela fé inabaláve' na Razão, pela crença indestrutível na idéia de Progresso e pela oposição resoluta à Tradição. A razão é concebida como a luz capaz de "iluminar" gradualmente todo modo de ser nesse mundo; o progresso é compreendido como a superação continua do que é, levando ao aperfeiçoamento crescente de tudo que pode ser dado na experiência, seja ela individual ou coletiva, enquanto que a tradição éidentificada aos modos de pensar, de sentir e de agir que permanecem tributários do passado, enraizados nos hábitos e nos costumes. De natureza centrífuga e irradiante, a modernidade possui uma extraordinária mobilidade; sua disposição a um só tempo homogeneizante e totalizante lhe permite anexar, absorver e anular toda diferença. É graças a essas duas últimas propriedades que ela se torna universalizante. Todavia, é sobretudo como sistema de valores, como 'ideologia' - como um diScurso particular ou relativo que se faz passar por universal ou absoluto - e até mesmo como utopia que o projeto da modernidade se estabelece e se põe em marcha". SANTOS, Francisco Coelho dos. "O acaso das origens e o ocaso das finalidades". Palestra proferida no Curso de PÓS-Graduação em História da PUCRS, em 0305.95.

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estrutura do

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v il/ a g e nem o personagem do camponês ( p a y s a n ) . Exceto por

algumas poucas exceções, as palavras v il/ a g e e p a y s a n não correspondem

no Brasil a nenhuma realidade. No Brasil, jamais existiu um mundo rural enquanto configuração de um modo de vida.

Bem que historicamente se faça a distinção entre a cidade e o campo, a autonomização da primeira em relação ao segundo, tal como se deu no desenvolvimento urbano europeu, essa questão, é um problema moderno, posto pela modernidade, pela imperiosa segmentação de dominios que ela pressupõe e impõe. A segmentação moderna, operando pela lógica da ruptura, impõe uma visão do urbano como sendo, em primeiro lugar, tudo aquilo que é oposto ao rural, sendo tomado como equivalente de moderno, de contemporâneo, de desenvolvido, etc., e o rural como equivalente de tradição, de arcaico, de subdesenvolvido, etc. Como bem observa Castells, essa dicotomia tem um profundo caráter ideológico e se refere a uma certa heterogeneidade social e funcional, sem a poder definir de outro modo senão por sua distância, mais ou menos grande, em relação à sociedade

moderna. Segundo esse autor, essa imprecisão é ideologicamente necessária para conotar, através de uma organização material, o mito da modernidade.?

O que proponho aqui é que nos perguntemos, e isso para o caso do Brasil parece-me decisivo, se o rural e todos seus corolários e suas oposições distintivas não seriam uma criação da cidade, uma imposição devida a uma certa episteme baseada na noção de evolução, de progresso, etc. Uma fantasmagoria urbana, uma imagem idealizada do rural, seja positivamente figurado - a vida paradisíaca, simples, rústica, próxima da natureza, seja negativamente - o atraso, a falta de tecnologia, a ignorância, etc. Não é esse o caso do nosso Jeca Tatu, que mistura ambas as figurações?

A partir do século XIX, mas sobretudo a partir dos anos 1930, quando as cidades tornam-se dominantes no cenário nacional, o que se observa, de fato, é que a oposição distintiva não é entre a cidade e o campo, mas entre o progresso e o atraso, entre a pobreza e a riqueza, entre o interior e a cidade, etc. Nesse contexto, de política desenvolvimentista, que toma a modernização como le it m o t iv , as condições e o modo de vida urbana são

tomados como o principal modelo de orientação social. Contexto favorável para a criação da fantasmagoria urbana em relação ao rural, associado a u~ passado colonial que é preciso apagar a qualquer pr~ço, uma vez que ele e, ao mesmo tempo, a prova viva da persistência da tradição (leia-se do atraso, do subdesenvolvimento, da exploração, da miséria, da dependência, etc.) e o sintoma da execução apenas parcial da modernidade.

9CASTELLS. L a q u e s t io n u r b a in e . Op. cit., p. 32.

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Impera soberano no pensamento social brasileiro o "mito da ruralidade urbana" e o da "modernidade inacabada" que, tornados d o x a quer no meio

intelectual quer no meio do homem ordinário, são responsáveis por inumeráveis distorções analíticas. Elisabeth e Anthony Leeds, nos anos 1960, realizaram no Rio de Janeiro um estudo sobre o mito da ruralidade urbana 10.Mostraram eles como existe, nos segmentos médios da sociedade brasileira, uma visão negativa e estereotipada de seus vizinhos pobres, os habitantes das favelas, que seriam pessoas vindas do campo e por isso seriam pobres, sem cultura e preguiçosas. Portadores de valores e de uma organização rurais, essas pessoas não teriam equipamentos para viverem na cidade. Todavia, a análise da origem geográfica dos migrantes rurais revela que eles são oriundos de cidades do interior do país e que sua formação e valores são tipicamente urbanos - citadinos. Mais revelador ainda é o fato de que essas populações se dirigem para as cidades maiores justamente em busca de uma ampliação de possibilidades de mobilidade e de ascensão social, ou seja, orientam seu comportamento a partir de padrões urbanos.

Com essas rápidas considerações quis mostrar como é possível responder de outro modo às questões que nos colocamos, o tempo todo, em relação à formação histórico-social de nosso país. Para tal é necessário acima de tudo mudar o registro analítico e tentar, como diz Morin, pensar o nosso pensamento, ou seja, relativizar - no sentido de pôr em relação - as categorias analíticas a partir das quais lemos a realidade, lembrando dos compossiveis não-realizados de que fala Paul Veyne e de que, tal como refere Stephen Gould, "a variação é o fenômeno primordial, a essência é um conceito provisório"!'. Dito de outro modo: é preciso fazer uma releitura da história, tomando como ponto de partida uma critica das verdades estabelecidas, que, se bem sejam cômodas, nos mantêm prisioneiros do imobilismo reflexivo, no "jardim do sono feliz"12, E assim ultrapassar a d o x a

corrente, centrada numa visão negativa, rancorosa do Brasil dividido, submergido inexoravelmente em seus dilemas de país dual e inacabado. É preciso ver o movimento histórico brasileiro em sua singularidade, não como cópia atrasada ou malfeita da Europa ou dos Estados Unidos.

O

problema central - não percebido pelos nostálgicos - é que, no movimento histórico brasileiro, não existiu a ruptura mitica que a modernidade redentora supõe. Aqui, e isso me parece fundamental, do ponto de vista da reflexão teórica SObre a sociedade brasileira e, particularmente, sobre a cidade, uma

10LEEDS, Elisabeth, lEEDS, Anthony. A s o c io lo g ia d o B r a s il u r b a n o . Rio de Janeiro

Zahar, 1978. Capítulo 4: O Brasil e o mito da ruralidade urbana: experiência urbana, trabalho e Valores nas áreas invadidas do Rio de Janeiro e Lima.

11GOULD, Stephen Jay, apud F o lh a d e S.P a u lo , 3 dez. 1995, p. 5-11.

12VEYNE. Oin v e n t á r io d a s d if e r e n ç a s . Op. cít., p. 33.

BIBlOS. Rio Grande, 10:109-116,1998.

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dinâmica de mestiçagem tomou o lugar da dialética da ruptura.

No qu~ diz respeito à ~idad.e, é preciso considerar que em nenhul11

momento a cidade pode ser dissociada da sociedade que a produz, e busc as relaçõ:s entre.a. cidade e a socie~ade, a força da cidade na organiZaç~ das relaçoes sociais, numa escala simultaneamente espacial e existencial . Repito aqui o que já disse em outro lugar: em se tratando da análise e d . discussão da cidade e de toda a infindável série de fenômenos a el: associados, só podemos atingir uma compreensão mais generosa e analiticamente mais profícua se combinarmos as perspectivas históricas e sociológicas na busca de tratar o urbano em sua dupla dimensão, a saber' simultaneamente concreção (nível da morfologia social) e como ideári~ (nível das construções de pensamento), enfim como cultura objetivada."

Para o caso da formação urbana brasileira, é impossível não levar em consideração a colocação em perspectiva dessa formação particular com outras formações, sobretudo a européia. Não podemos não levar em conta que, se o desenvolvimento urbano brasileiro foi - e ainda é - polinuclear e descontínuo, isso não significa ausência de organização. A nossa configuração urbana é uma obra admirável, corresponde a um esforço de concentração e de condensação humanas considerável. A cidade nascia para reunir populações dispersas; é preciso reconhecer, com um caráter bastante acentuado de controle, de polícia, mas do fato mesmo de ser um instrumento de reunião, a cidade era um fator de concentração, de agregação social. E é justamente porque ela é um centro, isto é, aquilo que reúne, que a cidade sempre marcou sua preeminência em relação à grande

propriedade, ao campo, ao interior, isto é, aquilo que dispersa. Se, no começo, a cidade não passava de um mero sinal de uma atividade econômica ou de uma grande propriedade, rapidamente ela se tornava a animadora da região, o centro de articulação da vida. Podia ser instável e mutante - ainda hoje o é - em relação à imutabilidade dos grandes domínios, mas é ela que dava - e continua dando - o movimento, ambiência

à vida, com o desfilar incessante das pessoas, misturando-se em suas ruas.

Urge que deixemos de lado a

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d o x a corrente e que busquemos ver de

outro modo nossa formação urbana. E isso me parece que só pode ser feito se abandonarmos os equívocos conceituais provocados pela lógica da falta, sobretudo aquele que insiste em ver atraso, ruralidade, onde o que existe -de fato - é um modo particular -de realizar e -de viver a mo-dernida-de, essa vista não unicamente em seu aspecto técnico, mas sobretudo como aquilo que ela é acima de tudo, isto é, como um modo de civilização, do qual a cidade é a realização mais acabada.

13PEREZ, Léa Freitas. Dois olhares sobre o urbano: Max Weber e Escola de ChicagO.

V e r it a s , Porto Alegre, PUCRS, v. 39, n. 156, p. 621-637, dez. 1994.

116 BIBLOS. Rio Grande. 10: 109-116. 1996.

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