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A utopia: o gênero literário*

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Academic year: 2023

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A utopia: o gênero literário*

André Prévost

Université Catholique, Lille

Traduzido por Ana Cláudia Romano Ribeiro

Resumo

A Utopia é o fruto de um momento privilegiado na vida intelectual de Thomas Morus. A inspiração que atravessa a obra e a eleva, a amplitude profética das perspectivas que ela abre, a agudeza da visão, as ressonâncias afetivas que ela suscita lhe conferem, na literatura universal, uma posição única. As páginas que seguem visam definir o gênero literário criado por Morus e apresentam-se como uma introdução à exegese da Utopia.

Palavras-chave

Gênero utópico, poética utópica, romance utópico, instrumento crítico

André Prévost, doutor em letras e teologia, cônego, trabalhou na Universidade Católica de Lille. É autor de Thomas More (1478-1535) et l ala crise de la pensée européenne (Paris: Mame, 1969).

Traduziu e estabeleceu a mais completa edição da Utopia em língua francesa (Paris: Mame, 1978).

* Este artigo foi publicado originalmente na revista Moreana, no. 31-32, em novembro de 1971, nas páginas 161 a 168. Agradecemos a atual editora deste periódico, Marie-Claire Phélippeau, por nos autorizar a traduzi-lo e publicá-lo na revista Morus – Utopia e Renascimento.

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L’utopie: le genre lettéraire

André Prévost

Université Catholique, Lille

Traduit par Ana Cláudia Romano Ribeiro

Résumé

L’Utopie est le fruit d’un moment privilégié dans la vie intellectuelle de Thomas More.

L’inspiration qui traverse l’oeuvre et la soulève, l’ampleur prophétique des perspectives ouvertes, l’acuité de la vision, les résonances affectives qu’elle suscite lui confèrent dans la littérature

universelle une place unique. Les pages qui suivent visent à définir le genre littéraire crée par More et se présentent comme une introduction à l’éxegèse de l’Utopie.

Mots-clefs

Genre utopique, poétique utopique, roman utopique, instrument critique

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Utopia é o fruto de um momento privilegiado na vida intelectual de Thomas Morus. A inspiração que atravessa a obra e a eleva, a amplitude profética das perspectivas abertas por ela, a agudeza da visão e as ressonâncias afetivas que ela suscita lhe conferem, na literatura universal, uma posição única. As páginas que seguem visam definir o gênero literário criado por Morus e apresentam-se como uma introdução à exegese da Utopia.

O gênero literário da Utopia escapa às categorias clássicas. Qualquer tentativa de encaixar esta obra nas categorias anteriores falseia suas perspectivas e distorce sua intenção. A densidade do estilo, a rica textura do pensamento justificam, é certo, os incontáveis textos que procuram determinar seu significado profundo. Mas, nesta multiplicidade, quantas contradições! A muitos críticos parece ter faltado uma chave interpretativa, a chave do gênero literário.

1 – O gênero utópico segue uma lógica e possui uma coerência que lhe são próprias

Exteriormente, a Utopia é uma obra sem pretensões, algo como memórias de viagem. As pessoas, os lugares e os acontecimentos que ocupam as primeiras páginas pertencem à história e todos os leitores poderiam verificar a exatidão dos detalhes. À primeira vista, seríamos tentados a classificar a Utopia no gênero histórico.

Mas, a história, nesta obra, não é mais do que um manto que esconde outra coisa, bem diferente – pelo menos esta apresentação pseudo-histórica desperta a atenção do leitor para o travestimento dos gêneros, no qual a Utopia se compraz. Ela mistura incessantemente detalhes plausíveis ao relato fictício e ao inverossímil.

Arte consciente dela mesma, o gênero utópico tal como Morus o pratica exige que o leitor, portanto, mantenha sua inteligência perfeitamente lúcida e nunca se deixe levar pela fabulação do relato: a utopia é um exercício da inteligência tanto quanto um jogo da imaginação.

No início, Morus revela sua intenção. Na carta-prefácio a Pieter Gillis, ele declara que aceitaria “dizer” mentiras (arte de dizer, estilo) sem contudo “fazer” mentiras (falta moral). Em outras passagens ele deixa entender que, quanto ao gênero literário e ao estilo, ele permanece na esteira do Elogio da loucura. O emprego do vocábulo “morósofos”, os meio-sábios-meio-loucos, basta para lembrar-nos disso.

Se Morus adverte assim seu leitor, é porque o gênero literário da Utopia aparenta-se à ironia e supõe uma conivência entre escritor e leitor. A ironia utópica, que consiste em dizer ou em

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mostrar o contrário do que se pensa a fim de melhor comunicar a verdade profunda, alimenta esta conivência que se pode chamar de uma convenção irônica.

Com frequência, ao longo da obra, esta conivência, esta piscadela de olhos ao leitor cúmplice, será reafirmada por meio de vários artifícios, dos quais o mais importante é o emprego de palavras-enigmas e conceitos auto-destrutores. A palavra utopia é o modelo destes termos enigmáticos e esvaziados de qualquer realidade. Aparece no título da obra e o leitor deve manter-se atento a ela. Além disso, no início do livro II, a palavra Abraxa” e, adiante, Mitra, tomadas de empréstimo à cabala, indicam o caráter esotérico da Utopia e indicam que a obra é um enigma que não deve ser tomado ao pé da letra. Cerca de vinte palavras criadas por Morus, todas elas igualmente misteriosas, lembram-nos incessantemente este caráter esotérico que proíbe interpretar o diálogo segundo as regras habituais da lógica.

A utopia, com efeito, possui sua lógica própria, uma metalógica que deixa passar muitas contradições formais. A primeira destas contradições aparece nos conceitos negativos e vazios de qualquer substância, que fazem o texto brilhar. Certamente, o hábito embotou, no leitor moderno, a devida atenção a este lado absurdo do vocabulário da Utopia, mas é necessário redescobri-lo.

“Utopia”, por exemplo, evoca o absurdo: “o país que não existe”; escrevendo a Erasmo (Allen II, p.

339 e 346) Morus a nomeia Nusquama, “Ilha de Nenhum Lugar”. O lado absurdo da palavra não é simples fantasia. É um procedimento literário perfeitamente estudado ao qual Morus recorre com frequência. Em vão tentaria o leitor representar Amaurota, a capital da ilha, pois ela é a “Cidade invisível”. No passado, ela tinha outro nome, Mentiranum, a “Cidade-mentira”, que ecoa a carta preliminar já citada, na qual Morus adverte o leitor de que poderia lhe acontecer de “dizer mentiras”. Quanto ao rio Anidro, que banha Amaurota, ele é um rio “negativo”, um “rio sem água”.

Os acorianos são um “povo sem território”; os alaopolitas, “cidadãos sem nação”; os poliléritas,

“gente que existe somente em palavras”; os nefelogetas, aqueles que “moram nas nuvens”; os anemolianos, “habitantes do vento”. Assim, estes nomes de lugares ou de povos reafirmam sem cessar o quinhão de inanidade que entra na Utopia.

Quanto aos personagens da ilha, eles são a negação da própria função que assumem.

Hitlodeu significa “palavrório vão”; os zapoletas são “soldados venais”; o ex-barzana, hoje Ademo, é o “chefe sem povo”; o sifogrante é o “indicador de polícia”; o traníboro, enfim, é o “chefe de polícia”. Ou seja, a toponímia e a antroponímia lembram-nos incessantemente que a Utopia é um mundo de nefelibatas.

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O procedimento da contradição interna não para na criação de vocábulos negativos e vazios.

Morus o aplica mesmo nos temas de que trata, indicando, desta forma, que a estrutura profunda de sua obra escapa à lógica comum.

É assim que Hitlodeu, o filósofo decidido a manter-se afastado da política, assiste aos conciliábulos mais secretos dos reis e descobre suas intenções com a precisão e a segurança de uma testemunha; este “Vãofalante” é também o porta-voz da mais alta sabedoria; a constituição utopiana dá aos povos a felicidade, mas tudo o que se diz em Amaurota é mentira; a moral utopiana tem por finalidade o prazer, mas viver à utopiana é impor-se um regime espartano e generosamente oferecer-se à morte; o ouro é condenado como vil e sem preço, mas os utopianos mantêm guardadas imensas quantidades deste metal; manifestam pela guerra um ódio feroz, mas declaram-na imediatamente às nações vizinhas se, por acaso, os mercadores utopianos são molestados ou se as cláusulas dos tratados de comércio são violadas.

Como conclusão desta primeira prospecção, parece, portanto, que tanto em um nível semântico quanto em relação aos temas abordados, a Utopia revela certo número de elementos que estão em contradição formal uns com os outros. Escapando às regras da lógica clássica, o gênero criado por Morus possui sua lógica própria, que pode-se designar por um termo técnico, a dialética do discurso utópico.

2 – O universo poético da Utopia

Depois de se ter constatado e afirmado a existência de uma dialética própria à utopia, pode- se perguntar por que tão poucos leitores modernos reconheceram a natureza desconcertante do discurso utópico. É que a arte de Morus faz pensar à de um prestidigitador intelectual e verbal. O leitor sabe que as cartas são falsas mas ele se deixa levar mesmo assim. Sem dúvida, o prazer consiste, às vezes, em descobrir as astúcias do polichinelo, outras vezes, em permanecer em um estado de busca ardente e impotente.

O autor-prestidigitador tem seus artifícios preferidos. Já assinalamos os artifícios semânticos, os enigmas (Abraxa...) os substantivos-rébus (Adamo que se encaixa em Amaurota que, por sua vez, se articula com Utopia), os conceitos negativos que estouram como bolhas de sabão ao nos aproximamos, ainda que pouco (U-topia). É preciso acrescentar as formas gramaticais privilegiadas, principalmente a dupla negação, cujo objetivo é despistar o espírito: ela obriga a que se preste atenção em uma operação racional bastante complicada, completamente subjetiva, desviando-nos por um instante do mundo objetivo. Esta dupla negação sistematicamente repetida contribui a dar ao universo utópico seu caráter evasivo e irreal. A estes procedimentos acrescenta-se

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o tom escolhido para o estilo, o modo irônico, que consiste em expressar o contrário do que se pensa com a intenção de fazer com que se entenda melhor o que se pensa. O resultado destes diversos artifícios prodigalizados por Morus é que o leitor da Utopia nunca sabe discernir exatamente o objetivo do subjetivo, a verdade da quimera, o preciso do ambíguo, e a realidade do sonho.

O escritor, primeiramente, submeteu o espírito do leitor a uma espécie de catarse; seus exorcismos purificaram a vida intelectual dos clichés e das noções abstratas que a estorvavam.

Assim liberto, o espírito deixa-se ser tomado pelo dépaysement – “an estrangement” – qui assemelha-se ao sonho: suas funções críticas são suficientemente inibidas para que ele se deixe cativar, sem defesas, pelo espetáculo dos costumes utopianos e torne-se receptivo – ou vulnerável – a contraverdades cujo caráter paradoxal lhe escapa.

Assim, o estilo utópico e os artifícios que ele emprega geram uma curiosa estética, que explica, sem dúvida, a atração irresistível que a Utopia tem exercido sobre todas as gerações. Há, na obra de Morus, um elemento poético, um encantamento, um poder de evocação de uma ordem que não é a das demonstrações racionais. Apesar de seu vigor crítico e de seu rigor analítico, ela nunca teria tido uma tamanha difusão, uma tamanha irradiação, sem a aura poética que a nimba.

3 – A utopia como romance

Até aqui a Utopia ofereceu ao leitor apenas elementos muito díspares, frouxamente reunidos no “discurso utópico”. Porém, uma obra de arte precisa de uma unidade de forma. Este caráter, que aqui não se pode tomar emprestado da lógica, será conferido à Utopia pelo gênero literário do romance.

A forma romanesca situa os acontecimentos no espaço e no tempo: estas duas categorias têm um papel particularmente pensado na Utopia. Seguindo a ordem cronológica – ordem sabiamente desarranjada por Morus – o romance inicia entre os meses de agosto e de outubro de 1497, na casa do cardeal Morton, continua com a empreitada marítima de Vespúcio (1497 ou 1499), depois vêm a expedição por terra de Hitlodeu pelo Novo Mundo, sua estadia prolongada na Utopia (antes de 1512), seu retorno à Europa e, por fim, o diálogo de 1515 em Antuérpia. Mais tarde, Hitlodeu desaparece e Morus dá a entender que ele tenha retornado definitivamente à Utopia.

Os espaços percorridos não são menos vastos que a duração do romance. Situados em ordem cronológica, são o campo inglês de finais do século XV, que se transforma sob a ação de forças econômicas, os campos de batalha de Blackheath, a corte da Inglaterra, a corte da França, as

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margens e também o interior do Novo Continente, a Ilha de Lugar Nenhum, a Índia e a China, Bruges e Antuérpia e, por fim, a Londres de Morus, que volta à sua família e aos seus afazeres.

A estes acontecimentos dispersos por um período de cerca de vinte anos e em um espaço mais extenso do que o mundo conhecido de então, a arte do romancista consegue lhes conferir uma unidade singular: toda a aventura “se joue”1 em um jardim de Antuérpia em menos de um dia.

São as técnicas do romance que permitem a Morus realizar esta proeza: os incidentes imprevistos se multiplicam, encontros fortuitos acontecem, mas as lembranças imediatamente tomam corpo no estilo romanceado de diálogos alertas e de encenações animadas e pitorescas.

Sobretudo, Morus escolhe sistematicamente a técnica do relato na primeira pessoa, estilo que tem a virtude de tornar “presentes” todos os acontecimentos, por mais afastados que eles estejam no espaço e no tempo.

Enfim, o caráter de Hitlodeu, o protagonista, traz elementos indispensáveis à unidade da Utopia e à sua interpretação. Romancista de grande classe, Morus imaginou o personagem Hitlodeu em função do conjunto da obra e, sobretudo, em função da substância da obra.

Era preciso que o navegador filósofo fosse tão temerário em suas aventuras terrestres – não temendo nem a pobreza, nem as fadigas, nem a morte – quanto em suas aventuras intelectuais, fazendo o elogio da comunidade de bens, de uma ascese espartana e da oferenda espontânea à morte. Era preciso que ele fosse original para temperar seu relato com anedotas engraçadas ou ousadas. Era preciso ainda dotá-lo de um caráter ilibado, que se arrebata facilmente e se abandona a uma veemência próxima da invectiva, para lançar suas maldições contra os ricos e para condenar um regime social cujos interlocutores diretos são os primeiros beneficiários.

Mais sutilmente, era preciso que o protagonista do “romance” fosse de temperamento intelectual, teórico e absoluto para descrever vantajosamente e exaltar uma forma de governo e instituições tão estranhas quanto as da Utopia. Morus quis que existisse uma harmonia preestabelecida entre o caráter de Hitlodeu e a Utopia. Nisso ele teve um êxito perfeito e nenhum crítico, até agora, censurou Morus por haver algo de convencional nesta conformidade entre o protagonista e a substância da obra.

Assim, a unidade formal, ameaçada pelo caráter caleidoscópico das anedotas e a diversidade dos sujeitos, foi tão magistralmente restaurada que sua leitura é tão fascinante quanto a de um romance.

1 Se joue, trocadilho de difícil tradução, quer dizer “acontece”, “se passa” mas também “ilude”, “brinca”, “engana”. (N.

da T.)

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4 – O instrumento crítico : a utopia como hipótese de trabalho a) A Utopia, instrumento crítico

Na aura poética criada por Morus, o encantador, e no relato pitoresco tecido por Hitlodeu, aparecem duas paisagens. Elas formam dois quadros simétricos que estão face a face. No espaço vazio que os separa estão o leitor, Morus-personagem e Pieter Gillis, que interrogam e escutam;

Hitlodeu mostra, descreve, aprecia, critica, destrói e reconstrói. À direita está a ilha de Utopia com seus satélites: Poliléria, Acoria, Macária, Anemólia, Nefelogécia e Alaópolis. À esquerda, a velha Europa, que Hitlodeu contrasta com a Utopia.

Forjou-se, à maneira utopiana, o vocábulo distopia para nomear este mundo da desordem, país do sofrimento e da infelicidade: as distorções sociais, econômicas e políticas revelam-se por toda parte; patíbulos cheios de cadáveres são montados lá onde os caminhos de cruzam; a ambição dos reis é o estopim de guerras; a cupidez dos ricos espolia os trabalhadores, os empurra para a miséria, a vagabundagem, o furto; a ignorância e a tolice dos sacerdotes tornam-nos incapazes de reformar os costumes; os sistemas econômico, financeiro e político, a propriedade privada e sua base, o ouro, fontes de todos os males, tudo devastam.

À direita, Hitlodeu apresenta as paisagens da Ilha Feliz. Ele retoma, um a um, os traços da distopia. Certamente, para manter o charme poético da espontaneidade, Morus desarranjou a ordem didática, mas, se lemos as páginas sobre a vida dos utopianos depois daquelas que tratam do mesmo assunto em Distopia, surpreendemo-nos em ver com que precisão os remédios correspondem ao diagnóstico.

A análise da situação política pode servir de exemplo: a cena, no relato, está situada com precisão alguns meses depois da sangrenta batalha de Blackheath (em junho de 1497), ou seja, entre agosto e outubro de 1497. Hitlodeu fala abertamente dos projetos mais secretos do rei da França, Carlos VIII: invasão da Itália, conquista do ducado de Milão, anexação das possessões borgonhesas e flamengas da Espanha. A análise é penetrante e o procedimento, cheio de humor pois, na verdade, Morus escreve, sem dúvida, após Marignan (13-14 de setembro de 1515): ele profetisa após o acontecimento.

De todo modo, o interesse desta página não está no sucesso escandaloso que ela poderia provocar ou na lucidez dos julgamentos políticos que ela expressa. É como antítese à situação da

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instituições dos açorianos, as razões de ordem moral que presidiram à elaboração de sua constituição, os benefícios que eles retiram de suas leis, podem ser compreendidos facilmente por contrastarem com os costumes da Europa.

A análise da situação econômica é mais notável ainda. Sem dúvida, o primeiro entre os economistas, Morus revela e analisa o fenômeno do controle de um mercado por um grupo de homens que regulam as flutuações de acordo com seus interesses. Esta análise é tão nova que Morus inventa a palavra oligopólio para designar este “monopólio de fato”, diferente do

“monopólio combinado” (trust). O interesse desta passagem vai além da análise técnica. Trata-se do papel das motivações humanas na criação dos mecanismos econômicos; trata-se das consequências fatais do oligopólio na vida dos agricultores que estão no cerne das preocupações de Morus.

b) A Utopia, hipótese de trabalho

Teoricamente, todas estas análises permitiam a Hitlodeu, a partir de 1497, quase vinte anos antes da publicação da Utopia (1516), propor ao cardeal Morton os remédios que deveriam aliviar a miséria dos agricultores ingleses. Mas, após tê-lo escutado com boa vontade, Morton deu a entender que devia se retirar. É nesta passagem que a imagem inesquecível das “ovelhas devoradoras de homens” trai a indignação de Morus. A análise sociológica da alienação do homem pelas estruturas econômicas não é um vão exercício de escola. O espetáculo do trabalhador desapossado da terra indispensável à sua subsistência, privado de liberdade, humilhado até perder a coragem de trabalhar, não pertence mais à história. É, para Morus, o trampolim que o transporta até a Utopia:

aqui, as leis, em contraste com as da distopia, exigem que todos os cidadãos sejam iniciados no

“nobre ofício” da agricultura; elas enviam-nos ao campo a cada ano para as colheitas e zelam pela manutenção de todas as tradições agrárias.

É assim que Hitlodeu cria um novo instrumento crítico: o espetáculo da sociedade utopiana.

Este quadro excita a imaginação criadora e o desejo de transformar o mundo. Como as exposições teóricas se revelaram insuficientes e as soluções reformistas malograram, ele tem em vista medidas radicais: o princípio da comunidade de bens. Mas apenas a hipótese de trabalho que apresenta o problema resolvido oferece à imaginação uma base concreta o suficiente para atrair a vontade e para que as forças galvanizadas neste espetáculo se agitem. Deste modo, o método utópico, instrumento crítico e hipótese de trabalho, revela sua fecundidade. Seu poder de encantamento é superior ao da cidade ideal de Platão. A maneira concreta e viva pela qual se apresenta a “melhor das repúblicas” é diversamente estimulante se comparada a uma elaboração abstrata a partir de uma

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ideia teórica da justiça. Morus, por este método, mostra-se criador. Dota as ciências humanas de um instrumento de trabalho e de progresso que lhes faltava até então.

5 – A Utopia. Chamada à reforma moral

Se o método utópico inaugurado por Morus é a forma mais original de sua obra, ele sem dúvida não exprime sua qualidade mais profunda. Ao final do livro II, o discurso utópico muda curiosamente de tom e, para fechar um longo parágrafo, onde esperaríamos a condenação da cupidez, o nomeado é o orgulho. Começa então sem disfarce a condenação do orgulho, raiz de todos os males.

Ainda que ele não tome a palavra imediatamente, é o personagem Morus quem retoma a fala de Hitlodeu e se apresenta em primeiro plano. Ele se coloca à distância do espetáculo que acaba de ser oferecido. Ele vai mais longe e mais profundamente que Hitlodeu. Ao invés de ser um modelo fascinante, uma estimulante hipótese de trabalho, a Ilha de Nenhum Lugar torna-se espelho.

O instrumento crítico criado por Morus atinge sua perfeição final. Afastando o risco de uma nova alienação do homem por instituições tornadas objetivas demais e logo enrijecidas, Morus remete o homem ao próprio homem e lhe dá a chave que abre a porta para todas as verdadeiras reformas: a reflexão moral, o gnōthi seauton da sabedoria.

Morus não se ilude sobre a possibilidade de transformar as instituições. Sua intenção é mais profunda e mais conforma ao humanismo. É no homem que se deve pensar. O instrumento crítico que ele construiu, a descrição de instituições irrealizáveis, serviram tão-somente para trazer às claras os defeitos do homem. É no coração, no espírito, na vontade que estes defeitos devem ser reformados. Uma vez purificados os costumes, as instituições se reformação elas mesmas, as leis serão mais justas para homens que terão se tornado mais sábios. A última lição da Utopia é uma lição de sabedoria.

Sem esquecer a aura poética da utopia, sem minimizar seu valor crítico, após sua viagem no mundo imaginário, o homem retorna com o espírito claro e purificado. Finalmente lhe são abertas as vias que lhe permitirão chegar à altura das virtudes morais e políticas: finalidade da existência, liberdade do coração, amor pelo trabalho, cultura do espírito, sentido do sagrado, que lhe trarão serenidade e paz.

Da mesma forma que o cardeal Morton que, após tê-lo escutado longamente, se despedira indiretamente de Hitlodeu, Morus deixa partir seu hóspede e, sem dúvida, não o reverá mais. Mas graças ao relato que ele acaba de escutar, pode transmitir a seus leitores uma nova sabedoria, uma

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sabedoria que inspira as únicas instituições que permanecem: as que são alimentadas nas profundezas do homem.

6 – O canto épico

Para além das qualidade da obra, para além do cômico, do humor e da ironia, tão diferentes da fria análise crítica ou das intenções parenéticas, descobrimos enfim, último nível do gênero literário da utopia, essas ressonâncias profundas que são a voz da humanidade inteira. Este sopro épico que eleva a obra de Morus será ouvido por todas as gerações vindouras. A paixão que lhe inspira é uma compaixão: amor pelos oprimidos, revolta face à cupidez e ao orgulho que estabeleceram as instituições destinadas a perpetuar seus privilégios injustos. Esta inspiração épica vai ao encontro da inspiração dos profetas bíblicos, dos quais Morus retoma a expressão, as imagens e o entusiasmo. Mesmo que a sociedade coletivista que descreve Morus não seja realizável, a Utopia esclarece o pensamento dos reformadores, galvaniza suas energias e descobre os horizontes luminosos para os quais toda a humanidade está caminhando.

Os horizontes nos quais se inscreve a Ilha de Utopia estendem-se até aqueles que cercam a ilha encantada de Próspero. O universo da utopia engloba ao mesmo tempo a ilha misteriosa de A tempestade, de Shakespeare, e as perspectivas sombrias do Capital, de Karl Marx.

Desconcertado pelo caráter enigmático do vocabulário, cego para a aura poética e insensível ao humor, prisioneiro de categorias abstratas que negligenciam os pontos de vista sutilmente contrastados dos diversos autores, incapaz de recuo em relação aos temas, mal ajustado à intenção parenética do autor, o leitor moderno tem dificuldades em penetrar além da superfície da obra; ele boia como uma rolha sobre a película externa do texto, do qual ele percebe apenas insignificantes movimentos: os problemas levantados por ele são pueris face à substância adamantina da obra prima.

Os humanistas, seus primeiros leitores, eram mais bem preparados: eles aceitavam sem hesitar o caráter poético e a dialética do discurso utópico; o vocabulário enigmático lhes revelava seus segredos e, aparecendo em muitas páginas, mantinha sua atenção em um nível de lucidez que os impedia de serem simplórios; seu senso crítico, sua inteligência, assim aguçados, descobriam enfim como, nas margens da Utopia, podiam nascer instituições que consagrariam a união da sabedoria antiga e da mensagem cristã.

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