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Crônicas de um jornalista cristão: das eleições de 2018 ao confinamento em 2020

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Academic year: 2021

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crônicas de um

jornalista cristão

das eleições de 2018

ao confinamento em 2020

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A P R E S E N T A Ç Ã O

Sempre que alguém se diz cristão, surge uma pulguinha atrás da orelha. Se for um cristão evangélico, surgem duas. Esta série de crônicas tem o objetivo de relatar histórias de um jovem jornalista, cristão evangélico, que crê que esse estilo de vida é possível tanto na igreja quanto na Academia.

Tudo começou em setembro de 2018, com um conto reportagem escrito na aula de Redação VII. O tema escolhido foi a relação das igrejas evangélicas tradicionais com a política durante a campanha para as eleições presidenciais daquele ano. Entusiasmado com o tema e com o resultado da reportagem, pensei que talvez ele pudesse ser ampliado e transformado no tema do meu Trabalho de Conclusão de Curso.

Todo mundo gosta de contar uma boa história. Nossas vidas são narrativas que refletem muito de nós e do mundo à nossa volta. O processo de escrita dessas crônicas se deu através de três vias principais. Em primeiro lugar, fiz entrevistas informais com as pessoas, o que, geralmente, consistia em conversas onde eu tinha alguns insights para o que estava escrevendo no momento.

Em segundo lugar, acompanhava o noticiário para estar atento a tudo que pudesse ser pauta para uma crônica, principalmente se envolvesse o mundo evangélico ou o político - ou os dois.

Fazer um filtro foi extremamente necessário. No Brasil ocorrem diversas situações que poderiam facilmente ser transformadas numa crônica: o que renderia um texto? O que poderia ser deixado de lado? A questão é que até esses que poderiam ser deixados de lado rendiam boas histórias.

Foi necessário desenvolver uma certa perspicácia em relação às notícias, aos fatos, ao próprio cotidiano em si. Se para outras pessoas o desafio é encontrar algo sobre o que escrever uma crônica, para mim o desafio era descartar assuntos da pilha de acontecimentos.

Em terceiro lugar, as minhas próprias vivências serviram de base para a escrita dos textos. O relato em primeira pessoa não é mera escolha. Ele me ajudou a dar certa linearidade ao texto, criando um fio que conduzisse as histórias.

A maior dificuldade certamente foi me distanciar do mundo evangélico, no sentido de ter um olhar externo sobre tudo aquilo que estava escrevendo. Em diversos momentos, era quase impossível dissociar algumas coisas que, para mim, são intrinsecamente ligadas; mas que para um resultado final positivo do produto, era necessário que eu fizesse essa distinção.

Como cristão, era complicado afastar-se totalmente da vida da igreja e das pessoas de lá, por exemplo. Era impossível um distanciamento total que me isolasse mentalmente desse meio. Fisicamente isso aconteceu em virtude da pandemia da covid-19, mas o contato com a igreja não se perdeu, pelo menos não totalmente.

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Enquanto escrevia, não era a intenção que isso se tornasse uma defesa da fé evangélica, nem tampouco jogar gratuitos tomates nela. Meu intuito era mostrar como se dão as complexas relações entre igreja, política, fé e retratar as relações humanas diante de anos tão tensos que vivemos.

Para isso, parto de uma perspectiva de quem é um jornalista evangélico batista. Definir o que é ser um evangélico é uma tarefa difícil - mais difícil ainda definir o que é ser um batista. Há dificuldade inclusive em definir a origem. Somos frutos do movimento anabatista do século XVI? Do movimento separatista inglês do século XVII? Do profeta João Batista?

Bom, o que posso dizer é que cada igreja batista é peculiar. Claro, como todo evangélico, cremos em Cristo como Salvador da humanidade(salvando-a do pecado, da ira divina e dela mesma), na Bíblia como única regra de fé e prática, na tri-unidade de Deus, na comunhão dos Santos… Em aspectos mais gerais, isso é o que seria o evangelicalismo.

Em aspectos menos vitais, as igrejas batistas acabam decidindo coletivamente sobre uma série de questões relacionadas à fé que não são o cerne dela. Como dizem por aí, numa certa “anarquia simpática”, mas organizada.

Essa talvez seja a principal marca de um batista. Além dos princípios já citados, a democracia é o que marca a regência da maioria de nossas igrejas. As decisões são tomadas em reuniões, as assembleias administrativas. Interessante, não? Principalmente quando relacionamos tudo isso à política. Embora todas as crônicas abaixo contenham traços de uma vida religiosa, o objetivo era não só mostrar as diferenças de como um cristão vive sua vida, mas também as situações que todos vivemos, sendo cristão ou não. Enfrentar as discussões políticas num almoço de família, a morte de um parente próximo, lidar com crises de ansiedade… Isso não é exclusivo de um evangélico.

A exclusividade está em como o cristão lida com tudo isso. Que essa série de crônicas possa informar o leitor e levá-lo à reflexão através de pequenos relatos e histórias da vida de um jornalista cristão que, a todo momento, tenta transitar com respeito entre as esferas da religião, da política e do Jornalismo.

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Í N D I C E

COSTELA, BATATA E VOTO...5

VOTOU EM QUEM PRA PRESIDENTE?...6

O PARLAMENTO...7

17.17...8

A MOEDA...9

A DESPEDIDA...11

A AUSÊNCIA...13

I'M FEELING TWENTY-TWO...14

HOJE NÃO TEM CULTO...16

DOMINGO DE PÁSCOA...18

CULTO E CONSUMO I...19

VALDEMIRO E O PÉ DE FEIJÃO...20

A FAMIGERADA REUNIÃO...21

MAIS TARDE LEREI O JORNAL...22

CULTO E CONSUMO II...23

RECEBIDOS NO ZAP...24

GRAVATA E GRINALDA...25

DEZ MILIGRAMAS...26

AMIGO, ESTOU AQUI!...27 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19.

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3 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 1 8

C O S T E L A , B A T A T A E V O T O

— Esse boné virado para trás é coisa de petista, hein! Ainda mais tomando Coca-cola no gargalo…

São esses os pré-requisitos para votar no Partido dos Trabalhadores? As frases, lançadas num tom piadista, me foram feitas por um pastor, durante um almoço da Juventude Batista do Sul de Santa Catarina.

Batista é bicho engraçado. Tudo que faz tem comida no meio. Seja qual for o motivo do encontro. O almoço era para arrecadar fundos para o retiro de carnaval dos jovens. Costelas assadas e batatas. Os ponteiros marcaram meio-dia; eu já não sabia se estava num almoço da igreja ou num comício do Bolsonaro.

Numa das mesas, formou-se um pequeno fuzuê, uma espécie de comitê do candidato do Partido Social Liberal (PSL). Eles usavam a camisa e tudo - sim, aquela camisa preta com um vetor branco do Bolsonaro. No meio das duzentas pessoas presentes aquela mesa soava como uma multidão.

Enquanto passava recolhendo as garrafas e frascos de refrigerantes vazios, percebi que muita gente compareceu pelo almoço e também para… fazer barulho. Naquele mesmo domingo à tarde ocorreriam as manifestações a favor da candidatura de Bolsonaro.

O Dani estava naquele almoço. Ele tem quarenta e três anos e é professor de História. Enquanto ele fazia a reposição das batatas fritas do bufê, cheguei perto e provoquei.

— Fala, seu esquerdista comedor de batata frita! — Sai daí, seu mala - disse rindo.

— Cara, as pessoas estão pirando, hein...

— Eles acham que por serem crentes e votar no Bolsonaro, todo crente tem que fazer igual. Onde já se viu. Eu, como batista, sou contra esse cerceamento de consciência que eles estão fazendo. Esse dualismo bobo e sem base real…

As igrejas Batistas ligadas à Convenção Batista Brasileira (CBB) seguem a Declaração Doutrinária da Convenção - ou pelo menos deveriam seguir. Um dos princípios do documento atesta a absoluta liberdade de consciência do indivíduo. No papel, belíssimo. Na prática a teoria é outra: o voto - sim, o bendito voto! - virou o atestado definitivo da fé genuína.

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7 D E O U T U B R O D E 2 0 1 8

V O T O U E M Q U E M P R A P R E S I D E N T E ?

Mais de 500 candidatos às eleições deste ano utilizam títulos religiosos nas urnas. Comecei a rir pensando na possibilidade de meu pastor ser um deles. “1515, vote Pastor Pacheco”. Não, ele não é candidato a nada. Títulos religiosos trazem a responsabilidade da liderança e o poder de influenciar. Bom? Ruim? Agridoce.

Sei que se não tivesse votado na manhã daquele domingo, 7 de outubro, seria mais um fim de semana qualquer. O dia estava insosso. Não parecia o primeiro turno de uma eleição extremamente polarizada. À noite, fui ao culto. Pouco mais de cem pessoas compõem a minha comunidade, a Primeira Igreja Batista em Capivari de Baixo, sul de Santa Catarina. Fazemos parte dos mais de 40 milhões de evangélicos que existem no Brasil. Número expressivo quando o assunto é voto.

O culto naquele domingo estava tranquilo. Nem lotado, nem vazio. Cerca de sessenta pessoas. Geralmente essa é a frequência. A ordem do culto era simples: abertura, louvores, sermão. Naquele domingo, fui eu quem abriu o culto. Decidi ler um salmo 146.

Não confieis em príncipes, nem em filho de homem, em quem não há salvação. Feliz aquele que tem o Deus de Jacó por auxílio, e põe a sua esperança no SENHOR, seu Deus.

A reação à leitura foi uma aparente concordância. Tudo permaneceu calmo naquele culto. Não houve referência às eleições ou aos candidatos nem no sermão, nem nas conversas após o culto. Estava esperando o famoso “votou em quem pra presidente?”, mas necas.

No fim do culto, ativei o 4G. Pipocaram as notificações e a confirmação do que eu menos desejava: Bolsonaro e Haddad no segundo turno. O dualismo havia novamente se concretizado. Quer saber em quem eu votei? Bolsonaro.

Brincadeira. O voto é secreto.

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8 D E O U T U B R O D E 2 0 1 8

O P A R L A M E N T O

― É que o deputado não gosta que tirem fotos de cima porque aparece bem a careca dele ― alguém gritou do fundo da redação.

É meu terceiro dia como estagiário na rádio da Assembleia Legislativa de Santa Catarina. As eleições de ontem reverberaram com força. Mais da metade dos deputados estaduais não se reelegeu.

A onda do Partido Social Liberal (PSL) não foi só uma marolinha: seis deputados; na legislatura passada, nenhum. Ah, das quarenta vagas no Parlamento, cinco serão ocupadas por mulheres. O número minúsculo representa a maior bancada feminina eleita até hoje.

― Allan, vou te dar um trabalhinho aqui - disse Gicieli, minha chefe. ― Pode mandar, Gi - falei entusiasmado.

― Preciso que tu consigas o contato dos deputados que foram eleitos. Tenta pelo Instagram, Facebook, o que tu achares melhor. Aí pede um áudio de trinta segundos a um minuto comentando a vitória - concluiu.

― Tranquilo, pode deixar.

Comecei pelo mais votado do estado. Ricardo Alba, do PSL. “Povo catarinense...”. Ok, próximo áudio. Incrível a força que as redes sociais tiveram nessas eleições. Muitos azarões. Geralmente eu conheceria a maioria dos sobrenomes eleitos. Nessa, quatro ou cinco me eram familiares.

Deu meio dia, meu expediente acabou e fui bater o ponto. Passei pelo Plenário e avistei alguns jornalistas conhecidos. Ali era o epicentro político de Santa Catarina, um primoroso gerador de notícias.

Na saída, um dos deputados conversava com algumas pessoas cabisbaixo: não havia sido reeleito. Tapinhas nos ombros e abraços. Para ele, os próximos meses seriam de despedida. Ao menos livrara-se de um de seus algozes: nunca mais precisaria preocupar-se com a sua careca nas fotografias do Parlamento.

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2 8 D E O U T U B R O D E 2 0 1 8

1 7 . 1 7

— Ahhhhhh pelo amor de Deus - joguei o celular longe. — O que foi, Allan? - minha mãe perguntou.

— Agora estão fazendo campanha no grupo da igreja no Whatsapp, é mole? — Sério? - perguntou minha mãe incrédula.

— A mensagem diz o seguinte: “O meu voto será de acordo com a Palavra de Deus. O número de Bolsonaro é 17, certo? Então veja sobre o número 17 na Bíblia. Isso é de arrepiar! [...]” e na sequência tem um compilado de versículos: Provérbios 17.17, Jeremias 17.17… e por aí vai.

— Meu Deus…

— Isso é numerologia, não? - ironizei

Acabávamos de chegar do culto naquela noite de sábado. Os cultos na minha igreja geralmente acontecem aos domingos. Transferiram o culto do domingo para o sábado por causa do segundo turno das eleições. Por quê? No primeiro turno o culto permaneceu no domingo. Durante o sermão daquele atípico sábado, pude notar o mesmo trocadilho numerológico da mensagem do Whatsapp: o texto usado foi João 17.17.

Alguém que fosse votar no candidato do Partido dos Trabalhadores poderia simplesmente fazer a mesma coisa. Usar um texto cujas referências fossem o capítulo 13 e o versículo 13 de algum livro. E, por isso, dizer que o seu voto seria de acordo com a Palavra de Deus.

O dia seguinte amanheceu: não parecia segundo turno de eleição. Aos domingos almoçamos na casa de meus avôs, que fica a algumas ruas da nossa. Todos tínhamos votado pela manhã. Em meio aos pedaços de frango assado, costelinhas de porco e fatias de maminha, cada um dava seu discurso defendendo ou criticando os candidatos.

— Esse Bolsonaro quer é acabar com tudo - meu avô iniciou.

Seu Sebastião é o único da nossa família que não é evangélico. Nunca gostou de igreja, mas dizia gostar do nosso modo de levar a vida. No auge de seus 75 anos, está à todo vapor, trabalhando como pedreiro.

— Mas ele é honesto, o resto é tudo corrupto - disse meu tio enquanto cortava as costelinhas.

— Vocês já viram as coisas que ele fala? - minha mãe questionou.

— Gente, alguém me passa a maionese - pedi enquanto segurava o copo de

Coca-cola (dessa vez evitei tomar no gargalo).

— Não fosse o Lula, a Dilma, a BR-101 nem ia existir. O Bolsonaro vai… - meu avô prosseguiu num longo discurso em defesa dos governos petistas.

— Só uma dúvida, vô… - interrompi enquanto pegava uma colherada de farofa.

— O quê?

— O senhor não votou no Bolsonaro no primeiro turno? — Votei, mas uma coisa não tem nada a ver com a outra…

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2 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 1 9

A M O E D A

― Ô menina, tá faltando um centavo de troco aqui… ― meu avô implicou com a atendente da padaria, que ficava ao lado da casa dele.

O bairro Três de Maio, na cidade de Capivari de Baixo, é calmo e sossegado -todo mundo ou é parente ou se conhece de algum jeito.

― Só um minutinho, seu Tião ― a moça disse enquanto ia aos fundos da padaria em busca da bendita moeda.

Demorou cerca de cinco minutos. A fila crescia, com as pessoas aglomeradas atrás do meu avô; a padaria é pequena. Ela voltou de lá com um olhar fuzilante. Deu passos bem marcados, quase como se marchasse em direção ao caixa. Uma mísera moeda de um centavo. Estendeu a mão, entregou-a.

― Aqui, seu Tião - disse rispidamente.

Ele foi em direção a porta. Olhou para os lados, jogou a moeda no chão, em cima dos pedregulhos que formam a calçada do estabelecimento. A atendente viu, revirou os olhos e continuou atendendo os outros clientes.

Essa é uma das muitas histórias que já ouvimos sobre meu avô. Há pouco mais de um mês, descobrimos que ele tem um câncer em estágio avançado no fígado. Passou algumas semanas no hospital, fez exames, voltou para casa. As últimas semanas, deitado, apenas balbuciando algumas palavras.

Estava preocupado com… a gente. Perguntava por mim, que durante a semana estava em Florianópolis, pelos outras netas (sou o único neto homem, xodó do vovô), pelos bisnetos, pelos filhos… Tanto ficou preocupado que escondeu a doença de todos. Desde fevereiro ele já sabia. Nós só descobrimos quando as dores, antes recorrentes mas menos fortes, tornaram-se insuportáveis.

― Já compraram a comida para domingo? ― ele sussurrou certo dia, preocupado com o tradicional almoço familiar.

Eu estava em Florianópolis em 18 de setembro. Uma quarta-feira chuvosa e fria para um quase começo de primavera. Estava na casa de um amigo, lá pelas dez e meia da noite, quando meu celular vibrou com uma mensagem da minha mãe. Sim, a temida mensagem que eu não queria receber.

Tinha me despedido dele há dois dias, no domingo. Li um salmo para ele e fiz uma oração bem baixinha. Apesar do conhecimento das nossas limitações biológicas, a morte, uma certeza, é sempre… inesperada.

O filósofo Peter Kreeft conta a história de um menino de sete anos, cujo primo morreu aos três anos de idade. Triste, o menino perguntou à mãe: “Onde meu primo está agora?”.

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Ela, que não acreditava nem em Deus nem em vida após a morte, respondeu: “Seu primo voltou à terra, de onde todos viemos. A morte é uma parte natural do ciclo da vida. Assim, ao ver a terra florescer na próxima primavera, você saberá que é a vida de seu primo que está fertilizando essas flores”.

A reação do menino foi gritar: “Eu não quero que ele seja fertilizante!”, e sair correndo.

Por mais que seja um processo natural, a morte não transmite essa sensação. As diversas narrativas ao longo dos séculos a registram como uma intrusa, a parte que deu errado na história. E no momento, estava diante dela.

A primavera, logo ali, florescerá. E se há algo certo no meu coração é que meu avô não é só fertilizante. No velório, gente de toda parte veio para despedir-se dele que, apesar de turrão, era querido por todos na cidade.

Até mesmo a atendente da padaria estava lá. Sim, a da moeda de um centavo. Quando alguém se vai, até mesmo a implicância da pessoa passa a fazer falta na vida de quem fica.

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2 1 D E S E T E M B R O D E 2 0 1 9

A D E S P E D I D A

Tainá, minha irmã, estava trabalhando naquela noite de quarta-feira. Sem internet no celular, ainda não sabia de nada. Desceu do ônibus, avistou o carro da funerária estacionado em frente a casa dos meus avós. Eu estava em Florianópolis. Meu tio Patrick, o caçula de meus avós, estava numa cidade próxima - fomos juntos para Capivari de Baixo.

― Antes de morrer, ele disse que precisava de Deus… - meu tio falou, sem tirar os olhos da estrada. Eu não consegui responder nada. Nem falar muita coisa até a chegada.

Era manhã de quinta-feira quando chegamos ao velório. Fui a poucos na vida. A gente não sabe o que dizer às pessoas, os assuntos são sempre muito alheios ao momento e geralmente tem comida - pelo menos nos que fui. Eu tento apenas não falar alguma bobagem que deixe alguém mais triste e angustiado. Minha avó estava chorando bastante, porém mais tranquila do que eu imaginava. Isabella, minha priminha de sete anos, chorava muito e não queria ver meu avô no caixão; nem ela, nem minha irmã. Minha mãe estava numa salinha nos fundos descansando um pouco. Foi ela quem ajudou a minha vó a cuidar dele até o último momento.

Eu é que daria uma palavra de conforto, uma espécie de mini sermão fúnebre. Geralmente seria meu pastor, mas naquele momento ele estava em Moçambique num projeto missionário. Antes de mim, um padre também faria o mesmo. Uma parte da família é católica.

― Ele deve tá se pinicando todo com aquele terno... - eu disse arrancando um riso leve da mãe, da vó e da Tainá. Estávamos todos sentados num sofazinho bege lá nos fundos. Eu recordava momentos engraçados e legais de meu avô. Era o jeito de tentar diminuir a dor da despedida.

Já viu que a morte não vê momento? E se vê, às vezes nem dá tempo. Pouco importa o que está acontecendo no mundo. Pouco importa se estamos sem dinheiro, ocupados ou entediados. Você tem planos para as férias de verão? Quer comprar um carro? A morte não leva em consideração nada disso.

Aquela quinta estava nublada, o céu estava branco como nunca e, cada vez que um parente, amigo ou conhecido chegava, as lágrimas novamente brotavam nos olhos de todo mundo. O enterro seria às duas da tarde. O padre falou. Chegou minha vez.

Nessas horas eu nunca planejo nada. Só sabia o versículo. Jó 42.5. O livro do sofrimento, nada mais propício: Eu Te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos Te veem. Nessas horas, é sempre bom lembrar que não são os mortos que precisam ser confortados. Disse poucas palavras. Quase não consegui:

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― A gente sempre vai procurar respostas para o nosso sofrimento e quase nunca vai encontrar. Cedo ou tarde a gente compreende que o sofrimento, embora doloroso e angustiante, não é em vão. Jó não recebeu respostas para a razão de seu sofrimento. Mas ele viu a Deus. Bom, para ele, isso foi suficiente. Espero que também seja pra nós.

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2 2 D E S E T E M B R O D E 2 0 1 9

A A U S Ê N C I A

Os invernos da ilha fazem isso. Esse mar imenso arrebentando, carrancudo, e nós aqui tão pequenos. Mas depois passa. Logo chega a primavera e tudo passa, o senhor vai ver. ― Rodrigo Duarte Garcia, Os invernos da ilha

Se o enterro de um ser querido é algo doloroso, chegar em casa é pior. Minha mãe, minha irmã e eu voamos para a casa da minha avó para tentar tirar de lá tudo o que a fizesse lembrar da doença. Fraldas, cadeira de rodas, remédios, lençóis. Claro, lembrar dele era inevitável.

― Tainá, a gente vai ter que se policiar demais, hein - falei para minha irmã. ― Em quê? - perguntou.

― A gente imitava o vô, fazia piada, usava os bordões dele…

― A tua cabeça, né, guri! - ela sussurrou uma das frases de indignação do meu vô.

― Exatamente, a gente vai sofrer para não falar isso por um tempo. ― Tu não pode mais fazer a piada do vinagre também.

― Verdade… Cadê o vinagre dessa salada, hein?!

Estávamos todos na casa da minha vó. A prioridade era não deixá-la sozinha. Minha tia fazendo café, minhas primas sentadas com a vó na sala. Eu fui comprar pão. No balcão, a rosca de polvilho que ele gostava. Peguei um litro de leite. Ele me xingaria: odiava que a gente comprasse leite na padaria, achava caro demais. E era mesmo.

― Ô minha nossa senhora do céu, tu foi fazer o pão, é? - minha irmã tapou a boca ao perceber que tinha usado mais uma das frases corriqueiras do meu avô, poucos minutos depois da nossa conversa.

― Tu não tem jeito né - respondi, percebendo a gafe prematura.

Todos na cozinha riram. Minutos depois, choraram. O vai e vem de emoções duraria bastante tempo. Semanas, meses, anos. O tempo necessário para processar o luto. A falta e a ausência trazem a sombra da morte sobre nós. Quando perdemos entes queridos, quando ficamos doentes, quando as rugas surgem, quando o corpo enfraquece: tudo isso prefigura a nossa própria morte. Por isso é tão assustador.

Quando chegássemos dos cultos de domingo à noite para jantar na minha avó, não ouviríamos mais as risadas do meu avô assistindo às pegadinhas na tevê. O carro dele, que deixou para minha irmã e para mim, ficaria lá por um tempo... A cada partida que déssemos, lembraríamos de algumas barbeiragens dele no trânsito.

O rastro de tristeza e saudade dura por um tempo, acredite. As ausências incomodam porque abrem lacunas que… ficam lá. Impossíveis de se preencher. Embora a rotina passe a não mais te assombrar com as recordações, o vazio continua ali. Aguardamos pela primavera. Falta pouco. E quem sabe tudo passe logo mesmo.

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2 7 D E M A R Ç O D E 2 0 2 0

I ' M F E E L I N G T W E N T Y T W O

I don’t know about you, but I’m feeling twenty-two Everything will be alright if you keep me next to you ― Taylor Swift, 22

Hoje é sexta-feira, meu aniversário. Nasci numa sexta também, à uma e dez da tarde. O plano era fazer um churrasco na minha casa em Capivari de Baixo, juntar família e amigos. Aquela boa aglomeração ao som de muito papo, voz e violão. A realidade: estou no meu quartinho dois por dois em Florianópolis, isolado e sem contato com praticamente ninguém há pelo menos duas semanas.

Tem gente que detesta aniversários. Outros são indiferentes. Eu transitava entre esses dois grupos; hoje sou o oposto. Eu fico bobo com qualquer data que me dê um motivo para comemorar por estar vivo. A vida já é muito difícil pra eu encrencar até com meu aniversário. Mas comemorar… Sozinho? Definitivamente não estava nos meus planos.

As mensagens começaram a chegar lá pelas oito da manhã. Mãe em Portugal, a primeira. O fuso-horário ajudou. A família e os amigos se encarregaram de tentar fazer desse dia insosso um pouquinho menos melancólico. E conseguiram. Sentir-se amado, ainda que virtualmente, é relembrar que você tem a quem abraçar quando tudo isso passar.

Decidi, pelo menos, comprar um bolinho. De limão, bem simplezinho, mas com cobertura. Por sorte, a padaria não fechou em decorrência do confinamento.

― Algo mais moço? - a atendente perguntou.

― Vocês por acaso têm velinha de aniversário? - questionei. ― Olha, eu acho que não - respondeu estranhando a pergunta. ― Ah, então tá bom. Eu coloco um palito de fósforo mesmo. ― É aniversário de quem?

― Meu mesmo. ― Ah! Felicidades!

― Obrigado! - respondi indo em direção ao caixa.

O dia foi repleto de videochamadas com amigos para matar a saudade e tentar comemorar de alguma forma. Ouvi músicas, terminei de ler Watchmen. Até que, de repente, ouvi um barulho no portão. Fui lá ver:

― Parabéns pra você, nesta data querida… - um coro de sete pessoas entoava na garagem da minha casa. Samuel, Léo, Daniel, Hallan, Thainá e Isaque. Amigos da Aliança Bíblica Universitária me fizeram uma surpresa.

A cena foi escatológica, mas engraçada. Todos estavam distanciados cerca de dois metros um do outro. Nada de abraços. Infelizmente. Léo arremessou o presente de longe. Agarrei-o como um jogador de rugby.

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Anoiteceu. Eles foram embora. Com eles, a companhia e também um pouco da alegria. Abri o presente, um livro. A dedicatória escrita por eles me deixou feliz. E menos frustrado por nada ter saído como eu queria. Tá tudo bem. Ano que vem tem mais um.

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5 D E A B R I L D E 2 0 2 0

H O J E N Ã O T E M C U L T O

“A comunicação serve para que esqueçamos a morte”. Essa frase foi dita numa aula de Comunicação e Filosofia, há mais de três anos, quando eu cursava o quinto semestre do curso de Jornalismo. Na época, ela não soava tão gritante quanto hoje, em meio à quarentena causada pela pandemia do não mais tão novo coronavírus.

Naquela aula eu estava cansado. Era uma tarde de terça-feira muito quente da primavera de 2017. Eu detesto calor. De manhã, aula de Redação V, à noite uma disciplina optativa de Infografia. Dane-se a comunicação e a morte. Tudo que eu queria era chegar em casa, tomar um banho e assistir Masterchef.

A ideia de Vilém Flusser citada naquela aula hoje soa de maneira estranha e mexe de forma diferente com minha percepção. Com o decreto de estado de emergência do governo do Estado iniciado em 18 de março, nossa comunicação sofreu um revés. Mais do que comércio, restaurantes e academias, muito além de lojas e serviços no geral, perdemos a possibilidade da comunicação em diversos sentidos.

Claro, virtualmente as coisas ainda podem acontecer. Talvez o que venha à tona é que precisamos mais do que bits e bytes trocados em mensagens, ou simplesmente ver alguém através de uma tela. E eu, um cristão protestante, tenho sofrido as mazelas do isolamento social de maneira peculiar.

A liturgia importa. Estar semana após semana no templo, cumprimetar minha família na fé com abraços, beijos, cantar junto, corrigir mentalmente o pregador da noite… O que há de novo nisso? Nada. Mas é como quando nos sentamos por horas à beira da praia para contemplar o mar. As ondas vem, vão. Vem e vão. Continuamente elas fazem a mesma coisa, mas não deixamos de vê-las como menos belas e formosas por causa da mesmice.

O domingo, para o cristão, é o Dia do Senhor. Pense nisso como o dia mais importante da semana para ele. É como se todo domingo ele se preparasse com entusiasmo para um casamento, uma festa, uma final de Copa do Mundo com disputa entre Brasil e Argentina.

Há mais de vinte dias não ponho os pés na minha igreja. O último culto presencial aconteceu no dia 15 de março. As pessoas ainda agiam normalmente. Abraços e beijos liberados. Naquele dia eu já “escapava” do vírus. Num canto recluso, evitava qualquer cumprimento, por mais sutil que fosse. Justamente eu, habituado a cumprimentar todo mundo sem cerimônias. Mas hoje é domingo, 5 de abril de 2020. Às 17h30, comecei a me arrumar para ir ao culto, que sempre começa às 19h30. Gosto de chegar cedo e conversar com todo mundo. Peguei a toalha e a roupa, fui para o banho. Olhei para o sabonete... um estalo!

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Voltei para o quarto, guardei a calça e a camiseta, peguei o pijama. O jeito é assistir ao “culto online”. O termo não era estranho, afinal, algumas igrejas já transmitiam as reuniões pela internet. A distinção do momento: só havia esta opção.

Cá estou, assistindo ao primeiro culto online da história da Primeira Igreja Batista em Capivari de Baixo. Transmitido ao vivo pelo Facebook do Pr. Hugo Vinicius. Acompanho o louvor e a pregação. Estranho. Falta a ida ao banheiro antes de começar, as palmas desajustadas de algumas senhorinhas, o cheiro de roupa nova no ar, o bate-papo depois do culto.

“A comunicação serve para que esqueçamos a morte”; ora, Flusser, não caçoe de nós. Sei o que você tinha em mente quando escreveu isso: que a comunicação nos distrai e nos permite viver sem que pensemos constantemente no fim inevitável.

A grande ironia no meio dessa quarentena é que a comunicação - em seus mais diversos meios e modos - nos lembra, constantemente, de que um dia, seja pelo coronavírus ou qualquer outra razão, todos morreremos.

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1 2 D E A B R I L D E 2 0 2 0

D O M I N G O D E P Á S C O A

― A gente tem que se cuidar agora. Ainda mais aqui na igreja que tem bastante gente idosa. Grupo de risco, não dá de bobear - falei após cumprimentar alguém com a saudação do Spock, de Jornada nas Estrelas.

Concentrei-me em regular a mesa de som e separar os slides das músicas que seriam tocadas naquela noite. Mal sabiam que aquele 15 de março seria a última reunião física, no templo, durante um bom tempo. Antes do culto começar, nada. Durante os avisos, nada. Após a pregação, nenhuma palavra, comunicado ou recomendação sobre o coronavírus.

A semana que seguiu ao último culto presencial foi recheada de certa normalidade. Ensaios e reuniões, mantidos. O Pr. Rogério Souza, presidente da Convenção Batista Catarinense, enviou uma recomendação às igrejas batistas do Estado para que tivessem “cautela e bom senso”, mas ressaltando que era uma “recomendação”. Faltava um mês para a Páscoa.

Na minha igreja ainda havia certa dificuldade em se assimilar o que estava acontecendo. Lembrei-me do que disse Átila Iamarino, biólogo e virologista brasileiro, em sua participação no programa Roda Viva, da TV Cultura: “as pessoas tendem a criar mundos paralelos para não enfrentar a realidade”.

Certa apreensão passou a tomar conta dos grupos de Whatsapp da igreja. Uma enxurrada de vídeos, prints, notícias e tudo o mais. Ainda assim sentia certo descaso por parte da maioria em relação ao coronavírus. As reuniões foram canceladas, entretanto, um prazo para retorno foi definido: o fim do mês de março. Ou seja, em cerca de dez dias eles achavam que tudo voltaria ao normal. Eu já havia colocado na cabeça que não teríamos nem culto de Páscoa. Geralmente as crianças da igreja se apresentam numa espécie de cantata. As músicas são escolhidas para celebrar a morte de Jesus. Fazemos uma decoração especial. Neste ano não. O culto de hoje foi online, como estavam sendo os outros. Não teve a ceia, não teve a apresentação musical das crianças. Apenas orações, canções e a pregação.

A Páscoa é um dos momentos mais importantes do ano para o cristão - o momento onde se recorda e celebra a razão principal da fé: Cristo, o filho de Deus e o próprio Deus morrendo pelos pecados da humanidade. Esse momento chave do ano acabou sendo mais triste e melancólico por não podermos celebrá-lo juntos.

Neste novo tempo, se impõe a igreja rever seus modelos estruturais que, no meio da pandemia, não estão dando conta do que é “ser igreja”. Adaptar-se não tem sido fácil, nada fácil.

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C U L T O E C O N S U M O I

Para os cristãos protestantes, a ideia de que a religião é um serviço tem seus prós e contras. A palavra culto, em inglês service, literalmente pode ser traduzida como serviço. A questão é que não trata-se de um serviço que os cristãos consomem, mas que também prestam.

Hoje foi aprovado numa sessão virtual da Assembleia Legislativa de Santa Catarina, um projeto de lei que reconhece a religião, de modo geral, como atividade essencial em tempos de crise. A justificativa dada é que “a atividade religiosa é essencial pois a fé exerce papel fundamental como fator de equilíbrio psicoemocional à população”.

Por mais bem-intencionado que o projeto possa parecer (ou não), o timing é péssimo. Principalmente após a postura de líderes evangélicos midiáticos que insistem em manter os cultos em suas megaigrejas, negligenciando as recomendações de saúde.

Num momento onde o isolamento social é necessário para achatar a curva de contaminação, surge um projeto que permite retornar a estes encontros que, em alguns casos, podem ser multitudinários.

Equiparar igrejas a academias, comércio, restaurantes e shoppings é ter a certeza de que grande parte das pessoas sempre vai considerá-las negócios. Grandes negócios que não podem fechar. Não é um lugar onde se presta serviço, mas onde se consome: música, uma “palestra” e bate-papo.

Logo teremos as igrejas drive-thru. Um louvor, uma oração e um versículo pra viagem, por favor!

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V A L D E M I R O E O P É D E F E I J Ã O

O feijão é uma excelente fonte de proteínas. Hoje o quilo custa entre quatro e cinco reais. Aproveitando-se das qualidades do feijão e do atual momento, o autodenominado apóstolo Valdemiro Santiago apresentou aos fiéis o feijão que cura a covid-19. Sim, um feijão com a frase “Sê tu uma benção” gravada no grão.

De graça? Quem dera! A leguminosa é vendida por até R$1.000,00. Ao assistir o vídeo “promocional” me vieram à mente as esquetes do TV Pirata, um programa de humor dos anos 90.

Primeiro como fábula, agora como farsa: não é novo o truque de vender feijões mágicos. O antigo conto de fadas inglês João e o pé de feijão está aí para provar. Diferente dos feijões de João, os de Valdemiro não são mágicos -muito menos curam a covid-19.

Mas isso não é novidade: em março, num culto divulgado nas redes sociais, a Igreja Catedral Global do Espírito Santo, no Rio Grande do Sul, já pedia a seus fiéis que fossem ao templo para serem ungidos com óleo consagrado para imunizar contra qualquer epidemia, vírus ou doença.

O Instituto Butantan que se cuide, pois junta-se ao rol dos descobridores da cura da covid-19 o pastor R. R. Soares, da Igreja Internacional da Graça de Deus. Ele está anunciando que membros da igreja estão se curando graças a água "consagrada" por ele em um ritual.

Enquanto o contexto da pandemia pede cautela e prudência o que se vê da grande maioria é a preocupação com a arrecadação. Isso acaba alimentando a narrativa preconceituosa que unifica a todos evangélicos e os joga na lata da malignidade e incoerência.

O Ministério Público não deixou barato e pediu uma investigação. Valdemiro que se cuide. Em cima do pé de feijão há sempre um gigante a se enfrentar.

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A F A M I G E R A D A R E U N I Ã O

“Vai pra puta que o pariu, porra! Eu que escalei o time, porra!”. “Homem preso não vale porra nenhuma”. “Não vou esperar foder minha família.” As belíssimas frases ecoavam da boca do presidente da República na reunião de 22 de abril, que só viria a tornar-se conhecida um mês depois, quando o ministro Celso de Mello, do STF, decidiu tornar público o vídeo.

Sem qualquer decoro ou sentido, a reunião parecia uma esquete do Monty Python, aquele grupo inglês de comédia. Uma confusão dos diabos com ministro interrompendo ministro e um bacafuá danado. Quem assistiu, percebeu: não chegou-se a conclusão nenhuma.

Há duas coisas no mundo que são muito vergonhosas - uma delas é descobrir que foi enganado. Olhar para trás e ver que, ora bolas, como você pôde ser tão burro!

Imagino os evangélicos assistindo a essa reunião grotesca e desastrosa. Os evangélicos de verdade mesmo, que se importam em viver um cristianismo sincero.

Há algum arrependimento? Foram realmente enganados? Fecham os olhos ou realmente estão cegos? O festival de palavrões e grosserias deveria fazer corar qualquer crente que nessa reunião estivesse.

Qual deveria ser a reação evangélica a uma reunião tão mesquinha? Louros ou desconfiança? O que se notou foi um belo pano sendo passado em tudo. “Ah, era só uma reunião com os ministros. Ele é assim mesmo, fala igual o povo, solta um palavrão ou outro...”.

A questão não é simplesmente Bolsonaro falar um palavrão. É não dar-se conta de que é presidente de um país e presidir uma reunião como se estivesse num bar de esquina - com todo respeito aos bares de esquina.

Aos evangélicos que o apoiam, resta reconhecer que o presidente não corrobora da mesma ética pregada por nossa religião. Seja no falar palavrões, conduzir uma reunião ou achar que a vida de um homem não vale nada por ele estar preso. Se é que estes que o apoiam estejam preocupados com ética. Há duas coisas no mundo que são muito vergonhosas - uma delas é descobrir que foi enganado. A outra é abraçar essa condição.

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2 D E J U L H O D E 2 0 2 0

M A I S T A R D E L E R E I O J O R N A L

Comecei a ler e ver notícias aos inícios de manhã e fins de noite - e só. Se o mundo acabar, ficarei sabendo: alguém virá me contar, um plantão da Globo vai me dar um susto ou eu mesmo presenciarei tal catástrofe.

A enxurrada de informações que diariamente cai sobre nós, faz-nos crer que, de alguma forma, estar bem informado é sinônimo de controle: sobre a vida, a família, os planos e a pandemia. Informação é poder, mas não desse jeito.

Temos a tendência de considerar a movimentação sem restrições um direito absoluto. Quando uma pandemia nos põe para dentro de casa, a ansiedade já aflorada por essa tendência acaba piorando. Queremos atualizações. Alô, Google: não conseguimos sustentar períodos de tédio sem surtar; nos ajude! Estar num mesmo ambiente quase que vinte e quatro horas por dia nos faz recorrer mais ainda ao noticiário, filmes, séries e livros para apaziguar nosso coração que muitas vezes fica aflito e angustiado - e com razão. .

O fato de estudar jornalismo caiu como um fardo mais pesado ainda sobre mim. “Preciso estar bem-informado! Muita gente me pergunta sobre notícias serem falsas ou não… Tenho de estar preparado”. Mas passei a prezar não só pelo estar bem-informado, mas pelo estar bem. Deixei de ler, de ouvir, de ver. Hoje, na ida ao mercado, aproveitei e passei numa das raras bancas daqui e comprei um jornal. Folha de S. Paulo, edição de sexta, um resumão da semana. Como foi bom lê-lo. Tudo bem que não o li todo, mas o que li me foi proveitoso. Pude analisar com calma algumas coisas e ler sobre outras que me escaparam ao longo dos dias. Passei os olhos sobre os comentários de alguns leitores. Concordei, discordei. Fiz as palavras cruzadas.

Aquela leitura tiroume um peso da alma. Parece que perdi, sim, muita coisa -mas que na prática não me fez diferença. Na política, a bagunça de sempre; a economia aos trancos e barrancos. O caderno de saúde trazia dados interessantes, mas nada de novo debaixo do sol tupiniquim. Na sessão de cultura, Lady Gaga, Adriana Calcanhoto, cinemas sem lançamentos, novelas reprisadas na televisão aberta.

Deitar no sofá por deitar no sofá, tomar um café por tomar um café. Sem celular na mão, sem notebook ligado, televisão desligada. Nada de música. Viu só, difícil, né? O consumo de informações e entretenimento é nosso escape para suportar o tédio, a preocupação, a angústia. E se isso acontecer de forma saudável, não há problema. Mas você já viu o ser humano conseguir não estragar alguma coisa?

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C U L T O E C O N S U M O I I

“Gente, se inscreve no canal da minha igreja no Youtube. Temos de chegar em 1000 inscritos, só assim o Youtube permite fazer lives pelo smartphone”. Essa foi a mensagem que mais li nos últimos dias. A pandemia forçou muitas igrejas à adequação e migração para o mundo virtual, coisa que muitas consideravam luxo e outras pouco davam atenção.

Nem toda igreja evangélica tem estrutura física e financeira e capacitação -em mídias digitais. Ainda que não seja complicado fazer uma live no Instagram ou Facebook, essa transição requer o reconhecimento de que isto é essencial nos dias de hoje e não apenas luxo ou simples aparição digital. Com o coronavírus, algumas delas se viram despreparadas e tiveram que se mobilizar. Pelo que percebo, essa preocupação teve foco nos cultos - e só. De segunda à sexta, como a gente fazia para “ser igreja”? Se antes da pandemia essa dúvida dava beliscõezinhos, hoje ela tem nos dado uma surra. Para muitos cristãos, o culto de domingo transformou-se na única fonte de alimento espiritual e comunhão com os irmãos. Muito dessa responsabilidade é de nossas comunidades.

Antes da pandemia a vida de muitas comunidades já se restringia apenas ao culto dominical e olhe lá. É escasso o discipulado pessoal e as reuniões tanto de estudo aprofundado da Bíblia quanto de comunhão, vinho e pão. Parece que elas não aprenderam a incentivar esses encontros sem cair na forçação de barra nem na saturação.

Percebe-se também que falta um senso geral do que é de fato ser membro de igreja protestante. Um protestante não-praticante é um contrassenso, pois a ação está na nossa essência. Ser membro não deveria ser sinônimo de bater ponto, e sim de serviço e envolvimento profundo.

A expansão do Cristianismo nos primeiros séculos, por exemplo, foi impulsionada justamente pelo serviço prestado em meio a epidemias.

Durante a peste Antonina em meados do segundo século ou na peste de Cipriano no século seguinte, os cristãos foram valorizados pelo cuidado e auxílio que tinham com os doentes - qualquer fosse o credo deles. Quem tinha contato com o Cristianismo era surpreendido pelo apoio e respeito que encontrava.

O reducionismo da membresia à frequentar cultos de domingos acabou nisso: comunhão e serviço substituídos por uma espiritualidade vazia e consumista.

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1 O D E A G O S T O D E 2 0 2 0

R E C E B I D O S N O Z A P

― Pelo visto covid é dor de barriga. Tão recomendando até chá de boldo! -Laura, uma amiga da igreja, comentou comigo após contabilizar as inúmeras receitas para acabar com o coronavírus que lhe haviam chegado pelo WhatsApp.

Chá de limão, sal e alho; gargarejo com vinagre; ivermectina, remédio pra vermes; e Hidroxicloroquina - gozado, brasileiro, quando quer, aprende química e nome difícil.

Das dez imagens mais compartilhadas no aplicativo de mensagens durante a pandemia no Brasil, sete são falsas. Os evangélicos encabeçam a lista dos que mais divulgam.

― Allan, fiquei sabendo que dois irmãos aqui da igreja tomaram ivermectina para prevenir a covid. Ao menos mata os vermes, né kkkkkkkk - Laura comentou, enviando em seguida uma figurinha.

“Menino, cuidado com essa coisa de internet! Não fala com estranho e não acredita em tudo que aparece por lá não!”, era o que dizia qualquer evangélico há uns quinze anos; a internet até coisa do diabo era! Parece que o jogo virou. A terra não é mais redonda, a grama não é mais verde e hidroxicloroquina funciona contra covid-19. É verdade, sim, recebi no WhatsApp.

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7 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 0

G R A V A T A E G R I N A L D A

― Cara, tu não vai ficar chateado né? - Pedro perguntou.

― Não, mano, fica tranquilo… Sério mesmo. Fico feliz só de tu ter considerado me convidar, cara. Casamento é assim mesmo. - respondi

― Sim, cara. Tem muita gente que eu queria convidar, tu por exemplo. Mas tem família e um punhado de gente que se a Ísis e eu não convidarmos…

― Relaxa, cara, fica numa boa. E a data, quando é? ― Cara, a gente tá pensando em abril.

Tive esse diálogo em dezembro de 2019 com o Pedro, meu discipulador. Discipulador para um cristão é uma espécie de mentor, não no estilo mestre-mandou. É alguém que caminha com você, te ajuda, orienta. Alguém para quem você abre o coração. Ele congregava na Primeira Igreja Batista de Florianópolis. Almoçávamos quase toda terça-feira juntos para conversar - às vezes tomávamos um café da tarde. Nos despedimos com um abraço naquela tarde de dezembro e não voltamos a nos encontrar presencialmente.

Por que estou lembrando disso hoje? Porque estou assistindo o casamento do Pedro e da Ísis pelo Youtube. Assisti às filmagens que foram publicadas depois para os que não estiveram presentes. Por causa da pandemia, o casamento foi adiado: de abril para agosto. Foi uma cerimônia mais íntima, com os amigos e parte da família mais chegada.

As aulas online. Médico online. Os cultos, também. O estágio a mesma coisa. Porque não os casamentos? Não à toa o consumo de internet no país cresceu 30% - todo mundo conectado o tempo todo. Desde o início da pandemia as lives e videochamadas se tornaram rotina. Atire o primeiro smartphone quem não assistiu a uma transmissão.

A lágrima que corre no meu rosto ao ver o Pedro e a Ísis tão felizes naquelas filmagens é tanto de alegria quanto de apreensão: a rotina ainda não voltou ao normal. Mas calma lá! “Ainda”. É nesta palavra que eu pretendo manter o foco.

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3 0 D E S E T E M B R O D E 2 0 2 0

D E Z M I L I G R A M A S

Com o dedo médio, arranco pequenas lascas de pele do dedão da mão direita. As pernas balançam involuntariamente. Não consigo pará-las. Percebo sangue saindo do meu dedo. Vou ao banheiro, pego um pedaço de papel higiênico. Coloco sobre o sangue e pressiono. Estou preocupado com não sei o quê. O coração deu uma acelerada e o ar faltou; só um pouco, nada muito alarmante. Os neurônios estão agitados: crônicas para terminar, aulas para assistir, resenhas a fazer, louça na pia, irmã trabalhando na rua em plena pandemia… Quem sabe um chazinho de camomila não ajude a acalmar? Coloquei a água na chaleira e liguei a maior boca do fogão. Esquente depressa, água! Peguei logo dois saquinhos de chá. Um só mal me faria cócegas.

Volto ao notebook e coloco a xícara ao lado do mouse. A aula tinha começado. Direito Ambiental. Passam-se alguns minutos. Pernas balançando. Mais lascas de pele, dessa vez do dedão da mão esquerda. As batidas ainda aceleradas. Ah! Preciso pagar a conta de luz. A da internet também. Abro o aplicativo do banco no celular e pago.

A professora estava no segundo slide; as pernas estavam balançando mais rápido, como se quisessem desprender-se do corpo. Fecho o notebook sem nem sair da sala de aula. A aula está boa, professora, não é nada pessoal. Começo a lavar a louça. Passa das quatro da tarde. Respiro fundo. Desisto da louça. Caramba, o remédio!

Atrasei uns vinte minutos o horário de tomar aquele comprimidinho branco e miudinho, pesando dez miligramas. Tratamento de seis meses. Transtorno de ansiedade, o médico falou. Fazia sentido, há anos sinto tudo isso. Com a pandemia, tudo acabou acumulando. Último semestre de aulas, apresentação do Trabalho de Conclusão, incerteza sobre o futuro, preocupação com a família e os amigos...

Algum evangélico certamente diria que remédio é para quem não tem fé. E citaria um famoso versículo da carta do apóstolo Pedro: lance sobre ele [Deus] toda sua ansiedade, porque ele tem cuidado de você. Eu responderia: Estou ansioso demais para fazer isso.

Mas tenho certeza que mesmo que eu não lance a minha ansiedade, Ele continua cuidando de mim. Imagina só se Deus dependesse de eu lançar minha ansiedade sobre Ele para, só então, lançar os seus cuidados sobre mim.

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1 5 D E O U T U B R O D E 2 0 2 0

A M I G O , E S T O U A Q U I !

Às vezes tudo o que a gente precisa é de uma boa cerveja gelada com batatas fritas junto a dois ou três amigos para perceber que, talvez, esse seja o investimento de tempo mais precioso que a gente pode fazer.

Não sei vocês, mas na minha infância e adolescência quase não tive amigos. Colegas sim, na escola, na igreja. Porém nunca soube de fato o que era uma amizade, com todas as suas benesses, contratempos e diversões. Dormir fora de casa era ir para casa dos meus avós. Brincar na rua geralmente era com minha prima e minha irmã.

Nos últimos anos, Daniel, Léo e eu nos víamos praticamente todos os dias. Almoço e janta no Restaurante Universitário, conversas para lá do anoitecer no apê do Léo. Os três fazemos parte da Aliança Bíblica Universitária (ABU), um movimento estudantil da Universidade Federal de Santa Catarina.

Léo se formou em medicina neste ano - foi a primeira turma a se formar à distância por causa da pandemia. Daniel tinha dado um salto importante na vida acadêmica: de Engenharia Química a Filosofia. Além deles, outros amigos da ABU eram recorrentes nos encontros diários na universidade. Há mais de seis meses estamos sem nos ver presencialmente.

Amigos são aqueles com quem você pode ser sincero e abrir o coração. Mesmo que a gente não concorde em tudo, eles te ouvem e julgam suas ações não para te condenar, mas para ajudar.

Virtualmente é fácil não ser sincero - às vezes nem se precisa ser. O esforço em manter contato também tem de ser maior. É preciso querer mantê-lo, se esmerar em não deixar que se passe muito tempo entre um contato e outro. Sim, vi alguns amigos presencialmente. Kinchescki me ajudou com a mudança de Florianópolis para Capivari de Baixo - afinal, o estágio na Assembleia Legislativa está sendo home office e as aulas também são. Outro que vi foi o Alex. Não nos encontrávamos desde julho do ano passado, quando ele foi fazer um intercâmbio na Noruega. O abraço durou um bom tempo.

E a internet me deu alguns bons amigos - bons não, excelentes. Hoje eles têm até nome, uma referência ao meu sobrenome - Bento. Ainda que minha infância não tenha sido repleta de amigos, agora o quadro é diferente. O início da minha vida adulta foi - e tem sido - bem melhor com cada um deles perto. Se em algum momento pensei que a pandemia poderia me afastar dos meus amigos ou me matar de solidão, ledo engano. Vida longa aos Tulibentos!

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Referências

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