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MULTIPLICI DADE DE “POBREZAS” NAS REDES HETEROGÊNEAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS CONTEMPORANÊAS

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP)

JACY CORRÊA CURADO

MULTIPLICI

DADE DE “POBREZAS” NAS REDES HETEROGÊNEAS

DAS POLÍTICAS PÚBLICAS CONTEMPORANÊAS

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

(2)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO (PUC-SP)

JACY CORRÊA CURADO

MULTIPLICIDADE DE

POBREZAS

NAS REDES HETEROGÊNEAS

DAS POLÍTICAS PÚBLICAS CONTEMPORANÊAS

DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Psicologia Social sob a orientação da Profa. Dra. Mary Jane Paris Spink.

(3)

A tese apresentada por JACY CORRÊA CURADO, intitulada “MULTIPLICIDADE DE “POBREZAS” NAS REDES HETEROGÊNEAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS CONTEMPORANÊAS”, como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em PSICOLOGIA SOCIAL à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), foi ...

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________

Profa. Dra. Mary Jane Paris Spink (orientadora/PUC-SP)

____________________________________________

____________________________________________

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente agradeço à Mary Jane Spink, que orientou com total atenção minha tese de doutorado, sempre com a gentileza e sabedoria de uma mestra exemplar;

À Vera M. Menegon, agradeço a confiança e o apoio recebido em todos os momentos difíceis que passei nesta caminhada;

A Peter Spink, por ser fonte de muitas reflexões sobre esse “campo-tema”, e por ter me alertado sobre os perigos, usos e abusos das pesquisas nessa área;

À Marta Campos, Vera Menegon e Peter Spink, pelas preciosas e pertinentes sugestões que fizeram no exame de qualificação;

À Vanda Nascimento, à Mariana e George, agradeço as ajudas extras, os textos, as dicas e socorros, em nome de todos colegas do Núcleo de Práticas Discursivas e Produção de Sentidos da PUC SP;

À Maria Elisa, profissional dedicada e paciente, que ajudou a editar minha tese;

A Yan, Jeferson, Leysa, Letícia, Gerson, Arthur, Marcia, Joyse, por manterem a chama do conhecimento acessa em nossos encontros do Grupo de Estudos Contemporâneos;

À Naralince e Lucimar, minhas ex estagiárias e psicólogas dos Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) que tão bem me receberam como pesquisadora em seus locais de trabalho;

(6)

À CAPES, pelo apoio financeiro que me possibilitou cursar o doutorado;

A meus sobrinhos Henrique e Alexandre Curado, pela estadia sempre carinhosa da “tia” em São Paulo;

A meus pais Lincoln e Muriel, pelo apoio em todos os momentos e a todas opções de minha vida;

A meus amigos espirituais com quem aprendi buscar força, amor e coragem para enfrentar com fé e esperança o inusitado da vida;

(7)

Os poderosos e os estáveis não estão colocados num Olimpo de onde possam contemplar impavidamente a miséria do mundo. Integrados, vulneráveis e desfiliados pertencem a um mesmo conjunto, mas cuja unidade é problemática. As condições de constituição dessa problemática é que devem ser interrogadas. (CASTEL, 1998, p. 34).

(8)

RESUMO

Esta tese apresenta a pobreza como múltipla e complexa, performada por uma rede de materiais heterogêneos nas políticas públicas contemporâneas. Para chegarmos a esses pressupostos construímos diálogos teóricos e epistemológicos com a abordagem da Psicologia Social Discursiva, tais como a construção histórica da pobreza, a importância da linguagem nessa construção, a polissemia de sentidos e seus repertórios linguísticos. Procurou-se entendê-la como manifestação de governamentalização do Estado Moderno, que permitiram o exercício de uma de forma específica e complexa de governo, que tem por alvo a população pobre. O enfrentamento à pobreza também passou por ressignificações trazidas pelos processos de metamorfose e reconversão da questão social, produzindo mudanças no marco das políticas sociais contemporâneas, assumindo o formato da transferência de renda. Para compreender como a Política Pública de Enfrentamento à Pobreza é performada por uma rede heterogênea de atores humanos e não humanos via o Programa Bolsa Família, articulou-se ainda um diálogo com algumas pontuações da Teoria Ator-rede e referenciais epistemológicos que questionam os fundamentos ontológicos de verdade e realidade por meio das noções de multiplicidade e performatividade. A partir das observações, entrevistas, conversas e leitura de documentos públicos das ações do Programa Bolsa Família, descrevemos três versões de “pobrezas”: a pobreza calculada, a cadastrada e a controlada. Essas versões coexistem entre si, e não devem ser entendidas de forma isoladas de tal modo que somadas produziriam um todo ou comporiam um retrato da “pobreza” homogênea, estável e permanente, apreendida por uma diversidade de olhares e perspectivas. Ao contrário, propomos aqui se trate de uma multiplicidade de “pobrezas”. Pontuamos também as conexões e bifurcações entre as versões de pobrezas produzidas pelas materialidades e socialidades da rede heterogênea das políticas públicas de enfrentamento à pobreza, como forma de desestabilizar, desterritorializar e flexibilizar as noções tradicionais de pobre e pobreza.

(9)

ABSTRACT

This dissertation addresses poverty as a multiple and complex phenomenon performed by a network of heterogeneous materials from contemporary public policies. To delimit these assumptions, theoretical and epistemological dialogues based on Discursive Social Psychology were articulated, addressing aspects such as the historical construction of poverty, importance of language in this construction, polysemy of meanings, and corresponding linguistic repertoires. Poverty was interpreted as a manifestation of the governmentalization of the Modern State that allowed the pursuit of a specific and complex form of government targeting the poor. Strategies for combating poverty also underwent resignifications accompanying the processes of metamorphosis and reconversion of social issues, bringing about changes in the framework of contemporary social policies, ultimately taking on the form of income transfer. To understand how the Public Policy for Combating Poverty is performed by a heterogeneous network of human and nonhuman actors through the Bolsa Família Income Allowance Program, a dialogue was articulated with selected inputs from the Actor-Network Theory and epistemological references questioning the ontological bases of truth and reality through the notions of multiplicity and performativity. Drawing on observations, interviews, conversations, and readings of public documents addressing actions of the Bolsa Família Program, three versions of "poverty" emerged: calculated, officially recorded, and controlled. These versions coexist and should not be interpreted in isolation, since taken together they would yield a joint entity or comprise a portrait of poverty that is homogeneous, stable, and permanent, understood from diverse viewpoints and perspectives. By contrast, a focus on a multiplicity of “poverties” is proposed in the present study. Connections between and bifurcations from versions of poverty produced by the materialities and socialities of the heterogeneous network of public policies for combating poverty are also highlighted, in a bid to destabilize, deterritorialize, and impart flexibility to the traditional notions of “poor” and “poverty.”

(10)

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 - Ciclo da porta de entrada do Programa Bolsa Família ... 119

FIGURA 2 - Bloco 5 – Documentos: documentos solicitados para cadastramento, recadastramento e desbloqueio do benefício no

Cadastro Único – diagrama ... 126

FIGURA 3 - Lista de documentos da Secretaria Municipal de Assistência

Social, de Campo Grande, MS ... 127

FIGURA 4 - Cadastro Único, formulário de identificação da pessoa, item

5.04 – Dados de Carteira de Trabalho e Previdêncla Social ... 128

FIGURA 5 - Cadastro Único, formulário de identificação da pessoa, item

8.09 – Quanto (nome) recebe, normalmente, por mês ... 128

(11)

LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 - Objetivos específicos e fontes ... 30

QUADRO 2 - Procedimentos realizados: observação, conversas, entrevistas

e análise de documentos públicos ... 32

QUADRO 3 - Síntese dos medidores de pobreza ... 103

QUADRO 4 - Da composição de valores do benefício para famílias com

renda mensal de até R$ 70,00 ... 109

QUADRO 5 - Quadro de entrevistas ... 169

QUADRO 6 - Quadro de observação ... 174

QUADRO 7 - Socialidades e materialidades, território e nomeações de

(12)

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 14

1.1 A POBREZA DA PSICOLOGIA: A INDIVIDUALIZAÇÃO, SUPERPATOLOGIZAÇÃO E HOMOGENIZAÇÃO ... 15

1.2 ALTERNATIVAS E CONTRIBUIÇÕES PSICOSSOCIAIS AOS ESTUDOS E PESQUISAS DA POBREZA ... 18

1.3 O OLHAR CONSTRUCIONISTA SOBRE A POBREZA ... 21

1.4 TRILHANDO CAMINHOS: OS PRESSUPOSTOS SOB OS QUAIS DESENVOLVEMOS NOSSA TESE ... 25

1.5 OBJETIVOS ... 28

1.5.1 Objetivo geral ... 28

1.5.2 Objetivos específicos ... 29

1.6 DOS PROCEDIMENTOS: OBSERVAÇÃO, CONVERSAS, ENTREVISTAS E ANÁLISE DE DOCUMENTOS PÚBLICOS ... 29

1.7 ORGANIZAÇÃO DO TEXTO DA TESE... 36

PARTE I O GOVERNO DA POBREZA NOS DIFERENTES TEMPOS HISTÓRICOS ... 40

2 A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA POBREZA ... 42

2.1 REPERTÓRIOS LINGUÍSTICOS DA POBREZA EM DIFERENTES TEMPOS HISTÓRICOS ... 43

2.2 OS RETRATOS HETEROGÊNEOS DAS “POBREZAS”... 46

2.2.1 Os pobres de Cristo... 47

2.2.2 A pobreza laboriosa... 49

2.2.3 A nova pobreza ... 51

3 A POBREZA COMO QUESTÃO DE GOVERNO ... 55

(13)

3.2 A LEI DOS POBRES E A PANACÉIA DO TRABALHO NA

PROTEÇÃO SOCIAL ... 57

3.3 A MUNDIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS: DO IDEÁRIO DO BEM-ESTAR SOCIAL AO COMBATE À POBREZA ... 61

4 A POBREZA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS CONTEMPORÂNEAS ... 65

4.1 O PROCESSO RECONVERSÃO DA POBREZA E METAMORFOSE DA QUESTÃO SOCIAL ... 67

4.2 A TRANSFERÊNCIA DE RENDA: DA RENDA BÁSICA UNIVERSAL À RENDA MÍNIMA AOS POBRES ... 69

4.3 PROBLEMATIZANDO A POLÍTICA DE TRANSFERÊNCIA DIRETA DE RENDA ... 72

4.4 ENFRENTAMENTO À POBREZA NO BRASIL VIA POLÍTICAS PÚBLICAS ... 73

4.4.1 Notas sobre o Programa Bolsa Família e suas nomeações ... 78

PARTE II MULTIPLAS VERSÕES DE “POBREZAS” NAS REDES HETEROGÊNEAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS – O PROGRAMA BOLSA FAMILIA EM AÇÃO! ... 84

5 PARA SEGUIR REDES HETEROGÊNEAS NAS POLÍTICAS PÚBLICAS ... 87

5.1 REDES E MATERIALIDADES HETEROGÊNEAS ... 87

5.2 A REALIDADE É MULTIPLA E PERFORMADA! ... 91

6 A POBREZA CALCULADA: A POBREZA VIRA ESTATÍSTICA! ... 96

6.1 AS HISTÓRICAS LINHAS DE POBREZA ... 98

6.2 INDICADORES E ÍNDICES DE POBREZA ... 100

6.3 A GLOBALIZAÇÃO DOS MEDIDORES DE POBREZA ... 104

6.3.1 A dança dos números e cálculos de pobreza! ... 105

6.3.2 Circulando cálculos de pobreza no Programa Bolsa Família! ... 107

7 POBREZA CADASTRADA: NÃO SEM DOCUMENTOS!... 114

7.1 O CADASTRO EM AÇÃO! ... 117

7.2 NÃO SEM DOCUMENTOS! ... 124

8 POBREZA CONTROLADA: A INFORMATIZAÇÃO DO CONTROLE! ... 131

8.1 O CONTROLE DO BENEFÍCIO DE RENDA ... 133

(14)

9 REDES HETEROGÊNEAS DE MULTIPLAS VERSÕES DE POBREZAS PERFOMAM POLÍTICAS PÚBLICAS: AMPLIANDO O OLHAR

PSICOSSOCIAL ... 142

9.1 ÊNFASE NAS MATERIALIDADES E NÃO-HUMANOS! ... 144

9.2 VIRADA PARA À PRÁTICA ! ... 146

9.3 MÚLTIPLAS VERSÕES DE POBREZAS PERFORMAM POLÍTICAS PÚBLICAS! ... 148

REFERÊNCIAS ... 154

APÊNDICES ... 166

(15)

1

INTRODUÇÃO

A pobreza tornou-se um grande desafio a ser enfrentado neste milênio, disputando espaço no atual cenário socioeconômico e político. No Brasil, sua erradicação e combate tem sido uma das prioridades governamentais. Essa preocupação encontra-se também na agenda política das instituições do terceiro setor, agências de desenvolvimento, fundações sociais e na produção de estudos e pesquisas que tratam de seus aspectos históricos, políticos, econômicos, religiosos, culturais envolvendo várias dimensões, disciplinas e perspectivas.

Nesta pesquisa de doutorado, é principalmente da experiência de docência e supervisão de estágio em psicologia social e comunitária e também da assessoria às políticas públicas, que o interesse pela 'pobreza' foi se tornando um problema a ser pesquisado. E nessa trajetória profissional nos sentimos instigadas a refletir sobre os modos como a Psicologia participa nesse debate e, mesmo reconhecendo os recentes avanços, ainda não são poucas às criticas direcionadas as nossas concepções teóricas metodológicas e formas de intervenção.

Há mais de 40 anos, em seu artigo The Poverty of Psychology (1970), Arthur Pearl questionava porque a Psicologia resistia em aceitar o desafio que a pobreza representava para a sociedade. E ainda hoje, como psicólogos sociais podemos nos perguntar: Será que já aceitamos enfrentar esse desafio?

(16)

pobreza, e sim, diferentes modos que se diferenciam a partir das escolhas feitas dentro desse campo de diversidade e complexidade (SPINK; CORDEIRO, 2009). Algumas abordagens psicossociais da pobreza têm sido alvo de críticas, outras se apresentam como alternativas a esses questionamentos, umas ampliam o diálogo e rompem as fronteiras disciplinares, e ainda temos muitas que demonstram preocupação com a intervenção psicossocial.

Não pretendemos fazer aqui um mapeamento ou esboçar um panorama das inúmeras e distintas abordagens psicossociais que demonstram ter preocupação direta ou indireta com a pobreza, mas apresentar alguns estudos e pesquisas que nos aproximam desse debate. Para isso fizemos uso de pesquisas do banco de dados da Biblioteca Brasileira de Teses e Dissertações, coordenado pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, e da biblioteca virtual Portal de Periódicos da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), datadas a partir do ano 2000 e que tenham a palavra “pobreza” em seu título e se inserem no campo da Psicologia Social, além de outras referências especializadas da literatura psicossocial internacional.

Comentar sobre alguns estudos e pesquisas sobre a pobreza de abordagens psicossociais distintas e até antagônicas, não significa que nosso olhar seja neutro, pois ele estará direcionado às versões que se aproximam mais de alguns posicionamentos teóricos metodológicos do que outros.

1.1

A POBREZA DA PSICOLOGIA: A INDIVIDUALIZAÇÃO,

SUPERPATOLOGIZAÇÃO E HOMOGENIZAÇÃO

(17)

Ao pesquisar o lugar da pobreza no conhecimento psicológico brasileiro, a autora confirma que não se pode afirmar que exista uma literatura psicológica acerca do tema e que ela não aparece como uma preocupação explicita da Psicologia, pois o que encontrou foram

[...] estudos dispersos, de naturezas diferentes, pontuais na produção geral dos autores e que possuem interseção com outros campos de conhecimento, já que muito do que foi estudado é publicado em revistas científicas de outras áreas de conhecimento (DANTAS, 2007, p. 94).

Segundo Dantas (2007), a pobreza é estudada pela Psicologia com a preocupação de minimizar seus efeitos por meio das políticas sociais em que a intervenção possui caráter pontual e paliativo focalizando suas ações nas consequências. Dantas, Oliveira e Yamamoto (2010, p. 108) apontaram para a ausência de contextualização deste fenômeno, em que a pobreza geralmente significa “[...] apenas um estrato da população utilizada para aplicação de técnicas de pesquisa necessárias para a discussão de temáticas específicas [...]”. Para Dantas (2007), mesmo admitindo uma escassez estudos que abordam diretamente a temática da pobreza, dentre a classificação da produção das grandes áreas da Psicologia destaca-se a predominância da Psicologia Social com 44,0%, a Psicologia Escolar com 14,4% e a Psicologia do Desenvolvimento com 13,8%.

Na América Latina, Estefanía e Tarazona (2003), comentam que os estudos da pobreza na área psicossocial estão restritos principalmente às estratégias de adaptação e enfrentamento familiar, centrado nos problemas de desenvolvimento e aprendizagem das crianças pobres.

A individualização e superpatologização presentes na literatura psicológica sobre a pobreza são amplamente criticadas por Carr (2003). Para o autor, focalizar os estudos da pobreza naqueles que têm pouco poder de mudar o status quo e as desigualdades existentes na sociedade reduz a explicação a conceitos individualizantes, tornando-se mais uma parte do problema do que contribuindo para a sua superação.

(18)

Questionnaire e da Just World Scale. Essa abordagem teórico-metodológica tem sido criticada pela individualização dos processos sociais; a estabilidade das variáveis atribucionais; a naturalização das categorias de análise e a negação das relações de poder.

No Brasil, um exemplo de pesquisa de atribuição causal apresentada por Tamayo (1994), possui o objetivo de “[...] adaptar e validar uma Escala de Atribuição de Causalidade do Favelado para avaliação das atribuições de causalidade à pobreza em geral.” Ao analisar o resultado da escala fatorial é notória a presença do “indivíduo” como fator causal da pobreza. Por exemplo, nas elaborações de inúmeras respostas a pergunta “Por que existem pessoas pobres?” encontra-se: “porque não tem ambição”, “porque não se esforçam no que fazem”, “porque tem preguiça de trabalhar”, “porque fazem tudo errado” entre outras. No entanto, para o autor, o que justifica a construção de uma escala de atribuição de causalidade sobre a temática é a escassez da produção científica na área e a gigantesca dimensão da pobreza na América Latina e Brasil. Assim, para o autor, a principal contribuição da pesquisa seria de “[...] oferecer um novo instrumento para pesquisadores da área, que irão com a nova escala auferir um maior conhecimento da pobreza [...]” (p. 22).

Para Ibañez (1994) a concepção unificadora, monolítica, uniforme dos processos psicossociais são algumas das consequências das pesquisas cognitivas comportamentais. Para o autor, um fenômeno psicossocial não pode ser reduzido a um processo único, pois repousa em processos diferentes, polimorfos, complexos, sustentados por mecanismos qualitativamente distintos. Detecta ainda nas pesquisas cognitivas, uma tendência de se subestimar a importância das relações de poder quando “[...] trata o conflito social como se fosse um conflito cognitivo […] considera somente a versão cognitiva e individual de um fenômeno profundamente ancorado no social.” (p. 274).

(19)

remete a pobreza à condição de ser pobre, visto como fraco, culpado ou incompetente é criticada por Spink, P. (2005) que também questiona as abordagens que atribuem o problema ao terreno exclusivamente da política macroeconômica.

Para enfrentar essa suposta pobreza da Psicologia, Yamamoto (2007, p. 36) sugere que devemos ampliar os limites da dimensão política de nossa ação profissional, tanto pelo alinhamento com os setores progressistas da sociedade civil, quanto pelo desenvolvimento, no campo acadêmico, de outras “[...] possibilidades teórico-técnicas, inspiradas em outras vertentes teóricas-metodológicas que as hegemônicas da Psicologia.”

1.2

ALTERNATIVAS E CONTRIBUIÇÕES PSICOSSOCIAIS AOS

ESTUDOS E PESQUISAS DA POBREZA

Observamos que as metodologias qualitativas se tornaram a principal alternativa de enfrentamento ao cognitivismo e positivismo nas pesquisas psicossociais da pobreza, e que muitas contribuições são oriundas das inúmeras inversões epistemológicas trazidas pela “Virada Metodológica e Linguística” (SPINK; MENEGON, 2004) e também da influência da abordagem sócio-histórica, fundamentada no materialismo histórico e dialético que contesta a dicotomia sujeito e objeto expressa nas matrizes do empirismo e racionalismo que levam a naturalização dos fenômenos sociais (BOCK, 2003).

Essas implicações teórica-metodológicas repercutem na formatação dos estudos e pesquisas, que se utiliza de um arsenal qualitativo que vai desde as tradicionais entrevistas individuais e grupais, histórias orais, análises de documentos de domínio público, principalmente os de governo e da mídia, às interações dialógicas cotidianas por meio das conversas informais, oficinas, grupos focais, face-a-face, entre outros.

(20)

pobreza dos países do sul é retratada pela cobertura da mídia imprensa e televisiva dos países do norte. Ao analisar os poderosos discursos da caridade, dos governos, de políticos e organizações multilaterais, concluí que as explicações ainda estão centradas nos indivíduos pobres (quanto pior melhor), no clima, na corrupção e ineficiência dos governos dos países do sul. Segundo o autor, essa forma de retratar a “pobreza” atende a inúmeros interesses políticos e influências ideológicas levando a uma “naturalização” da pobreza no hemisfério Sul. Defende que a inserção de textos e imagens na análise sobre a pobreza proporciona um entendimento das explicações políticas mais adequadas, ampliando a pesquisa para além das considerações individuais. Espera-se assim, que no futuro a Psicologia possa estar mais bem posicionada para contribuir com a “conscientização” na luta contra a pobreza.

Para Spink, P. (2003b) por meio dos estudos do lugar e pobreza, os psicólogos e a Psicologia teriam muito há dizer, e a Pesquisa-ação teria muito a contribuir. Entretanto, para o autor, embora reconheça que muitos psicólogos são politicamente sensíveis e em geral progressistas, a “Psicologia” possui alguns problemas epistemológicos que influenciam nos estudos da pobreza como “[...] a suposta neutralidade dos métodos científicos, a proposição de um mundo real existente independente da pessoa e a distinção entre pesquisa pura e aplicada [...]” (p. 103, tradução nossa).

Spink, P. (2003b) também sugere que devemos reconhecer criticamente o lugar como focus da ação da Psicologia e chama atenção para o fato do cotidiano ser um processo social feito por muitos eventos com consequências consideráveis nas pessoas. O lugar ofereceria, assim, uma importante perspectiva alternativa para intervenção social, onde noção de coletividade é possível, trazendo uma dimensão adicional para o território e múltiplas conexões entre pessoas, instituições e processos, e ainda explica que

(21)

A insistência do estudo do lugar nas discussões mais que um jogo de palavras, seria uma tentativa dos envolvidos de construir um horizonte prático para a ação que acontece em uma variedade de espaços para além do individuo e do grupo primário.

Com o apoio da Teoria das Representações Sociais, Accorssi (2011) procurou analisar os modos pelos quais certos sentidos sobre a pobreza são produzidos e transformados na vida social, bem como o impacto que tais conhecimentos podem exercer nas representações que os sujeitos, neste caso, mulheres, reconhecidas socialmente como pobres, têm sobre si mesmos e sobre seu entorno. Segundo a autora, a representação social da pobreza se forma em torno de dois núcleos; o socioeconômico e o da moral e cultura. Partiu das especificidades de uma das mulheres participantes do estudo para refletir sobre os impactos do sistema capitalista neoliberal na sua produção subjetiva. A análise mostra, entre outros aspectos, uma intensa dor existencial decorrente da experiência de se ocupar lugares de pobreza na sociedade contemporânea.

Em uma análise realizada com base no referencial da epistemologia qualitativa proposto por Fernando González Rey, em La Investigación Cualitativa en Psicologia: Rumbos y Desafíos (1999), Euzébios Filho e Guzzo (2009) buscaram compreender como um jovem de 22 anos retrata sua condição de vida, as razões que explicam a desigualdade social e quais perspectivas para melhorias futuras. As discussões da analise da pesquisa mostram que a desigualdade social foi refletida a partir das suas próprias experiências, principalmente, pelas diferenças econômicas observadas em seu cotidiano.

(22)

de Pesquisa Econômica Aplicada, Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística, Fundação Getulio Vargas entre outros.

Silva (2007) sugere uma maior sensibilização dos profissionais para a centralidade da pobreza na questão da saúde da população e uma revisão nas abordagens existentes nos estudos da pobreza. A autora finaliza sinalizando para experiências que conseguiram articular melhores respostas à pobreza na área da saúde e destaca a exigência de um “desprendimento” para dialogar com outras disciplinas que não são as “psi” que acredita ser uma característica da Psicologia Social.

Não encontramos muitas outras pesquisas psicossociais que apresentam a “pobreza” como foco central nos bancos de dados pesquisados. Essas são as que mais se aproximaram de nossa abordagem, que sempre se pautou pelas posturas criticas comprometida com a transformação social. Pois partilhamos do pensamento de Íñiguez (2003), que com nosso conhecimento construímos, nem que seja parcialmente, os objetos que pesquisamos, e que neles estão incorporados o “para que” queremos pesquisar.

Algumas indagações a partir desse levantamento nos levaram aos seguintes questionamentos: Como vamos tratar a pobreza no campo disciplinar da Psicologia Social? Com quem vamos dialogar? Será que o conhecimento que vamos produzir irá contribuir com os estudos e pesquisas sobre a pobreza e repercutir nas práticas profissionais?

Nossa proposta com esta pesquisa é, portanto, ampliar o diálogo com as vertentes da Psicologia Social Discursa que irão embasar os pressupostos desta tese.

1.3

O OLHAR CONSTRUCIONISTA SOBRE A POBREZA

(23)

Jacy  Práticas discursivas sobre a pobreza em uma abordagem Construcionista.

E ela me alertou:

Colega de turma  Cuidado para não ficar somente no discurso! E sem aguardar minha resposta entrou no elevador.

Esse “não-diálogo” serve para ilustrar a dificuldade ainda existente entre psicólogos sociais de compreender o papel da linguagem nas ciências humanas, particularmente na Psicologia Social. No caso dos estudos sobre pobreza, um problema tão antigo, sólido e duro, são ainda maiores as resistências ao uso das abordagens linguísticas sob a alegação de que poderia fugir à urgência e apelo por sua transformação, enfrentamento e combate.

Tomando como ponto de partida as abordagens construcionistas, ressaltamos primeiramente que entendemos a pobreza como uma construção social. Certamente a pobreza cristã da Idade Média, não é a mesma do pauperismo dos trabalhadores do período pós Revolução Industrial, nem tampouco a pobreza do Brasil Colonial é a mesma combatida pelo Programa Bolsa Família.

Reconhecer que os acontecimentos são histórica e culturalmente construídos implica primeiramente em retomar a linha histórica dos repertórios que utilizamos em nossos estudos e pesquisa sobre pobreza. Adotando uma perspectiva temporal, procuramos trabalhar nesta tese o tempo de longa duração, que marca os conteúdos do imaginário social; o tempo vivido das linguagens sociais aprendidas pelos processos de socialização e o tempo curto, do aqui-agora, marcado pelas práticas discursivas (SPINK, M., 1996). O que queremos, como psicólogos sociais, não é fazer ou contar histórias, mas

[...] salientar a complexidade da tarefa com que nos defrontamos quando buscamos depreender os mecanismos que sustentam a comunicação concebida como diálogo entre uma multiplicidade de vozes [...] (SPINK, M., 1996, p. 41-42).

(24)

ser importante para combatermos a “naturalização” da pobreza, que muitos dizem, sempre existiu desde que o mundo é mundo!

A postura construcionista é também uma forma de compreender o mundo e a si mesmo, em que se questionam e problematizam as ideias, os conceitos e as verdades estabelecidas, e que considera o discurso não como um reflexo ou mapa do mundo, mas como um artefato de intercâmbio social (GERGEN, 1985).

Nessa postura epistemológica conhecer alguma coisa é conhecer em termos de um ou mais discursos, que podem até competir entre si ou criar versões da realidade que são distintas e incompatíveis. O discurso seria o uso institucionalizado da linguagem, que quando ativado pelas pessoas produzem realidades psicológicas e sociais (DAVIES; HARRÉ, 1990). Essa concepção de linguagem está aliada ao chamado “giro linguístico”, que demonstrava a princípio uma preocupação da filosofia da linguagem com a representação do mundo e com o poder da linguagem na construção desses mundos possíveis (IBÁÑEZ, 2004).

Essa postura construcionista leva a inúmeras implicações ontológicas, epistemológicas e metodológicas que se caracterizam por um posicionamento critico em relação a vários pressupostos cartesianos do conhecimento.

Questionamos o realismo filosófico e sua crença que as coisas possuem propriedades intrínsecas. Acreditamos que os objetos são como são porque nós somos como somos e não há objetos independentes de nós e nem existimos independentemente dos objetos que criamos. Em suma, o conhecimento não “representa” a realidade e não é possível distinguir entre nossa inteligência sobre o mundo e o mundo como tal.

(25)

O desafio segundo Ibáñez (2001) seria pensar o conhecimento filosófico não encapsulado em si mesmo para não se perder de vista os grandes assuntos que preocupam os seres humanos em sua historicidade e assim contribuir com a ampliação das opções das formas de viver. O conhecimento seria nessa abordagem um processo de construção coletiva, em que as ações cotidianas, todos os intercâmbios do dia-dia, constroem a concepção de mundo (ÍÑIGUEZ, 2002).

Tal postura requer outros deslocamentos e inversões que vão do foco na cognição para a comunicação; do pensamento ou ideias para a linguagem exteriorizada, e da língua como estrutura para o foco na produção de sentidos (SPINK; MENEGON, 2004).

E a linguagem em uso, compreendida como uma prática discursiva é a forma como a Psicologia Social Critica e de cunho discursivo tem pautado as suas análises sobre a construção dos processos sociais. Seriam as maneiras pelas quais as pessoas, por meio da linguagem produzem sentidos e posicionam-se nas relações sociais cotidianas. Adotar essa opção, segundo Spink, M. (2004) implica considerar a interface entre os aspectos performáticos da linguagem e das condições de produção, dando ênfase aos contextos dos campos relacionais, interessando-se pelas tramas e repercussões no âmbito das ciências humanas diferenciando-se, assim, de outras formas de abordagens linguísticas.

Um dos elementos constitutivos das práticas discursivas são os repertórios linguísticos, ou seja, o conjunto de termos, descrições, lugares comuns e figuras de linguagem, usadas em construções gramaticais e estilísticas específicas, dando ênfase ao uso cotidiano da linguagem (SPINK; MEDRADO, 2004). São os dispositivos linguísticos utilizados para construir versões das ações, eventos e outros fenômenos que estão a nossa volta. Assim, assinalam-se as práticas discursivas como foco central de análise na abordagem construcionista, que implicam ações, seleções, escolhas, linguagens, contextos, enfim uma variedade de produções sociais das quais são expressão, constituindo um caminho privilegiado para entender a produção de sentidos no cotidiano (SPINK, M., 2004).

(26)

pesquisar a pobreza seria primeiramente fazer um exercício de desfamiliarização, ou seja, não tomar a pobreza como algo dado, já estabelecido, fechado, inevitável, sem novas possibilidades de compreensão e alteração. Usamos aqui algumas reflexões baseados na leitura de Fleck (2010), que nos levou a pensar que não devemos tomar um conceito como definitivo e encerrado, pois sempre está entrelaçado a novos domínios de saber, a novos problemas que influenciam na sua evolução.

Um bom começo seria então, fazer a ingênua pergunta: O que é pobreza? Se ela sempre existiu, será que sempre foi entendida assim como as conhecemos hoje? Será que ainda existem disputas, interesses, controvérsias na construção das versões contemporâneas de pobreza?

Buscar entender a pobreza em termos discursivos, não seria afirmar que ela não existe, ou que é do domínio exclusivamente linguístico, é reconhecer que esses discursos constroem práticas, que são situadas historicamente por meio de repertórios linguísticos, nos possibilitando assim presentificar o passado e analisar o processo de produção de sentidos e as práticas discursivas.

1.4

TRILHANDO CAMINHOS: OS PRESSUPOSTOS SOB OS QUAIS

DESENVOLVEMOS NOSSA TESE

Do ponto de onde partimos para chegarmos aos pressupostos dessa tese foram construídos por diálogos teóricos e epistemológicos entre abordagens distintas que se conectam em aspectos cruciais, tais como a construção histórica de realidades, a importância da linguagem nessa construção e principalmente por levar em conta as redes constitutivas das múltiplas realidades que compõem o nosso tema de estudo.

(27)

a de pesquisar o enfrentamento à pobreza nas políticas públicas, particularmente as de transferência de renda do Governo de Estado Brasileiro. E foi assim que escolhemos o Programa Bolsa Família, um programa nacional de transferência de renda, com o objetivo explícito de combater a pobreza, como estudo de caso para esta pesquisa.

Optamos fazer uso preferencial da noção de “pobreza” ao invés de “pobre”, por esse termo possuir um tratamento mais apropriado para compreensão do campo das políticas públicas. O caráter individualizante que carrega o termo “pobre” o diferencia de uma noção coletiva da “pobreza”, como nos alertou Mollat (1989, p. 2), em relação ao seu uso substantivo “Uma pessoa pobre; fica sendo ‘um pobre’. Fala -se de um homem pobre, de uma mulher pobre, de um camponês pobre”.

O diálogo com autores que se pautam pela Psicologia Discursiva foi conhecer os repertórios linguísticos e suas distintas significações nos diferentes tempos históricos (GERGEN, 1985; ÍÑIGUEZ, 2002; SPINK, M., 2004), o que nos possibilitou construir uma noção de pobreza como polissêmica, ambígua, relativa e coletiva, entendida por meio dos processos de interação social, particularmente os de base linguística e resultado da ação e negociação social. Assim questionamos sua inevitabilidade, naturalização, processos de individuação comuns às pesquisas psicossociais nessa área.

A compreensão da pobreza como localizada histórica, cultural e materialmente nos leva ao pressuposto dessa tese de que a pobreza é governada. Procuramos entender o surgimento da pobreza como estratégia de governamentalidade a partir de algumas referências marcantes na historiografia, fazendo uso da noção de Governamentalidade de Foucault (2008, 2005, 1995). Pensar a pobreza na ótima da população no sentido foucaultiano, é superar as dicotomias entre individual e coletivo, pois trataremos a população “pobre” como um campo de intervenção e objeto da técnica de governo que irá dispor e conduzir as coisas, que podem produzir efeitos econômicos específicos e ter regularidade própria.

(28)

em que se problematizam os modos de fazer ciência e as relações de poder que as constituem. Ambas colocam em dúvida a naturalidade das noções centrais para ciência expressos nas dicotomias (razão e emoção, natureza e cultura, humano e não humano), e também recusam a postura contemplativa ou essencialista das verdades cientificas, dando espaço para pensa-las como versões de mundo e os modos de vida que elas engendram (GUARESCHI; HÜNING, 2010).

Esses posicionamentos ontológicos nos levaram a pensar a pobreza como múltipla e não plural, as diferenciando do perspectivismo em que se concebe um real único diante de diferentes perspectivas. A noção de multiplicidade sugere que a realidade é manipulada por meio de vários instrumentos no curso de uma série de diferentes práticas performadas. Em vez de aspectos de uma realidade única, são diferentes versões dos objetos que ajudam a performar as múltiplas realidades. As versões visam dar conta dessa coexistência múltipla de saberes, de definições contraditórias e controversas, no sentido de suas possibilidades de ampliar o sistema de referência que permitem falar da realidade. As implicações das Ontologias Políticas parecem estar relacionadas com as possibilidades de escolhas e com o que está “em jogo” entre diferentes versões. Nas palavras de Mol (2008), não são vários aspectos da realidade concebida como única e essencial, mas são diferentes “versões” do objeto, versões essas que os objetos ajudam a performar.

A noção de redes heterogêneas se insere nas teorizações da Teoria Ator-Rede, que entende um fato científico como algo construído por meio das ações de uma rede de atores humanos e não-humanos que se cristalizam em coisas e artefatos. Redes, que produzem efeitos não permanentes, e que, a qualquer modificação e deslocamento de seus atores, interferem e alteram o que é produzido. Afirmar uma multiplicidade ontológica como pressuposto é pensar a pobreza como múltipla, complexa e performada por uma rede heterogênea de humanos e não humanos, localizada histórica, cultural e materialmente (MOL, 2008).

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conjunta do material e do simbólico repousa em estratégias semióticas: material compreendido como linguagem e linguagem como um material de objetivação das materialidades e socialidades.

Os autores da Teoria Ator-Rede problematizam a concepção de realidade das correntes tradicionais da Sociologia, sendo que o “real” para essa abordagem se refere a uma multiplicidade de materiais heterogêneos conectados em forma de uma rede que tem múltiplas entradas e está sempre em movimento e aberta a novos elementos que podem se associar de forma inédita e inesperada (MELO, 2007).

Partindo desses pressupostos ontológicos, epistemológicos e metodológicos, formulamos o objetivo geral desta tese de doutorado que será compreender os modos de funcionamento da rede heterogênea das políticas públicas de enfrentamento à pobreza. Para isso, descrevemos as diferentes versões de “pobrezas” da rede heterogênea de atores humanos e não humanos que atuam no Programa Bolsa Família.

A explicitação dos objetivos e a descrição dos procedimentos utilizados na realização de uma pesquisa qualitativa faz parte do seu rigor metodológico. Diante os muitos caminhos a seguir dentre um amplo leque de opções, iremos explicitar nossas escolhas, em que a trajetória da pesquisadora e as opções teórico-epistemológicas não podem ser entendidas separadamente das estratégias assumidas.

1.5

OBJETIVOS

1.5.1

Objetivo geral

(30)

1.5.2

Objetivos específicos

Entender, em uma perspectiva histórica as estratégias de governo de “pobrezas”.

Conhecer os repertórios linguísticos sobre pobreza e políticas públicas presentes em diferentes tempos históricos.

Descrever as principais versões de pobreza do Programa Bolsa Família.

Compreender os modos de funcionamento das redes heterogêneas ao performar as políticas públicas de enfrentamento à pobreza contemporânea.

1.6

DOS

PROCEDIMENTOS:

OBSERVAÇÃO,

CONVERSAS,

ENTREVISTAS E ANÁLISE DE DOCUMENTOS PÚBLICOS

Uma das opções metodológicas desta pesquisa está baseada na noção de “campo-tema” proposta por Spink, P. (2003a), em que o campo não é um lugar ou objeto especifico que se vai pesquisar, mas se refere à processualidade de temas situados, à justaposição de materialidades e socialidades e a uma complexa rede de sentidos que se interconectam nesse processo. Portanto, seguindo essa abordagem, ao escolher o tema de pesquisa já estamos no “campo”, e somente precisamos saber escolher as maneiras de estar nele para, como orienta Spink, P. (2003a, p. 37) “[...] conversar com as socialidades e materialidades em que buscamos entrecruzá-las, juntando fragmentos para ampliar vozes, argumentos e possibilidades [...]”.

(31)

No Quadro 1 estão detalhadas as fontes usadas para alcançar os objetivos específicos da pesquisa.

QUADRO 1 - Objetivos específicos e fontes

Objetivos específicos Fontes

Entender, em uma perspectiva histórica as estratégias de governamentalidade de “pobrezas”.

 Fundamentos teóricos epistemológicos do Construcionismo Social, Ontologia

Política; Governamentalidade.

Conhecer os repertórios linguísticos presentes em documentos públicos sobre políticas de enfrentamento à pobreza.

 Documentos públicos sobre política social de enfrentamento à pobreza,

transferência de renda – Programa Bolsa Família.

Descrever como as materialidades e socialidades que compõem as redes heterogêneas produzem múltiplas versões de “pobrezas”.

 Observação dos atendimentos de cadastramento e recadastramento do Programa Bolsa Família;

 Comentários das atendentes;

 Conversas com gestores do Programa Bolsa Família.

Compreender quais versões de pobrezas circulam na população beneficiária do Programa Bolsa Família.

 Entrevistas com beneficiários do Programa Bolsa Família.

Fonte: Jacy Corrêa Curado, 2012.

(32)

pesquisadas foram ex-alunas desse estágio supervisionado. Esses vínculos facilitaram o acesso às unidades do Programa Bolsa Família e a obtenção de autorizações e consentimentos necessários para a realização da pesquisa.

As observações dos atendimentos foram realizadas na sala de cadastramento do Programa Bolsa Família na sede da Secretaria Municipal de Assistência Social e nos CRAS-Vida Nova e CRAS-Vila Nasser, situados em dois distantes bairros periféricos do Município de Campo Grande.

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QUADRO 2 - Procedimentos realizados: observação, conversas, entrevistas e análise de documentos públicos

Procedimento Fontes Local (mês/ano) Período

Observação 120 atendimentos de cadastramento/ recadastramento do Cadastro Único

 Secretaria Municipal de Assistência Social

 CRAS-Vida Nova

9/2010

Conversas com gestores

5 gestoras 3 psicólogas

 Secretaria Municipal de Assistência Social

 CRAS-Vida Nova

 CRAS-Vila Nasser

9/2010 4/2011

Entrevistas com

beneficiárias 10 entrevistas gravadas com beneficiárias do Programa Bolsa Família

 CRAS-Vila Nasser 4/2011

Documentos

públicos Diversos documentos entre relatórios, boletins, atlas, informativos, manuais de

treinamento, formulários.

 Site do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – Programa Bolsa Família

 Boletim do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome

 Informativo do Sistema Único da Assistência Social

 Boletim do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Brasil

 Comunicado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

 Relatórios Desenvolvimento Humano – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

 Atlas Desenvolvimento Humano – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

 Manual de Treinamento do Programa Bolsa Família – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome

 Formulários do Cadastro Único para programas sociais

9/2010 4/2011

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A observação dos atendimentos foi realizada na sala de cadastramento do Programa Bolsa Família na sede da Secretaria Municipal de Assistência Social e nos CRAS-Vida Nova e CRAS-Vila Nasser, situados em dois distantes bairros periféricos do Município de Campo Grande.

Na Secretaria Municipal de Assistência Social, a sala de cadastramento contava com seis baias, três de cada lado, com computadores e cadeiras na frente, para os beneficiários se sentarem. No CRAS-Vida Nova, a atendente estava localizada dentro da sala de outros profissionais separada por um armário, na frente da porta de entrada. Na Secretaria Municipal de Assistência Social, a pesquisadora sentou em uma pequena cadeira giratória atrás das atendentes, e no CRAS sentou em uma cadeira ao lado da mesa de atendimento. Importante ressaltar que as atendentes na época não eram necessariamente profissionais com perfil da área social, pois foram contratadas por prestação de serviço pelo período de um ano, em que o grau de escolaridade exigido era do Ensino Médio completo. Nessa fase, não foi realizado contato direto com os beneficiários do programa. Um termo de autorização para a realização da pesquisa foi assinado pela Secretária Municipal de Assistência Social.

No período de observação, acompanhamos 120 atendimentos entre preenchimento de cadastro, recadastramento, verificação de cancelamento e bloqueio do benefício. A observação foi realizada durante quinze dias, sendo dez dias consecutivos na Secretaria Municipal de Assistência Social nos períodos matutino ou vespertino, e outros cinco dias no CRAS-Vida Nova, no período matutino. Dos registros, a maioria foram os da Secretaria Municipal de Assistência Social, por possuir maior fluxo de atendimentos aos beneficiários do programa de todo o município. Dessas observações foram elaborados relatórios de campo com os 120 atendimentos, que apresentamos no Quadro 6, Apêndice B, em que estão sistematizadas em casos, conversas e cenas que serão usadas nas seções da Parte II da tese.

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Termo de Consentimento Livre e Esclarecido somente para as conversas mais estruturadas que se assemelharam a uma entrevista. Conversamos com quase todas as gestoras da equipe central do Programa, como a coordenadora do Programa Bolsa Família, Coordenadora da Política de Atenção Social Básica, coordenadora de planejamento, assessora da secretária, psicólogas, assistentes sociais e atendentes que trabalham na sede da Secretaria Municipal de Assistência Social. As conversas ocorreram em diversos momentos da pesquisa, na primeira fase, em setembro de 2010, no processo de solicitação de autorizações para a realização da observação dos atendimentos na Secretaria.

Na segunda fase, em abril de 2011 foram realizadas conversas com coordenadores, psicólogas, assistentes sociais e atendentes dos CRAS-Vila Nasser e CRAS-Vida Nova. Assim como Menegon (2004, p. 216) acreditamos que as conversas podem adquirir o status de um recurso metodológico por expressar de maneira peculiar à interação dialógica no cotidiano dos atores de uma pesquisa, podendo ser compreendida como linguagem em ação, pois “[...] conversar é uma das maneiras por meio das quais as pessoas produzem sentidos e se posicionam nas relações que estabelecem no cotidiano [...]”.

As entrevistas assumem nessa pesquisa um valor simétrico a de um documento, notícia de um boletim, conversa ou comentário escutado durante a observação. As falas das beneficiárias trazidas pelas entrevistas fazem parte das redes heterogêneas caracterizando-se como mais um ator que produz “pobrezas” e é produzido por ela. As noções de pobreza, do pobre e das portas de entrada e saída do programa que circulam entre os beneficiários compõem e formatam essa maneira de fazer políticas públicas de enfrentamento à pobreza contemporânea. Se ouvíssemos outras falas, essa política ou programa não seria o mesmo. Em suma, a entrevista aqui é usada como uma prática discursiva que se constitui em mais um elemento que compõe as redes heterogêneas de “pobrezas” (PINHEIRO, 2004).

(36)

pesquisadora. Foram elaboradas quatro perguntas que buscavam conhecer as noções de pobre e pobreza e as informações que circulam sobre o Programa Bolsa Família entre os beneficiários: 1ª) O que é pobreza?; 2ª) Quem é pobre para o Programa Bolsa Família?; 3ª) Conhece quais são os critérios, cálculos e valores usados para ser incluída no Programa Bolsa Família? (porta de entrada); 4ª) Quando é cancelado um benefício do Programa Bolsa Família? (porta de saída).

As beneficiárias não demonstraram constrangimento ao responder as perguntas, contudo apresentaram preocupações sobre uma possível alteração ou cancelamento do recebimento do benefício em função da participação na pesquisa. Com o esclarecimento de que a pesquisa possuía interesses acadêmicos e não de avaliação do programa pelo governo, esses medos foram diluídos. O Quadro 5, Apêndice B, apresenta todas as respostas às perguntas realizadas nas entrevistas, e que foram usadas em diversos momentos da parte II desta tese. Estavam previstas mais entrevistas no CRAS-Vida Nova, mas no inicio do mês de maio de 2011, semana agendada para a pesquisa, as atividades de cadastramento do Programa Bolsa Família foram suspensas nacionalmente para ajustes e implantação de uma nova versão do Cadastro Único e o lançamento no inicio de junho de 2011 do Programa “Brasil sem Miséria” que entrelaça ações com o Programa.

O uso das fontes de documentos públicos em uma tese de Psicologia Social, como alerta Spink, P. (2004a, p. 125) “[...] tem servido no máximo para ambientar ou contextualizar o trabalho, mas raramente é seu foco [...]”. Nessa pesquisa, os documentos públicos não são o foco e nem o único procedimento, mas as notícias e informações sobre “pobrezas” trazidas por esses documentos atuam na produção e compõem as redes heterogêneas de “pobrezas” contemporâneas.

(37)

Assistência Social, o boletim do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento/Brasil, e outras redes como Basic Income Network, a rede Make Poverty, e ainda a impressa virtual e impressa.

É importante ressaltar que, na realização da pesquisa, foram resguardados todos os procedimentos formais exigidos pelo Conselho Nacional de Saúde, por meio da Resolução n. 196, de 10 de outubro de 1996, e pelo Conselho Federal de Psicologia, por meio da Resolução n. 016, de 20 de dezembro de 2000 (BRASIL, 1996, 2000). O projeto de pesquisa foi submetido à apreciação e autorização do Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Secretaria Municipal de Assistência Social de Campo Grande, MS, e todos entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido elaborado para esta pesquisa (ANEXO A, APÊNDICE A).

1.7

ORGANIZAÇÃO DO TEXTO DA TESE

O texto apresentado nessa tese está organizado em seis capítulos distribuídos em duas partes: Parte I: O Governo de Pobrezas nos Diferentes Tempos Históricos; e a Parte II: As Políticas Públicas Performam “Pobrezas” Via Redes Heterogêneas: O Programa Bolsa Família em Ação!

A Parte I:

No Capitulo 2, A Polissemia de Sentidos da Pobreza, apresentamos os repertórios linguísticos em diferentes tempos históricos, fazemos uma breve demonstração da polissemia de sentidos da pobreza, dos primeiros usos da palavra no mundo bíblico no Século X a.C., ao fenômeno da nova pobreza na contemporaneidade.

(38)

referências marcantes na sua historiografia em que identificamos distintas posições sobre a relação entre trabalho e proteção social ao pobre, assim como a mundialização do combate à pobreza.

No Capítulo 4, A Pobreza nas Políticas Públicas Contemporâneas, trazemos o debate contemporâneo sobre as políticas públicas no marco do neoliberalismo e da desregulamentação da proteção social. O enfrentamento à pobreza nas políticas públicas contemporâneas permite discutir a profunda mudança que leva do paradigma da universalidade das políticas sociais da era dos direitos para o de programas mitigadores, setorializados e focalizados. Isso ocorre principalmente por meio de uma desconstrução simbólica e ideológica dos sistemas de seguridade social, o que caracteriza a metamorfose da questão social (CASTEL, 2003), e o processo de reconversão da pobreza (IVO, 2008). Ainda neste capitulo discutimos a noção de transferência de renda direta e as concepções de renda básica e renda mínima que assumem o formato de imposto de renda negativo. Uma breve contextualização histórica das políticas públicas de enfrentamento à pobreza no Brasil é esboçada para apresentar o Programa Bolsa Família, como uma modalidade dessa política, que por meio de seu marco legal e institucional e as terminologias adotadas marcam importantes posicionamentos políticos de governo da pobreza.

Na Parte II:

Iremos olhar as políticas públicas de enfrentamento à pobreza de uma forma mais líquida, fluída e contingencial do que de costume. Nessa pesquisa, as versões de “pobrezas” apresentadas, não existiam a priori, contudo foram construídas no desenrolar do processo das observações, conversas, entrevistas, leituras dos documentos sobre o Programa Bolsa Família. São as que apresentaram maior estabilidade durante o período da realização da pesquisa, todavia, estão suscetíveis às mudanças, novas configurações a qualquer alteração de um dos componentes das redes heterogêneas.

(39)

apresentação de versões de pobrezas produzidas por meio de vínculos e articulações dos elementos humanos e não-humanos nas ações do Programa Bolsa Família.

O Capitulo 6, A Pobreza Calculada: a Pobreza Vira Estatística!, traz os medidores de pobreza que compõe os indicadores e índices e linhas de pobreza que circulam nos relatórios, documentos e metas governamentais em uma intrincada dança de números que disputam os espaços nos rankings de desenvolvimento do mundo globalizado, assim como no próprio Programa Bolsa Família.

Cadastros e documentos são atores centrais nas políticas sociais contemporâneas, e tem sido as materialidades preferenciais usadas para se definir quem é o “pobre” que será ou não incluído como beneficiário ou usuário de uma política social. No Capitulo 7, Pobreza Cadastrada: Não Sem Documentos!, focalizamos o uso do Cadastro Único, que é o instrumento utilizado para coleta de dados e informações que objetiva identificar todas as famílias de baixa renda existentes no país para fins de inclusão em programas de assistência social e redistribuição de renda, e a documentação apresentada pelos beneficiários no momento de seu preenchimento.

No Capitulo 8, A Pobreza Controlada: a Informatização do Controle!, descrevemos as formas de controle relativas principalmente ao controle do benefício da renda (critérios de acesso, bloqueio, cancelamento e fiscalização dos dados cadastrais) e das condicionalidades, como a frequência escolar, a vacinação das crianças e pré-natal, observadas durante o atendimento do cadastramento, das entrevistas com beneficiários, conversas com gestores, além das informações no site e dos documentos públicos do Programa Bolsa Família.

(40)
(41)

PARTE I

(42)

“A riqueza e pobreza são convenções.” Victor Hugo (1802-1885).

Os sentidos polissêmicos da pobreza parecem inesgotáveis, o que nos leva a pensar ser uma noção que, apesar de antiga, ainda se encontra em construção, com alguns consensos e estabilidades, mas passível de disputas e discussões sobre seus sentidos, conceitos e definições.

Dentre os usos contemporâneos apontamos para a emergência de uma nova pobreza, que se caracterizaria por indivíduos que se sentem perdidos e desmembrados dos conjuntos coletivos, se tornando isolados e com déficit de integração. Nessa nova ordem social, o retrato da pobreza não pode mais se limitar aos mendicantes, desamparados, miseráveis, vagabundos como os do tempo longo da história, mas todos juntos caracterizam a polissemia de sentidos da pobreza com seus repertórios linguísticos de diferentes tempos históricos.

Trataremos a população “pobre”, não como um conjunto de indivíduos infortunados, excluídos, vulneráveis e sim como um campo de intervenção e objeto da técnica de governo, como manifestação de governamentalização do Estado Moderno, em sua relação com o trabalho e a proteção social ao pobre, assim como com a mundialização do combate à pobreza.

Situamos o debate contemporâneo sobre as políticas públicas de enfrentamento à pobreza no marco do neoliberalismo, da desregulamentação da proteção social, da precarização do trabalho e seus efeitos na formatação da política social atual, apontando para a profunda mudança que leva do paradigma da universalidade das políticas sociais da era dos direitos ao de programas mitigadores, setorializados e focalizados, principalmente por meio de uma desconstrução simbólica e ideológica dos sistemas de seguridade social.

(43)

2

A POLISSEMIA DE SENTIDOS DA POBREZA

Na abordagem das práticas discursivas e produção de sentidos, os fatos se desenrolam por meio de histórias desde o seu nascimento. Tais histórias deixam evidentes que qualquer fato nunca está dado a priori, e outras possibilidades deixam de se fazer presentes no decorrer do tempo, o que apontaria para os “vencidos da história”, os desacreditados, indicando que houve diversas e plurais possibilidades no passado que poderiam ter sido, mas que desapareceram.

No Quadro 7, Apêndice B, localizamos a pobreza nos diferentes tempos históricos. Todas essas noções de pobrezas podem até coexistir, mas muitas que foram dominantes em determinado período histórico já deixaram de ser na atualidade. Certamente, a noção religiosa da pobreza não é a mesma vinculada aos cálculos de renda, acessibilidade e vulnerabilidade dos programas sociais atuais, mas se encontra nas práticas de caridade.

No posicionamento crítico-político da psicologia social discursiva, a questão não seria perguntar ingenuamente se a pobreza deve ou não existir, se é ou não uma construção social ou linguística, mas como as práticas discursivas constituem caminho privilegiado para entender a produção de sentidos no cotidiano, o que implicaria abordar linguagens sobre “pobrezas” expressas em diversos contextos das produções sociais.

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um fenômeno social podem mudar radicalmente em diferentes contextos históricos, ou em uma mesma situação podem competir entre si e criar versões distintas e incompatíveis acerca de um fenômeno (SPINK; MEDRADO, 2004).

Neste capitulo, apresentamos os repertórios linguísticos de diferentes tempos históricos que compõem a polissemia da pobreza para seguirmos nossos estudos sobre o governo da pobreza no contexto das políticas púbicas.

2.1

REPERTÓRIOS LINGUÍSTICOS DA POBREZA EM DIFERENTES

TEMPOS HISTÓRICOS

Um dos principais desafios dos estudos e pesquisas sobre pobreza é compor um retrato de sua polissemia, pois, mesmo sendo uma noção antiga e bastante conhecida, ela ainda se encontra aberta a novos sentidos que variam de acordo com contextos e situações que vão desde a “pobreza em cristo” e a “pobreza laboriosa” à nova pobreza dos cálculos, cadastros das políticas públicas atuais, o que torna uma tarefa difícil de empreender se tivéssemos a pretensão de historiar ou dissecar a pobreza em sua ilimitada abrangência.

Contudo, vamos apresentar nesta seção os repertórios linguísticos como unidade de construção das práticas discursivas que possuem raízes no tempo longo da história que estão presentificados nos tempos curto e vivido por meio dos documentos de domínio público, dicionários, artigos acadêmicos, livros e dos bancos de dados, além das observações em campo, entrevistas e conversas usados como referenciais bibliográficos para esta pesquisa.

Os tempos longo, curto e vivido da história estão dispostos em vários momentos da redação desta tese, na contextualização das políticas públicas, na análise de documentos públicos e nas vozes das beneficiárias e gestoras do programa Bolsa Família.

(45)

políticas públicas. A polissemia aqui é entendida como a propriedade que uma palavra possui de representar ideias diferentes, o que nos permite transitar por inúmeros contextos e vivenciar variadas situações.

Ao focalizarmos o estudo nas práticas discursivas vamos trabalhar baseados em uma abordagem de Bakhtin (1994), com seus elementos dinâmicos, como nos enunciados orientados por vozes, nas formas (os speech genres) e nos conteúdos (os repertórios linguísticos). A opção pelos repertórios linguísticos é por serem considerados entidades teóricas muito mais fluídas, muito mais flexíveis que as representações sociais. As representações são trabalhadas como teorias, como formas compartilhadas de associar repertórios. Consequentemente, quem trabalha com representação social, por definição, trabalha num nível mais estrutural do que quem trabalha com práticas discursivas. Ao trabalhar práticas discursivas partimos do pressuposto de que esses conteúdos associam-se de uma forma em determinados contextos e de outras formas em outros contextos. Os repertórios são colocados em movimento nos processos de interanimação dialógica que, nas teorizações de Bakhtin (1994) integram as unidades básicas da linguagem e da comunicação. Esse conceito seria útil para entendermos a variabilidade usualmente encontrada nas comunicações cotidianas que, segundo Spink, M. (2004, p. 46) são “[...] os termos, os conceitos, os lugares-comuns e as figuras de linguagem que demarcam o rol de possibilidades de construções de sentidos [...]” e circulam na sociedade de formas variadas, apresentando uma diversidade de conteúdos e uso.

Reconhecemos que os repertórios linguísticos são culturalmente construídos, o que implica retomar a linha histórica para entender os sentidos a eles atribuíveis, o que nos leva a trabalhar a questão do tempo. Nosso interesse é retomar a inscrição histórica dos repertórios para compreender os sentidos em um diálogo contínuo entre os novos e antigos, onde os sentidos do passado podem sempre ser recapitulados e revigorados assumindo outras formas e contextos.

(46)

Assim os contextos discursivos podem ser trabalhados em três tempos históricos: o tempo longo, que marca os conteúdos culturais, definidos ao longo da história da civilização; o tempo vivido, das linguagens sociais; e o tempo curto, marcado pelos processos dialógicos.

O tempo longo seria o domínio da construção social dos conteúdos culturais que formam os discursos de uma dada época. Segundo Spink e Medrado (2004, p. 51),

[...] é nesse tempo histórico que podemos apreender os repertórios disponíveis que serão moldados pelas contingências sociais de época, constituindo as vozes de outrora que povoam nossos enunciados [...].

O tempo longo é o espaço dos conhecimentos produzidos e reinterpretados por diferentes domínios de saber como a religião, ciência, conhecimentos e tradições do senso comum que antecedem a vivência da pessoa, mas que estão presentes por meio de instituições, modelos, normas, convenções que permeiam nosso cotidiano e nossas práticas discursivas. Contudo, segundo os autores, não o temos como teorias ou acontecimentos, como no passado, pois muitos já perderam razão de ser, mas o temos como fragmentos, repertórios entendidos como um passado presentificado, como “[...] construções que alimentam, definem e ampliam os repertórios de que dispomos para produzir sentidos [...]” (SPINK; MEDRADO, 2004, p. 52).

(47)

2.2

OS RETRATOS HETEROGÊNEOS DAS “POBREZAS”

Um dos primeiros usos da palavra pobreza, segundo a Encyclopedia of World Poverty (2006), foi no mundo bíblico no Século X a.C. ao se referir a camponeses que eram forçados a vender suas terras para os proprietários (referring to landowners who forced peasants to sell land) (ODEKON, 2006). O pesquisador francês M. Mollat, em seu livro A Pobreza na Idade Média (1989), descreve que essa expressão é originalmente latina e comum ao Ocidente, diversificando-se nas línguas vulgares a partir do Século XIII e seria uma evolução semântica das palavras latinas “paupertas” e “pauper”.

Na Idade Média, encontramos repertórios linguísticos marcados pela caridade religiosa que predominou hegemonicamente até o Século XVI (MOLLAT, 1989), passando pela trajetória da ajuda ao próximo da sociabilidade primária à participação do Estado na formação de políticas sociais após o Século XVII (CASTEL, 2003). A Idade Média é considerada pelos estudiosos, o período em que se verificaram as grandes transformações que marcaram a noção moderna de pobreza. Para Mollat (1989, p. 2) “[...] o pobre aparece primeiro como adjetivo; depois como substantivo e por último, na forma plural [...]”, e comenta ser a pobreza uma noção que se compõe de realidades sociais intrincadas e dinâmicas, sendo difícil a apreensão das relações entre o conceito e as relações vividas.

Segundo Geremek (1987, p. 7), estudar a pobreza não é tarefa simples, pois, “[...] em épocas diferentes, muda a função principal da imagem do pobre, altera-se a ordem dos valores em que ele está inscrito, modifica-se a avaliação ética e estética dessa personagem [...]”. O autor analisa que conceitos como a pobreza são construções teóricas que servem de instrumento para pensar e ordenar os fatos, elaborando imagens sintéticas e penetrando nas divisões estruturais da sociedade.

(48)

também os “pobres merecedores”, que seriam os incapazes de trabalhar e os nobres empobrecidos, e os “não-merecedores”; todos que possuíam, ainda que mínima, capacidade para desenvolver alguma atividade laborativa e não o faziam. Existia uma rigorosa distinção entre os incapazes de trabalhar, que devem ser assistidos, dignos de piedade, e os vagabundos, que mereceriam ser reprimidos (CASTEL, 2003; ODEKON, 2006). O mendigo era tolerado e o vagabundo odiado, definido pela ausência de domicilio, que mora em toda parte, lugar e sem moralidade. A linguagem distingue ainda os “pobres” verdadeiros de mendigos indignos, os pobres pacíficos de pobres temíveis, os refratários ao trabalho dos falsos mendigos, que se confundiam sob o apelativo genérico de miseráveis (CASTEL, 2003).

2.2.1

Os pobres de Cristo

A imagem do pobre da pastoral cristã era de um magro, cego, chagado, frequentemente coxo, pedindo esmola de porta em porta, à entrada das igrejas, na via pública (MOLLAT, 1989).

Referências

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