Valter Alnis Bezerra Departamento de Filosofia FFLCH-USP
II Ciclo de Palestras Filosofia e Ciência Hoje Unisinos 2014
Racionalidade científica
A história da ciência nos apresenta as
narrativas de uma incessante
transformação nas
estruturas conceituais da ciência, em seus vários níveis de
organização.
Mas a mudança não ocorre somente nos níveis propriamente teóricos/conceituais...
Critérios de escolha teórica mudam.
Exemplos:
Admitir teorias que fornecem explicações qualitativas (filosofia natural antiga); depois, exigir previsões
quantitativas testáveis
Favorecer teorias formuladas dentro de um quadro mecanicista (séc. XVII)
Preferir teorias dinâmicas modeladas sobre a mecânica newtoniana (séc. XVIII)
Preferir teorias de campo que sejam renormalizáveis
(i.e. que possuem determinadas características que as tornam aptas para passar por um processo, inicialmente
matematicamente arriscado, que remove as previsões de valores infinitos para certas grandezas) (séc. XX, 2ª metade)
Contingência histórica
Imagem de fundo: Greiner & Muller,Gauge theory of weak interactions
Critérios de escolha teórica podem ser ambíguos.
Exemplos:
Simplicidade teórica
Presença de elementos ad hoc
Potencial heurístico
Beleza da teoria
Imagens: Cohen, The birth of a new physics
(O cosmos de 55 esferas de Aristóteles:
simples ou complexo?)
Imagem: Hanson, Constellations and conjectures
Exemplares para a solução de problemas mudam.
Compreender forças, fluidos, luz como feixes de
corpúsculos materiais (XVII-XVIII); ou como ondas; depois, compreender tudo isso em termos de campos (XIX-XX)
Interação por contato (colisão) (XVII-XIX)
Vórtices (XVII, XIX)
Oscilador harmônico (a partir do XIX)
Regras metodológicas outrora aceitas caem.
Exemplos:
Não aceitar hipóteses sobre inobserváveis (XVII)
Preferir teorias formuladas indutivamente (XVIII-XIX)
Só aceitar teorias determinísticas (XVII-XIX)
Preferir teorias que analisem os sistemas de maneira reducionista (XVII-XX)
Só aceitar teorias astronômicas que respeitem o
axioma platônico (movimentos circulares e uniformes) (IV aC-XVII dC)
Basear a ciência em princípios necessários (idem)
Novas regras metodológicas aparecem.
Exemplos:
Experimentação controlada (a partir do XVII)
Princípio de superposição (ondulatória, MQ)
Princípio de correspondência (na antiga TQ)
Geometrização (dois momentos: XVII, XIX-XX)
Princípio variacional (XVIII-XXI)
Requisito da covariância relativística (XX-XXI)
Imagem: Boyle, New experiments physico-mechanicall, touching the spring of air, and its effects (1660)
Pressupostos metafísicos se alteram.
Exemplos:
Ontologia de matéria-e-movimento (séc. XVII)
Harmonia matemática do cosmos (Kepler)
Campos (séc. XIX-XX)
Modelo padrão: Léptons, quarks e bósons (anos 60 em diante)
Não existem partículas elementares! (2ª. metade XX)
Complementaridade partícula-onda
Espaço-tempo (Minkowski)
Valores (cognitivos ou sociais) mudam.
Exemplos:
Alguns caem:
Certeza
Auto-evidência
Autoridade das Escrituras e dos patrísticos
Outros emergem:
Controle da natureza (a partir do XVII)
Promoção da sustentabilidade
Rejeição a distinções raciais substantivas
Valores são depreciados.
Exemplos:
Consistência - enfraquecido na renormalização em teoria do campo, no átomo de Bohr-Sommerfeld, na teoria BKS, e em vários modelos “semiclássicos” em química e física
Contingência histórica
Diante dessa ciência em fluxo, que alternativas se colocam?
(1)
Formular um critério de demarcação nítido queexclui todo um grande campo do âmbito da ciência, e ater-se a um cânone restrito de racionalidade.
(2)
Relegar a maioria das variâncias mencionadas a um“contexto da descoberta”, ou a fatores “sociológicos”, e considerá-lo ou como não suscetível de análise
racional, ou como “desvio” da racionalidade.
Invariância filosófica
Alternativas (continuaçã0)
(3)
Aceitar acriticamente que tudo que a ciência faz é racional; assim, adotar a teoria da racionalidade mais abrangente, capaz de abarcar a maior porção possível da ciência.(4)
Buscar uma concepção de racionalidade nuançada e flexível a ponto de poder acomodar a maioria dessas variâncias, encontrando-lhes o justo lugar, porém não de forma indiscriminada, e sim preservando certopotencial normativo.
Invariância filosófica
Uma teoria filosófica da racionalidade científica parte do pressuposto de que é possível tomar atitudes cognitivas racionais (e distingui-las das irracionais) mesmo diante de uma imagem de conhecimento caracterizada pelo falibilismo (impossibilidade de conhecimento certo) e em situações afetadas pela incerteza cognitiva ou informação incompleta.
(baseado em J. R. N. Chiappin & A. C. Leister)
Invariância filosófica
Elementos centrais de uma concepção de racionalidade
(1) Distinção entre registros de análise
Método (meta+hodos)
Metodologia (teoria do método)
Metametodologia
Descrição “cinemática” da ciência
Descrição “dinâmica” da ciência
Teoria filosófica da racionalidade – Conexão com justificação epistêmica
Invariância filosófica
Teorização
Mudança científica
Muitas discussões clássicas, supostamente versando acerca da racionalidade, transcorrem nos níveis iniciais dessa hierarquia de teorização, não propriamente no nível da racionalidade.
Invariância filosófica
Elementos centrais de uma concepção de racionalidade (cont.)
(2) Adequação instrumental meios- fins
Condicionamento recíproco (não-hierárquico) – reticulação
Necessidade de alargamento do horizonte axiológico
Invariância filosófica
Laudan
Elementos centrais de uma concepção de racionalidade (cont.)
(3) Campo organizador
Coerência epistêmica
Coerência como questão de grau
Noção mais ampla do que a mera ausência de inconsistências lógicas
Invariância filosófica
Neurath Thagard
Coerência epistêmica
Certos fatores podem encorajar, incrementar ou
contribuir para a coerência, estreitando os vínculos, mas não constituem condições necessárias nem suficientes para a coerência.
Por exemplo:
conexões interteóricas (e até interdisciplinares) de
transferência de informação entre elementos teóricos formando hólons teóricos;
especializações e teorizações dentro de redes teóricas;
a coerência probabilística e relações de plausibilidade;
relações de analogia e aproximação;
a ausência de bolsões autosuficientes, isolados, dentro do sistema;
Invariância filosófica
etc...
Elementos centrais de uma concepção de racionalidade (cont.)
(4) Dimensão axiológica
Valores cognitivos
Valores sociais
Invariância filosófica
Lacey Laudan
Dimensão axiológica
Os valores sociais proporcionam uma plataforma para atender a um desafio cuja solução tem sido
longamente buscada pela filosofia da ciência –
compreender de que maneira a ciência é socialmente (além de cognitivamente) condicionada.
Os valores são fatores dinâmicos da mudança
científica – juntamente com a solução de problemas, os temas (à maneira holtoniana) e as imagens de
natureza (pressupostos metafísicos) –
porém, mais do que isso, eles estão inscritos na
própria definição de conhecimento e no mecanismo de justificação epistêmica.
Invariância filosófica
Falseacionismo, metodologia dos programas de pesquisa, ciência normal, solução de problemas, existência ou não de revoluções...
...são elementos que pertencem aos níveis de análise metacientífica prévios ao nível das teorias da racionalidade.
Invariância filosófica
(1) Distinção entre registros de análise
Método (meta+hodos)
Metodologia (teoria do método)
Metametodologia
Descrição “cinemática” da mudança científica
Descrição “dinâmica” da mudança científica
Teoria filosófica da racionalidade
Indispensáveis em uma imagem
filosófica de ciência plenamente
articulada, porém cada um em seu escopo.
Se a análise filosófica ainda deseja buscar invariantes na racionalidade científica — em meio à avalanche de pluralidade e variabilidade dos critérios, padrões, valores e metodologias que a história e a sociologia da ciência nos colocam (aliás sobejamente documentadas)...
... ela acaba por descobrir que o que resta de invariante é a estrutura, a forma da racionalidade, ao passo que
seu conteúdo, sua configuração específica, transformam- se sem cessar ao longo do tempo.
Desse modo pode-se falar em uma racionalidade sem pontos fixos.
Invariância filosófica
A estrutura, a forma da racionalidade se mantém a mesma, mas ela se manifesta diferentemente em diferentes referenciais cognitivos tal como acontece com a noção de covariância na teoria da relatividade.
“As leis da física devem possuir a mesma forma matemática em todos os diferentes sistemas de referência.”
“A racionalidade científica deve possuir a mesma
forma, a mesma estrutura, em diferentes referenciais cognitivos / epistêmicos”
Invariância filosófica
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