• Nenhum resultado encontrado

(Extractos do meu diário)

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "(Extractos do meu diário)"

Copied!
5
0
0

Texto

(1)

D

O AMOR

(Extractos do meu diário)

1917

Para que seja possível a completa harmonia das almas é necessária a harmonia da respiração, pois que é a respiração senão o ritmo da alma?

Assim, para que as pessoas se compreendam umas às outras, é necessário que caminhem ou se deitem uma ao lado da outra.

Nobreza do coração — do orgão. Uma vigi- lância permanente. É o primeiro a dar o alarme.

Poderia dizer: não é o amor que faz bater o meu coração, são as batidas do meu coração que en- gendram — o amor.

O coração: mais um orgão musical do que um

orgão fisiológico.

(2)

O coração: uma sonda, um corredouro, um di- namómetro, um termómetro: tudo — excepto o cronómetro do amor.

*

«Gosta de dois, isso significa que não gosta de ninguém!» — Desculpe, mas se, além de N., amasse Heinrich Heine, não diria que àquele, ao primeiro, não o amo. Significa que é possível amar ao mesmo tempo um vivo e um morto.

Mas imagine que Heinrich Heine ressuscitou e pode entrar em casa a qualquer momento. Eu sou a mesma, Heinrich Heine é o mesmo, a úni- ca diferença é que ele pode entrar em casa.

Assim: o amor por duas pessoas, cada uma das quais pode entrar em casa a qualquer mo- mento, não é amor. Para que o meu amor simul- tâneo por duas pessoas seja amor, é indispensá- vel que uma delas tenha nascido cem anos antes que eu ou que não tenha nascido de todo (um re- trato, um poema). — Uma condição que nem sempre é possível cumprir!

E no entanto uma Isolda que amasse alguém além de Tristão, é inconcebível, e o grito de Sa- rah (de Marguerite Gautier) 1 : «Oh! O Amor! O

1

Sarah Bernhardt

(Marguerite Gautier) em A dama das

Camélias

(1825), de Alexandre Dumas Filho.

(3)

Amor!» dirigido a alguém que não o seu jovem amigo é — ridículo.

Proporia uma fórmula diferente: uma mulher que não se esquece de Heinrich Heine no mo- mento em que o seu amado entra em casa, ama unicamente Heinrich Heine.

«Amado é — teatral, «amante» — sincero,

«amigo» — impreciso.

País sem amor!

Cada vez que sei que alguém me ama — sur- preendo-me, que não me ama — surpreendo- -me, mas surpreendo-me sobretudo quando sou indiferente a alguém.

Anciãos e anciãs.

Um ancião, escanhoado e esbelto, sempre um

tanto antiquado, sempre um tanto marquês. A

atenção que revela em relação a mim é mais

afagadora e inquieta-me mais que o amor de um

qualquer homem de vinte anos. Expressando-me

com exagero: experimento a sensação de que é

todo um século que me ama. Também a nostal-

gia pelos seus vinte anos, a alegria pelos meus,

e a possibilidade de ser generosa — e toda a im-

possibilidade. Béranger tem uma cançoneta:

(4)

Ce sont aussi des enfants À la voix séduisante

Mais hélas! vous n’avez que douze ans Et moi! j’en ai quarante

Dezasseis anos e sessenta anos não é em ab- soluto monstruoso e, sobretudo, não é em abso- luto ridículo. Em todo o caso, é menos ridículo do que a maior parte dos casamentos ditos

«iguais». A possibilidade de um autêntico pathos.

E a anciã, enamorada de um jovenzito, no melhor dos casos é — comovedora. Uma ex- cepção: as actrizes. Uma velha actriz — a mú- mia de uma rosa.

… «E entre eles existia este jogo. Ele canta- va-lhe — ela chamava-se Marusia, como deve ser — «Marusia oh, Marusia, fecha os teus olhos», e ela deitava-se sobre a cama, cobria-se com um lençol — como uma verdadeia morta.

Ele para ela: «Marusia! Não morras de vez! Ma- rusia! Não morras de verdade!» — E de cada vez ele chorava. Trabalhavam numa fábrica, ela tinha quinze anos, ele — dezasseis»…

(Relato da avó.)

— Que marido era o meu, queridas, mas que

marido!!! De humano só tinha a aparência. Não

(5)

comia nada, não fazia senão beber. Bebeu a mi- nha almofada, o meu cobertor esbanjou-o com mulheres. Tudo lhe parecia aborrecido, queri- das: trabalhar era aborrecido e sentar-se a tomar o chá comigo era aborrecido. Mas era bonito co- mo um demónio: os cabelos encaracolados, as sobrancelhas iguaizinhas, os olhos azuis… Há mais de quatro anos que desapareceu!

(A avó às suas amigas.) O primeiro olhar amoroso é a distância mais curta que há entre dois pontos, essa divina recta que não tem igual.

De uma carta:

«Se entrasse agora e dissesse: “Vou-me em- bora por muito tempo, para sempre”, ou: “Pare- ce-me que já não a amo” — creio que não senti- ria nada de novo: de cada vez que se vai embo- ra, cada hora em que não está — não está para sempre e não me ama.»

Nos meus sentimentos, como nos das crian- ças, não há graus.

A primeira vitória de uma mulher sobre um

homem é o relato do homem sobre o seu amor

por outra mulher. Mas a vitória definitiva é o re-

lato dessa outra mulher sobre o seu amor por

Referências

Documentos relacionados

Eu vim tentando mostrar que há algo porque há seres que são necessários, a saber, o espaço, o tempo e as leis naturais básicas; e, assim, não poderia haver nada. E que as

O trauma deixa de ser anterior ao sujeito, como queria Freud em sua concepção do mal estar, para ser aquilo que pode surgir como efeito do furo produzido

Com o objetivo de proporcionar um debate rico acerca do jogo de interesses geopolíticos por trás da Segunda Guerra Mundial, nós, diretores, decidimos ampliar as

Se tivesse um transporte, se não dependesse sempre só do carro, porque eu penso muitas fezes como será a minha vida daqui, quando eu for mais velha, que não me possa

A pergunta é: como igreja (clubes), o que estamos fazendo ou como estamos fazendo para que as pessoas sintam-se membros da Igreja, do corpo de Cristo. Como Igreja

Entrando para a segunda me- tade do encontro com outra di- nâmica, a equipa de Eugénio Bartolomeu mostrou-se mais consistente nas saídas para o contra-ataque, fazendo alguns golos

Com relação ao CEETEPS, o tema desta dissertação é interessante por se inserir no Programa de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA), sob a tutela da Coordenação de

Benetton (1999) apresenta o caráter de funcionalidade na Terapia Ocupacional como tendo sido assumido por muitos autores, pelos precurssores da profissão (Meyer, Simon e Schneider)