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DOUTORADO EM DIREITO DO ESTADO

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CONTROLES DAS AGÊNCIAS REGULADORAS

A participação-cidadã como limite à sua autonomia

DOUTORADO EM DIREITO DO ESTADO

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM DIREITO

NÍVEL DOUTORADO

CONTROLES DAS AGÊNCIAS REGULADORAS

A participação-cidadã como limite à sua autonomia

LUCAS DE SOUZA LEHFELD

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM DIREITO

NÍVEL DOUTORADO

CONTROLES DAS AGÊNCIAS REGULADORAS

A participação-cidadã como limite à sua autonomia

LUCAS DE SOUZA LEHFELD

Tese apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para

obtenção do título de DOUTOR em

Direito do Estado (Constitucional), sob a orientação da Profa. Dra. Maria Garcia.

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Banca Examinadora

____________________________

____________________________

____________________________

____________________________

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Dedicatória

A DEUS, por me acompanhar mais uma vez nessa importante etapa, sem deixar de me apoiar nos momentos mais difíceis.

Aos meus pais, pelo amor incondicional.

À Profa. Dra. Neide Aparecida de Souza Lehfeld, investigadora incansável, responsável por toda minha formação acadêmica. Espero retribuir a toda essa dedicação em breve.

À Profa. Dra. Maria Garcia, querida professora que me acolheu com respeito e carinho. Maestrina do conhecimento, cujas aulas jamais serão esquecidas em virtude da beleza e harmonia de sua condução.

À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e à CAPES, pelo apoio e prontidão aos meus requerimentos.

À Vivian Thomé e Castro, mulher que me trouxe maturidade para enfrentar as intempéries da vida. Não dedico apenas o meu apoio à sua formação acadêmica e profissional, mas todo o meu amor (futura esposa!).

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RESUMO

A instituição das agências reguladoras no Brasil revela o recente perfil regulador do Estado e suas dificuldades quanto à execução de obras e serviços públicos, sob à égide de uma gestão pública voltada para a eficiência. Após o Programa Nacional de Desestatização, na década de 90, formalizou-se uma mudança na mentalidade administrativa referente à sua intervenção no domínio econômico, com a transferência de bens e serviços do setor público para o setor privado. Essa alteração de papéis, de um Estado fomentador para fiscalizador e regulador, compreendeu a flexibilização do monopólio estatal, com as chamadas privatizações dos principais serviços públicos. A descentralização administrativa consistiu numa remodelação do sistema administrativo, que deixa de ser concentrada e passa a ser um modelo difuso, pela formação de pólos administrativos. O Poder Público concentra-se na elaboração de políticas regulatórias e, por meio de concessões, permissões e autorizações, transfere a execução dessas políticas à iniciativa privada. A presença das agências reguladoras, nesse processo de descentralização administrativa, acompanha uma concepção moderna da Teoria da Separação dos Poderes, em que há, por um lado, a centralização governamental nos Poderes Políticos (Executivo e Legislativo), aos quais cabem as atribuições de estabelecer políticas e finalidades da Administração Pública por meio de standards

normativos e, por outro, a efetiva consecução desses objetivos pela transferência das atividades decisórias e regulatórias às agências. No entanto, a ampla autonomia das agências para o exercício de suas competências, por si só, não garante a eficácia da regulação estatal. Na realidade, essa estabilização do processo regulatório, atualmente, apresenta dificuldades, pois enfrenta constante interferência do núcleo governamental devido especialmente ao tradicional controle hierárquico exercido na esfera do Poder Executivo. Por outro lado, a legitimação do modelo regulatório pressupõe outros tipos de controle juspolíticos e sociais. São notórias, ante ao processo de privatização, a prática de infrações a direitos individuais e coletivos dos usuários por parte das empresas privadas prestadoras de serviços públicos, como também as deficiências da regulação exercida pelas agências. Assim, a participação cidadã, no controle social desses órgãos estatais, consiste em elemento essencial para a eficácia dos instrumentos regulatórios adotado no País. Atribui-se importância fundamental à condição de cidadão do indivíduo, o qual deixa de ser mero dado estatístico das democracias formais, para se tornar protagonista de todo processo político, dividindo responsabilidades com a Administração Pública quanto ao trato da coisa pública. É nessa perspectiva que o presente trabalho, baseado em ampla pesquisa bibliográfica, busca estudar as agências reguladoras e seus controles político-institucionais e democráticos, formatados sob a orientação de princípios inerentes à Administração Pública no desempenho de seu perfil regulador contemporâneo.

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ABSTRACT

The institution of regulatory agencies in Brazil reveals the recent State regulating role and its difficulties regarding the execution of public services and investments, under the objective of a public administration towards efficiency. After the National Privatization Program, in the nineties, a change has been formalized in the public administration mentality about the interference in the economic dominium, with the transference of assets and services from the public to the private sector. This change in the State role, from a fomenting to a controlling and regulating agent, has included also the over ture of the state monopoly, with the so-called privatization of the main public services. The management decentralization consisted in remodeling the administrative system, from a concentrated to a much diffused model, by the formation of administrative groups. The Public Sector concentrates itself in elaborating regulatory policies and, by the means of concessions, permissions and authorizations, transfers to the private sector the execution of such policies. The presence of regulatory agencies, within this process of administrative decentralization, follows a modern concept of the Theory of Separated Powers (Executive and Legislative), those who must establish Public Administration policies and ends by normative standards and, the effective execution of these objectives, by transferring the decision and regulation function to the regulatory agencies. However, the wide autonomy of the regulatory agencies solely does not assure the state regulation efficacy. Actually, this stabilization of the regulation process, nowadays, shows difficulties as it deals with a constant interference of the governmental nucleon given specially to the traditional control made by the Executive Power. On the other side, the original recognition of the regulation model should consider other kinds of social, legal and political controls. It is known, considering to privatization process, several violation of individual and collective rights by private firms, which are responsible for the public services, as well as the deficiencies of regulatory agencies. Thus, the citizen participation in the social control of regulatory agencies should consist in an essential element to the efficacy of the regulation instruments adopted in the country. It is given a fundamental importance to a citizen condition as an individual, who should not be a trivial statistic data in a formal democracy, but to become a protagonist of the whole political process, sharing responsibilities with the Public Administration regarding the management of the public domain. In this perspective, this present work, based in a wide literature review, intends to study the regulatory agencies and their political, institutional and democratic controls, organized by the Public Administration principles, in the performance of its present regulation role.

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RESUMEN

La institución de las agencias reguladoras en el Brasil revela el reciente perfil regulador del gobierno y sus dificultades cuanto a la ejecución de obras y servicios públicos, con el comando de una gestión pública que tiene como prioridad la eficiencia. Después del Programa Nacional de Desestatización, en la década de 90, se formalizó un cambio en la mentalidad administrativa referente a su intervención en el dominio económico, con la transferencia de bienes y servicios del sector público para el sector privado. Ese cambio de papeles, de un gobierno fomentador para fiscalizador y regulador, comprendió la flexibilidad de los monopolios gubernamentales, con las llamadas privatizaciones de los principales servicios públicos. La descentralización administrativa consistió en una modificación del sistema administrativo, que deja de ser concentrada y pasa a ser un modelo difuso, por la formación de polos administrativos. El poder público se concentra en la elaboración de políticas regulatórias y por medio de concesión, permiso y autorización, transfiere la ejecución de esas políticas a la iniciativa privada. La presencia de las agencias reguladoras, en ese proceso de descentralización administrativa, acompaña una concepción moderna de la Teoría de la Separación de los Poderes, en que haya, por un lado, la centralización gubernamental, en los Poderes Políticos (Ejecutivo y Legislativo), a los cuales caben las atribuciones de establecer políticas y finalidades de la Administración Pública por medio de standards normativos y, por otro, la efectiva consecución de esos objetivos por la transferencia de las actividades de decisión y reguladoras a las agencias. Sin embargo la amplia autonomía de las agencias para el ejercicio de sus competencias, por si solo, no garantiza la eficacia de la regulación gubernamental. En realidad esa estabilidad del proceso regulador, actualmente presenta dificultades, pues, enfrenta constante interferencia del núcleo gubernamental debido especialmente al tradicional control jerárquico ejercido en la esfera del Poder Ejecutivo. Por otro lado, la legitimidad del modelo regulador presupone otros tipos de control juspolíticos y sociales. Son notorias, ante el proceso de privatización, la práctica de infracciones a los derechos individuales y colectivos de los usuarios por parte de las empresas privadas prestadoras de servicios públicos, como también las deficiencias de la regulación ejercida por las agencias. Así, la participación ciudadana, en el control social de ese órgano gubernamental, consiste en elemento esencial para la eficacia de los instrumentos reguladores adoptados en el País. Se atribuya fundamentalmente a la condición de ciudadano del individuo, el cual deja de ser mero dato estatístico de las democracias formales, para tornarse protagonista de todo el proceso político, dividiendo, responsabilidad con la Administración Publica cuanto al trato de la cosa pública. Es en esa perspectiva que el presente trabajo, basado en amplia encuesta bibliográfica, busca estudiar las agencias reguladoras y sus controles político-institucionales y democráticos, formados bajo la orientación de principios inherentes a la Administración Pública en el desarrollo de su perfil regulador contemporáneo.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12

CAPÍTULO I

O ESTADO: EVOLUÇÃO DO ESTADO. O ESTADO REGULADOR 20

Da Antiguidade ao Estado Regulador Contemporâneo: aspectos juspolíticos e econômicos

1.1 Origem e formação do Estado 20

1.1.1 Estado e sociedade 22

1.1.2 Cidades-Estado 26

1.2 O Império e sua transição para os feudos 30

1.2.1 Feudalismo e o pretenso Estado Medieval 36

1.2.2 Queda do Feudalismo e processo de criação dos Estados Modernos 37

1.3 A formação dos Estados Modernos 41

1.3.1 Marco histórico do surgimento dos Estados Modernos e

sua evolução político-econômica 43

1.3.2 O Estado Estamental (Ständenstaat) 44

1.3.3 Estado Absoluto 45

1.3.4 Estado Constitucional 49

1.4 A ordem econômica e o Estado constitucional 63 1.4.1 O Estado e sua dimensão liberal burguesa no século XIX 63 1.4.2 A crise do Estado liberal e a ideologia marxista 66

1.5 O Estado Regulador Contemporâneo Neoliberal 70

1.5.1 O modelo estatal intermediário: o Welfare State 70 1.5.2 O perfil regulador do Estado Contemporâneo Neoliberal 72

CAPÍTULO II

REGULAÇÃO 78

Teorias e princípios informadores da regulação e sua importância para

a concepção do Estado Regulador Contemporâneo

2.1 Considerações preliminares: análise do termo “regulação” 78

2.2 Teorias da regulação 82

2.2.1 Escola do Interesse Público 82

2.2.2 Escola Econômica da Regulação 86

(10)

2.2.2.2 Bens coletivos 89

2.2.2.3 Externalidades 91

2.2.2.4 Deficiências no acesso à informação 92 2.2.2.5 Desemprego, inflação e desequilíbrio de mercado 93 2.2.2.6 Críticas à Escola Econômica de Regulação 94 2.2.3 Regulação e proteção institucional da difusão do conhecimento 96

2.3 Princípios informadores da Regulação 100

2.3.1 Princípios e regras: considerações preliminares 100

2.3.2 Princípio do acesso necessário 105

2.3.2.1 Relacionamento entre concorrentes 105

2.3.2.2 Universalização: amplo acesso dos consumidores 110 2.3.3 Princípio da função social da propriedade dos meios de

acesso ao mercado 114

2.3.3.1Co-propriedade dos bens de acesso 117

2.3.3.2Compartilhamento dos bens de acesso 118

2.3.4 Direito antitruste e a “regra da razão” 123

2.3.5 Condutas em espécie 128

2.3.5.1 Negociação compulsória 129

2.3.5.2 Comportamento predatório 130

2.3.5.3 Colusão (teoria dos jogos) 131

2.4. Regulação econômica e o Estado Contemporâneo: os órgãos reguladores 133

CAPÍTULO III

AGÊNCIAS REGULADORAS 138

O Estado Regulador Contemporâneo e as agências reguladoras como representantes desse novo perfil perante a atividade econômica: a experiência norte-americana

3.1 O perfil do Estado regulador contemporâneo: considerações preliminares 138

3.2 Representantes do Estado Regulador Contemporâneo:

as agências reguladoras 148

3.2.1 Delimitação do tema 148

3.2.2 Origem das agências reguladoras: contribuição norte-americana

à configuração do Estado Regulador Contemporâneo 149 3.2.3 O instituto agency e sua relação com as agências 150 3.2.4 As fases de implementação das agencies nos EUA 155 3.3 Qualificação e classificação das agências norte-americanas 160

3.3.1 Classificação das agencies quanto ao âmbito de atuação 161 3.3.2 Classificação quanto à natureza das atividades 163

3.3.3 Classificação quanto à autonomia 165

3.3.4 Classificação quanto ao nível federativo 168

3.4 Autonomia das agências norte-americanas e seus controles 170

(11)

3.5.1 A questão da separação dos poderes 182 3.5.1.1 A teoria da separação dos poderes e sua

evolução interpretativa 183

3.5.2 Delegação legislativa 185

3.5.2.1 Atividade normativa das agencias reguladoras

norte-americanas 189

3.5.2.1.1 Classes de regulamentos 189

3.5.2.1.2 Procedimentos normativos 193

3.5.2.1.3 Principiologia inerente à atividade normativa 196

3.6 Delegação de competências jurisdicionais 202

3.7 Síntese da função reguladora nos EUA e sua repercussão na

introdução das agências reguladoras no Brasil 207

CAPÍTULO IV

PERFIL REGULADOR DO ESTADO BRASILEIRO E AS

AGÊNCIAS REGULADORAS 210

Reforma administrativa, privatizações e as agências reguladoras no Direito brasileiro.

4.1 Administração Pública: conceito e evolução 210

4.2 A Administração em países em desenvolvimento: indicativos comuns e

o caso brasileiro 214

4.3 Reforma administrativa do Estado Brasileiro 225

4.3.1 Reforma gerencial da Administração Pública brasileira de 1995 225 4.3.2 Reforma constitucional: a Emenda n° 19, de 04.06.1998 230

4.4 Modelos institucionais da Reforma Administrativa 236

4.4.1 Autarquias 238

4.4.2 Agências 239

4.4.3 Organizações Sociais 243

4.5 A intervenção do Estado brasileiro na economia 246

4.5.1 A crise do Estado brasileiro 246

4.5.2 Privatização e a Constituição Federal de 1988 252 4.5.3 Modalidades de intervenção estatal no domínio econômico 259 4.5.4 Serviço público como modalidade de atividade econômica 263

4.6 As agências reguladoras no Direito brasileiro 266

4.6.1 Natureza Jurídica 267

4.6.2 Autonomia 270

4.6.2.1 Autonomia orçamentário-financeira 272

4.6.2.2 Autonomia administrativo-funcional e a estabilidade

dos dirigentes, conselheiros ou diretores 274 4.6.3 Competência regulatória das agências reguladoras no Direito brasileiro 282

(12)

4.6.3.2 Poder jurisdicional (quase-judicial) 290

4.6.4 Agências reguladoras brasileiras em espécie 293

CAPÍTULO V

CONTROLES DAS AGÊNCIAS REGULADORAS NO BRASIL 297

Enfoque na participação cidadã como instrumento de controle da autonomia das agências reguladoras no País.

5.1 Considerações preliminares: concepção de controles juspolíticos

da autonomia das agências reguladoras 297

5.2. Democracia participativa: enfoque no exercício da cidadania como

instrumento de controle das agências reguladoras 304

5.3 Modalidades de participação cidadã e as agências reguladoras 313

5.3.1 Direito de informação e de petição 315

5.3.2 Audiências e consultas públicas 319

5.3.3 Ombudsman 323

5.3.4 Plebiscito, referendo e iniciativa de lei 328

5.3.5 Veto popular e recall: contribuições 334

5.3.6 Ação popular 337

5.3.7 Outras garantias constitucionais: Mandado de Segurança e

Habeas Data 350

5.3.8 Devido processo legal 355

5.4 Controles decorrentes da organização político-institucional do Estado 361

5.4.1 Controle pelo Poder Executivo 361

5.4.1.1 Contrato de gestão 363

5.5 Controle pelo Poder Legislativo 367

5.5.1 Tribunal de Contas 372

5.5.2 Comissões Parlamentares de Inquérito 375

5.6 Controle pelo Ministério Público 378

5.6.1 Ação civil pública 379

5.7 Controle pelo Poder Judiciário 381

5.7.1 Controle jurisdicional em sede de políticas públicas

instituídas pelas agências 382

5.7.2 Controle jurisdicional dos atos normativos 383 5.7.3 Controle jurisdicional sobre a intervenção regulatória

no domínio econômico privado 387

CONCLUSÕES 391

(13)

INTRODUÇÃO

A instituição das agências reguladoras no Brasil reflete o recente perfil regulador do Estado e suas dificuldades quanto à execução de obras e serviços públicos, sob a orientação de uma gestão pública caracterizada pela eficiência e voltada para resultados. Após o Programa Nacional de Desestatização, cujo marco normativo deu-se com a edição da Lei n° 8.031/90 (revogada pela Lei n° 9.491/97), formalizou-se uma mudança na mentalidade administrativa referente à sua intervenção no domínio econômico, com a “transferência de bens e serviços do setor público para o setor privado. Seu denominador comum é o de realizar de forma privada o que antes se fazia publicamente.”1

Essa alteração de papéis, de um Estado fomentador para fiscalizador e regulador dos setores da economia, compreendeu a flexibilização do monopólio estatal, com as chamadas privatizações dos principais serviços públicos, como energia elétrica, telecomunicações e derivados do petróleo. A descentralização administrativa provocou uma remodelação do sistema administrativo, que deixa de ser uma unidade (concentrada) e passa a ser um modelo difuso, pela formação de pólos administrativos. Assim, o Poder Público concentra-se na elaboração de políticas regulatórias e, por meio de concessões, permissões e autorizações, transfere a execução dessas políticas à iniciativa privada.

Ressalta-se que a desestatização no País ocorreu de forma ampla, incluindo-se nesse processo desde a inserção de práticas e incentivos competitivos do mercado no setor público da economia, pela simples transferência de ativos para a iniciativa privada, até mesmo a passagem ao setor privado de atividades inteiras.

Com a transferência da execução dos serviços públicos por meio de instrumentos do direito administrativo, a presença do Estado na fixação de políticas regulatórias, bem como no respaldo do interesse público na prestação eficiente dessas atividades impõe, hodiernamente, grande desafio à Administração Pública, especialmente quanto à instituição das agências reguladoras como modelo de intervenção estatal no domínio econômico.

(14)

“O Direito brasileiro incorporou, principalmente do Direito norte-americano, a idéia de descentralização administrativa na prestação dos serviços públicos e conseqüentemente gerenciamento e fiscalização pelas Agências Reguladoras.”2

É evidente que essa descentralização se materializa por lei, a qual compete determinar os parâmetros de atuação dessas agências reguladoras, como autonomia e funções normativas e decisórias, diretamente relacionadas à promoção do desenvolvimento econômico e social do setor regulado; à defesa e manutenção dos interesses dos usuários; à eficiência e modernização dos serviços prestados pelas empresas concessionárias, permissionárias ou autorizadas.

A presença das agências no processo de descentralização administrativa, na realidade, acompanha uma concepção moderna da Teoria da Separação dos Poderes, preconizada por MONTESQUIEU, qual seja, há, por um lado, a centralização governamental nos Poderes Políticos (Executivo e Legislativo), aos quais cabem as atribuições de estabelecer políticas, metas e finalidades da Administração Pública por meio de conceitos genéricos (standards normativos) e, por outro, a efetiva consecução desses objetivos, por meio da transferência das atividades decisórias e regulatórias, às agências.

Não obstante a origem desses órgãos autônomos ser inglesa, o direito administrativo norte-americano é que se caracterizou como o “direito das agências”, em virtude da instituição nos setores da economia daquele País de diversas agências para fiscalização e regulação dos serviços prestados pela iniciativa privada. Com a

Administrative Procedure Act de 1946 (APA), houve padronização nos procedimentos realizados por esses órgãos, a fim de proporcionar a eficiência da prestação dos serviços e a defesa do interesse público, as quais, em razão da grande quantidade de agências e de várias modalidades (reguladoras, não-reguladoras, executivas, independentes), mostravam-se comprometidas pelos constantes desencontros dos procedimentos decisórios.3

No Brasil, esses órgãos reguladores foram instituídos por lei, com natureza jurídica de autarquias de regime especial, vinculadas ao Ministério competente para tratar da respectiva atividade. A expressão “regime especial”, por determinação legal, compreende a perspectiva de atribuir a esses órgãos maior autonomia no exercício de

2 MORAES, Alexandre de. Agências reguladoras. São Paulo: Atlas, 2003, p. 20.

3 JUSTEN FILHO, Marçal. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética,

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suas competências normativa (quase-legislativa) e decisória (quase-judicial), bem como garantir a estabilidade de seus quadros em virtude dos mandatos fixos estabelecidos para seus diretores.4

Essa ampla autonomia compreende dimensões funcionais e estruturais das agências, como: decisória, normativa, administrativa e financeira. A primeira trata da resistência às pressões de grupos de interesse no setor submetido à fiscalização e regulação da agência. O órgão regulador, portanto, possui competência para solucionar conflitos entre os agentes econômicos regulados, com o objetivo de garantir a manutenção dos marcos regulatórios pré-estabelecidos pelo modelo regulatório adotado pelo Estado.

A competência normativa também é resultado da autonomia ampliada dessas autarquias, em razão de sua qualificação especial, as quais competem estabelecer normas de comportamento para o mercado sob regulação econômica, nos termos da política instituída pela legislação pertinente. Essa função quase-legislativa fundamenta-se na necessidade de uma gestão pública dinâmica dos fundamenta-setores recém-privatizados, com a aproximação da Administração Pública ao perfil das empresas privadas e às particularidades da área econômica.

Por outro lado, essa aproximação, atualmente, vem provocando o que se conhece pela expressão “captura do regulador pelo regulado”. Esse fenômeno tem por base a

capture theory (“teoria da captura”), que destaca a figura do regulado como agente capaz de influenciar nas decisões do regulador, não obstante o fundamento de sua atuação se consubstanciar no interesse público. Essa situação revela certa fragilidade do modelo quanto ao cumprimento dos instrumentos coercitivos por parte dos regulados, o que prejudica a finalidade da Administração Pública de buscar qualidade e modicidade na prestação dos serviços públicos.5

A autonomia administrativa, em virtude da personalidade jurídica própria, possibilita à agência reguladora contratar e administrar em seu próprio nome, contrair obrigações e adquirir direitos, mas em consonância com o ordenamento jurídico vigente. Embora seja característica comum a todas as entidades da Administração Pública indireta, nos termos do art. 26 do Decreto-Lei n° 200/67, “os doutrinadores têm

4 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública: concessão, permissão,

franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 197-209.

5 Cf. POSNER, R. Theories of economic regulation. The Bell Journal of Economics and Management

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apontado certas características e prerrogativas que aparentemente reforçam sua autonomia administrativa e mesmo a ampliam em relação às autarquias comuns.”6

A autonomia financeira, por sua vez, versa sobre a disponibilidade de recursos humanos e infra-estrutura material da agência, além da previsão de dotações previstas no orçamento da União, créditos especiais, transferências e repasses que lhe forem atribuídos. A lei que cria o órgão regulador também pode estabelecer outras fontes de receitas, como recursos provenientes de taxas de fiscalização cobradas sobre as concessionárias e permissionárias, bem como de convênios, contratos, doações, venda ou locação de bens móveis e imóveis etc.

No que diz respeito à nomeação dos dirigentes, a legislação específica das agências reguladoras estabelece mandatos fixos, o que impossibilita a demissão ad nutum pelo Chefe do Poder Executivo7. Fica a cargo deste, a nomeação dos dirigentes, após a aprovação do Senado. Procedimento este, que no ano de 2000, padronizou-se em razão da edição da Lei nº 9.986, de 18 de julho, a qual, em seu art. 5°, exige que o Presidente ou Diretor-geral ou Diretor-Presidente e demais membros da diretoria deverão ser brasileiros, de vasto conhecimento sobre a área de atuação e reputação ilibada, escolhidos pelo Presidente da República e por ele nomeados, após a aprovação do Senado Federal.

A fixação do mandato e a impossibilidade de demissão ad nutum proporcionam às agências reguladoras certa independência das ingerências políticas e interesses partidários, especialmente quando da mudança de governo. Contudo, o fato de o Presidente da República e o Senado possuírem a atribuição de escolha e aprovação, respectivamente, atenua essa autonomia.

A referida lei inova, em seu art. 8º, no momento em que impõe aos ex-dirigentes a chamada “quarentena”, o que lhes veda, após a exoneração ou o término de mandato, o exercício de atividade ou prestação de qualquer serviço no setor regulado pela respectiva agência, por um período de quatro meses.

Nesses termos, verifica-se que a instituição das agências reguladoras, como entidades responsáveis pela implantação do modelo regulatório pós-privatização do mercado de prestação de serviços, demanda atenção especial do Estado no fortalecimento da credibilidade de sua atuação diante dos anseios sociais. A captação de

6 ARAUJO, Edmir Netto de. A aparente autonomia das agências reguladoras. In MORAES, Alexandre de

(Org.). Agências reguladoras. São Paulo: Atlas, 2002, p. 49-50.

7 PACHECO, Regina. El control de las agencias reguladoras en Brasil: ¿Ulises e las sirenas o Narciso?

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investimentos estrangeiros, estabilidade do mercado frente às crises econômicas, manutenção da competição entre global players, eficiência e qualidade dos serviços prestados e garantia do respeito ao cidadão como usuário são elementos que prescindem de transparência no trato da coisa pública por esses órgãos reguladores.8

Percebe-se que a ampla autonomia das agências para o exercício de suas competências, por si só, não garante a eficácia da regulação estatal. Na realidade, essa estabilização do processo regulatório, atualmente, apresenta dificuldades, pois enfrenta constante interferência do núcleo governamental devido ao tradicional controle hierárquico exercido na esfera do Poder Executivo que, por vezes, em razão de interesses político-partidários, tolhe indevidamente a atuação reguladora desses órgãos administrativos.

A legitimação do modelo regulatório, ademais, pressupõe outros tipos de controle juspolíticos e sociais. São notórias, ante ao processo de privatização realizado no país, a prática de infrações a direitos individuais e coletivos dos usuários por parte das empresas privadas prestadoras de serviços públicos, como também as deficiências da regulação exercida pelas agências, como: excesso de poder de mando dos seus diretores, ausência de transparência no processo decisório e na responsabilidade pelos atos praticados perante as instituições políticas constituídas (Legislativo e Judiciário) e a própria sociedade.

Tal fato traz à baila a importância de uma nova relação entre a sociedade e o Estado, com a ampliação da participação cidadã no processo de tomada de decisões da Administração Pública com relação ao desempenho de suas funções estatais. Reconhece-se que são insuficientes, pois são simples disposições constitucionais e legais de limites à autonomia das agências, na tutela de princípios inerentes à prestação do serviço público, como continuidade, eficiência e modicidade tarifária, e de direitos fundamentais do usuário. Tornam-se imprescindíveis novos instrumentos democráticos de controle e fiscalização das agências reguladoras no cumprimento de seus objetivos e finalidades.

Assim, o controle social, que é complementar aos demais controles jurídicos e político-institucionais, consiste em modalidade de democracia renovadora do papel da sociedade como verdadeiro elemento político. Denominada de participativa, essa forma de relação Estado-sociedade atribui importância fundamental à condição de cidadão do

8 BARROSO, Luís Roberto. Agências reguladoras. Constituição, transformações do Estado e legitimidade

(18)

indivíduo, o qual deixa de ser mero dado estatístico das democracias formais, como simples eleitor, abandonado, para tornar-se centro e ator de todo processo político, como verdadeiro protagonista, dividindo responsabilidades com a Administração Pública quanto ao trato da coisa pública.9

É nessa perspectiva que o presente trabalho busca analisar as implicações do modelo regulatório adotado pelo País a partir da Reforma Administrativa de 1995, com o Programa de Desestatização e instituição das agências reguladoras que, embora qualificadas como autarquias de regime especial, foram concebidas nos moldes da experiência norte-americana referente à regulação do domínio econômico10. Para tanto,

o enfoque da pesquisa ressalta a participação cidadã como instrumento fundamental para a legitimação desses órgãos da Administração Pública indireta, que atualmente passam por uma crise de identidade, tanto no que se refere ao seu status na estrutura organizacional do Estado, como na eficácia de suas normas e decisões aplicas aos agentes (empresas prestadoras, usuários e outras entidades governamentais) e setores regulados.

Com tudo, no intuito de conceber esses controles e a importância do cidadão na institucionalização dessa intervenção estatal no atual cenário econômico neoliberal brasileiro, é necessário o estudo da evolução do Estado Contemporâneo e seu novo papel de ente regulador. Nesse sentido, a estruturação do presente trabalho comporta cinco capítulos, com o objetivo de revelar as características do modelo regulatório atual, implantado no País, contextualizado nesse processo de transformação da atuação estatal no domínio econômico ao longo do tempo.

Assim, o Capítulo I – “Evolução do Estado. O Estado Regulador. Da Antiguidade ao Estado Regulador Contemporâneo: aspectos juspolíticos e econômicos” – resgata a evolução do Estado, partindo-se da Antiguidade para se chegar ao seu perfil contemporâneo, com o levantamento de suas principais transformações nesse processo histórico e formas de relacionamento com a sociedade e ordem

9 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Globalização, regionalização, reforma do Estado e da

Constituição. Revista de direito administrativo, Rio de Janeiro, Renovar, n. 211, p. 2, jan/mar. 1998.

10 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p.

(19)

econômica. Momento que também revela a importância da Constituição como diploma de organização política e jurídica do Estado, principalmente no que se refere ao respeito dos direitos e garantias fundamentais como verdadeiros limites ao poder estatal.11

No Capítulo II, intitulado “Regulação: teorias e princípios informadores da regulação e sua importância para a concepção do Estado Regulador Contemporâneo”, preocupa-se em conhecer as modalidades de intervenção estatal no domínio econômico. O embasamento desse estudo fundamenta-se em escolas tradicionais e contemporâneas sobre a teoria da regulação econômica e dos órgãos estatais envolvidos nesse processo de reparação das deficiências do mercado sob orientação de uma política econômica balizada pela concorrência e livre iniciativa instituídas no País, principalmente a partir da Reforma do Estado ocorrida na década de 90.12

No terceiro capítulo, “Agências Reguladoras. O Estado Regulador Contemporâneo e as agências reguladoras como representantes desse novo perfil perante a atividade econômica: a experiência norte-americana”, parte-se para a análise do modelo regulatório contemporâneo, baseado na instituição das agências reguladoras como verdadeiros representantes do Estado no seu exercício de fiscalização e controle da prestação de serviços públicos, transferida para a iniciativa privada. Para tanto, imprescindível foi o estudo da origem dessas entidades reguladoras, criadas na Inglaterra no século XIX, mas com grande desenvolvimento no direito administrativo norte-americano – modelo importado pelo Estado brasileiro para o desempenho de seu papel regulador atual.

Esse processo de agencificação13 da Administração Pública do País é o tema do Capítulo IV, denominado “Perfil regulador do Estado Brasileiro. As agências reguladoras no País: reforma administrativa, privatizações e agências reguladoras no Direito brasileiro”. O esforço científico, nesse momento, foca o Programa Nacional de Desestatização (PND) e a natureza jurídica, competências e atribuições das agências reguladoras, modalidade institucional priorizada na Reforma do Estado e promovida,

11 CREVELD, Martin van. Ascensão e declínio do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

12 Cf. SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica: princípios e fundamentos

jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2001; BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito econômico. São Paulo: Bastos Ed., 2003, p. 189-256.

13 Termo utilizado por CHITI, Mario P. Principio di sussidiarietà publica amministrazione e diritto

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em 1995, pelo ex-ministro Luiz Carlos BRESSER PEREIRA, no comando, à época, do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE).14

O último capítulo – “Controles das agências reguladoras no Brasil: enfoque na participação cidadã como instrumento de controle da autonomia das agências reguladoras no País” – propõe um complexo de instrumentos de controle da autonomia dessas entidades em um processo crescente de legitimação do modelo regulatório no País. A perspectiva é revelar formas de participação direta do cidadão na esfera pública, especialmente no processo administrativo e na tomada de decisões das agências, a fim de aproximá-las aos anseios e preocupações sociais15. A democratização na composição

de conflitos e resolução de questões na relação público-privada é preeminente e imprescindível para o sucesso das agências reguladoras na preservação da natureza dos serviços públicos.16

Observa-se que se trata de um tema complexo. Embora com a preocupação de se buscar amplo levantamento bibliográfico, o presente estudo não tem a pretensão de esgotar o tema. Na realidade, propõe uma análise crítica aprofundada dos mecanismos juspolíticos e sociais, que efetivamente estabeleçam limites às agências reguladoras como forma de legitimá-las perante os agentes envolvidos na regulação. Visa, portanto, não apenas aprimorar o conhecimento sobre instrumentos jurídicos pré-existentes, mas também propor, por meio da hermenêutica do ordenamento jurídico pátrio17 e do direito comparado, outras formas de controle, sem prejuízo à estabilidade do modelo de regulação proposto pelo País. Busca-se uma harmonização entre a descentralização administrativa, necessária numa economia globalizada, e a concentração governamental, vigilante no respeito aos direitos e garantias individuais e coletivos.

14 BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. A reforma gerencial de 1995. Burocracia e reforma do Estado, São

Paulo, Fundação K. Adenauer, n. 3, p. 29 et seq., 2001. Cardenos Adenauer; GARCIA, Maria. Reforma do Estado e a Administração Pública: a EC 19/98. O problema da reforma constitucional. Revista de direito constitucional e internacional, São Paulo, RT, ano 10, n.38, p. 124, jan/mar. 2002.

15 AMARAL, Roberto. Democracia representativa está morta; viva a democracia participativa. In:

GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (Orgs.). Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 19-56.

16 GRAU, Eros Roberto. Constituição e serviço público. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO,

Willis Santiago (Orgs.). Direito constitucional..., p. 249-267.

17 Por exemplo, uma análise crítico-reflexiva de determinados diplomas normativos, como a Constituição

(21)

CAPÍTULO I

O ESTADO: EVOLUÇÃO DO ESTADO. O ESTADO REGULADOR

Da Antiguidade ao Estado Regulador Contemporâneo: aspectos juspolíticos e econômicos.

1.1 Origem e formação do Estado

Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece, contudo, a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes. Esse, o problema fundamental cuja solução o contrato social oferece [...] Imediatamente, esse ato de associação produz, em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantos são os votos da assembléia, e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. Essa pessoa pública, que se forma desse modo, pela união de todas as outras, tomava antigamente o nome de cidade e, hoje, o de república ou de corpo político, o qual é chamado por seus membros de Estado quando passivo, soberano quando ativo, e potência quando comparado a seus semelhantes.18

O desígnio dos homens, causa final ou fim último – que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros -, introduzindo restrições a si mesmos conforme os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. Enfim, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a conseqüência necessária – conforme demonstrado – das paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível capaz de mantê-los em respeito, forçando-os, por meio do castigo, ao cumprimento de seus pactos e ao respeito àquelas leis naturais [...]19 Num primeiro momento, para melhor compreender a evolução do Estado e suas dimensões política, econômica e social, cabe apresentar um esboço sobre sua origem e formação. Para tal propósito, faz-se imprescindível retratar a lição de DALLARI, que distingue duas correntes doutrinárias sobre a origem e formação da sociedade e do Estado. Uma delas, conhecida como teoria naturalista, remonta à antiguidade, por volta do séc. IV a. C., na obra “A Política” de ARISTÓTELES, o qual afirma ser o homem

(22)

um animal naturalmente político, ou seja, é da própria essência humana viver em sociedade. Trata-se de um impulso associativo natural, independentemente do elemento volitivo20. Outros adeptos também sedimentam a idéia de sociedade natural, como CÍCERO, ainda na Antiguidade, em sua obra “Da República”, Santo TOMÁS DE AQUINO, na Idade Média, na “Summa Theologica”, e mais recentemente, Oreste RANELETTI, em “Instituzioni di Diritto Pubblico”.21

Por outro lado, sob a perspectiva ainda do autor, há os contratualistas, que sustentam que a sociedade é produto único do acordo de vontades, qual seja, de um contrato hipotético celebrado entre os homens, orientado pela racionalidade. É evidente que há muitas diversidades entre os adeptos dessa corrente, mas todos negam, de forma uníssona, que a sociedade se origine do impulso associativo natural. Destaca-se aqui, em primeiro momento, PLATÃO, que em sua obra “A República” refere-se a uma organização social, dotada de razão, sem qualquer menção à existência de uma necessidade natural. Em outro momento, já no século XVI, Thomas MOORE e Tommaso CAMPANELLA22, que embora descrevessem uma sociedade utópica, sem a preocupação de relatar as mazelas e os problemas sociais, ratificaram a idéia da total submissão da vida social à razão e à vontade.23

Todavia, o contratualismo encontrou a sua sistematização doutrinária nos ensinamentos de HOBBES, em sua imortal obra “Leviatã”, que demonstrou a transposição do estado natural do homem, caracterizado pela máxima “guerra de todos contra todos”24, fundada na igualdade natural dos homens, para um estado social, sustentado pelo contrato hipotético que limita o homem e o obriga à observância de seus compromissos perante à sociedade, por temor ao castigo aplicado pelo Estado, construído artificialmente para a sua própria proteção e defesa.

Também de grande expressão é a visão de ROUSSEAU quanto à formação do Estado, como corpo moral e coletivo, garantidor do contrato social realizado entre os homens na transposição do estado natural para o social.

20 Ressalta-se que os adeptos à teoria naturalista, mesmo partindo da premissa de que o homem se associa

por ser da sua própria essência, reconhecem que há a vontade de se reunirem em grupo, em virtude de seus benefícios frente às necessidades de sobrevivência. Entretanto, para a teoria, o que pressupõe a formação da sociedade é o impulso associativo natural do homem.

21 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 22 ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p.

10.

22 Respectivamente, nas obras “Utopia” e “A cidade do sol”. 23 DALLARI, Dalmo de A., op. cit., p. 12.

(23)

Quem retomou a linha de apreciação de Hobbes, explicando a existência e a organização da sociedade a partir de um contrato inicial, foi Rousseau, especialmente em seu livro mais divulgado, ‘O Contrato Social’, aparecido em 1762, no qual, entretanto, adotou posição semelhante à de Montesquieu25 no tocante à predominância

da bondade humana no estado de natureza. O contratualismo de Rousseau, que exerceu influência direta e imediata sobre a Revolução Francesa e, depois disso, sobre todos os movimentos tendentes à afirmação e à defesa dos direitos naturais da pessoa humana, foi, na verdade, o que teve maior repercussão prática. Com efeito, ainda hoje é claramente perceptível a presença das idéias de Rousseau na afirmação do povo como soberano, no reconhecimento da igualdade como um dos objetivos fundamentais da sociedade, bem como na consciência de que existem interesses coletivos distintos dos interesses de cada membro da coletividade.26

Não obstante as teorias sobre a origem e formação do Estado, como superação do estado natural e egoísta do homem, na visão hobbesiana, ou como o pacto social fundado na ordem social e na preservação dos direitos humanos, fundamentais para ROUSSEAU, indubitável é a sua necessidade, como entidade soberana, para o agrupamento humano, independentemente das dimensões que remontam os seus fundamentos ou destinos.

1.1.1 Estado e sociedade

De início, é importante esclarecer a relação entre esses dois conceitos: Estado e Sociedade. Para tal propósito, HESSE traça importantes considerações:

La concepción tradicional parte, a este respecto, de la distinción entre “Estado” y “Sociedad” situando al Estado como una unidad dada y a la Sociedad como una pluralidad dada el uno frente a la otra y sin relación alguna. Este dualismo sigue hundiendo sus raíces en el pensamiento liberal predemocrático de la época anterior a 1918, siendo expresión de la relación entre un poder estatal, representado por el gobierno monárquico y el aparato funcionarial, y una “sociedad” excluida en buena parte de la determinación y conformación políticas, cuya vida básicamente venia autorregulada,

25 Sobre o estado de natureza, declara: “O homem, no estado de natureza, teria, sobretudo, a faculdade de

conhecer, mais do que conhecimentos já adquiridos. É óbvio, igualmente, que as suas primeiras idéias não seriam idéias especulativas; ele se ocuparia da conservação de seu ser, em lugar de investigar a sua origem. Um homem, assim, sentiria, a princípio, a sua fraqueza; sua timidez seria extrema; e si houvesse necessidade de uma confirmação pela experiência, teríamos o exemplo dos silvícolas: tudo os amedronta e afugenta. Nesse estado cada um se sente inferior; dificilmente cada um se sente igual. Não procurarão atacar-se e a paz entre eles seria a sua primeira lei natural.” (MONTESQUIEU. O espírito das leis.

Coleção clássicos do direito. Belo Horizonte: Líder, 2004, p. 14).

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en tanto el “Estado” sólo tenía que garantizar los presupuestos de un proceso sometido a sus propias leyes, interviniendo sólo en caso de perturbaciones.

Ahora bien, los presupuestos de tal dualismo han desaparecido en el Estado democrático y social contemporáneo. La vida “social” ha dejado de ser posible sin una organización responsable, organizadora y planificadora. A la inversa, el “Estado” democrático no se constituye sino a través de la cooperación social. También la vida social se halla en relación más o menos estrecha con la vida estatal en el proceso de formación de la unidad política. La importancia actual del Estado para la vida económica y social, así como la influencia “social” sobre la actividad estatal e, incluso, la participación “social” en aquél excluyen una contraposición carente de relación alguna.27

Jorge MIRANDA, para elucidar essa relação, parte do seguinte questionamento: “O Estado é político, mas todo o político é estadual?”. Há, para o autor, três posicionamentos que trabalham o assunto. Para alguns, a resposta é positiva, visto que Estado, como fenômeno humano permanente e universal, e sociedade política se identificam. Para outros o Estado é apenas uma espécie, a mais importante, de sociedade política. Uma terceira vertente estabelece que “o problema não se põe, ou por não se lidar com o conceito de Estado ou por se reduzir o Estado ao nome convencionalmente dado a qualquer sociedade política”. 28

Para o referido autor, a segunda tese mostra-se mais adequada, pois em razão da grande variedade de sociedades políticas (também denominadas sociedades de fins gerais), é necessário realizar distinções e classificações. Isso porque não se justifica confundir “as formas primitivas de sociedades políticas com as formas desenvolvidas e

27 “A concepção tradicional parte, a este respeito, da distinção entre ‘Estado’ e ‘Sociedade’ situando o

Estado como uma unidade dada e a Sociedade como uma pluralidade dada, e um frente à outra e sem relação alguma. Este dualismo tem fundamento em suas raízes no pensamento liberal pré-democrático da época anterior a 1918, sendo expressão da relação entre um poder estatal, representado pelo governo monárquico e o aparato funcionalista, e uma ‘sociedade’ excluída em boa parte da determinação e conformação políticas, cuja vida basicamente vinha auto-regulada, entretanto o ‘Estado’ só teria que garantir os pressupostos de um processo submetido a suas próprias leis, intervindo somente em caso de perturbações.

Agora bem, os pressupostos de tal dualismo têm desaparecidos no Estado democrático e social contemporâneo. A vida ‘social’ tem deixado de ser possível sem uma organização responsável, organizadora e planificadora. Por outro lado, o ‘Estado’ democrático não se constitui senão através da cooperação social. Também a vida social se acha em relação mais ou menos estreita com a vida estatal no processo de formação da unidade política. A importância atual do Estado para a vida econômica e social, assim como a influência ‘social’ sobre a atividade estatal e, inclusive, a participação ‘social’ naquele exclui uma contraposição carente de relação alguma.” (HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1983, p. 13, tradução nossa).

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complexas que tardiamente surgem. E o Estado tem tanto de peculiar que tudo aconselha a separar o seu tratamento do estudo de outras figuras, embora afins”.29

O próprio DALLARI classifica as sociedades, quanto à sua finalidade, em sociedades de fins particulares e aquelas que apresentam fins gerais ou sociedades políticas. “Entre as sociedades políticas, a que atinge um círculo mais restrito de pessoas é a família, que é um fenômeno universal. Além dela existem ou existiram muitas espécies de sociedades políticas, localizadas no tempo e no espaço, como as tribos e os clãs”30. O Estado é apenas uma das espécies, evidentemente, a mais importante em

razão de sua complexidade, amplitude e capacidade de influir e condicionar o comportamento dos indivíduos constituintes dessa sociedade.

O Estado, na posição de uma sociedade complexa de natureza política (fins gerais), não se prende a um objetivo determinado, mas desde a sua criação coloca-se, numa primeira perspectiva, como instrumento utilizado por seus constituintes para lhes promover a consecução de seus fins e aspirações, por meio da organização e coordenação das ações humanas em função da busca de um fim social – o bem comum.

É verdade que encontrar um denominador comum entre interesses individuais e da sociedade (comum) não se mostra tarefa fácil. Portanto, importante compreender o que seria esse ideal, pois seu conceito não se encontra uniforme na literatura jurídica. Busca-se, com isso, auxílio na doutrina social-cristã, que apresenta caracterização acertada dessa instituição de valor reconhecido universalmente pela humanidade. Em

Pacem in Terris – Encíclica, II, 58 – do Papa João XXIII, bem comum compreende “todas as condições de vida social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana”.31

Perante essa perspectiva de que o Estado representa um tipo de sociedade política que não pode ser confundida com outras sociedades primitivas, é importante salientar que o próprio nome “Estado” reflete o desenvolvimento dessa espécie, cujo nascimento se encontra em momento particular na história, com pilares de sustentação bem delineados, como povo (elemento subjetivo), território (dimensão espacial) e soberania (elemento juspolítico). Sob esse prisma, quanto ao vocábulo, determina DE PLÁCIDO E SILVA:

(26)

Derivado do latim status (estado, posição, ordem, condição), é vocábulo que possui sentidos próprios no Direito Público e no Direito Privado [...] No sentido do Direito Público, Estado, segundo conceito dado pelos juristas, é o agrupamento de indivíduos, estabelecidos ou fixados em um território determinado e submetidos à autoridade de um poder público soberano, que lhe dá autoridade orgânica. É a expressão jurídica mais perfeita da sociedade, mostrando-se também a organização política de uma nação, ou de um povo [...] No conceito que lhe empresta o Direito Privado possui a significação genérica de

modo de ser ou de estar de uma coisa ou pessoa. Refere-se, assim, às próprias condições ou qualidades que lhe são atribuídas, em relação a fatos que os mostram como devem ser. 32

O Estado, para DEL VECCHIO, compreende a figura de um “verdadeiro e próprio sujeito (persona no sentido técnico dos juristas), que tem uma vontade própria sumamente autônoma e inconfundível com a das pessoas singulares [...] e tal vontade concretiza-se justamente nas regras do direito”. Trata-se do “sujeito da vontade que estabelece (impõe) uma organização jurídica.”33

CREVELD entende que o Estado é uma entidade abstrata, não idêntica aos governantes nem aos governados, nem mesmo ao conjunto de todos os cidadãos agindo em comum. Ele inclui todos e se declara acima de todos.

É o mesmo que dizer que o Estado, sendo distinto tanto de seus membros quanto de seus regentes, é uma corporação [...], sobretudo no sentido de que possui uma persona jurídica própria, o que significa que tem seus direitos e deveres e pode realizar diversas atividades como se fosse uma pessoa de carne e osso. As diferenças entre o Estado e as outras corporações são, em primeiro lugar, o fato de que ele as autoriza todas, mas só é autorizado (reconhecido) por outros de sua espécie; em segundo lugar, o fato de que certas funções (conhecidas coletivamente como atributos de soberania) estão reservadas somente a ele; e em terceiro lugar, de que exerce essas funções sobre determinado território, dentro do qual sua jurisdição é tanto exclusiva quanto abrangente.34

ZIPPELIUS, por sua vez, considera o Estado como uma comunidade juridicamente constituída. Trata-se da “totalidade de indivíduos cujas condutas são coordenadas de maneira específica [...] como estrutura de acção juridicamente organizada. Desta concepção de Estado aproxima-se um dos significados originários do

32 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 205, v. II.

33 DEL VECCHIO, Giorgio. O Estado e suas fontes do direito. Tradução Henrique de Carvalho. Belo

Horizonte: Ed. Líder, 2005, p. 19.

34 CREVELD, Martin Van. Ascensão e declínio do Estado. Tradução Jussara Simões. São Paulo: Martins

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vocábulo ‘status’ que designa um estado, uma determinada ‘constituição’ de convivência”.35

Para Celso Ribeiro BASTOS, não é fácil encontrar uma definição de Estado que “agrade a todos”. Mesmo assim, ele enfrenta muito bem o desafio ao conceituá-lo como a “organização política sob a qual vive o homem moderno [...] resultante de um povo vivendo sobre um território delimitado e governado por leis que se fundem num poder não sobrepujado por nenhum outro externamente e supremo internamente”.36

Nessa diversidade de conceitos, DALLARI, em análise de seus elementos constituintes, elaborou um dos conceitos de Estado mais completos na doutrina. Segundo o autor, o Estado é a “ordem jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado território”.37

Sem detrimento à importância de analisar as sociedades primitivas, pré-históricas, verdadeiras tribos, dentro do processo de formação do Estado, o presente estudo fixa um ponto de partida, as cidades-estado gregas e romanas, por constituírem, em primeira instância, estrutura básica para formação dos Estados modernos.

1.1.2 Cidades-Estado

Embora não haja estudos conclusivos sobre como as cidades-estado evoluíram das comunidades que as precederam, presume-se que, nessas sociedades em que o governo se limitava apenas ao âmbito familiar, houve um processo de unificação dessas famílias. As cidades, com isso, passaram a constituir um empreendimento coletivo, governado por poucos, dotados de certa autoridade sobre as demais.

No período helenístico, na Antiguidade, o Estado tinha caráter municipal ou cantonal. Ou seja, a polis grega constituía o Estado, circunscrito aos limites da referida cidade38, razão pela qual a denominação cidades-Estado. Como traços essenciais, a polis

apresentava prevalência do fator pessoal, em que o Estado se baseia na comunidade dos

35 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do Estado. Lisboa: Gulbenkian, 1997, p. 61.

36 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de teoria do Estado e ciência política. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 1995,

p. 10.

37 DALLARI, Dalmo de A., op. cit., p. 118.

38 O termo polis significa cidade e do qual provém o termo política, a arte ou ciência de governar a

(28)

cidadãos (embora não sejam os únicos habitantes, com a presença dos metecos e os escravos). O aspecto territorial, por outro lado, tinha pouca importância, de pequena extensão, delineado às cidades-Estado.

Semelhante às cidades gregas, o Estado romano constituía-se pelo agrupamento das famílias ou das gentes – civitas, comunidade de habitantes ou res publica, coisa comum a todos. Em Roma, freqüente se tornou a expressão status republicae, para indicar o estado da coisa pública dos negócios do governo.39

Percebe-se que as cidades-Estado clássicas (gregas e romanas) apresentam uma separação entre o público e o privado, entre o governo e a propriedade - distinção até então desconhecida pelas sociedades primitivas (sem detrimento de outras oportunidades na história, como nos impérios e no sistema feudal, em que essas duas instituições novamente se confundem). Não existia governo político no sentido moderno do termo, pois àquelas pessoas que exerciam autoridade sobre as outras (cabeças de clã, capatazes ou chefes com poderes totais), não o faziam na qualidade de autoridades públicas, mas sim como pessoas que, em função de fatores como sexo, idade, religião, eram consideradas superiores e, dessa forma, mereciam administrar a comunidade. “Forte ou fraco, o governante regia – isto é, liderava, comandava, promulgava decretos, julgava, tributava e, se necessário punia – os que eram ‘seus’, independentemente de serem membros de sua linhagem ou subchefes, correligionários, serviçais, dependentes, inquilinos ou escravos”.40

Nas cidades-Estado, conseqüentemente, os cidadãos indicavam outros para governá-los, sendo que tais pessoas eleitas agiam não em nome próprio, mas sim em nome da comunidade. Por isso, eram considerados magistrados, que exerciam atividades administrativas e judiciais (por magistrados especiais, os chamados tribunos), já que nas cidades-Estado não ocorria a separação dos poderes como conhecida hodiernamente: legislativo, executivo e judiciário.

39 Quanto às cidades-Estado romanas, MENEZES ensina: “O Estado romano começou pela cidade, a

civitas, formada por famílias e tribos que constituíam as gentes. Ampliou-se a cidade no seu aspecto estatal, conservando a família, no entanto, a sua importância primitiva, desde quando o governo residia numa assembléia de paters-familias, ao ponto mesmo de manter-se sempre aos senadores romanos o tratamento usual de paters [...] A expansão de Roma, em sua tendência universalista, modificou o panorama primitivo, passando o poder estatal, ampliado da civitas, a ligar-se a outro órgão, o imperium,

também denominado majestas e que, na época republicana, repousava no povo, que o exercia nos comícios: de cúrias, de centúrias e de tribus, conforme a feição do Estado: patrício, censitário e

popular.”(MENEZES, Anderson de. Teoria geral do Estado. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 112-113).

(29)

Com efeito, tanto a polis grega [...] como a república romana durante muito tempo conservaram traços de um sistema anterior. Em ambas, os cidadãos não constituíam um corpo único, mas estavam divididos em demos, fratrias, cúrias, centúrias e tribos que, em Roma, pelo menos, votavam em bloco. Contudo, não se organizavam ao redor de laços de família [...] Muito menos se baseavam em qualquer outra forma de “propriedade” de uma pessoa por outra. Pelo contrário, tanto na Grécia quanto em Roma, o “governo” (arkhé, imperium) era definido como forma de autoridade exercida por algumas pessoas sobre as outras, que, ao contrário dos membros da família e dos escravos, eram iguais a elas (hómoioi) perante a lei e não lhes “pertenciam” em nenhuma das condições mencionadas. Havia, portanto, um limite bem nítido entre as esferas privada (ídios, res privata) e pública (demósios, res publica). Dentro do lar (oikos, domus), as relações sociais baseavam-se na propriedade exercida pelo

pater-familia sobre seus dependentes, parentes ou não [...] Fora do lar, havia a autoridade política, ou governo.41

A Assembléia Popular, órgão principal das cidades-Estado clássicas, presididas por magistrados, era local de reunião de todos os cidadãos, quais sejam, homens adultos que não eram escravos ou estrangeiros, que decidiam sobre assuntos variados, como a aprovação de leis (nómoi na Grécia, e leges em Roma), eleição de magistrados e resolução de assuntos militares. Em Atenas, por exemplo, ao referido órgão também era atribuído o direito de condenar os cidadãos considerados inimigos da ordem pública ao ostracismo.42

Os magistrados aparecem como segunda instituição de maior importância nas cidades-Estado. Responsáveis pela administração dos assuntos cotidianos da cidade, como comandar atividades militares, controlar as finanças, construir obras “publicas”, exercer fiscalização dos mercados, bem como exercer a justiça e manter a ordem interna, ocupavam o respectivo status social por meio de eleição (funções mais importantes) ou por sorteio.43

41 Ibid., p. 33.

42 LOEWENSTEIN, ao ressaltar a participação dos cidadãos no regime político das cidades-Estado

gregas, esclarece: “La democracia directa de las Ciudades-Estados griegas en el siglo v es el único ejemplo conocido de un sistema político con plena identidad entre gobernantes y gobernados, en el cual el poder político está igualmente distribuido entre todos los ciudadanos activos, tomando parte en él todos por igual […] Todas las instituciones políticas de los griegos reflejan su profunda aversión a todo tipo de poder concentrado y arbitrario, y su devoción casi fanática por los principios del Estado de derecho de un orden (eunomía) regulado democrática y constitucionalmente, así como por la igualdad y la justicia igualitaria (isonomia). Las diferentes funciones estatales fueron ampliamente distribuidas entre diversos detentadores de cargos, órganos o magistrados; el poder de los últimos fue restringido por ingeniosas instituciones de control.” (LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución. Barcelona: Ediciones Ariel, 1965, p. 150).

43 Para se candidatar à magistratura, o cidadão postulante devia preencher determinados requisitos, como

(30)

Precisamente em Roma, devido ao seu vigoroso governo, havia os chamados

tribunos, que eram magistrados especiais eleitos para proporcionar aos cidadãos mecanismos de participação direta no governo, bem como evitar eventuais excessos no exercício do poder pelos governantes.

A Câmara44 também é outra instituição que aparece nas cidades-Estado. Compunha o governo, cujos membros eram indicados por sorteios, com mandatos de um ano. Em Roma, manteve-se, em parte, o caráter aristocrático, já que os senadores eram indicados ex officio dentre àqueles ex-magistrados que já tinham cumprido seu mandato. Desde que não desqualificados pelos censores, os magistrados responsáveis pela investigação das propriedades e conduta dos cidadãos, no caso os senadores, mantinham o cargo pelo resto da vida.45

Com relação ao sistema jurídico, era descentralizado, com tribunais independentes, formados por cidadãos sem qualquer formação específica, os quais se reuniam diariamente para decidir caso a caso, nos diversos locais em que se encontravam. Não existiam tribunais de apelação e as decisões, uma vez tomadas, eram consideradas definitivas.46

Na área econômico-financeira, as cidades-Estado, para realizar suas despesas, recorriam-se à tributação do mercado, bem como aos frutos do poder judiciário, como multas e bens confiscados. Os templos religiosos também eram instituições importantes no sistema econômico das cidades, já que em razão de sua relativa segurança, neles

mandato, sua duração não ultrapassava, na maioria dos casos, de um ano. Só em Esparta, os chamados reis tinham mandato vitalício, embora fossem submetidos a um forte controle dos éforos, responsáveis pela limitação do exercício do poder com a finalidade de evitar arbitrariedades. (MITCHELL, H. Sparta.

Cambridge: Cambridge University Press, 1964, p. 101 et seq.).

44 Como principais funções da Câmara, têm-se a apresentação de projetos de lei à Assembléia para

aprovação, supervisão das atividades exercidas pelos magistrados, “ouvidoria” (recebimento de reclamações), fiscalização de contas e gastos públicos, substituição da Assembléia no recebimento dos enviados de governos estrangeiros, bem como estava autorizada a suspender direitos civis em caso de estado de emergência ou desordem.

45 CREVELD, Martin Van, op. cit., p. 39. Quanto à importância do Senado, continua o referido autor:

“Não obstante, nem em Roma durante seu apogeu, no século II a. C., a autoridade (auctoritas) do senado jamais foi formalizada. Ao contrário do moderno parlamento, o senado não aprovava leis; o máximo que podia fazer era deliberar e encaminhar consulta (estritamente falando, conselhos) aos magistrados. Contudo, não podia dar-lhes ordens nem responsabilizá-los, muito menos passar por cima da assembléia dos cidadãos, que sempre conservava a soberania – caso seja esse fosse o termo apropriado – nas próprias mãos.” (Ibid., loc. cit.).

46 Nessa estrutura, formava-se uma espécie de tribunal do júri, com cidadãos previamente escolhidos

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