• Nenhum resultado encontrado

Considerações preliminares: análise do termo “regulação”

No documento DOUTORADO EM DIREITO DO ESTADO (páginas 79-83)

O ESTADO: EVOLUÇÃO DO ESTADO O ESTADO REGULADOR Da Antiguidade ao Estado Regulador Contemporâneo:

2.1 Considerações preliminares: análise do termo “regulação”

Desde o momento em que a produção jurídica tornou-se monopólio do Estado, fato este que efetivamente ocorreu no final da Idade Média (com a unificação territorial e do poder soberano estatal na mão do monarca - marco que deu início à época dos chamados Estados Modernos absolutistas), a ele é reconhecido poderes de natureza “regulatória”, uma vez que a regulação é da própria essência do Direito. Poder-se-ia, numa interpretação imprudente, reconhecer desde já ao Estado surgido na Idade Moderna a adjetivação “regulador”. Não é nesse sentido que se pretende abordar a matéria, por se mostrar insuficiente para compreender a ação do Estado no domínio econômico.

Busca-se compreender o Estado regulador contemporâneo em seus diversos ângulos, a fim de se esclarecer suas peculiaridades. Para tal objetivo, antes mesmo de traçar os elementos característicos do modelo regulatório estatal, faz-se imprescindível resolver a questão terminológica da palavra “regulação”.

A investigação científica sobre o referido termo não se deu propriamente na doutrina pátria, mas sim em países de língua inglesa, os quais indicam a atividade desenvolvida pelo Estado de “regulation” e, para o sujeito que a realiza “regulator”.155 A tradução para a língua portuguesa dessas duas expressões traz algumas dificuldades, já que no sistema jurídico brasileiro, para Calixto SALOMÃO FILHO, ainda não houve tentativa de formulação de uma teoria geral de regulação. Assim, explana o referido autor:

A razão para tanto é jurídica e simples. Trata-se da tradicional concepção do Estado como agente de duas funções diametralmente opostas: a ingerência direta na vida econômica e a mera fiscalização

dos particulares. A prestação de serviços públicos, de um lado, e a vigilância do mercado, através do poder de polícia de outro, sempre representaram para os administrativistas a totalidade das funções que o Estado poderia exercer.156

A tradução mais próxima para a língua portuguesa das expressões “regulation” e “regulator” poderia ser “regulamentação” e “regulamentador”. Ocorre, no entanto, que a primeira expressão já possui características específicas no direito brasileiro, razão pela qual não parece a tradução corresponder o que realmente quer expressar “regulation”. Isso porque já sedimentada no sistema jurídico pátrio a idéia de “regulamentação” como expressão que representa o desempenho de atividade executiva, fundamentada no art. 84, IV, da Constituição Federal de 1988 e que estabelece como competência do Presidente da República, dentre outras, os atos de “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”. Trata-se de função normativa infralegal que especifica as condições necessárias para ampliar a eficácia de certos dispositivos legais, cuja generalidade e abstração proporcionam certa dificuldade na sua aplicação a casos concretos.

O poder regulamentar é privativo do Chefe do Executivo (art. 84, IV, da Constituição) e se exterioriza por meio de decreto. Ele somente se exerce quando a lei deixa alguns aspectos de sua aplicação para serem desenvolvidos pela Administração, ou seja, quando confere certa margem de discricionariedade para a Administração decidir a melhor forma de dar execução à lei. Se o legislador esgotou a matéria, não há necessidade de regulamento. Além do decreto regulamentar, o poder normativo da Administração ainda se expressa por meio de resoluções, portarias, deliberações, instruções, editadas por autoridades que não o Chefe do Executivo; estabelecem normas que têm alcance limitado ao âmbito de atuação do órgão expedidor. Há, ainda, os regimentos, pelos quais os órgãos estabelecem normas sobre o seu funcionamento interno.157

Quanto a essa vinculação do poder regulamentar da Administração Pública à lei, Celso Ribeiro BASTOS complementa:

O regulamento há de ater-se a viabilizar o cumprimento da lei [...] Pode introduzir aspectos não cogitados por aquela, desde que, logicamente, subordinados e instrumentalizados com vistas ao atingimento do fim último da lei. Ao regulamento não é dado estabelecer obrigações iniciais, ou seja, não pode ser fonte direta da criação de um tributo, ou mesmo de uma multa ou sanção, uma vez

156 SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica: princípios e fundamentos jurídicos.

São Paulo: Malheiros, 2001, p. 14.

que estaria subvertendo a sua função meramente executória e assumindo o lugar da própria lei, como fonte de todas as obrigações normativas do nosso Direito.158

Não parece o referido poder regulamentar e expressar toda a extensão qualitativa da expressão “regulation”, que não se resume na atividade executiva de traçar as condições mínimas necessárias para a execução da norma. O sentido que se pretende atribuir ao vocábulo alienígena é bem mais amplo, o que demanda certa teorização sobre esse instituto que tem origem marcadamente norte-americana e que foi introduzido à organização dos setores privatizados no país.

É por essa razão que o fenômeno em pauta dificilmente não se enquadre nas três funções públicas tradicionais. Desta forma, “regulation” volta-se a funções governamentais que não se identificam nem com a função normativa em sentido próprio, nem com a prestação jurisdicional e nem com a atividade administrativa em sentido estrito.

A acepção, para Calixto SALOMÃO FILHO, a ser atribuída ao termo

regulação, com a finalidade de se estudar as diversas concepções a seu respeito, as quais têm influenciado o sistema brasileiro, é bem mais ampla. “Engloba toda forma de organização da atividade econômica através do Estado, seja a intervenção através de concessão de serviço público ou o exercício de poder de polícia”159. Portanto, exerce a regulação no momento em que delega a execução do serviço à iniciativa privada, por meio de concessão, permissão ou autorização, regulando seu desempenho e qualidade, como também na criação de regras em decorrência do exercício do poder administrativo de polícia.

Na área econômica, o termo regulação também tem significação própria e pressupõe dois fenômenos, que mesmo com suas peculiaridades, apresentam intrínseca relação: primeiro, a redução da intervenção estatal direta na economia e, segundo, o crescimento dos atos de concentração econômica em função da flexibilização do monopólio do Estado em setores agora privatizados.

Embora tais aspectos sejam objetos de estudo em momento oportuno, é imprescindível traçar, desde já, o marco divisório da regulação e do direito antitruste160-161 quanto a essa tendência mercadológica de concentração econômica. É

158 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito administrativo. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 17. 159 SALOMÃO FILHO, Calixto, op. cit., p. 15.

160 Cabe neste momento traçar algumas considerações sobre o truste, vocábulo referente à palavra inglesa

evidente a dificuldade de se estabelecerem controles eficientes em relação à formação de monopólios, seja pelas vias regulatórias tradicionais, como controle de preços, quantidade, qualidade de bens e serviços e acesso ao mercado ou seja pelas vias de direito antitruste, como o controle de comportamentos anticoncorrenciais.

Em razão da complexidade crescente desses atos de limitação (ou de prejuízo) à concorrência, impõe-se, na verdade, uma atenuação dessa linha divisória entre regulação e mecanismos antitrustes. Isso significa que, progressivamente:

[...] mais setores formalmente não-regulados devem se submeter a uma disciplina antitruste incisiva que não se limite a sancionar atos ilícitos, mas passe a impor comportamentos (o que, como se verá, é típico da disciplina regulatória). Essa tendência se faz sentir em novas teorias de direito concorrencial, como a essential facility doctrine162, comerciantes, no intuito de dirigir a produção, ou controlar a venda de certos produtos, fixando-lhes as diretrizes relativas à distribuição nos mercados e aos preços respectivos. Em princípio, os trustes indicam- se corporações monopolistas, semelhantes aos cartéis europeus, orientadas, graças a essa subordinação de empresas ao comando único, no domínio do mercado. No entanto, pode o truste ser estabelecido com a finalidade de reunir sob a mesma direção várias empresas industriais, ou comerciais, no sentido de imprimir orientação uniforme, favorável ao engrandecimento de todas elas. Ou com o objetivo de instituir uma sociedade de controle, ao que se dá o nome de voting trust. Neste aspecto, o truste não tem tendência monopolista, sendo a sua principal função a de estabelecer normas técnicas, para melhoria da produção, ou fundar apoio financeiro a todas as coligadas.” (SILVA, De Plácido. Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 425, v. IV).

161 Quanto à gênese dos trusts, surgem nos EUA como práticas realizadas por agrupamentos industriais e

comerciais julgadas capazes de destruir os fundamentos da liberdade econômica norte-americana. “As táticas empregadas obedeceram a uma graduação, começando por instrumentos de natureza voluntarista, até atingir tipos mais rigorosos de acordos. A primeira forma adotada por estes agrupamentos para enfrentar os inconvenientes da concorrência desenfreada das grandes empresas foi o gentlemen’s

agreement. Por este acordo, os dirigentes das empresas concorrentes se comprometiam mutuamente, por sua honra, daí a expressão que, em português significa ‘acordo de cavalheiros’, a manter tais salários, tais condições de trabalho e tais preços de venda dos produtos, para caminhar em busca de mercados no mesmo pé de igualdade e de produzir em conduções remuneradoras [...] A segunda técnica adotada foram os pools, contratos firmados entre sociedades concorrentes para dividir os Estados Unidos em regiões estritamente delimitadas. Cada sociedade obtinha o monopólio do comércio em uma região determinada, com exclusão de todas as demais. Outra forma de pool consistia na instituição, por companhias concorrentes, de um escritório geral de vendas destinado a centralizar e a repartir todas as encomendas entre as diversas companhias segundo uma proporção fixada”. Os insucessos dessas tentativas, ou pela falta de honra nos gentlemen’s agreement ou pela inexistência de sanções legais contra os descumprimentos ocorridos nos contratos firmados entre sociedades concorrentes (pools), “demonstraram a impossibilidade, devido a razões imprevisíveis da psicologia humana, de agrupar empresas sob a regência de uma regra única, preservando, ao mesmo tempo, grande parte de sua independência. Percebeu-se a necessidade de imaginar cominações mais autoritárias e acordos que não fossem desprovidos de sanções. A primeira destas cominações [...] foi o trust [...] Etimologicamente, o trust origina-se do common law britânico, próxima ao ‘fideicomisso’. É um contrato de lealdade, ou de confiança [...]” (VAZ, Isabel. Direito econômico da concorrência. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 89- 91).

162Cabe fazer algumas considerações sobre a essential facility doctrine, ou, em tradução livre, doutrina

das facilidades essenciais. O seu desenvolvimento deu-se nos EUA e foi baseada na aplicação da Lei Antitruste norte-americana – Sherman Act – em uma sucessão de conflitos de ordem concorrencial, envolvendo setores econômicos que, em virtude de condições estruturais, acabam por produzir monopolistas naturais e, conseqüentemente, práticas anticoncorrenciais, como a recusa de acesso à infra- estrutura ou rede (de prestação de serviços ou produção), por parte do agente econômico proprietário, aos

que propõe verdadeira linha de conduta obrigatória para os monopólios (obrigação de contratar a preços competitivos), i. e., verdadeira regulação da atividade do monopolista.163

Sem considerar a aproximação do direito antitruste e a regulação, é importante ressaltar que os princípios concorrenciais, embora relevantes, não traduzem todos os objetivos da regulação, que estende seu campo de atuação à defesa e promoção da segurança, higidez de mercado, redistribuição de renda e à própria justiça social - fatores que não possuem disciplina conveniente pelo direito concorrencial. Com isso, torna-se imperativo conhecer as principais escolas que versam sobre a regulação e sua interação com o papel atual do Estado na economia.

No documento DOUTORADO EM DIREITO DO ESTADO (páginas 79-83)