BREVES APORTES ACERCA DO PODER PROBATORIO DO JUIZ COMO CONSEQUENCIA DE SEU PAPEL NO CONVENCIMENTO E A REGRA DE ONUS
DA PROVA
Mayara Roth Isfer
Ainda que as partes possuam papel essencial no processo, trazendo, muitas vezes, a totalidade dos elementos que levam ao convencimento do magistrando, o juiz tem o dever de agir de maneira proativa, dever esse que advém não apenas, mas também, dos não tão novos princípios que norteiam a Constituição Federal de 1988. Alguns poucos, mas marcantes, exemplos são os princípios do contraditório, da ampla defesa, da publicidade, da duração razoável do processo, da igualdade processual, ou paridade de armas, da adequação, etc.
Nesse sentido, enquanto materialização do Estado, detentor do poder jurisdicional, ao invés de simplesmente se deixar convencer por argumentos muitas vezes infundados ou por provas insuficientes, o juiz deve buscar e criar, ele próprio, seu convencimento, o qual deve ser embasado tanto nas informações trazidas pelas partes, quanto naquelas que ele trouxer aos autos – devendo ser respeitado, para tanto, o princípio do contraditório.
A esse respeito, necessário relembrar a importância da prova no convencimento. É por meio dela que o magistrado pode constatar a plausibilidade de ocorrência dos fatos
substanciais alegados pelas partes, e dos argumentos por elas trazidos.1 Como parece
atualmente intuitivo, função da existência da prova não seria a reconstrução da verdade absoluta, tendo em vista que esta não existe; seu real objetivo seria funcionar como objeto de argumentação dentro do discurso intrínseco a uma ação específica.
É o que explica ARENHART, expondo que: “(...) pode-se extrair que a função da prova é prestar-se como peça de argumentação, no diálogo judicial, elemento de
1 Sobre a importância da prova, Danilo Knijnik assenta: “Assim, o fato jurídico substancial passa a depender de,
em grande medida, de sua prova em juízo, bem como dos demais desvios que aí possam ser cometidos. Por isso mesmo, a Constituição Federal, ao assegurar o direito de agir em juízo, o contraditório e a ampla defesa, consagra, também, o direito à prova. O denominado ‘agir em juízo’ não se exaure no direito subjetivo de obter um provimento judicial qualquer ou em movimentar a máquina judiciária, compreendendo uma ‘atividade judicial mínima, dirigida à tutela de uma posição substancial de vantagem (...), envolvendo conteúdos ativos e positivos’, dentre os quais um procedimento probatório adequado.” (KNIJNIK. p. 07).
convencimento do Estado-Jurisdição sobre qual das partes deverá ser beneficiada com a
proteção jurídica do órgão estatal.” 2
Para garantir a legitimidade desse “discurso” que toma corpo no ambiente processual, o juiz deve dele participar, mantendo o “equilíbrio necessário ao bom funcionamento do
mecanismo processual” 3, e verificando se as provas produzidas pelas partes ou argumentos
por elas utilizados respeitam os mínimos graus de plausibilidade.
Neste viés, é preciso pensar o que deveria ser feito pelo magistrado, no caso de ele perceber que as provas produzidas nos autos são insuficientes para comprovar as alegações de fato feitas pelas partes no transcurso do processo. Deveria ele agir de forma passiva e aceitar seu fraco convencimento aplicando, desde logo, a teoria do ônus da prova ou da verossimilhança? Ou deveria o juiz atuar de maneira proativa, buscando dar maior legitimidade para a verdade construída, ordenando a produção de provas ex oficio quando estas forem possíveis?
Atualmente – porque nem sempre foi assim, especialmente quando não
compreendia-se o processo no compreendia-seu caráter público – verifica-compreendia-se que o juiz precisa atuar no processo4; e esta
não é uma faculdade a ele concedida, mas sim um dever. Nossa codificação, não por acaso, concedeu amplos poderes para que o magistrado instruísse a demanda já que é dele o convencimento que, depois, será expressado na sentença.
O artigo 130 da codificação processual civil, por exemplo, coloca expressamente que deve o juiz, no caso de verificar a necessidade de produção de uma prova, diligenciar nesse
sentido5. Necessário perceber, desta forma, que o magistrado “tem ativa e predominante
função na colheita de prova”.6
Como bem acrescenta BARBOSA MOREIRA, “é necessária boa dose de alheamento ao texto para desprezar uma norma como a do artigo 130, princípio, e – vale acrescentar – boa dose de prevenção para teimar em reduzir-se o alcance a um resíduo inexpressivo de hipótese
2 ARENHART. A verdade e a prova no processo civil, p. 32. 3 BEDAQUE. p. 55.
4 “Na verdade, ao juiz inerte, ao juiz passivo, de outros tempos, se substituiu o juiz ativo, como o compreende a
doutrina contemporânea e o institui o direito brasileiro (...)” (SANTOS. p. 326).
5 Sobre a determinação, por parte do juiz para a atividade probatória, Barbosa Moreira expõe: “Em qualquer
caso, cabe ao juiz determinar de ofício a realização de provas que julgue necessárias (art. 130).” (MOREIRA. O novo processo civil brasileiro... p. 56).
acadêmica.” 7 Assim, evidencia o autor que, nada obstante a essencialidade da regra traduzida
pelo supracitado dispositivo, os juízes raras vezes utilizam-na8, ignorando a necessidade de se
dar um provimento jurisdicional mais próximo do direito substancial.9
E a prática forense tem demonstrado que são escassos os magistrados preocupados com o correto deslinde do processo. A grande maioria, alheia à importância dos serviços que presta à sociedade, trata da vida dos demais com frieza, ignorando por completo o que está detrás do processo.
Quanto maior a participação do juiz na atividade de instrução do processo, maior a possibilidade de que sua convicção se aproxime do que realmente ocorreu, adequando-a à tutela dos direitos em jogo. É a conclusão a que chega BEDAQUE, ao, sabiamente, expor que:
“Não pode o julgador, é óbvio, transformar a verdade no fim do processo e só decidir quando se sentir convicto de havê-la encontrado. Verdade e certeza são conceitos absolutos, dificilmente atingíveis. Mas é imprescindível que se diligencie a fim de que o grau de probabilidade seja o mais alto possível. Quanto maior sua participação na atividade instrutória, mais perto da certeza chegará.”10
É importante dizer que quando os direitos em jogo são indisponíveis, tendo em vista seu próprio caráter, a diligência do juiz é não só aceitável como amplamente necessária. Entretanto, parte da doutrina afirma que, quando direitos disponíveis estão em jogo, o juiz, sobre eles, não poderia exercer seu poder instrutório.
Penso ser mais correta, contudo, a posição diversa, segundo a qual “é irrelevante a natureza do direito (se disponível ou indisponível) no que se refere à iniciativa oficial de
produção de provas.” 11 Havendo controvérsia, ela basta para a possibilidade de o juiz auxiliar
na instrução processual relativamente àquele fato.
7 MOREIRA. p. 386.
8 Ressaltando a pouca utilização de tal norma, BARBOSA MOREIRA: “Relativamente à solução do litígio, cumpre
ressaltar: a) a escassez de iniciativas instrutórias oficiais, ainda quando manifesta a conveniência de esclarecer questões de fato relevantes, a cujo respeito se mostram insuficientes os elementos de prova trazidos pelas partes.” (Participação do juiz no processo civil, p. 383 e 384).
9 “Quanto mais o provimento jurisdicional de aproximar da vontade do direito substancial, mais perto se estará
da verdadeira paz social.” (BEDAQUE. p. 11).
10 BEDAQUE. p. 14 e 15. 11 DIDIER. p. 76.
É que a disponibilidade ou indisponibilidade dos direitos não reflete na adoção, por parte do legislador, do princípio dispositivo, em alguns casos, e do princípio inquisitório, em outros. Ainda que nosso sistema seja considerado misto, no que concerne à atividade
probatória, é o principio inquisitório que possui prevalência12. Nesses termos, por escolha do
legislador, a atividade probatória cabe tanto às partes quanto ao juiz, nos casos em que entenda necessário para a correta tutela dos direitos em jogo, independendo a disponibilidade do direito.
BEDAQUE igualmente fornece explicação para a irrelevância da natureza do direito quando se fala em produção de provas por parte do julgador. Para ele, as atividades de instrução da causa não possuem qualquer relação com o direito material, e sim com a relação processual:
“Conclui-se assim que a denominação ‘princípio dispositivo’ deve expressar apenas as limitações impostas ao juiz, em virtude da disponibilidade do direito; e que são poucas, pois se referem aos atos processuais das partes voltados diretamente para o direito disponível. As demais restrições, quer no tocante ao início do processo, quer referentes à instrução da causa, não têm qualquer nexo com a relação material; não decorrem, portanto, do chamado ‘princípio dispositivo’.”13
Ademais, como amplamente demonstrado, a assunção de meios probatórios está entre
os deveres do juiz.14
Desta forma, claro é que os limites inerentes à atividade probatória do magistrado são muito poucos. Deve respeitar, contudo, o princípio da demanda, não podendo fazer provas sobre fatos não relacionados ao pedido do autor e por ele alegados ou aos argumentos de
defesa utilizados pelo réu15. Em outras palavras, deve haver, no mínimo, controvérsia a
respeito do fato probandi.
12 Esclarecendo sua opinião, com a qual concordo, Didier: “nada impede que o legislador, em relação a um
tema, encampe o ´princípio dispositivo’ e, em relação ao outro, o ‘princípio inquisitivo’. Por exemplo: no direito processual civil brasileiro, a instauração do processo e a fixação do objeto litigioso (o problema que deve ser resolvido pelo órgão jurisdicional) são, em regra, atribuições da parte (art. 128, 263 e 460, CPC). Já em relação à investigação probatória, o CPC admite que o juiz determine a produção de provas ex oficio (art. 130 do CPC).” (DIDIER. p. 75).
13 BEDAQUE. p. 71).
14 É a constatação trazida por BEDAQUE, ao citar Mauro Cappelletti, p. 71.
15 “Assim, objeto da prova são as afirmações, os relatos que, dos fatos ocorridos no passado, as partes fazem
Depois de feitas as antecedentes constatações, importante pensar sobre situações em que, fazendo um juízo de valor pessoal, o juiz chegue à conclusão de que todas as provas essenciais ao julgamento da lide e possíveis de serem feitas, foram produzidas, mas que ainda assim, não chegou a um grau mínimo de certeza a respeito da lide.
É exatamente a estas situações - situações de dúvida – que se destina a regra do ônus probatório. Em que pese a divergência doutrinária, esta deve ser vista como um regra de julgamento, a ser utilizada somente nos casos em que, após a produção probatória das partes, e tendo o juiz diligenciado para encontrar as respostas a seus questionamentos concernentes à demanda, continue não possuindo certeza. Sobre o tema, disserta ARENHART:
“A função da regra do ônus da prova, pois, não seria a de disciplinar a conduta das partes, mas sim a de orientar o julgamento do magistrado. Sempre que o juiz, ao ser instado a decidir a controvérsia, não se sinta seguro em relação aos fatos (não vendo mais qualquer possibilidade de buscar prova a seu respeito), mantendo ainda assim o dever de julgar, deverá decidir segundo os critérios atribuídos pelas regra de ônus da prova.”16
O E. Superior Tribunal de Justiça, pacificando a questão em julgamento um tanto quanto contraditório, entendeu ser o ônus da prova regra de julgamento, mas que também serve para direcionar a conduta das partes. A conclusão a que os Exmos. Ministros chegaram é a de que:
“a inversão ‘ope judicis’ do ônus da prova deve ocorrer preferencialmente na fase do saneamento do processo ou, pelo menos, assegurando-se à parte a quem não incumbia inicialmente o encargo, a reabertura de oportunidade para apresentação de provas.”17
Esquecem-se os d. Julgadores que a conduta das partes não deve ser pautada apenas na regra do ônus probatório, mas principalmente nos princípios de lealdade e colaboração, estampados em nosso ordenamento.
Nesse sentido é que, salvo melhor juízo, a regra do ônus da prova é apenas regra de julgamento; caso nem o juiz nem as partes tenham obtido êxito, ao produzir todas as provas possíveis – sem que se criem entraves à duração razoável do processo ou aos limites orçamentários das partes e do Estado –, em chegar ao grau de certeza desejável, deve ser utilizada a regra prevista no art. 333 do CPC ou alguma de suas variantes – em circunstância
16 ARENHART. p. 06.
de necessidade/previsão legal de inversão. Impossível, desta feita, prever de antemão (no saneamento do feito) se será necessário utilizar das regras de divisão do ônus probandi.
Imperativo, pois, que nossos julgadores tenham cada vez papel mais atuante na construção e instrução do processo, a fim de que a tutela dos direitos não fique apenas presa nas molduras de nosso ordenamento jurídico, mas ganhe existência e concretude na prática dos jurisdicionados.
Referências Bibliográficas
ARENHART, Sérgio Cruz. A verdade e a prova no processo civil. In: Revista Iberoamericana de derecho procesal, Buenos Aires, 2005.
___________________. Ônus da prova e sua modificação no processo civil brasileiro. Publicado no site da Academia Brasileira de Direito Processual Civil.
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes instrutórios do juiz. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994.
CRESCI SOBRINHO, Elicio de. Dever de veracidade das partes no processo civil. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988.
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processul civil: Teoria geral do processo. Bahia: Editora Jus Podivm, 2010.
KNIJNIK, Danilo. A prova nos juízos cível penal e tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2007, MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Processo de conhecimento. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro: exposição sistemática do procedimento. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
_________________________. ‘A participação do juiz no processo civil’ in Participação e processo. Ada Pellegrini Grinover/Cândido Rangel Dinamarco/ Kazuo Watanabi (coord.). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1988
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. São Paulo: Saraiva, 1995,
SILVA, Ovídio Araújo Batista da; GOMES, Fábio. Teoria Geral do Processo Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.