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RACIONALIZAÇÃO E RACIONALISMO

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Academic year: 2021

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RACIONALIZAÇÃO E RACIONALISMO

NA TEORIA DE MAX WEBER

Daniel Vasconcelos Campos

RESUMO

Este artigo trata de alguns fundamentos da socio-logia de Max Weber. As noções de racionalização e racionalismo são usadas na busca pelas justificativas teóricas de sua perspectiva metodológica. Situada no quadro das ciências da cultura, a sociologia

compreensiva é apresentada como uma forma de conhecimento que se ocupa com o trabalho de auto-crítica. Em sua diferença específica, ela é vista como uma proposta de abordagem da realidade social pelo paradigma da ação racional referente a fins.

PALAVRAS-CHAVE Max Weber sociologia compreensiva racionalismo racionalização ciências da cultura

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NUMDOSDIÁLOGOSMAISSIGNIFICATIVOSQUE Max Weber trava com seus con-temporâneos, seu contato com a perspectiva epistemológica dos neokantianos de Baden dá o tom para a crítica a uma forma de conceber a pesquisa da realidade social. A procura pela particularidade do conhecimento racional da cultura remonta especialmente a Rickert e seu esforço em distinguir as ciências segundo o método. Ao criticar o que chama de “naturalismo conceitual”, Weber também separa os métodos das ciências da natureza e da cultura, mas seu trabalho vai além disso. Interessa-lhe a fundamentação de uma nova proposta metodológica. Convencido de que o caminho apontado pelas ciências da natureza não pode ser seguido pelas ciências da cultura, Weber combate uma tendência que acredita existir desde o surgimento da economia política no contexto do Iluminismo. A seu ver, as ciências da cultura nascem naturalistas, ou seja, são, desde o início, fundadas na crença em que a verdade do objeto deve ser alcançada através de generalizações abstra-tas. Weber não questiona o valor dessa crença para as ciências da natureza, mas condena sua aplicação irrestrita à abordagem da cultura. Ele indica uma diferença fundamental entre essas duas perspectivas: a maneira como o objeto é concebido por cada qual. Enquanto o conhecimento da natureza se satisfaz com a coisa, isto é, com algo que lhe parece estranho e independente, a investigação da cultura deve partir de uma identidade com seu objeto, deve reconhecer que a atitude subjetiva de criar conceitos também está presente nele. Definida a cultura como objeto, é a atividade humana que conhece e que é conhecida, são dois níveis de construção de significado que se relacionam. É preciso compreender o objeto como um ato do sujeito do conhecimento. Mas, para tanto, também deve ser construída uma ima-gem do próprio sujeito, sem a qual não haveria qualquer medida da interferência do pensamento no que aparece como realidade. A conceituação da modernidade é uma forma de fazer isso, em que se associa o trabalho do cientista aos valores que caracterizam um presente singular.

Num esforço de autocompreensão e autocrítica, propondo-se a tarefa de localizar seu pensamento na história, Weber apresenta uma sociologia que, em conjunto com o mundo capitalista e a impessoalidade administrativa, reproduz a

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valorização moderna da razão e espelha a primazia do cálculo na constituição do conhecimento. A demarcação dos limites dentro dos quais a sociologia se coloca como forma válida de conhecimento é associada à contingência histórica de uma época e o uso do método racionalista surge como recepção reflexiva de uma par-ticularidade cultural, isto é, como expressão autoconsciente de um racionalismo de domínio do mundo.

Neste artigo, abordam-se alguns aspectos da gênese da sociologia compre-ensiva, em particular a importância das noções de racionalismo e racionalização para a constituição de uma imagem do presente. O foco são as justificativas contextuais do método das ciências da cultura e, num desdobramento, a defesa da fundamentação crítica do pensamento sociológico como atribuição de sentido ao mundo das ações.

A TAREFA DAS CIÊNCIAS DA CULTURA

O artifício heurístico de dividir a obra de Weber em dois momentos de formulação metodológica não é uma novidade. Essa distinção já aparece, por exemplo, nos comentários de Tenbruck, em que se aponta para uma passagem “da consideração de fatos históricos para a de processos sociologicamente interpretados” (1980: 322). Ou ainda, em Mommsen: da “reconstrução de um segmento particular do processo histórico” à “reconstrução tipológica da história universal” (1989: 130). Apesar de o foco deste artigo ser a segunda fase dessa distinção, particularmente a noção de sociologia compreensiva, que somente começa a ganhar forma a partir de 1912-1913, é importante retornar a alguns questionamentos metodológicos anteriores, de outro período decisivo da teoria de Weber – a discussão do método da história, a que se consagram alguns ensaios escritos em 1903-1906 –, para recuperar a justificativa teórica de uma atitude que se reproduz em toda sua obra: o compromisso com a tarefa do cientista da cultura.

Em A “Objetividade” do Conhecimento na Ciência Social e na Política Social, de 1904, Weber apresenta as ciências da cultura como forma de conhecer a his-tória. No ambiente acadêmico da Alemanha, a época é marcada por um debate sobre as atribuições da economia enquanto ciência: a “controvérsia metodológica” entre os partidários de Menger e Schmoller, que coloca a discussão da história nos termos de uma disputa por espaço institucional. Mais do que um confronto entre duas propostas de método, o embate entre “marginalistas” e “historicistas” é marcado pelo sectarismo. Como mostra Schumpeter (1964: 81-82), ele tem mais sentido sociológico que epistemológico. Mas Weber não vive o momento mais

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intenso da disputa e se exime da necessidade de defender um partido. À época em que é chamado ao debate, ele assume uma posição que, até certo ponto, pode ser considerada conciliadora. Reconhece a validade de ambos os métodos, o que não o impede, entretanto, de fazer uma escolha e, com isso, aproximar-se mais de Schmoller e do historicismo. Apesar de reconhecer a importância heurística das construções abstratas, tais como as que caracterizam a “lei da utilidade mar-ginal”, Weber aponta para a predominância do conhecimento histórico como objetivo, não apenas da economia, mas das ciências da cultura. A formulação de leis gerais é um “trabalho preliminar” (1986: 91), subordinado à construção das “individualidades históricas”.

Essa espécie de fusão entre os expedientes nomotético e idiográfico é clara-mente reproduzida numa defesa da causalidade adequada. É um engano acre-ditar que, mesmo em suas primeiras definições sobre o método das ciências da cultura, Weber tenha rejeitado terminantemente o conhecimento “nomológico”. Sua rejeição manifesta das “conexões causais regulares”, em que o uso destas é restringido ao estudo da natureza, não o conduz a isso. A imputação de “conexões causais adequadas”, procedimento identificado com as ciências da cultura, deve ser sustentada por um conhecimento nomológico da realidade, ou seja, daquilo “que nos habituamos a esperar geralmente”, e é tanto mais segura “quanto mais seguro e amplo for o nosso conhecimento geral” (Weber 1986: 95). Isso não elimina, contudo, a dependência hierárquica dessa forma de conhecimento com relação ao trabalho de investigar a história em suas particularidades significativas; as generalizações são apenas um meio de que se deve valer o cientista da cultura para a realização desse trabalho.

Por volta de 1912, entretanto, quando assume o trabalho de fundamentar a sociologia compreensiva, Weber parece tomar outro ponto de vista, em que a hierarquia dos métodos é modificada. Um sinal disso é a afirmação, feita em 1913, nos Conceitos Sociológicos Fundamentais, de que a sociologia, divergindo substan-cialmente da história, “procura regras gerais dos acontecimentos” (Weber 1991: 12). É certo que, com isso, ela não é separada do gênero das ciências da cultura, mas o estatuto destas se torna mais transigente; além de meio para o conhecimento, a construção de conceitos gerais pode também ser um fim.

Nesse sentido, é preciso buscar outro princípio, ainda mais abrangente que o objetivo de conhecer a realidade histórica, para que se possam classificar dis-ciplinas que divergem entre si quando manifestam interesse ou pelo particular ou pelo geral. Ainda no texto de A “Objetividade” do Conhecimento na Ciência

Social e na Política Social, paralelamente à ênfase no interesse histórico, é

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conceito. Weber afirma que “os maiores progressos no campo das ciências so-ciais estão ligados substantivamente ao deslocamento dos problemas práticos da civilização, e assumem a forma de uma crítica da construção dos conceitos” (1986: 121). O desenvolvimento das ciências sociais, e da cultura (Weber não diferencia esses termos), é condicionado à força das questões atuais, daquelas que têm efetividade prática. Isso poderia ser interpretado como defesa de uma ciência aplicada, voltada para a solução de problemas da vida prática, mas, como indica sua rejeição da economia política vista enquanto “técnica” (1986: 101), o que Weber defende é justamente o contrário. Na linha das cisões neokantianas entre as ciências, Weber circunscreve a atribuição de técnica de domínio do mundo à investigação da natureza. O objetivo das ciências da cultura é, antes, a crítica dos conceitos que ganham sentido na medida em que se relacionam com os problemas práticos do presente.

Dentre as ciências da cultura, a sociologia compreensiva configura uma nova forma de relacionar crítica e história. O objetivo que orienta a pesquisa socioló-gica da realidade, para além da tarefa de construir individualidades históricas, é a autocompreensão, o conhecimento do presente através da problematização do mundo moderno e de sua codificação em conceitos unívocos. Após realizar-se na própria gênese dos objetos históricos, a crítica do conceito é, então, transferida para a tipificação da modernidade, numa busca pelo significado histórico-universal do presente. É assim, na medida em que adota uma nova finalidade, mas mantém o ajuste fundamental com a autocrítica, que, adiante, a sociologia compreensiva é tratada como ciência da cultura.

RAZÃO E MÉTODO COMPREENSIVO

Em seu esforço de sistematização da sociologia compreensiva, bem caracterizado nos Conceitos Sociológicos Fundamentais, a forma que Weber dá ao universo das ações motivadas é adequada aos limites da formação de conceitos nas ciências da cultura: o cálculo das causas e dos resultados é tomado como atributo típico, que se empresta a um indivíduo que geralmente age sem ter consciência plena de seus motivos. A idéia de sentido, referência para o questionamento das bases subjetivas da ação, não se sustenta como representação de algo que existe na realidade, mas como artifício analítico, cuja validade não se define por uma realização empírica no objeto, mas pelo significado efetivo com que é empregado pelo sujeito investi-gante. Sendo comum a determinação pelo instinto ou pelo hábito, a ação só possui sentido numa situação típica, num “caso limite” (Weber 1991: 13).

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Ao conceber o mundo social como resultado da manifestação de interesses individuais, Weber não confia na predominância prática de um agir consciente; a experiência pode apresentar situações em que as ações sociais mantêm sua definição, ou seja, em que elas possuem verdadeiramente um sentido, mas isso não é necessário. Como ressalta Cohn, a investigação causal proposta por Weber não remete a “atributos objetivos” do mundo, mas à “capacidade dos homens de criarem a racionalidade como valor” (Cohn 1979: 82).

Apesar disso, como se nota na “Consideração Intermediária” à Ética

Econômi-ca das Religiões Mundiais, texto de 1913-1915, Weber ressalta que, antes de fazer

parte de qualquer intervenção heurística, como um valor, a razão deve ser situada entre as “forças da vida histórica” que verdadeiramente exercem “poder sobre o homem” (Weber 1980: 239-240). Dentre essas forças, contudo, o que faz com que a razão mereça uma atenção diferenciada, o que a dispõe como um paradigma da sociologia compreensiva, não é uma necessária preponderância no que ocorre. Se, no curso da história, ela efetivamente influi no processo de constrangimento social das ações, sua autoridade nem sempre predomina. A peculiar atenção que Weber lhe dispensa não é uma imposição da prática, mas um compromisso teórico. É a identificação da sociologia com os valores da modernidade, ou o decorrente interesse em constituir, através dela, uma abordagem moderna da realidade, o que coloca o conceito de razão como o principal problema a ser considerado pela disciplina. Fundamentalmente, o sentido que a sociologia confere às ações é sempre racional – o subjetivamente visado implica um agir consciente de sua determinação – mas a sociologia pretende abarcar também o comportamento irracional e, portanto, tendo a ação racional por modelo, confere sentido (um sentido sociológico) à ação que não o possui, ou seja, pressupõe uma relação entre meios e fins mesmo nas situações em que não há cálculo.

Na “Consideração Intermediária” à Ética Econômica das Religiões Mundiais, Weber evidencia a perspectiva metodológica de sua sociologia:

Acima de tudo, um ensaio assim sobre a sociologia da religião visa, neces-sariamente, a contribuir para a tipologia e sociologia do racionalismo. Este ensaio, portanto, parte das formas mais racionais que a realidade pode assumir; procura ele descobrir até que ponto certas conclusões racionais, que podem ser estabelecidas teoricamente, foram realmente formuladas. E talvez descubramos por que não (Weber 1980: 240).

Por meio da idéia de razão, Weber define um padrão de pensamento em que se deve reunir e codificar a diversidade dos temas sociológicos. Tudo quanto re-sulta da análise interpretativa da ação social não pode fugir à aplicação do ponto

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de vista racional: determinado direcionamento das ações deve ser cogitado como se efetivamente estabelecesse objetivos evidentes e maneiras claras de realizá-los e, se irracional, deve ser compreendido como realização imperfeita de um agir verdadeiramente significativo. No que se segue, são abordados alguns momentos da justificativa weberiana para a adoção desse viés metodológico.

RACIONALIZAÇÃO COMUNAL E RACIONALIZAÇÃO SOCIETAL

Ressaltando a diversidade dos usos que Weber faz do conceito de razão, Habermas destaca dois momentos de sua teoria: de um lado, a tipificação da racionalidade referente a fins, claramente delimitada na tarefa de apresentação das esferas societais da modernidade; de outro, a associação obscura do conceito de razão à idéia de desencantamento religioso do mundo, que dá origem a uma tese sobre o surgimento do racionalismo ocidental (Habermas 1983: 143).

Um caso em que a confusão parece aumentar é quando ambos os usos apre-cem juntos, num mesmo argumento. Isso acontece, por exemplo, num trecho do artigo Sobre Algumas Categorias da Sociologia Compreensiva, publicado em 1913, para o qual Pierucci chama atenção. Nesse trecho, Weber afirma que a ação referida em “representações mágicas” é “subjetivamente muito mais racional com relação a fins do que qualquer comportamento ‘religioso’ não mágico” (citado em Pierucci 2004: 47). Essa afirmação parece contrariar o que Weber considera como racionalização religiosa do mundo, em que, comparada a concepções mágicas da realidade, a vigência das religiões éticas determina um contexto de maior raciona-lidade. Acreditando que, por trás disso, “há uma ambiciosa teorização”, Pierucci afirma que a contradição foi usada por Weber para ressaltar a base “materialista” da religião (Pierucci 2004: 68 e ss.), ou seja, sua fundamentação a partir de um “interesse religioso” orientado para as realizações “neste mundo”. Nesse sentido,

atestar que a magia é mais racional referente a fins do que a religião significa di-zer que ela possui maior utilidade mundana. Em contraste com a determinação ético-religiosa dos fins, que transfere o sentido das ações para a crença no “outro mundo”, ela oferece meios para a execução de objetivos da “vida real”. Numa alusão aos termos com que Weber, na discussão que se seguiu à primeira publicação de

A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo (2004: 175), responde à crítica

de Brentano: o racionalismo hedonista da magia é mais racional referente a fins que o racionalismo ético da religião.

Diante disso, torna-se necessário dizer em que medida o ascetismo pode representar um estágio de maior racionalização que a magia. Para Pierucci, isso

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ocorre quando se trata de uma “racionalização teórica”, uma “intelectualização”, em que a religião se afirma como forma de “controle sobre a vida prática dos leigos” (Pierucci 2004: 70). Mas este não é o único sentido que cabe à idéia de racionalização religiosa sugerida por Weber. Ela também pode significar um movimento que acompanha a acentuação da irracionalidade da religião1. Sendo esta progressivamente transferida para o “mundo do irracional” e também des-viada para o “reino do irreal” (Weber 1982b: 324), para a fixação de fins últimos totalmente desprendidos da vida prática, põe-se em marcha o desenvolvimento de um racionalismo secular, em virtude do qual o contexto histórico marcado pela religiosidade ética, mais do que a situação em que vigora a magia, aproxima-se de uma “racionalização da vida prática” (Weber 1982b: 325). Assim, se por um lado a idéia de racionalização religiosa assinala um movimento interno à esfera da religião, por outro, significa também um movimento externo, de outras esfe-ras de valor, que ganha autonomia na medida em que a religião se dispensa do papel de técnica de domínio do mundo. Um racionalismo de domínio do mundo característico à modernidade é efetivado na constituição de esferas societais dissociadas da religião.

A racionalização religiosa pode ser considerada, portanto, como um processo que ocorre, simultaneamente, nos níveis teórico e prático. À maneira de uma inte-lectualização, ela tem uma dimensão teórica, mas, na medida em que transcende o âmbito da sistematização do pensamento, também possui uma dimensão prática. Nessa dimensão prática, a religião configura um momento histórico de maior racionalização graças àquilo que justamente a torna mais irracional que a magia, isto é, graças a seu maior distanciamento com relação ao mundo. O mundo que supera o animismo mágico torna-se, pela referência do racionalismo moderno, mais racional, na mesma medida em que as idéias religiosas que nele sobrevivem parecem mais irracionais. Nos termos da “Consideração Intermediária” à Ética

Econômica das Religiões Mundiais, o desenvolvimento das religiões na história

1

Com isso, sugere-se um foco diferente do que fora aplicado por Pierucci. Não se trata, contudo, de uma tentativa de refutar seu ponto de vista. A idéia de uma racionalização imanente à religião pode ser encontrada em muitos momentos da obra de Weber, como na discussão sobre as teodicéias, feita na Ética Econômica das Religiões Mundiais, ou mesmo na busca pelo papel positivo da religião no processo de racionalização da cultura ocidental, que orienta seus esforços em A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. A perspectiva defendida aqui é, portanto, a de explorar uma tese menos evidente, em que o foco, apesar da ênfase que Weber efetivamente confere ao movimento interno à religião, é a contrapartida da raciona-lização religiosa no mundo da prática, é a racionaraciona-lização societal que se acentua conforme a religião caminha para a evidência de sua irracionalidade.

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do Ocidente é um processo em que a “organização externa do mundo” se torna cada vez mais racional, sendo mais e mais “sublimada a experiência consciente do conteúdo irracional do mundo” (Weber 1980: 266).

Mas, como se nota em grande parte de sua obra, Weber procura compreender o papel da religião nesse movimento que parece ser fundamentalmente alheio a ela, seu papel como elemento que efetivamente influi na formação do racionalismo moderno, isto é, não apenas como “algo negativo” (Weber 2004: 62), não pela perda de influência, mas por seu caráter orientador no processo em que ela própria é despojada de uma função mundana. Ao considerar a formação da identidade de sua época, Weber geralmente passa pelo tema da religião, demonstrando grande interesse pela evolução das “teodicéias” na história do Ocidente. Tal evolução, contudo, não é claramente apresentada como um movimento histórico. As noções de desencantamento e racionalização religiosa não sugerem o posicionamento objetivo das diversas religiões numa linha evolutiva. Em vez disso, Weber concebe o movimento através de uma construção tipológica.

Na “Introdução” à Ética Econômica das Religiões Mundiais, o proces-so de desencantamento do mundo é apresentado numa perspectiva formal. A origem “materialista” do processo é localizada numa relação entre a religião e o problema do sofrimento humano2. A racionalização religiosa acompanha o de-senvolvimento das soluções que o pensamento religioso oferece a esse problema. De início, o sofrimento é visto como fruto da natureza, num antropomorfismo que o remete à ação direta de divindades no mundo. Com a noção de pecado, a gênese do sofrimento imposto pela vida ganha uma significação religiosa e, através dela, como castigo divino à maldade, explica-se a distribuição desigual do sofrimento entre os homens. Mas como nem sempre os considerados maus são mais punidos pela vida, a racionalização religiosa caminha para a dissolução da idéia de pecado e para a formação de uma religiosidade predestinacionista (Weber 1982b: 313 e ss.).

Nesses termos, a “teodicéia do sofrimento” evolui da necessidade de que se tenha algum controle sobre o acaso à expectativa por uma salvação imaterial. Efetivamente, Weber não estabelece marcações intermediárias nesse processo; apenas seu início e seu fim são apontados com clareza. Como sugere um trecho da segunda versão de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, a

raciona-2

O “materialismo”, aqui, é dado pelo posicionamento da religião “a serviço dos motivos especificamente plebeus” (Weber, 1982b: 315). Com isso, é concebida uma “teodicéia do sofrimento” fundamentalmente identificada com a busca de soluções para o sofrimento efetivo das massas.

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lização religiosa da civilização ocidental tem início com as “profecias do judaísmo antigo” e fim, com o “puritanismo” (Weber 2004: 96).

Essa fixação do puritanismo como término do processo de desencantamento do mundo pressupõe também o fim da teodicéia do sofrimento. Qualquer crença no poder determinante que as ações humanas poderiam ter sobre a vontade divi-na é abolida. Para as religiões protestantes, marcadamente para o calvinismo, a conduta efetiva dos homens nada influi na substância transcendental que governa o destino. O animismo mágico está inteiramente superado e reina um Deus oculto, de que se ignoram as determinações inexoráveis.

A racionalização atingida no puritanismo, que evidencia a natureza irracional da doutrina, livra a religião da necessidade de provar sua eficácia pela experiência. Há uma separação entre o mundo da prática e a verdade religiosa, em que a “unidade da imagem primitiva do mundo” divide-se “em conhecimento racional e domínio da natureza, de um lado, e em experiências místicas, do outro” (Weber 1982b: 325).

Localizada nesse processo, a época moderna é caracterizada como uma situ-ação em que a sobrevivência dos valores religiosos, privados de sua centralidade como fator determinante das ações, é apenas residual e remonta a uma forma de pensar que, no presente, carece inteiramente de sentido. Com a auto-aniquilação do pensamento religioso, a racionalização do mundo social passa a ser concebida como um processo específico às esferas societais da modernidade.

Seguindo uma dicotomia que, já em 1887, Tönnies havia explorado em seu

Comunidade e Sociedade, Weber apresenta, nos Conceitos Sociológicos Fun-damentais, dois tipos de constrangimento das ações, ou ainda, duas formas de

compreender a ação social, a partir da contraposição entre “relação comunitária” e “relação associativa” (Weber 1991: 25 e ss.). O primeiro tipo configura a limitação interior dos interesses, prevista na formação de entidades coletivas a partir de relações comunitárias, ou, dito de outra maneira, no estabelecimento de grupos por indivíduos que mantêm um “sentimento subjetivo” de pertencimento a eles; o segundo, por sua vez, apresenta uma limitação exterior, sugerida no conceito de relação associativa, em que é considerada a formação de grupos pelo “ajuste” ou pela “união” de “interesses racionalmente motivados”. Seguindo essa terminologia, o processo de racionalização histórico-cultural do Ocidente pode ser desmembrado em dois momentos: primeiramente, um processo de caráter comunal, condicionado pelas diretivas éticas do pensamento religioso, e, depois, um movimento societal, definido principalmente na valorização do cálculo, na sistematização teórica e na burocratização das instituições modernas.

O fim do desencantamento religioso marca o início da racionalização societal, um processo imanente à modernidade, cuja investigação, na medida em que

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com-põe uma imagem significativa do presente, assume um papel importante para a sociologia compreensiva. Nas páginas finais de A Ética Protestante e o “Espírito”

do Capitalismo, Weber apresenta uma dimensão desse processo, destacando a

autonomia do capitalismo com relação às idéias que conduziram a história até então e que influenciaram positivamente a formação do próprio capitalismo. O imperativo da ética protestante sobre a ação do puritano é um “arrimo” que o “ca-pitalismo vitorioso” dispensa “desde quando se apóia em bases mecânicas” (2004: 165). Como racionalização societal, termo largamente utilizado por Habermas em seus comentários sobre a teoria de Weber, entende-se ainda um processo que ocorre na “estrutura institucional” do “estado moderno” (Habermas 1983: 144). Dentre os fatores que constrangem os interesses individuais e dão regularidade ao mundo das ações, as idéias religiosas perdem espaço para a burocracia e, em vez das profecias, a atividade das lideranças políticas torna-se o fundamento mais decisivo da dinâmica social.

Por fim, ao lado do capitalismo e da administração burocrática, o desenvolvi-mento da ciência pode ser ressaltado como dimensão decisiva da racionalização do mundo moderno. Nesse nível, a racionalização compreende a evolução de uma forma de conhecimento em que se rompe com o modelo metafísico característico da perspectiva religiosa. Mediante uma composição entre ética e reflexão que lhe parece facultativa ao homem de sua época e que, entre outras coisas, estabelece a necessidade (ética) de que a ciência seja uma “vocação” dedicada ao trabalho de “auto-esclarecimento” (1982a: 180), Weber vincula a modernidade a uma perspectiva de valor e, com base nisso, sugere que a ciência tenha por questão fundamental uma forma de pensar característica a essa perspectiva.

RACIONALISMOS E RACIONALISMO MODERNO

A diversidade das formas em que Weber situa a gênese e a história do conceito de razão, sustenta-se numa concepção axiológica de seu uso e validade. Como um conceito de valor, a razão é associada a diferentes pontos de vista e finalidades. Por exemplo, há racionalismo e racionalização nos campos da “contemplação mística [...], da Sociedade, da técnica, do trabalho científico, da educação, da guerra, do direito e da administração” (1996: 11). A serviço de valores últimos conflitantes, a qualificação “racional” pode designar atitudes contraditórias. É certo que Weber não oferece uma definição clara do conceito de razão, mas isso não significa que se descuida no uso que faz dele. Se, em sua teoria, tal conceito carece de defini-ção e flui em significações e papéis distintos, é prudente reconhecer que Weber

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o concebe assim, como um conceito essencialmente fluido, que perde o sentido se dissociado de seu compromisso com diferentes valores. Assim, os momentos em que Weber posiciona a razão como problema, dentre os quais está a própria definição da sociologia como ciência do sentido da ação (isto se pôde notar na discussão sobre o método compreensivo, feita há pouco neste artigo), indicam um interesse pelo estudo das bases axiológicas de uma época específica, ou seja, um esforço para compor, a partir da ênfase no racionalismo característico dessa época, uma figuração do tempo presente.

Isso legitima uma idéia de racionalização, bem como a fixação das instituições do Ocidente moderno como as mais racionais que já houve. Se, na Índia ou na China, “não alcançou o desenvolvimento científico, artístico, político ou econô-mico, o mesmo grau de racionalização que é peculiar ao Ocidente” é “porque, em todos os casos citados, trata-se do ‘racionalismo’ específico e peculiar da cultura ocidental” (Weber 1996: 11). Nesse sentido, sendo concebida a sociologia como uma expressão do pensamento moderno e situada numa relação com valores, a universalidade da ação racional referente a fins, sua definição como o que há de mais racional, é válida apenas como um artifício do método compreensivo.

O progresso do racionalismo moderno pode ser traduzido como desenvol-vimento da percepção cultural da realidade, o que significa o afastamento de certezas naturais, ou ainda, a separação progressiva entre subjetividade e valores, em que uma perda de sentido introduz-se como contrapartida da racionalização: “cada passo à frente da cultura parece condenado a levar a um absurdo ainda mais devastador” (Weber 1980: 266). Assim, a atuação reflexiva do homem moderno em relação a tudo quanto possa determinar seu comportamento, ao contrário do que se poderia esperar, não o liberta, mas produz o sentimento de que, deixando suas convicções subjetivas (interiores), ele se encontra invariavelmente agrilhoado a concepções culturais (exteriores) do mundo. O decorrer da racionalização não implica uma dissolução dos imperativos sociais que influenciam o agir, apenas significa que o indivíduo está cada vez mais certo de que os sofre. A racionalização, se não intensifica o aprisionamento das ações numa ordem, deixa o indivíduo livre somente para que possa perceber sua falta de liberdade.

A modernidade ocidental é caracterizada pela vitória da racionalidade formal sobre a substantiva, ou seja, pela predominância de uma ação fundamentada no cálculo referente a fins3. A passagem de um tipo de racionalidade para o outro pode

3

Utiliza-se, para a conceituação dessas duas formas de racionalidade, a leitura sugerida por Mommsen (1989: 128), em que elas são apresentadas como equivalentes: a) a formal, de uma racionalidade referente a fins e b) a substantiva, de uma racionalidade referente a valores.

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ser concebida como acréscimo teórico, em que o pensamento abandona progres-sivamente uma expressão quase intuitiva para tomar a tarefa de sistematização formal do conceito. Nesses termos, racionalização significa substituição da crença pela instrumentalidade como característica principal do sujeito e, para além de uma teoria do conhecimento, significa o crescimento do formalismo na regulação das ações. O caráter normativo desse processo sugere uma mudança no nível da padronização das ações, que se transfere do “uso” ou do “costume”, numa relação comunitária, para a “situação de interesses”, numa relação associativa (Weber 1991: 25 e ss.). Assim, a validade de uma ética para a modernidade ocidental, ou algo equivalente a isso, traz imanente um princípio de coerção – que substitui a referência da moralidade – como garantia externa de que as ações individuais sigam formas coletivas de valoração da vida. Isso compõe o panorama, talvez contraditório, de uma orientação do agir por valores que representam o tolhimento exterior dos interesses individuais, ou ainda, que sobrevivem numa dimensão contratual da convivência.

Nesse contexto, o que dá vida própria às esferas de valor, o que as transforma em deuses e demônios ciumentos, é a sua exteriorização. Elas se afastam do mundo interior dos indivíduos e, como parte de uma realidade que os coage, tornam-se efetivamente perceptíveis. Em sua maneira de abordar a “história” das esferas de valor, Weber parece buscar a significação que estas têm para o sujeito moderno: sua importância real para as escolhas que permeiam o mundo das ações.

Como atributo típico desse sujeito, a consciência de que existem valores contraditórios fixa a possibilidade de conhecer a realidade como cultura. O conhe-cimento característico de outras situações de valores ganha significado naquilo em que se aproxima ou se distancia do conhecimento tipicamente moderno. No processo em que as esferas de valor se diferenciam e sistematizam seu conteúdo, sendo “cada vez menos provável que a ‘cultura’ e a luta pela cultura possam ter um significado do mundo interior para o indivíduo” (Weber 1980: 266), ou ainda, no processo em que o indivíduo exterioriza os valores e se torna consciente deles, é sugerida uma tese sobre a peculiaridade cognitiva do Ocidente: a tese do sentido subjetivamente visado. A adoção da ação racional referente a fins como modelo para a pesquisa da realidade reflete um compromisso cultural, em que é contex-tualizado o conhecimento científico. Ao tomar para si a perspectiva do sociólogo,

O uso dessas associações permite que se dê maior destaque à transição, percebida na forma como Weber aborda o tema da racionalidade, do nível individual para o social. O sentido da ação individual, compreendido na racionalidade referente a fins, associa-se à configuração cultural de uma época, caracterizada pela racionalidade formal.

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Weber situa seu pensamento como manifestação de uma época que encontra na

instrumentalidade e na autoconsciência duas faces daquilo que talvez seja seu

valor mais estimado: seu racionalismo.

Como foi visto, dentre as atribuições que Weber confere às ciências da cultura, a tarefa de construir um conhecimento autoconsciente é proposta desde o debate sobre o método da história. Mas a preocupação com a instrumentalidade, por sua vez, é algo que a perspectiva do sociólogo acrescenta. O esforço que Weber faz no sentido de orientar a sociologia compreensiva para a tipificação da racionalidade instrumental tem a marca de um posicionamento epistemológico: seu compromis-so com a crítica do conceito não é filosófico, é um compromiscompromis-so com a produção cultural de uma época. Em posse de um paradigma que busca reproduzir uma forma de pensar identificada com o presente, Weber ressalta a dependência da crítica em relação ao contexto histórico-cultural em que é gerada. No trabalho da sociologia compreensiva, ela não é um produto da consciência ou da verdade universal, mas uma atividade do homem moderno.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ABSTRACT

This article aims at discussing some founda-tions of Max Weber’s sociology. The theoretical justification of his methodological approach is examined through the notions of rationalization and rationalism. Among the cultural sciences, the

comprehensive sociology is presented as knowledge concerned with the work of self-criticism. In its specific difference, this approach is seen as a project to reach the social reality by means of the purposive rational action paradigm.

KEY WORDS Max Weber comprehensive sociology rationalism rationalization cultural sciences RECEBIDO EM abril de 2008 APROVADO EM setembro de 2008

DANIEL VASCONCELOS CAMPOS

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