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A problemática da violência relacionada a crianças e adolescentes

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Academic year: 2021

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A

problemática

da

violência

relacionada

a

crianças

e

adolescentes

Resumo

Este artigo é uma reflexão acerca da problemática da violência relacionada a crianças e adolescentes em nossa sociedade. Procuramos (re)-pensar o tratamento oferecido a estas crianças, assim como sobre o papel da educação na construção de sua cidadania. Como as crianças e adolescentes são tratados na sociedade brasileira? E por que aqueles que estão sob a “mira” da violência são também partes desta violência?

Palavras-chave: adolescência, criança, educação, sociedade, violência

Abstract

This article summarizes some reflections of violence against children and teenagers that currently occurs in our society. It is urgent to re(think) how we deal with them, as well as the role of education for Citizenship in their lifes. Questions like how Brazilian society deals with abandoned children in the past and nowadays? Why the youngsters who suffer violence are also on the practice of infractional acts?

Key-words: narrative, democracy, thought. teenager, children, violence, education, society

Luzia Batista de Oliveira Silva 1

1 Bacharel e Mestre em Filosofia pela PUC/SP, Doutora em Educação pela Faculdade de Educação da USP; com pós-doutorado em andamento no programa de

Antropologia/Ciências Sociais da PUC/SP. Atualmente é docente credenciada pela FUNDAP, no Programa de Gestão de Pessoas; professora adjunta da UNIMEP, no PPGE – Programa de Pós-Graduação em Educação, Núcleo: História e Filosofia da Educação. Professora prestadora de serviços da pós-graduação da UNIBAN. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa VIOLAR (FE-UNICAMP

Autor para correspondência:

lubaos@gmail.com

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Introdução

“As grandes cidades modernas: New York, Paris, Londres, ocultam atrás de seus casarões lares miseráveis que abrigam crianças subnutridas sem higiene e sem escola, celeiros de futuros delinquentes. A sociedade tenta corrigir este mal, porém, o êxito de seus esforços tem sido muito limitado. Somente no futuro poderemos saber os direitos da criança e do adolescente para que sejam úteis à sociedade. O México é uma grande cidade e, como todas, não foge à regra universal, na qual baseamos este filme. Este filme não é otimista, e deixa a solução deste problema ao progresso da sociedade”.

(Luís Buñuel)

Neste artigo, relaciono as imagens de violência no filme Os esquecidos, de Luís Buñuel, com as obras de Roger Dadoun, M. Maffesoli e outros autores, a fim de discutir a respeito da problemática da violência relacionada a crianças e adolescentes. Inicio estas indagações com a leitura de Roger Dadoun (1998), especialmente por este autor oferecer uma temática pertinente no que tange à violência originária, à qual todos os seres humanos estão sujeitos.

Depois, a leitura das obras de Isabel Cristina da Cunha Frontana (1999) e Glacy Q. de Roure (1996). Estas autoras chamam a atenção para a falta de identidade da criança e do adolescente de rua, aquele que está sob a mira do Estado, da Sociedade e da Imprensa.

Como viver numa cidade grande como São Paulo e não perceber as personagens que vagam pelas ruas, favelas, cortiços? Será a indiferença o gesto equivalente à violência neste caso? O tratamento dado a estas personagens é insuficiente ou perverso?

São nítidas a discriminação e a crueldade, seja por parte da sociedade, da família, das instituições governamentais ou privadas. Deve-se considerar que há violência também na divulgação de imagens distorcidas, não se levando em consideração as mentiras veiculadas, os abusos, as dificuldades destas figuras sociais, que deveriam, no mínimo, serem vistas, ouvidas e depois julgadas.

Por fim, aponto também algumas considerações sobre a questão da educação e da violência segundo I. Kant (1996), M. Maffesoli (1998) e T. W. Adorno (1995).

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A violência segundo R. Dadoun

A Educação é “preparação para a superação permanente da alienação” (Bogdan Suchodolski, In ADORNO, 1995)

O adentrar na vida é caracterizado, segundo Dadoun (1998), por um processo permeado de violência, e este alcança mãe e filho e por que não dizer, toda a família. Geralmente, a chegada de um novo membro é marcada por alegrias, mas também por angústias e expectativas. “A entrada na vida se faz sob o signo da violência” (DADOUN, 1998, p.48) – na mulher, o signo da violência matriarcal marca o processo de “dar a luz a” e, simultaneamente, na criança “que foi expelida de seu mundo biológico” - “[...] ferida original que definitivamente marca e institui ao mesmo tempo o ser humano, violência verdadeiramente ontológica, fundadora” (ibid.) [grifos meus].

A noção mais comum de violência geralmente nos conduz a buscar uma referência externa, tal como constatamos no tratamento dispensado para nossas crianças. Será que é por que somos incapazes de pensá-la, de reconhecê-la internamente? Mas o que não podemos ignorar, segundo Dadoun, é que “...a estrutura essencial do homo violens está sempre presente e em todo lugar” (ibid., p.51).

Mas, o que devemos esperar dos meios educacionais? Como devem julgar/compreender esta questão? Para Dadoun, é necessário “tratar a violência, pois esta é a função fundamental, antropológica, da educação, fundadora da humanidade” (ibid., p.52).

No entanto, Dadoun observa que a escola, infelizmente, só consegue atingir a função técnica – visto que se encarrega, em especial, da transmissão do saber através dos conteúdos que considera indispensáveis. O trabalho individual, as facilidades e as dificuldades que os indivíduos têm para aprender, para ultrapassar conhecimentos, a escola parece não levar em consideração, e isto se caracteriza como violência intelectual, sem contar as várias formas de repressão, como o abuso do saber, do poder etc.

Muitas instituições tentam controlar, domesticar, reeducar os diferentes, na tentativa de conter a violência, por vezes, partindo do

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pressuposto de que elas não são responsáveis pela história (estória) pessoal dos seus envolvidos, não sendo, portanto, responsáveis pela violência manifestada em seu espaço, visto que:

A violência é sempre uma resposta a outra violência – é assim que normalmente as coisas são percebidas... É a partir do outro que ameaças, agressões, hostilidades e duros golpes nos atingem, fundamentando-se em nós. Talvez seja necessário, para dar consistência e coerência ao próprio eu, declarar o outro o detentor da violência – como se fosse uma simples medida de higiene identificadora: a identidade pessoal só é possível quando se evacua no outro o mal – o violento – que cada um traz em si. ‘Não fui eu quem começou’: conhecemos essa lengalenga... (DADOUN, 1998, p.63) [grifos meus]

São conhecidas tantas histórias de sujeitos considerados violentos e agressivos, e quando o agredido se defende, sempre tem uma história para justificar a violência do outro. Dadoun (ibid., p.64-5) cita o exemplo do sujeito considerado do contra e diz:

O homem-contra de Michaux é bruto, ornado de picaretas, espetos, cacos, vidros, agulhas, ganchos, garras, unhas, sabres, serras, espadas, lanças, facas, brocas, etc., ele é todo maquinado para rasgar, desmembrar, arrancar, cortar, retalhar, moer, desmiolar, despedaçar – o outro! [grifos do autor]

Não parece ser violência, calar-se, não se envolver, mentir, adulterar e agir com indiferença diante de situações conflituosas; não parece violência andar com o espírito armado; não parece violência carregar armas para se defender do outro. Mas, enquanto projetamos a violência no outro, externamente, só estamos identificando um referencial externo, e fugindo do nosso referencial interno, porque o que parece mais problemático e difícil é identificar a violência tão próxima e tão íntima, originária, nossa!

[...] Portanto, não apenas toda violência é violência do outro, mas é o outro, como tal, que é violência: pelo simples fato de ser ele outro, pelo simples fato de ele estar presente, pelo simples fato de ele ser. Outro, portanto em demasia! E esta “demasia” é a própria violência, elementar, nítida... O outro me inflige uma dupla violência: violência da alteridade como tal, e violência da alteridade porque tenta me identificar, porque corrói ou soterra minha identidade (Dadoun., p.66).

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Também a violência se faz presente em nossa relação com o poder, especialmente nos modelos de sociedades atuais, marcadas por desigualdade, injustiça social, preconceito, abuso de autoridade, assim como os diversos tipos de autoritarismo. Dadoun (ibid., p.82) afirma que,

... somos de imediato surpreendidos pela proximidade existente entre poder e violência. Sempre, de alguma forma, o poder afronta e utiliza a violência, e esta, em troca, sempre exprime uma certa forma de poder. Mais ainda: existe uma extraordinária familiaridade entre poder e violência, vínculos tão estreitos, presos de tal maneira às suas estruturas, que chega-se a pensar que o único problema real do poder é a violência, e que a única verdadeira finalidade da violência é o poder – não importa sob que forma. Mais um esforço de união, ou de desarticulação, e será permitido dizer que a violência se mantém no coração do poder e o poder se mantém no coração da violência.

A violência está presente nas várias formas ideológicas que se apresentam em nossa sociedade, tais como a ideologia da segurança contra o crime, aquela que prefere condenar e enclausurar, ao invés de educar o sujeito para conviver em sociedade. E nesta perspectiva de enfrentamento armado, em que o crime deve ser combatido a qualquer preço, a figura da criança e do adolescente de rua aparece como um perigo e uma ameaça social que deve ser também combatida, eliminada se possível. Os discursos prontos para justificar estes crimes cometidos são ideológicos porque de acordo com Dadoun (ibid., p.83):

Nenhuma ideologia, nenhum sistema de poder declara praticar a violência pela violência. Sempre um fim superior lhe é designado tendo por nome revolução, liberação, independência, ou ainda, como no nazismo, triunfo do super-homem de raça ariana ou, no stalinismo, o advento do homem novo comunista. [grifos meus]

Para Dadoun, o homo violens, na condição de figura ontológica, enquadra-se na sociedade sem causar grandes furores ou dissabores. No entanto, é preocupante o imaginário do medo criado nas situações mais obscuras, assim como a tentativa de negar esta violência inerente ao homem, ou atribuir a violência à figura do outro, aquele que existe fora de mim, e (ibid., p.109):

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Apesar dos raios e fulgurações até aqui, as vias e vozes que conduzem à violência continuam obscuras. Sabendo a que ponto, e que em tantos lugares, triunfam “o barulho e o furor”, perpetuamente renascentes, devemos considerar a quais efeitos, tanto funestos quanto imprevisíveis, as palavras, discursos, imagens e cantos podem conduzir, e preocuparmo-nos com a massa violenta capaz de habitar um simples destroy – destruir, aniquilar (DADOUN, op. cit., p.109).

A violência não se configura apenas no que está explicitado, revelado, mas também naquilo que se oculta como sendo culpa de outrem sem maiores considerações a este outrem.

Histórico da criança e do adolescente

“Não sei por que eles têm raiva de nóis” (Depoimento de um Menino de Rua, In ROURE, 1996, p.74)

De acordo com o historiador F. Ariès (apud MENDES, 1994), nos séculos passados, a história da criança e do adolescente era muito diferente do que temos hoje pois, na verdade, os sentimentos de infância não eram motivo de reflexões. E somente a partir do tema dos menores como personagens de conduta considerada desviada é que a sociedade se voltou para pensar a condição da infância. O autor nos lembra ainda que, na Idade Média e início dos tempos modernos, a criança, logo que podia dispensar os cuidados dos pais e da ama, era introduzida no meio dos adultos, não se separando mais destes.

Neste sentido, Frontana (1999, p.41) lembra que, no colonialismo, a criança estava relegada a um papel supérfluo, era ignorada ou simplesmente subestimada pela família e sociedade. “O universo cultural possuído pelo culto à propriedade, ao passado e à religião, assim o determinava: ao pai, ao adulto, os louros; ao filho, à criança, as batatas”.

A organização familiar era latifundiária, o poder e o prestígio eram exercidos pela figura do pai, e isto inviabilizava qualquer manifestação de individualidade e, portanto, de rebeldia e resistência. O instrumento da violência surgiu como instrumento educativo de submissão e disciplinarização de filhos, mulheres, empregados e escravos. A obediência incontinente era o único meio de escapar à

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punição. O patriarcado acabou, neste caso, sendo utilizado tanto no exercício como na dissimulação da violência (ROURE, 1996, p. 57).

A educação infantil, por exemplo, no século XIX, tanto no lar como na escola, tinha o significado de "moralizar, disciplinar, criar filho para amar e servir à humanidade, educá-los para transformá-los em adultos a serviço da nação" (ibid., p.42).

Deve-se levar em consideração no estudo da história da criança e do adolescente, que a violência está relacionada com o tipo de família que tínhamos no Brasil e a própria história do infante. Geralmente, as famílias eram numerosas e, quando se perdia um filho, logo os pais tinham outro para colocar no lugar do que morreu e, religiosamente, não se chorava ou se lamentava a morte de uma criança, por ser esta a imagem e expressão de um alguém especial arrebatado pelos anjos. Ver a criança como um ser em formação é algo muito recente, e isto significa valorização das “etapas de desenvolvimento físico-emocional do indivíduo, que acaba por ampliar a visibilidade de suas diferenças e vulnerabilidade e conferir a ele um papel social, que implicaria o reconhecimento da infância como uma dimensão da cidadania” (op.cit., p.47)

Crianças e adolescentes no Brasil

“Andam boiando na superfície de minh’alma restos de coisas que eu não sei se juntas bastariam

ou se eram só pretextos”. (João Cabral de Mello Neto)

Os incidentes de violência no Brasil têm causado maltrato e mortes de crianças e adolescentes. E estes têm chamado a atenção, não só do nosso país, como têm repercutido internacionalmente, tal como o incidente da Candelária (em 23/07/1993, na cidade do Rio de Janeiro), com um saldo de sete (7) mortos e outros tantos feridos. A sociedade não pode negar e nem deve ignorar a violência e o crime.

Em 25/07/1993 – as estatísticas informavam quatro (4) assassinatos por dia. A UNICEF – United Nations Chindrens Fund, segundo Frontana (1999), tem ampliado debates para discutir o problema: mas os debates, na realidade, só revelam uma diversidade de pontos de vista, opiniões, discursos e sentimentos em relação às

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crianças e aos adolescentes que sobrevivem nas ruas das grandes cidades; ora são tratados como bandidos, ladrões; ora como vítimas do sistema social; ora com medo, com compaixão ou como uma ameaça.

Frontana (1999) destaca uma matéria que teve destaque no Jornal Folha de São Paulo em 18/08/1993, de autoria de M. STYCER - Miséria cria carrossel de sujos, brutos e malditos. De acordo com a autora, a matéria chama atenção já pelo tema. Na reportagem, Stycer deixa transparecer que as crianças e adolescentes de rua não querem nada com a vida, a não ser roubar e cheirar esmalte! Que são ameaças para o futuro e que se tornarão assaltantes e criminosos por culpa dos pais.

A autora lembra que também a reportagem de Jânio de Freitas - Meninos da Miséria segue o mesmo estilo, e apesar de o autor se dizer sensibilizado com as manifestações para resgatar a dignidade destes, suas opiniões sobre o incidente da Candelária lembram apenas que ainda há um contingente de "meninos de rua" que devem ser resgatados; o repórter afirma que essas figuras sociais são frutos apenas da miséria dos pais e sugere que há uma imagem desta figura, não importa se esta imagem é de uma criança ou adolescente, morador de cortiços, favelas ou das ruas, visto que todos traduzem uma mesma realidade, são Meninos da Miséria.

Dada a complexidade para enxergar a criança e o adolescente como figuras sociais, que necessitam de ajuda e orientação, faz-se fundamental superar a produção dos sentidos para compreender o constante embate, os confrontos de força e poder entre as classes em construção e as que constroem e criam jogos imaginários. A construção desta figura deambulante, que ao que parece deixou de ser criança, ou melhor, nunca foi criança, deve ser considerada também pela sociedade de formação.

Para Roure (1996, p.33), o discurso do MNMMR (Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua) deixa transparecer a produção dos sentidos fundamentais ao confronto de uma “concepção” de criança ou adolescente carente, desassistido, fruto da desorganização familiar. O imaginário de nossa sociedade não só compreende e aceita a institucionalização da violência, a qual passa a ser concebida como instrumento educativo de disciplinarização. Portanto, não há concepção do processo de marginalização, ao qual crianças e adolescentes pobres estão submetidos.

Frontana (op. cit.) lembra que esta questão não é recente, porque, já na virada do século XX, quando se deu a mudança do trabalho escravo para o trabalho assalariado, os excluídos marcaram fortemente presença, haja vista as paisagens retratadas nas telas, a

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desolação, doença e loucura de negros e desafortunados. Não foram menos violentos o processo de industrialização, a modernização e a urbanização das grandes cidades, e consequentemente, as alterações das relações de trabalho e produção, seja no âmbito rural ou urbano. Neste sentido, no quadro de alterações sociais, a história da sociedade brasileira registra uma saga de fome, de miséria, de desemprego, de subemprego, de baixos salários e carestia de toda ordem.

Portanto, estão na mira da violência, as crianças e os adolescentes associados à pobreza, marginalidade e criminalidade, os quais são ainda enfocados em relação aos aspectos de segurança, controle e ordem social.

A identidade da criança e do adolescente

“Que o menor não seja desvalorizado, que o menor não seja visto pela sociedade como pivete, ladrãozinho e trombadinha”. (Meninos do MNMMR)

A identidade da criança e do adolescente é criação imposta, forjada e imputada do exterior, aberta à condição de vida que eles vivem. Roure (op. cit., p.37) lembra que a construção da história da figura da criança e do adolescente de rua deu-se pela construção de sentido, faltando por isso, transparência, impossibilitando detectar-lhe a origem, mas apenas os efeitos de sentidos, os quais se encontram em todo lugar que se possa redefini-los e transformá-los.

No Brasil, e mais especificamente em São Paulo, crianças e adolescentes que estão nas ruas quase sempre são filhos de negros, nordestinos ou brancos pobres (grupos que carregam o estigma da exclusão). Os diversos discursos sobre estas figuras marginais levam à impossibilidade de se considerar uma criança ou adolescente pobre, nordestino ou negro que não sejam marginais. O racismo tem se mostrado, sem dúvida alguma, como mais uma das categorias a serem utilizadas na compreensão do fenômeno da violência.

A palavra menor, designada pelo Estado, sociedade e a imprensa, é uma referência que permitem discursos sobre as crianças e adolescentes de rua. Estes discursos, segundo Roure (op. cit., p.36) revelam que, em nossa sociedade, podemos apreender a construção de um imaginário no qual a violência, a punição, o assassinato de crianças e adolescentes são permitidos. Estes discursos também

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buscam “definir limites etários e condição civil e jurídica, designa um tipo específico de criança e adolescente que passa a figurar como protagonista no cenário urbano emergente: aquele que se encontra nas ruas, em situação de abandono e marginalidade” (FRONTANA, op. cit., p.48 – grifo do autor). Menor, nesta acepção, também caracteriza a “criança pobre, totalmente desprotegida moral e materialmente por seus pais, seus tutores, pelo Estado e pela sociedade” (LONDOÑO apud FRONTANA, 1999, p.48).

Antigamente, a identidade dos abandonados era mantida em segredo, e os lugares onde estes poderiam ser deixados eram: A Roda dos Expostos, também conhecida como a Casa dos Expostos, Depósito dos Expostos e Casa da Roda (no Brasil); eram assim designados para receber as crianças abandonadas, quer fosse por um amor ilícito ou pela situação financeira difícil dos pais1.

Os juristas também passaram a se ocupar com o problema das crianças e adolescentes abandonados, por isso, em 1927 é elaborado o Código de Menores, daí a designação do termo menor que caracteriza todas as crianças e adolescentes, aqueles que são materialmente ou moralmente abandonados, subdivididos em categorias como: "crianças de primeira idade", "infantes expostos", "menores abandonados", "meninos vadios", "mendigos", "libertinos" etc., traço comum à carência destes menores é serem fruto do abandono moral ou material.

Como o Brasil trata suas crianças e adolescentes?

“Porque menino de rua não é cachorro, menino de rua não é marginal, e sim marginalizado, isso sim que é menino de rua. Menino de rua é criança igual a todo menino”. (Meninos do MNMMR)

Crianças e adolescentes são partes integrantes da sociedade e entender esta situação é um desafio permanente e complexo. Estas figuras não são recentes; tem um “corpo”, textura, volume e marca presença no percurso histórico denominado: "Brasil moderno"; a

1 Frontana (1999) lembra o estudo de Maria Inês Borges Pinto que demonstra o foco de criminalidade,em 1914, em que se registram: miseráveis, inválidos, desocupados, delinq

uentes e trabalhadores pobres

na cidade de São Paulo, os quais caracterizam a fase crítica da economia cafeeira.

Deve-se lembrar que a

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sociedade os recriam com imagens novas, daí, aparecem como um problema novo, a ser pensado e equacionado novamente; são figuras históricas que revela o elo entre o passado e o presente, marcam uma figura real e imaginária – sendo necessário localizá-la nas representações coletivas, dado que,

É no imaginário de uns e de outros que se localiza tal personagem... É no imaginário de políticos, cientistas sociais, intelectuais, artistas, jornalistas escritores, e mesmo do cidadão comum que se vêem recriarem, nas interpretações, fantasias e idealizações, as imagens graças às quais é possível formar-se percepções coletivas dessa personagem concreta e real no Brasil moderno. (ROURE, op. cit., p.58)

Estas figuras ainda persistem no Brasil, isto porque persistem aspectos que caracterizam nossa organização social. As crianças e adolescentes são vítimas cotidianas de ações extremamente violentas, seja por parte do Estado, polícia, família e instituições afins, como da própria sociedade civil através de seus defensores – exterminadores, linchadores.

Nossas crianças e adolescentes têm sido percebidas somente no que lhes falta, e não no potencial que apresentam, os adolescentes perdem a condição de “sujeitos em processo de desenvolvimento” (idem,ibidem), assumindo o papel de seres defeituosos que deverão ser reeducados, disciplinados e normatizados. Marcadas pelo assistencialismo, paternalismo, repressão e pelo autoritarismo, as instituições encarregadas de educá-los eram constantemente denunciadas pelos maus-tratos, espancamentos, abusos sexuais, físicos e psicológicos. Felizmente esta realidade mudou muito, podem-se destacar servidores bem preparados e conscientes de seu papel social, em cuja esfera de trabalho contribuem para que caminhos educativos e humanizadores marquem estes novos espaços organizacionais.

Também chama a atenção o espaço familiar, o qual não foge à regra da violência, pois este tem se tornado um espaço de exercício de práticas violentas, marcado sempre por dissimulação e ocultamento; mas os espaços para registrar e denunciar contribuem certamente para que as famílias repensem seu papel. Este tipo de violência está disseminado de forma transversal em todas as classes sociais. Filhos são espancados, torturados, e estão à mercê de uma educação autoritária, violenta, que, desde cedo, transmitirá regras, valores e comportamentos de submissão aceitos em nossa sociedade.

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Crianças e adolescentes são constantemente arrancados precocemente da infância e levados ao trabalho, à rua, e às instituições que exercem um papel fundamental na desconstrução de sua identidade, contribuindo com o reforço do estigma de “pixote”, “marginal” e “trombadinha”. As crianças e adolescentes pobres desempenham um papel de contribuidores da renda familiar. Assim, assumem o trabalho e esquecem a brincadeira, o lúdico; são meninos com corpo de criança e trejeitos de adultos. Com sonhos de criança e responsabilidades de adultos (ROURE, op. cit.).

Os períodos da modernidade e da pós-modernidade – educação e violência

“Engraçado, na cadeia, o vagabundo não acredita em Deus, só fala e faz besteira. Mas na hora do pega prá capar ele só fala em Deus, passa mal, implora. Aí sim, dá vontade de arrebentar o cara. Eles tentam se atracar com a pessoa que vai atirar, dizem que têm filhos, que são pais de família. Aí, você diz para ele que as vítimas dele também tinham filhos, que muitos pais ainda estão chorando, que as pessoa estão trancadas dentro de casa por causa dele, com medo de sair de casa e serem atacadas. Só têm um jeito para bandido: é vala” (Jornal A Gazeta, 02/09/91).

Para Adorno (1995, p.65), do ponto de vista social, uma reflexão sobre o autoritarismo pode mostrar porque um homem se torna tão duro a ponto de cometer atrocidades consigo mesmo e com os outros. Na globalização,

(...) o conceito de modernidade contém a idéia de contraste histórico entre épocas que se encerram e outras que se iniciam, negando relações anteriores, assim como os conceitos de antiguidade e de sociedade primitiva (...) mantendo o caráter de impulso constante em direção ao futuro, mas resguardando as diferenças de cada tempo em que se manifesta.

Fala-se em dois tipos mais comuns de globalização. Num primeiro caso, o conceito aparece quando se propõe uma explicação para a modernidade através das relações econômicas, tendo como base as relações universais associadas à competitividade, produtividade e

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cultura global e, no segundo caso, quando se relaciona à sociedade com processos civilizatórios. Mas é necessário lembrar ao leitor que,

(...) o óbvio é que a nova cultura pós-moderna global, ainda que americana, é expressão interna e superestrutural de uma nova era de dominação, militar e econômica, dos Estados Unidos sobre o resto do mundo: nesse sentido, como durante toda a história de classes, o avesso da cultura é sangue, tortura, morte e terror (ADORNO, 1995, p.65).

Como superar a razão autoritária num país como o Brasil? Num continente como a América Latina em que, na maioria dos países, tem predominado uma cultura política autoritária e nada democrática? Como superar desigualdades e diferenças sociais tão brutais? As relações capitalistas têm permitido a repressão, a censura, as invasões de espaços privados e outros, cujo

(...) movimento interno do capital é dotado de racionalidade própria, organiza o real e lhe confere inteligência, significando que a dominação surge em sua forma clássica de relação entre homens, enquanto sujeitos sociais e políticos, e muito mais sob a forma impessoal de uma razão inscrita nas próprias coisas (CHAUI apud SOUSA, 1999, p.77).

Segundo Sousa (1999), ao voltar o foco de sua pesquisa para os jovens militantes e como eles aparecem nas organizações - ora como trabalhadores com uma renda da organização, ora como voluntários - foi possível traçar um perfil da estória de vida destes jovens.

A autora conclui que em todos os grupos existe uma idéia de transformação que direciona as opções e concepções de cada um, e estas são vivenciadas de maneiras diferentes mas, com certeza, repercutirão nas decisões futuras. O grupo funciona como referência de reconhecimento de ideias compartilhadas, porém, seus membros buscam também autonomia. Os partidos políticos, mesmo os que se dizem voltados aos interesses do povo, sofrem com o descrédito e encontram maior resistência nos jovens, pois estes são seus maiores críticos. Mas, contra a alienação e a discriminação, a autora (1999, p.198) diz que os jovens, infelizmente,

(...) não são partidários de um modo geral, e os educadores reproduzem esta prática que, se fosse inversa, seria exemplar para as novas gerações,

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pois parte da juventude recusa a alienação(...). Mas será novo o que fazem estes jovens? Que possibilidades suas práticas têm de serem transformadoras? Que referências eles procuram para transformar a realidade se esta impõe seus limites? Para que tipo de mudanças aponta o caminho dos movimentos sociais aos quais pertencem?(...) É indiscutível a sensibilidade da população em relação aos problemas dos menores de rua; às questões éticas e políticas colocadas pela igreja e pelos movimentos que emergem de seu interior; à discriminação racial que envergonha o país pela violência a que os negros são submetidos (principalmente quando pobres). Já o sindicalismo burocrático corre sérios riscos de ficar à margem do convencimento e da compreensão de sua causa pela população. Perde, com isso, seu jovem quadro de militantes dedicados e fiéis.

É fundamental, neste sentido, observar que esta geração de jovens militantes de 1950, 1960, 1970-90 representa o elo entre a memória e o esquecimento da nossa sociedade brasileira.

Memória e esquecimento parecem que têm relação próxima com a sociedade do não esclarecimento em que as relações se apresentam como pontos fixos e indiscutíveis e a superação parece ser apenas um virar de página, a fim de instituir o novo como solução para erros do passado.

Em entrevista, Adorno (1995, p.181-2) comenta a pergunta que fora feita a Kant: “vivemos atualmente em uma época esclarecida?”, e Kant respondeu: “Não, mas certamente em uma época de esclarecimento”. O problema, segundo Adorno, é que isto parece recente, mas a emancipação é sempre um vir-a-ser (um devir) e não o ser, pois o motivo da emancipação

... evidentemente, é a contradição social; é que a organização social em que vivemos continua sendo heterônoma, isto é, nenhuma pessoa pode existir na sociedade atual realmente conforme suas próprias determinações; enquanto isto ocorre, a sociedade forma as pessoas mediante inúmeros canais e instâncias mediadoras, de um modo tal que tudo absorvem e aceitam nos termos desta configuração heterônoma que se desviou de si mesma em sua consciência. É claro que isto chega até às instituições, até à discussão acerca da educação política e outras questões semelhantes. O problema, propriamente dito, da emancipação, hoje, é se e como a gente – e quem é “a gente”, eis

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uma grande questão a mais – pode enfrentá-lo (idem, ibidem grifos do autor).

A violência aparece de todos os lados e cresce descontroladamente. Mas por que alguns pais e educadores combatem tão severamente as manifestações grosseiras na infância, quando eles próprios não foram e nem são um exemplo? Para Kant (1996, p.38) “[...] mostrar-se hábil, prudente, paciente, sem astúcia, como um adulto, durante a infância, vale tão pouco como a sensibilidade infantil na idade madura”.

Espancamentos e desrespeito não são coisas do passado, os dados estão existem para nos revelar que crianças e adolescentes são vítimas dos adultos em todas as classes sociais. E segundo Kant (ibid., p.48), é uma segunda violência obrigar a criança a reconhecer na pessoa que a agride alguém que deve ser respeitado, pois

[...] é algo estranho que alguns pais, depois de ter batido com uma vara nos seus filhos, exijam que depois lhe beijem as mãos. É apropriadamente acostumá-los à dissimulação e à falsidade. Os golpes não são, pois, um belo presente pelo qual alguém possa mostrar-se agradecido; e pode-se imaginar facilmente com que coração a criança beija a mão de quem lhe bateu!

O beijar a mão certamente foi substituído pelos abraços e beijos nervosos, de pais que muitas vezes não tem certeza do que estão fazendo ou de como deveriam fazer para colocar limites e se relacionar com os filhos, de maneira mais educativa.

Gritar para chamar a atenção das crianças pequeninas, falar-lhes numa linguagem seca e rude, ou numa linguagem infantilizada, não é também alimentar um foco de violência? Para Kant (1996, p.54), “ordinariamente grita-se com elas: Ei! Não tem vergonha? Não fica bem! e expressões semelhantes, as quais não deveriam jamais ser empregadas na primeira educação. A criança não tem ainda nenhuma ideia de vergonha e de consciência; não tem nem deve ter vergonha”.

Quantas de nossas crianças não chegam a ter brinquedos? Quantas deixam brinquedos e brincadeiras e vão trabalhar? E quantas outras que têm todos os brinquedos do mundo, mas não podem brincar para não bagunçar, desarrumar o lar? Brinquedos e brincadeiras são necessidades universais e em todos os tempos estão presentes. Kant (1996, p.60-2) diz:

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...o brinquedo infantil da cabra-cega era já conhecido dos gregos, com o nome de muinda. Em geral, as brincadeiras infantis são quase universais. Aquelas que existem na Alemanha, são também encontradas na Inglaterra, França, e assim por diante... as crianças gostam de instrumentos barulhentos, por exemplo: pequenas trombetas, pequenos tambores e outros. Mas, tais instrumentos de nada servem, pois os outros são simplesmente por eles molestados. Melhor seria que aprendessem a cortar bambu, de modo que pudessem brincar assoprando... também o balanço é um bom exercício; até os adultos o usam, tendo em vista a saúde... O papagaio é um brinquedo inocentíssimo. Desenvolve a habilidade, uma vez que empinar papagaio depende de uma certa posição em relação ao vento... deve-se zelar para que na cultura do corpo também se eduque para a sociedade. Diz Rousseau: “Não conseguireis jamais formar homens sábios, se antes não formardes traquinas”. Mas, de um garoto esperto conseguir-se-á um homem de bem, antes que de um impertinente que banca o esperto (grifos do autor).

Estas referências simples, reflexões anteriores aos dramas infelizes de nosso século, servem para nos mostrar que criança é criança em qualquer lugar do mundo. Que brincar e ter brinquedos, instrumentos que valorizem a imaginação infantil é uma preocupação muito antiga. Na citação de Kant, as brincadeiras presentes nas outras culturas parecem que não são tão diferentes da nossa. Que nossas crianças precisam brincar sabemos, que os motivos pelos quais não brincam são os mais variados possíveis, também sabemos. Mas o que temos feito para ajudar nossas crianças? Como ajudá-las? Podemos ajudá-las?

Parece fundamental, neste caso, uma Educação que valorize a sensibilidade, que eduque o homem para a vida e pela vida, que reconheça os grupos ou as figuras sociais, porque segundo Maffesoli (1998, introdução), o que caracteriza a pós-modernidade é o vínculo que se constrói entre ética e estética; então precisamos nos educar e educar nossas crianças e adolescentes com alegria, transmitir valores sim, mas valorizar as conquistas e dificuldades do aprendizado, reconhecer grupos e territórios, valorizar o imaginário destes grupos, seja por parte deles mesmos, dos educadores, dos interventores ou da própria sociedade.

A violência, segundo Maffesoli (1998), deve ser encarada não mais como fator de desequilíbrio na sociedade, mas como elemento estruturador do fato social, como “estrutura constante do fenômeno

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humano, presente em toda e qualquer civilização” (apud ROURE, 1996, p.50).

O filme Os esquecidos, de Luis Buñuel, e a temática da violência

As palavras mais silenciosas são as que trazem a tempestade, pensamentos que vêm com pés de pomba dirigem o mundo...

[F. NIETZSCHE]

A discussão sobre a problemática da violência que envolve crianças e adolescentes, em todos os setores da sociedade, possibilitou-nos refletir e buscar aproximar algumas cenas e falas do filme Os esquecidos (México, 1950, de Luís Buñuel). Lamentavelmente, não só parece uma história recente, como também parece um retrato da nossa própria sociedade brasileira em muitos aspectos – o que mudou dos anos cinquenta até nossos dias atuais? A questão das crianças e adolescentes se revela com tamanha carga de emoção neste filme e nas obras estudadas, que por mais que selecionássemos obras, conversas, histórias, relatos, pareceram-nos tão pobres e insignificantes para justificar uma sociedade que não cuida de seus habitantes, que mais parecem criaturas vindas de outros planetas, fantoches, fantasmas.

O sentimento de impotência que aflora neste filme é tão perverso quanto o sentimento de ódio ou indiferença perante estes seres. Como nossas crianças marginalizadas, discriminadas, pobres estão sendo tratadas e como deveriam ser tratadas nas escolas, na vida? Como as crianças de supostos ares felizes são tratadas? O que sabemos do potencial humano? Como podemos saber que lidamos com sobreviventes ou com gênios desprezados capazes de construir uma vida digna e edificante para si e para outros, para nós? Que ESCOLA poderá ensinar lições menos duras para estas crianças? Que escola poderá ensinar o que é uma infância? Que escola poderá devolver a inocência perdida, a infância e a adolescência não vividas, esquecidas? Que escola poderá devolver a dignidade, o encanto inerente à vida de cada um?

No filme Os esquecidos, a personagem de Pedro é provavelmente a mais emocionante, a mais dramática e a que mais

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chama a atenção. A personagem passa por suplícios, provas para um super-homem. Suplica e reivindica o amor da mãe, o direito a ter uma família. Outra personagem, mãe do Pedro, é uma triste e infeliz mãe, seca, fria, vazia de amor e de esperança, ávida por piedade de si mesma, do seu drama também esquecido pela sociedade. Sua tristeza, secura e desamor não são tão diferentes do modo como nós nos relacionamos com as crianças que perambulam por nossas ruas. E quantas vezes nós não viramos o rosto, fechamos o vidro do carro ou simplesmente nos repugnamos diante de seus traços, farrapos e de seus odores?

No filme, as personagens que transitam nas ruas do México são incômodas e absolutamente ignoradas o tempo todo. Não são viventes, são apenas sobreviventes, trapos humanos, dramas humanos ignorados, vívidas figuras deprimentes.

As crianças e adolescentes desfilam, perturbam, protestam por não serem aceitos, recusam estigmas tão pesados quanto estes que lhes damos: desprovidos de sorte, incômodos sociais, trapos humanos, filhos da rua, trombadinhas, pivetes, ladrãozinhos, menores abandonados, filhos sem pai... Por isso, ora refletem a nossa incapacidade social em conviver com aquilo que criamos – o outro, o diferente, o esquecido de nós mesmos - ora refletem nossa incapacidade de amor e compartilhamento.

Tais incompreensões perfilam o texto, as falas das personagens, configurando nossa indiferença em relação à criança e ao adolescente que, para sobreviver, precisam disputar o destaque de não-protagonista do desprezo, aquele que deve se contentar com a ausência de amor, de afeto, aquele que não merece e que deve se acostumar com o escárnio de segmentos, aqueles mesmos segmentos que transformam pessoas em formação, em desenvolvimento, numa coisa que mais lembra um parasita e que teima em sobreviver em meio ao lodo, ao pântano, ao lixo e à sorte, à não-fortuna (a sua má sorte de nascimento).

As personagens deambulam, e noite e dia é sempre agonia, não vivem o dia, porque para viver (ou melhor, sobreviver) precisam ignorar a palavra viver, esperam apenas que o dia transcorra e a vida sobreviva.

Os sofrimentos se espalham no filme, e os envolvidos são todos. Assim, na fala da mãe melancólica, mas com ar de sonhadora menina, ao delegado, o sentimento que aparece é de impotência diante do amor, falta de afeto, generosidade, de amor maternal; aquele amor que dá um rosto singelo e de proteção à vida, que envolve todos os

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seres, como nos ensinaram os mitos gregos e Cecília Meireles em seus versos e crônicas.

O delegado diz: - “Mãe, ele (Pedro) está assim porque você não o ama, você nunca o amou...”. E a infeliz e sofrida mãe diz, secamente: - “Como eu poderia amá-lo? Eu era só uma criança quando ele nasceu!?”

Como alguém poderá amar desconhecendo em si mesmo o amor? O que é o amor? Como amar e ser generoso com o outro quando não se é consigo mesmo? Como estimar o outro quando não estimamos nossa própria existência? Como condenar uma mãe que nunca quis ser mãe e nunca poderá compreender por que se tornara mãe de uma criança tão estranha em si mesma?

Este diálogo entrecortado nos fere, aprisiona e emudece: pode sugerir que a mãe fora estuprada, e/ou que, ainda impúbere, foi obrigada a ser mãe, que jamais fora uma criança na verdadeira acepção do termo, que foi simplesmente alguém presa na infância negada, roubada, queria apenas ser uma criança, como o próprio Pedro, mas nunca fora uma criança, pois, impedida de ser criança, tornou-se mãe de algo que nunca desejou, que nunca amou nem soube amar para bem de ambos.

A situação se configura, os movimentos e desenlaces do filme vão se estreitando, como um funil, como a porta estreita, ou o caminho que não leva a lugar algum, a voz silenciada e o silêncio de morte pairam sobre as personagens, a morte certa, aquela que ninguém pode evitar. Aquela personagem não é um indivíduo, não é um bebê, não é meu filho; não é seu filho; não é nosso filho; não é de ninguém!

Entretanto, Pedro quer trabalhar e trabalha. Quer ser bom, quer o amor da mãe, quer ter amigos diferentes, e reage como um verdadeiro herói: pede, implora, briga, luta, enfrenta conflitos internos e externos, reivindica o amor materno, o carinho e o reconhecimento da mãe.

Mas o não reconhecimento deste filho, o não amor, o não carinho não podem ser lidos como apenas a concretização do desprezo por parte da mãe pelo filho repelido, ignorado, desprezado, porque ela nunca foi amada, nunca foi percebida, protegida, respeitada. E se Pedro representa o não-amor para aquela mulher, este simboliza uma situação de destruição de um momento sublime da vida dela que não foi, que nunca pôde ser: criança.

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O esquecimento não é apenas o da mãe para com o filho, é também da sociedade que empurra seus pobres/miseráveis para um estado de violência constante: a morte lenta de uma vida que se sustenta de restos de uma infeliz e oca existência. Uma não-existência, e talvez até uma reificação de seres que apenas ocupam um espaço dividido por ratos, moscas e um destino mórbido que só tem como acalento, a morte.

Tornar-se ou ser um dos esquecidos é o vão privilégio que refaz/espelha a ínfima condição dos que lá estão... E estar lá é o que lhes resta. É dessa forma que o fado e o fardo lhes são legados. Fardo e fado que perpassam cada um dos personagens, como veremos a seguir.

Jaibo é um menino mais velho que os outros; num primeiro momento, estes o ouvem e o respeitam! Sem família, Jaibo é a personagem que incorpora a marginalidade, a sombra social. E enquanto Pedro procura obter amor, afeto, Jaibo assume para si a maldade, o mal que atinge as outras crianças e que acaba por destruir a Pedro e a si próprio.

Pedro deseja fazer o bem, e procura fazê-lo. Algumas vezes, oscila, e às vezes por influência de Jaibo. Este, durante todo o tempo pratica maldades e, naturalmente, gaba-se de seus feitos de moço destemido. Assim, Jaibo espelha aquilo que as crianças do local desejariam ser: corajosas para praticar as maldades, perversidades e desafiar regras, serem capazes de causar o pânico, desestabilizar os transeuntes, as pessoas daquela cidade. Mas é preciso não esquecer também que Jaibo responde, na verdade, ao tratamento que a sociedade lhe tem dispensado. Por isso, ele quer abalar uma estrutura que o condena àquela ínfima existência de ser alijado.

Considerações finais

De um alerta proposto pelo narrador no início do filme, obtém-se a constatação de que nossas crianças e jovens ainda permanecem excluídas dos direitos mais básicos. E, como se não bastasse, estamos constantemente alimentando esta exclusão terrífica.

Portanto, no filme como nas obras estudadas, notamos nitidamente que ainda se fala muito pouco em defesa de nossas crianças e adolescentes e, mais grave, se faz menos ainda para mudar sua situação de sofrimento. E embora o ECA, a CMDH (Comissão

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Municipal dos Direitos Humanos) revelem alguns avanços e mudanças no tratamento dispensado às crianças e adolescentes carentes, espera-se que outros esforços práticos possam ser cada vez mais reais.

Talvez, por isso, concordamos com as palavras de Cecília Meireles (2001, , p.259), quando diz que devemos voltar nossos olhos para a educação, tal como no último apelo, “...para que o sonho não se perca, e se faça realidade sem deixar de ser sonho. E é tão belo que entristece. Porque o instante de beleza definitiva deixa sempre os olhos úmidos. A gente pensa: ‘Se fracassa a beleza, que pode mais restar ao homem para seu sustento?”

Em síntese, a problemática da violência que envolve crianças e adolescentes em situação de risco ainda persiste, e mesmo quando se caracteriza a violência relacionada a este problema, é de se notar que a imagem que se faz destes é uma imagem de violência social, sendo também violência o discurso sobre estas figuras; a propagação de sua figura marginal pela imprensa; o fato de serem ignoradas pelo Estado e pelos seus cidadãos; as imagens fabricadas que são compartilhadas e introjetadas pelas classes sociais; o tirar-lhes o direito de se revelarem, de se desvelarem perante as cortinas de aço plasmadas nas almas e nos corações de homens que se dizem bons e fraternos; é também violência a indiferença da sociedade em pensar e buscar soluções para sair dos paliativos da violência relacionada a crianças e adolescentes em risco e carentes.

REFERÊNCIAS

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DADOUN, R. A violência: Ensaio acerca do “homo violens”. Rio de Janeiro: Difel, 1998.

FRONTANA, I. C. R. da. C. Crianças e adolescentes nas ruas de

São Paulo. São Paulo: Loyola, 1999.

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MAFFESOLI, M. Tempo das tribos: O declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.

MENDES, E. G; COSTA, A. C. G. da. Das necessidades aos

direitos. São Paulo: Malheiros Editores, 1994.

MEIRELES, C. Crônicas de educação. (Vol. 1 a 5). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

ROURE, G. Q. de. Vidas silenciadas: A violência com crianças e adolescentes na sociedade brasileira. Campinas: UNICAMP, 1996.

SOUSA, J. T. P. de. Reinvenções da utopia: A militância política de jovens dos anos 90. São Paulo: Hacker Editores, 1999.

Referências

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