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A morte e o além no Egito antigo: as tumbas de Nakht e Nebamun

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Academic year: 2021

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A MORTE E O ALÉM NO EGITO ANTIGO

As tumbas de Nakht e Nebamun (c. 1401 - 1353 A.E.C.)

Natal/RN

2018

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Pedro Hugo Canto Núñez

A MORTE E O ALÉM NO EGITO ANTIGO:

AS TUMBAS DE NAKHT E NEBAMUN (c. 1401-1353 A.E.C.).

Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, para obtenção do título de Bacharel em História.

Natal/RN 2018

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Pedro Hugo Canto Núñez

A MORTE E O ALÉM NO EGITO ANTIGO:

AS TUMBAS DE NAKHT E NEBAMUN (c. 1401-1353 A.E.C.).

Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, para obtenção do título de Bacharel em História.

Banca Examinadora

____________________________________________________________ Profª. Drª. Marcia Severina Vasques - UFRN

Orientadora

____________________________________________________________ Prof. Dr. Roberto Airon Silva - UFRN

Membro Examinador

____________________________________________________________ Prof. Dr. Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior - UFRN

Membro Examinador

____________________________________________________________ Prof. Dr. Raimundo Nonato Araújo da Rocha - UFRN

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Canto Núñez, Pedro Hugo.

A morte e o além no Egito antigo: as tumbas de Nakht e Nebamun (c. 1401 1353 A.E.C.) / Pedro Hugo Canto Núñez. -2018.

160f.: il.

Monografia (graduação) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes.

Bacharelado em História. Natal, RN, 2019.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marcia Severina Vasques.

1. Egito Antigo - Monografia. 2. Novo Império - Monografia. 3. Necrópole Tebana Monografia. 4. Memória Cultural (Egito) -Monografia. 5. Nakht - -Monografia. 6. Nebamun - -Monografia. I. Vasques, Marcia Severina. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 94(32)

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AGRADECIMENTOS

Não tenho como apresentar esta monografia sem antes agradecer às pessoas maravilhosas que, de certa forma, me auxiliaram para a produção desta.

Em primeiro lugar, agradeço imensamente às minhas mães, Carla Silvia e Marcia Vasques, que sempre estão por perto quando eu preciso. Sou grato também aos meus familiares, Ana Mirtes, Anamor, Alessandra Silvia, Bruno Leonardo e Danilo Bernardes, que compõem os meus pilares, meus sustentos espirituais. Ao companheirismo e parceria de todas as horas de Rebeca Nadine. Assim como esses, agradeço os meus outros pilares: Esther Fonseca, Danny Pasetto, Leonardo Nobre, Maria Eduarda, Laís Eunice, Karen Beatriz, Eduarda Israela.

Agradeço, de todo o coração, todos os professores que considero meus amigos no Departamento de História, em especial: Aurinete Girão (Chica Silva), Wicliffe Costa, Raimundo Nonato, Flávia Pedreira, Carmen Alveal, Roberto Airon, Santiago Jr., Magno Santos e Margarida Dias. Além desses, meus apoiadores de todas horas: meu pai, meu avô, Alaíde, Hannah, Pedro Henrique, Maria Beatriz A., Sarah, Silvia, Elian, Felipe, Keidy, Arthur, Liliane, Talita, Jadson, Emerson, Fabrício, Giovana, Laura, ... e tantos outros que levariam muitas linhas!

Além de todos estes, agradeço imensamente a M. Violeta Pereyra e Liliana Manzi, por todos os textos, orientações, risadas e conversas.

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Life is very long... T.S. Eliot

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RESUMO

Esta monografia compõe uma pesquisa sobre a morte e o Além no Egito Antigo a partir das tumbas de Nakht e Nebamun, membros de uma elite sacerdotal da cidade de Tebas durante a XVIII Dinastia. Partiremos de conceitos como Cultura Pluralista, Memória Cultural, Imaginário da Morte e Espaço Funerário para analisar as imagens egípcias em duas tumbas de membros da elite, compreendendo seus significados e funções. A primeira tumba é de Nakht, um astrônomo e escriba do templo de Âmon, que viveu entre os reinados de Tutmés IV e Amenhotep III (c. 1401-1353 A.E.C.). Ela está situada na necrópole tebana, margem Ocidental da atual cidade de Luxor. A outra, que foi transposta da necrópole tebana para o Museu Britânico (Londres) ainda no início do século XIX, é do escriba e contador de grãos, Nebamun, que viveu entre os reinados de Amenhotep III e Akhenaton (c. 1353-1335 A.E.C.). Buscamos analisar a concepção de morte e Além nos planos decorativos dessas duas tumbas tebanas de particulares no período da XVIII Dinastia, entendendo como o morto era projetado no Além e em como a sociedade egípcia garantia e mantinha essa relação do vivo com o morto. Sendo assim, é proposto que a tumba egípcia servia como um espaço de ligação entre o Egito terreno, onde estão os vivos que ofertam aos mortos, e o Além, onde são projetados os que recebem essas oferendas dos vivos.

Palavras-chave: Egito Antigo; Novo Império; Necrópole Tebana; Tumbas de Particulares;

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ABSTRACT

This monograph composes a research on the death and the Beyond in Ancient Egypt from the tombs of Nakht and Nebamun, members of a priestly elite of the city of Thebes during the XVIII Dynasty. We will start with concepts such as Pluralist Culture, Cultural Memory, Death Imagery and Funerary Space to analyze the Egyptian images in two tombs of elite members, understanding their meanings and functions. The first tomb is of Nakht, an astronomer and scribe of the temple of Amon, who lived between the reigns of Thutmose IV and Amenhotep III (c.1401-1353 BCE). It is situated on the Theban necropolis, the western bank of the present-day city of Luxor. The other, transposed from the Theban necropolis to the British Museum (London) in the early nineteenth century, is the scribe and grain accountant, Nebamun, who lived between the reigns of Amenhotep III and Akhenaton (c.1353-1335 BCE). We sought to analyze the conception of death and Beyond in the decorative plans of these two theban tombs of individuals in the period of the XVIII Dynasty, understanding how the dead was projected in the Beyond and how Egyptian society guaranteed and maintained this relationship of the living with the dead. Thus, it is proposed that the Egyptian tomb served as a connecting space between earthly Egypt, where the living is offering to the dead, and the Beyond, where are projected those who receive these offerings from the living.

Keywords: Ancient Egypt; New Kingdom; Theban Necropolis; Private Tombs; Cultural

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 8

1. A SOCIEDADE EGÍPCIA NO CONTEXTO DA XVIII DINASTIA ... 13

1.1. Perfil de uma cultura pluralista e sua aplicação no Novo Império do Egito Antigo ... 14

1.2. O contexto sócio-político da XVIII Dinastia ... 16

1.3 A religião egípcia nos momentos de Nakht e Nebamun ... 19

2. A NECRÓPOLE TEBANA ... 24

2.1 O imaginário da morte no Egito Antigo ... 25

2.2 Entendendo a Cultura Funerária no Egito Antigo ... 28

2.3 O espaço funerário e suas repercussões na sociedade egípcia ... 34

3. CULTURA VISUAL E ARTE EGÍPCIA: AS TUMBAS TEBANAS DA XVIII DINASTIA 45 3.1 A Cultura Visual no Egito Antigo ... 46

3.2 Os cânones da arte egípcia ... 49

3.3 As pinturas em tumbas tebanas e suas funções ... 61

4. MOTIVOS ICONOGRÁFICOS NAS TUMBAS DE NAKHT E NEBAMUN ... 66

4.1 Banquetes Funerários ... 72 4.2 Mesas de oferendas ... 77 4.3 Campos do Além ... 80 4.4 Tipos de Cultura ... 88 CONCLUSÃO ... 93 REFERÊNCIAS ... 96 ANEXOS ... 104

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INTRODUÇÃO

O Egito Antigo é constituído por sociedade complexa, com suas crenças e pensamentos próprios. O estudo do imaginário da morte constitui uma das formas que temos de analisar a visão de mundo de uma sociedade, já que as suas preocupações, angústias e questionamentos sobre o pós-vida é constatada desde os primórdios das sociedades (ASSMANN, 2003). As diferentes atitudes do homem diante da morte, no tempo e no espaço, nos são úteis como forma de conhecimento da história humana, rica em pensamentos, em ideias, em visões de mundo. Além disso, o imaginário da morte tem respaldo no cotidiano daquele povo, sendo, muitas vezes, um veículo para podermos chegar a uma análise da sociedade viva e de sua cultura. Dessa forma, a concepção da morte no Egito Antigo estava intimamente ligada à forma de viver em sociedade.

Existem três categorias básicas de resquícios arqueológicos que nos fornecem dados da sociedade egípcia: os assentamentos, os de cultos e os de contextos funerários (RICHARDS, 2005, p. 32), sendo o último mais abundante no Egito Antigo. As necrópoles egípcias geralmente eram construídas na margem oeste do rio Nilo, o que está associado ao pôr do sol e à morte. O local de enterramento do morto tem a função de proteger o corpo deste em um Egito Terreno, enquanto que as outras manifestações do egípcio estão no Além. Nas tumbas privadas de Tebas do Novo Império (c. 1550-1070 A.E.C.) não é diferente. Uma estrutura comum das tumbas na necrópole tebana é a capela funerária, que atua como um veículo de regeneração e mantimento da vida do indivíduo no Além. Sendo assim, as capelas funerárias representam a identidade do morto no Além, construída a partir da vivência dele no Egito Terreno. As imagens presentes nesse espaço reafirmavam, de forma visual e escrita, seu status social e a sua memória cultural.

Ainda sobre essas imagens, elas representam um momento social, religioso, econômico, político e artístico no Egito Antigo. Dessa forma, a função dessas cenas apresenta bem mais do que “apenas” como esse morto é identificado socialmente no Além e no Egito Terreno. Uma das funções das tumbas é a de impactar os visitantes do espaço, fazendo com que eles apreciem as imagens e rememorem o morto. Esse ato apresenta a ideia de que, a partir do texto e imagem, além das propriedades mágicas e comemorativas de ambas, a iconografia das tumbas tebanas reafirmam uma preocupação dos egípcios em valorizar sua vida no Egito Terreno em prol de

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assegurar a do Além, demonstrando, assim, as concepções ideológicas e religiosas que permeavam o momento vivenciado na região de Tebas.

Pessoas, vivendo em comunidade, estabelecem formas de identificação e construção mnemônica pelo exercício da imaginação. Eles inventam mitos, símbolos e ideologias que são, concomitantemente, um conhecimento essencial. Indivíduos ambiciosos criam uma estrutura de poder, estabelecendo sistemas de condutas que direcionam energias e recursos para outros (KEMP, 2018, p. 3). Dessa forma, ao longo da história do Egito Antigo, essa sociedade hierarquizada construiu, ao longo de seus quatro milênios de existência, diversos aparatos arquitetônicos que, hoje analisados, representam a complexidade de sua cultura.

A tumba de Nakht (c. 1401-1391 A.E.C.) está localizada em Sheik el-Qurna (parte de Tebas). Nakht era um astrônomo e sacerdote do templo do deus Âmon. Não é comum encontrar astrônomos no Novo Império do Egito Antigo, sendo assim, a sua tumba nos apresenta certas particularidades, com seis paredes decoradas; além disso, é uma importante composição de fontes para a análise da sociedade egípcia e sua concepção funerária, pontos chave desta pesquisa.

Outras fontes que iremos trabalhar partem da capela funerária de Nebamun (c. 1350 A.E.C.), também um sacerdote do templo de Âmon; porém, aplica-se outro título a este, o de escriba e contador de grãos. Atualmente, é possível encontrar onze fragmentos da capela funerária de Nebamun, compondo sete cenas ao todo, que sobreviveram até os dias atuais. A maioria está no Museu Britânico, instituição que fez a primeira escavação a essa tumba, na primeira metade do século XIX; também há alguns desses fragmentos no Museu de Berlim, no Musée des Beaux-Arts de Lyon, no Musée Calvet além de algumas fotografias do colecionador de Benzion. Não existem registros da localização original dessa tumba, mas é provável que esta tenha sido uma tumba tebana, pela sua composição artística e escrita.

Tanto a tumba de Nebamun quanto a de Nakht apresentam características importantes que auxiliam o entendimento da sociedade egípcia no contexto da XVIII Dinastia. No catálogo do Museu Britânico, intitulado “The Painted Tomb-Chapel of Nebamun: Masterpieces of Ancient Egyptian Art in the British Museum”, Richard Parkinson discorre sobre o acervo selecionado. Realiza uma tentativa de retomar de onde essas imagens poderiam ter sido oriundas ao trazer relatos das escavações do museu no início do século XIX. Após, ele trabalha cada cena da suposta capela funerária, apresentando ao leitor o que está contido em cada uma

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delas na questão de materiais e de hieróglifos, traduzindo-os para o inglês. A obra está neste idioma, não possuindo tradução para o português até o atual momento; porém, as imagens da capela de Nebamun estão disponíveis para pedidos gratuitos na própria página do museu, tornando possível o estudo de tais fontes.

Por mais que a tumba do astrônomo e escriba do deus Âmon Nakht (TT 52) seja famosa e disposta em quase todos os livros de arte egípcia, pouco se estudou sobre a mesma. As publicações mais completas sobre a tumba são três, de cunho descritivo. O Metropolitan Museum, de Nova Iorque, realizou uma expedição ao Egito no início do século XX e, em 1917, publicou um catálogo, em inglês, da tumba de Nakht (DAVIES, 1917), com tradução de hieróglifos e descrição das imagens que compõem o plano decorativo. Em 1991, dois egiptólogos publicam, em alemão, um livro que dispõe imagens coloridas da tumba (SEIDEL; SHEDID, 1991). Contudo, o corpo da publicação é descritivo sobre os achados e as pinturas. Dimitri Laboury, em 1994, é convidado por Roland Tefnin para escrever um dos capítulos que compõem o livro ao qual está organizando sobre arte egípcia. Laboury então escreve, em francês, sobre a tumba de Nakht, descrevendo, de modo semiótico, certos detalhes que não haviam sido reparados anteriormente. A tese de Antônio Brancaglion Jr., defendida em 1999, apresenta a interpretação sobre as cenas de banquetes funerários de tumbas tebanas de particulares da XVIII Dinastia. Entre as cenas que Brancaglion Jr. analisa está a da tumba de Nakht. Contudo, o plano decorativo dessa tumba ainda apresenta mais cinco paredes, com cenas distintas das analisadas por Brancaglion Jr.

Ao longo deste trabalho, temos o objetivo de expor e associar os conceitos visuais, funerários e culturais da sociedade egípcia no Novo Império. Além disso, buscamos analisar a concepção de morte e Além nos planos decorativos dessas duas tumbas tebanas de particulares no período da XVIII Dinastia, entendendo como o morto era projetado no Além e em como a sociedade egípcia garantia e mantinha essa relação do vivo com o morto. Sendo assim, é proposto que a tumba egípcia servia como um espaço de ligação entre o Egito terreno, onde estão os vivos que ofertam aos mortos, e o Além, onde são projetados os que recebem essas oferendas dos vivos.

Portanto, iremos abordar alguns conceitos que nos auxiliam para o entendimento mais amplo do que é a cultura funerária egípcia nesse momento vivido pelos dois sacerdotes do templo de Âmon. No primeiro capítulo, A Sociedade Egípcia no Contexto da XVIII Dinastia, expusemos os conceitos de Cultura Pluralista e de Henoteísmo no Egito Antigo. O primeiro

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conceito demonstra que a sociedade egípcia possuía diferentes tradições, cada uma com o seu polo religioso e cultural, assim como seus próprios textos e conceitos, derivados de experiências e conhecimentos próprios. A ideia de henoteísmo é aqui posta para entendermos que existe, na religião egípcia, um deus de culto principal (que varia de acordo com o período), mas que este não nega a existência dos demais deuses, de cultos menores. Sendo assim, a religião egípcia, que não pode ser separada do contexto social e político, teria, também, um pensamento não homogêneo entre os seus praticantes. O conceito de henoteísmo aplicado à religião egípcia é complexo, mas que justifica o pensamento pluralista da cultura.

O segundo capítulo, A Necrópole Tebana, discute aspectos funerários da cultura egípcia. Nessa parte da monografia explanamos sobre o conceito de espaço funerário e em como a tumba, enquanto um ambiente construído pela cultura egípcia, fornece subsídios tanto para a própria sociedade contemporânea à sua vivência, quanto para o egiptólogo atual, que busca entender o Egito Antigo por meio das tumbas. Nesse capítulo serão apresentadas algumas concepções egípcias de costumes funerários na interpretação dos egiptólogos.

Cultura Visual e Arte no Egito Antigo: as Tumbas Tebanas da XVIII Dinastia é o título do terceiro capítulo dessa monografia. Nele, estão expostos conceitos da Cultura Visual e dos Cânones da Arte Egípcia e em como estes se aplicam nas análises dos planos decorativos. A análise das imagens em si está no quarto capítulo, intitulado Motivos Iconográficos das Tumbas de Nakht e Nebamun. Esse capítulo consta de quatro subdivisões, cada uma com os motivos comuns às duas tumbas. Nessas análises estão contidos conceitos trabalhados nos três capítulos anteriores.

Por fim, os Anexos. Esta parte constitui em um corpus, confeccionado de acordo com o que Claude Bérard considera como análise dos elementos formais mínimos. A confecção e montagem desse tipo de catálogo constitui a base do trabalho arqueológico. Dessa forma, é a partir dele que são lançadas as diretrizes, assim como as discussões pertinentes à pesquisa (VASQUES, 2005, p. 35). No caso, o nosso catálogo está dividido em treze partes, indicando as treze paredes (tumba de Nakht) e fragmentos (tumba-capela de Nebamun). As seis primeiras fichas estão destinadas às descrições da tumba de Nakht, enquanto que as outras sete, para a de Nebamun. Cada ficha é composta pela imagem descrita, o Título, Objeto, Material e técnica, Dimensões, Proveniência, Datação, Descrição, Hieróglifos (traduzidos para o inglês, por Davies e Parkinson, e, aqui, para o português) e Comentários. A partir disso, elaboramos nossas problemáticas e pressupostos para a confecção desta monografia.

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Sendo assim, esta monografia compõe uma pesquisa sobre a morte e o Além no Egito Antigo a partir das tumbas de Nakht e Nebamun, membros de uma elite sacerdotal da cidade de Tebas durante a XVIII Dinastia. O nosso problema cerca como esse período da história do Egito, antes de Akhenaton, é representado nas imagens dessas duas tumbas, entendendo o Além como uma forma de continuação da vida terrena, uma vez que essa análise das imagens funerárias nos fornece um melhor entendimento sobre a cultura egípcia. Dessa forma, partiremos de conceitos desenvolvidos ao longo desse trabalho e analisaremos as imagens egípcias dessas tumbas a fim de compreender seus significados e funções em uma tumba de um membro da elite.

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1. A SOCIEDADE EGÍPCIA NO CONTEXTO DA XVIII DINASTIA

Ao longo de seus mais de três milênios de história, a antiga sociedade egípcia se organizou ao redor do rio Nilo, de modo a utilizar dos recursos disponíveis no ambiente, assim como alterá-los aos seus interesses próprios. Pensando nas teorias de agência, nas quais o indivíduo expressa, de forma única, seus sentimentos a respeito de si e do mundo, mas que, em conjunto com outros indivíduos (que também possuem seus pensamentos próprios), produzem uma cultura (ORTNER, 2016, p. 30), podemos expandir esses ideais para o Egito Antigo. Como cada indivíduo possui um conjunto único de atributos, as pessoas desenvolvem suas vidas dentro do seu “espaço de oportunidade”, no mínimo, com o propósito de sobrevivência e, muitas vezes, de melhoria individual (KEMP, 2018, p. 8). Dessa forma, entendemos que a cultura egípcia não é estável ao longo de todos os seus períodos. As próprias mudanças de dinastias demarcam uma alteração nessa sociedade.

A XVIII Dinastia (1550-1307 A.E.C.) do Egito Antigo, inserida no período determinado de Novo Império (1550-1070 A.E.C.), possui uma interessante conjuntura social, política e religiosa, em discussão pelos egiptólogos. Antes do Novo Império, o Egito vivencia seu Segundo Período Intermediário (entre o Médio e o Novo Império), que compreende os anos de 1640 a 1532 A.E.C. Esse período possui algumas dinastias que não são egípcias, mas de hicsos. Esse período é retratado posteriormente pelos egípcios, na literatura, como um momento de caos. Após diversas mudanças políticas que compreendem esse período, a XVII Dinastia (c. 1640 – 1550 A.E.C.) recupera o poder de uma antiga cidade importante do Egito Antigo, Tebas, e, na XVIII Dinastia, os egípcios se reestruturam no poder político. Essas mudanças são os pontos-chave para as discussões ao longo desse capítulo. Explanaremos aqui sobre o contexto sócio-religioso dos nossos documentos, as tumbas de Nakht e Nebamun (c. 1401-1353 A.E.C.).

A tumba de Nakht (TT 52) está localizada na vila de Sheik el-Qurna, na área da necrópole da cidade de Tebas, atual Luxor. Quanto à tumba de Nebamun, não sabemos onde ela se encontra; porém, existem suposições, do Museu Britânico1 (USIK; PARKINSON, 2008),

que Nebamun teria vivido em Tebas e a sua tumba se localizaria na vila de Dra Abu el-Naga, que, assim como a de Nakht, também faz parte da necrópole tebana. Sendo assim, não podemos

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entender nossos objetos de pesquisa sem discutir sobre as mudanças políticas e culturais do período, que englobam as “campanhas de manutenção” ou “expansão territorial” dos faraós do Novo Império e as diferenciações nas crenças religiosas. Além disso, devemos compreender a cultura egípcia como pluralista, assim como as diferentes manifestações religiosas presentes no Egito Antigo, dando foco ao culto solar que se desempenhava na cidade de Tebas na XVIII Dinastia, no templo do deus Âmon, onde Nakht e Nebamun eram funcionários.

1.1. Perfil de uma cultura pluralista e sua aplicação no Novo Império do Egito Antigo Jan Assmann (2016), egiptólogo alemão, escreve um livro sobre a aplicação de uma teoria pluralista de cultura no Egito Antigo. O autor entende que, nas análises da sociedade egípcia antiga e seu longo período de duração, a própria história se confunde com a compreensão de sua forma cultural. Sendo assim, ao se estudar a história do Egito Antigo, este egiptólogo defende que é, também, necessário entender as formas culturais dessa sociedade. Culturas diferentes possuem e constroem histórias diferentes. Um teórico da cultura é relativista, e não entende a história no sentido de uma estrutura universal e homogênea, dentro da qual cada cultura se desdobraria à sua maneira (ASSMANN, 2016, p. 6). Dessa forma, Assmann (2016, p. 6) argumenta que, para esse teórico da cultura, a própria história nasce e em função desse processo de desdobramento; processo este que cada cultura gera a partir do fundamento das possibilidades semânticas e dinâmicas que lhe são próprias. Seguindo esse pensamento, a história se torna, também, um produto da cultura, uma outra forma cultural. Dessa maneira, no ponto de vista da teoria da cultura, a história é categorizada como função do tempo cultural.

Esse tempo cultural é entendido, portanto, como uma construção social de um tempo cronológico. O tempo é uma magnitude homogênea que compõe uma dimensão específica (similar, nesse ponto, ao espaço) que pode ser medida e calculada. Contudo, de acordo com Assmann (2016), o tempo cultural não pode ser medido ou calculado, mas, sim, interpretado, constituindo assim uma ligação de tempo e sentido. Logo, o tempo cultural é único de cada sociedade, que o constrói conforme sua cultura. Entendendo as culturas nos modos do antropólogo Clifford Geertz (1989), elas são únicas. Dessa forma, a diferença do tempo físico para o tempo cultural é que este existe no plural, como uma pluralidade de construções temporais (ASSMANN, 2016, p. 6).

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No Egito Antigo, existiam duas maneiras de conceber o tempo. Não podemos entender essa sociedade se nos fecharmos em conceitos de tempo cíclico ou linear. Podemos as tomar como base, mas não nos apropriar de seus conceitos para entender a sociedade egípcia. Os egípcios antigos distinguiam um tempo sagrado cíclico (chamado de neheh) de outro que não é isso (chamado de djet) (ASSMANN, 2016, p. 8). O primeiro é considerado um tempo cíclico, eterno retorno ao igual, reproduzido a partir dos movimentos dos astros, determinado pelo sol. Em egípcio, esse tempo se associa com o conceito de “transformação”, simbolizado pelo escaravelho, que também representa saúde e salvação, tanto é que este serve para indicar Rê ao nascer do sol. Por isso, o neheh possui características de tempo cíclico, por significar uma existência contínua. Nesse caso, o nascer e pôr do sol representa esse tempo, uma vez que é algo contínuo e se acredita na eternidade do movimento.

Por outro lado, o djet não pode ser designado como um tempo linear nos conformes de Maurice Bloch (apud ASSMANN, 2016, p. 7-8). Este tempo simboliza o contrário do tempo cíclico, porém, não como uma linha e, sim, como o espaço. Dessa forma, djet não instaura uma linha diacrônica, também não consta em uma sucessão sequencial de pontos no tempo, além de não se articular no futuro e no passado, não sendo um lugar de história (ASSMANN, 2016, p. 8). Este tipo temporal se associa com os conceitos de “permanência” e “duração”, tendo como símbolos a pedra e a múmia, assim como o deus Osíris, que representa o deus morto e habita no Além. O djet é o espaço sagrado de duração, o que ascendeu a existência e é o sentido perfeito, preservado de forma definitiva, sem alteração alguma. Por isso, esse tempo está associado ao deus Osiris, às pedras (como material de construção, como tumbas, por exemplo) e à múmia, pois o ideal da crença egípcia é que estes estejam preservados de forma perfeita para a eternidade.

Já que nem todo indivíduo que compõe uma sociedade é igual, em toda cultura existe uma pluralidade dentro dela. Toda cultura está organizada por uma pluralidade de sistemas e, dentro desses sistemas, existem diversos graus de diferenciação (ASSMANN, 2016, p. 9). A ideia de Assmann (2016) é que, quanto mais compacta e indiferenciada for uma cultura, menor é a sua capacidade de exercer uma crítica sobre si mesma e se transformar. Sendo assim, as possibilidades tanto de mudanças internas como de compreensão de outras culturas são medidas pelos graus dessa diferenciação dentro da cultura.

Partindo disso, analisar uma sociedade complexa, como a egípcia, necessita entender como esta funciona e desenvolve o seu tempo cultural. A própria crença de origem do universo

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pode servir de exemplo para explicitar a pluralidade na cultura egípcia. Existem três cosmogonias principais na história do Egito Antigo, originadas em três cidades importantes diferentes, a saber: Heliópolis, Hermópolis e Mênfis (HART, 2004, p. 10). Cada uma destas possui pontos em comum, pois se trata de uma mesma sociedade. Contudo, existem diferentes características nelas que remetem aos próprios interesses locais.

O Egito Antigo possuía possibilidades de reflexão sobre sua cultura. Na sociedade egípcia existiam diferentes e diversos posicionamentos e instituições, como sacerdotes e funcionários, soldados, escribas e agricultores. Além disso, possuíam diferentes tradições, cada uma com o seu polo religioso e cultural, assim como seus próprios textos e conceitos, derivados de experiências e conhecimentos próprios (ASSMANN, 2016, p. 9), como é o caso das visões de origem do mundo egípcio, possibilitando diferentes formas de se entender e se inserir no espaço. Dessa forma, cabe à teoria da cultura explicar como são possíveis as mudanças e as traduções que ocorrem em uma sociedade, tentando também entender que estas não se dão por igual em toda a cultura no tempo.

Interpretar a sociedade egípcia à luz de uma teoria pluralista da cultura reivindica a necessidade de problematizar sobre as noções egípcias de tempo, história e realidade. Assmann (2016, p. 10) argumenta que o teórico da cultura parte da ideia que a realidade só pode ser contemplada através de uma janela de condições culturais determinadas que definem, em cada caso, um marco específico. O egiptólogo que deseja ser, também, teórico da cultura, deve entender certos questionamentos: a realidade que se torna visível através da janela das condições de enquadramento dos egípcios; ou, formulando de uma forma menos relativista, que uma visão panorâmica da “realidade” abre para este egiptólogo a história, o mundo conceitual e as simbolizações da cultura egípcia (ASSMANN, 2016, p. 10).

1.2. O contexto sócio-político da XVIII Dinastia

O Novo Império tem início, justamente, com a XVIII Dinastia e o rei Ahmose (1550-1525 A.E.C.). Após a reunificação do Egito, que passara por momentos políticos conflitantes durante o Segundo Período Intermediário, este rei restaura, gradualmente, o poder de uma cidade muito importante para os egípcios, no ponto de vista religioso, social e político do Médio Império, Tebas. Esta cidade, que tem Âmon como deus principal, é um ponto central para se

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entender a teia de relações sociais que se desenvolveram no Egito Antigo nessa temporalidade. O deus Âmon associa-se a Rê, na figura de Âmon-Rê, adquirindo um aspecto solar próprio do culto heliopolitano, predominante outrora no Antigo Império. Indica-se, portanto, que há uma intenção em retornar o prestígio de Tebas durante a XVIII Dinastia. A família de Ahmose era influente nesse local (LARGACHA; RODRIGUES, 2016, p. 177). Dessa forma, com o início da XVIII Dinastia, existe uma preocupação em empreender grandes obras do estado para assegurar a visibilidade da família real (KEMP, 2018).

O crescimento da cidade de Tebas estava, provavelmente, associado ao poder do clero de Âmon, que gerenciava as terras do templo, assim como também seria decorrente das expedições militares que os faraós comandavam em nome do deus, que geravam acúmulo de riquezas para o seu templo em Tebas. Consequentemente, a elite sacerdotal que administrava esse templo ampliou o poder e prestígio ante o faraó e a população egípcia. A expansão do poder do clero de Âmon pode ter sido um dos motivos da reforma efetuada no período de Akhenaton (1391-1335 A.E.C.), com a valorização do culto a Áton, o disco solar, em detrimento das outras divindades egípcias.

Segundo Jan Assmann (2016, p. 48), a expansão militar egípcia, desempenhada ao longo da XVIII Dinastia, tinha como propósito manter Maat, conceito que comporta a ideia de ordem, verdade e justiça. Para Bernadette Menu (2005, p. 107), a noção de Maat comporta a dupla concepção de uma ordem universal de prosperidade, manutenção, e de uma ordem humana, condição de harmonia social, na qual cada um é responsável por essa harmonia. Dessa forma, essas ordens deveriam ser estabelecidas por todos os egípcios, sendo, inclusive, uma das funções do faraó manter estas para a sociedade egípcia. Os inimigos do Egito eram vistos como pertencentes à força do caos e ameaçadores da ordem, em uma época na qual o trauma dos egípcios com o domínio dos hicsos durante o Segundo Período Intermediário era ainda recente.2

Os reis da XVIII Dinastia se preocupam que este caos, ocorrido no Segundo Período Intermediário, se repita. Sendo assim, eles dão continuidade ao que Ahmose havia iniciado, desempenhando campanhas internas e externas ao Egito, como forma de legitimar e deixar

2 Enquanto a ação do faraó contra os inimigos do Egito, retratada nas cenas dos templos, mostra a derrota

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visível o poder da família real egípcia. Como consequências dessas guerras de liberação, descobrem nela um instrumento para uma acumulação inédita de capital, não apenas material mas, também, simbólico (ASSMANN, 2016, p. 49). A “ampliação de fronteiras” torna a ser o novo objetivo político da XVIII Dinastia (HORNUNG apud ASSMANN, 2016, p. 49). O faraó Tutmés III (1479-1425 A.E.C.), de acordo com Assmann (2016), troca a política de “campanhas de conquista” por “anexação sistemática” de territórios, o que representa uma mudança significativa quanto às estratégias de guerra. Diferente deste rei, Tutmés IV (1401-1391 A.E.C.) e Amenhotep III (1391-1353 A.E.C.) põem fim às guerras contra reinos importantes, com objetivos e interesses próprios egípcios, assinando alianças de paz, por meio de casamento com princesas (no caso de Tutmés IV, do reino de Mitanni).

No Novo Império, a guerra e a religião vinculam laços estreitos. No plano ideológico, o resultado desta conexão é uma teologia da história que concebe isso como o desenvolvimento da vontade de planejamento aliado às intervenções dos deuses (ASSMANN, 2016, p. 51). Contudo, essa relação possui seu aspecto institucional. Podemos perceber ao longo do Novo Império, que existem dois grupos sociais centrais, a saber: os sacerdotes e os militares. Estes, assim como a guerra e a religião, estreitam suas relações. A cidade de Tebas não era, realmente, a capital política do Egito no Novo Império. Entretanto, a importância que ela possui nesse período supera essas determinações. A cidade era, portanto, uma cidade religiosa, de onde a família real da XVIII Dinastia era proveniente. Isso categorizava Tebas com um papel importante no estado: uma cidade sagrada na qual eram situados importantes festivais, entre eles, cultos à divindade da monarquia (KEMP, 2018, p. 262-263). O templo de Karnak, de culto central ao deus Âmon, era um dos recintos mais importantes para o desenvolvimento religioso do local.

Nakht e Nebamun são contemporâneos dessas mudanças. Nakht, que teria vivido durante o reinado de Tutmés IV (1401-1391 A.E.C.), era um astrônomo e escriba do templo de Âmon, em Tebas, enquanto Nebamun, que, provavelmente, seria do período de Amenhotep III (1391-1353 A.E.C.), fora escriba e contador de grãos do mesmo templo que o primeiro. Sendo assim, ambos compuseram a elite sacerdotal do templo mais influente da XVIII Dinastia. O que se torna interessante nesses dados é que os dois constroem suas tumbas momentos antes do reinado de Akhenaton (1353-1335 A.E.C.), considerado por muitos egiptólogos o faraó que tentou instaurar uma reforma religiosa no Egito Antigo, ponto que será explicado doravante. Sendo assim, a análise dos motivos iconográficos de ambas as tumbas pode nos proporcionar

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um entendimento sobre a cultura local desses sacerdotes de Âmon, como eles interpretavam o Além e se inseriam nesse conceito funerário.

Não podemos generalizar essas concepções e análises para toda a sociedade egípcia, pois estamos tratando de uma cultura pluralista, que indica cada cidade egípcia como detentora de seu templo religioso, com seu deus influente e sua elite sacerdotal com uma determinada influência. Existem, entretanto, certos pontos semelhantes como, por exemplo, os enterramentos egípcios. As necrópoles eram construídas à margem ocidental do Nilo, pois esta estava associada com o pôr do sol, o que entra em concordância com as ideias de neheh e djet, explicadas anteriormente. Dessa forma, necessitamos entender melhor o que é interpretado por essa elite que Nakht e Nebamun são parte, assim como explanar sobre as concepções religiosas e as influências destas na sociedade.

1.3 A religião egípcia nos momentos de Nakht e Nebamun

A religião egípcia é repleta de crenças e práticas, próprias para cada região do Egito. Mesmo que existam suas semelhanças, se analisarmos a cultura egípcia como uma cultura pluralista, entendemos esses pontos de semelhança como o fator que os liga como uma só sociedade. Assmann (2016) argumenta sobre essas diferentes tradições, cada uma com o seu polo religioso e cultural, assim como seus próprios textos e conceitos, derivados de experiências e conhecimentos próprios. Seguindo o mesmo pensamento, John Baines (2002) nos informa que não é possível pensar na religião egípcia como uma unidade. Este autor defende que os antigos egípcios viviam e participavam dessa diversidade religiosa (BAINES, 2002, p. 150). Dessa forma, as ligações entre a religião e a sociedade ocorria de forma mais íntimas no Egito Antigo. Uma vez explicado o conceito pluralista aplicado sobre a ótica do Egito Antigo, devemos entender que a religião egípcia possuía várias práticas ritualísticas. Como John Baines (2002) defende, existiam diferentes cultos às divindades, levando-se em conta também os domésticos.

O henoteísmo, por sua vez, aplicado e desenvolvido por Erik Hornung ao Egito Antigo, apresenta características peculiares para se analisar a sociedade egípcia. Para esse autor, no Egito, existiam vários deuses, aceitos como parte da religião. Contudo, existe uma divindade de culto central (que, para a época descrita ao longo dessa monografia, é a divindade solar,

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Âmon), que não extingue o culto dos demais deuses. Dessa forma, a sociedade egípcia aqui estudada não é considerada como politeísta, mas, sim, henoteísta.

Erik Hornung (2016), assim como Jan Assmann (2001), escrevem sobre as transformações que se desencadearam ao longo da XVIII Dinastia. Como supracitado, o início desse período se instaura como uma necessidade de reerguer o Egito sobre a ameaça externa. O culto ao deus Âmon cresce a partir das campanhas e guerras. Dessa forma, se instaura uma crise no pensamento religioso da época. Como pode uma cultura de caráter “politeísta”, na qual se cultuavam várias representações divinas, assumir um culto principal para uma única divindade? Assmann (2001; 2016) entende que a história da religião no Novo Império é caracterizada por duas linhas evolutivas de maior relevância. Por um lado, esta crise da imagem politeísta do mundo, é uma crise que tem seu auge na revolução de Amarna e que termina em uma nova forma de religião, renovada e readaptada para a sociedade egípcia da XVIII Dinastia (mas, que só é melhor percebida com a XIX Dinastia). A segunda perspectiva é a da “piedade pessoal”, uma linha que John Baines (2002) também segue. Essa ideia de piedade engloba, ao menos, quatro fenômenos diferentes, que, porventura, associam-se e se confundem, a saber: formas de religiosidade local (diferente da estatal), formas de religiosidades domésticas e individuais (diferente da sacerdotal, de templos), a religião popular (diferente da religião de pessoas da elite), e, também, as novas formas de religiosidade que caracterizam o Novo Império (diferem da religiosidade tradicional) (ASSMANN, 2016, p. 52).

As ideias de John Baines (2002) são relevantes para interpretar as diferentes “religiões” dentro de uma única cultura. Este autor entende que os egípcios estabeleciam uma clara divisão entre as ações religiosas normais, de caráter otimista, e que estas tomavam lugar no contexto restrito do culto (BAINES, 2002, p. 159). Além disso, Baines (2002, p. 165) considera que o ideal das pessoas membros da elite egípcia, à serviço do Estado, era de crescer, serem treinadas para suas carreiras, casar e estabelecer laços familiares. Mesmo assim, trabalharemos ao longo dessa monografia com a primeira separação de Assmann, sobre a crise religiosa que se instaura no início do Novo Império, partindo das perspectivas de Erik Hornung (2016) sobre a religião. Contudo, isso não significa um descarte da perspectiva de “piedade”.

Hornung (2016) considera que a religião egípcia é uma construção humana. Dessa forma, o estudo da sociedade egípcia, de qualquer perspectiva, explicita uma questão: a da existência e realidade de seus deuses (HORNUNG, 2016, p. 231). A religião egípcia vive do fato de que os deuses existem verdadeiramente. Essa segurança penetra todas as áreas da vida

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egípcia. Não podemos entender a cultura egípcia sem elencar questões sobre a sua religião. Quanto mais claramente os reconhecermos, mais claro será para nós também o ser egípcio. Tanto os motivos iconográficos quanto os hieróglifos, ou o significado do ambiente construído, representam fontes para a nossa pesquisa. Esses documentos nos auxiliam nessa compreensão também da religião tebana com seu culto central ao deus Âmon.

Qualquer conceito apropriado, qualquer abordagem melhorada deve ser bem vista para abrir novas perspectivas teóricas na análise da sociedade egípcia (HORNUNG, 2016, p. 232). Dessa forma, Hornung defende que, para a existência simultânea característica e contraditória do conceito de que o deus egípcio é Um e Múltiplo, as análises da religião egípcia encontram conforto ao abordar o problema a partir da perspectiva do “henoteísmo”. Sendo assim, essa ideia de que uma divindade pode ser cultuada como suprema, sem que se negue a existência das demais confirma que ambas as afirmações sobre a realidade de deus podem ser verdadeiras, sem se excluírem. O deus egípcio é, portanto, único e muitos ao mesmo tempo (HORNUNG, 2016). Para o egípcio, o mundo vem do Um porque o “não-ser” é Único (HORNUNG, 2016, p. 171). Contudo, o ser criador não apenas diferencia seu produto (nesse caso, a criação do universo em si), mas, também, a si mesmo. Do Um surge o Dual. Esse conceito de dualismo é algo presente em, praticamente, toda a história do Egito Antigo. Como será explicado no segundo capítulo desta monografia, existe uma concepção funerária de que o egípcio se divide ao morrer, sendo necessário para garantir sua existência no Além, unirem-se novamente.

Dessa forma, apenas o retorno do “não-ser” pode trazer o colapso do separado e cancela a diferenciação novamente. Ao se tornar existente, o divino perde a unidade absoluta e exclusiva do princípio. Porém, onde quer que a divindade seja invocada para devidos cultos e adorações, ela é apresentada com uma forma claramente definida, que, por um momento, pode unir toda a divindade em si sem partilhar com qualquer outro deus (HORNUNG, 2016, p. 172). Algo recorrente nas fórmulas do Livro dos Mortos é a associação do morto (chamado de N) com o deus Osíris. Hornung explica isso como um encontro no Um. O humano, que assim se associa com o deus indicaria que não existe mais ninguém além dele. A ideia de Hornung (2016, p. 172) é que esta associação encarna toda condição humana. Entretanto, essa unidade divina e humana permanece sempre relativa, não excluindo a pluralidade essencial que deixa em aberto todo o acesso à natureza de deus com sua unidade e pluralidade.

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Apenas Akhenaton, no período chamado de “amarniano”3 fez a tentativa de reivindicar

essas caraterísticas, cultuando apenas um deus, enquanto diminuía os outros pela violência (HORNUNG, 2016, p. 172). Isso indica que esse rei não necessariamente se tornou um monarca que instaurou o monoteísmo no Egito Antigo. Pelo contrário, Akhenaton possuía, sim, caráter monoteísta por tornar Áton como divindade de culto central de seu reinado; contudo, por não negar a existência de outros deuses e tentar se justificar enquanto “único”, no sentido literal (conhecido atualmente)4, assim como perseguir demais cultos por meio violento5, este não

possuiu características que o classifique como monoteísta de fato. Nesse quesito, de tentar se sobrepor ao culto solar tebano de Âmon, Akhenaton falhou. Entretanto, o que se pode perceber é que a sociedade não volta exatamente como era antes, como uma religião tradicional.

O período amarniano tentou quebrar com o crescente poder de Tebas e os sacerdotes de Âmon. Dessa forma, alteram-se cultos e, portanto, visões políticas, mágicas e artísticas. Essas mudanças não ocorreram ao acaso e, também, não foram descartadas por completo após esse período. Para isso, tornam-se importantes os estudos comparativos entre as tumbas tebanas do início da XVIII Dinastia e da XIX Dinastia. Mudanças são constatadas e entendidas como aprimoramentos derivados desse momento em que Akhenaton projeta tais articulações de poder. Contudo, o que alguns egiptólogos averiguam (O’CONNOR, 2004) é que tais projetos do período amarniano não seriam uma construção apenas de Akhenaton. Sendo assim, podemos entender essas aberturas na sociedade egípcia quanto à religião a partir dos reinados de Tutmés IV e Amenhotep III, anteriores a Akhenaton. Como explicados anteriormente, esses dois faraós marcaram tratados de paz com territórios vizinhos, o que indica uma circulação cultural entre essas sociedades. Não é, porém, objetivo desta monografia encontrar esses sinais de mudanças nos planos decorativos das tumbas tebanas de momentos antes da então chamada Reforma

3 Alusão à cidade, Amarna, que o referido rei funda como uma das ideias de se abster do poder crescente

dos sacerdotes de Âmon

4 Erik Hornung dedica uma parte de seu livro (2016) para explicar essa questão do que é “único”. Suas

conclusões são que todo deus egípcio é tido como único, mas que isso é em decorrência do sacerdócio e da construção humana. Além disso, a afirmação de “único” não deforma a imagem dos demais deuses egípcios (exceto no período amarniano).

5 Alguns egiptólogos não compartilham com essa ideia de violência. Não existem, de fato, conclusões

sobre esse assunto, tendo em vista a complexidade por trás desse período. Contudo, o objetivo aqui fora de trazer uma perspectiva de que existiu esse momento na história do Egito Antigo em que se instaura uma determinada ideologia religiosa contrária à existente e que essa nova tenta se sobrepor à anterior.

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Amarniana. Todavia, esses pontos serão, porventura, exemplificados ao longo dos capítulos 3 e 4, tendo em vista que compartilham análises sobre o período estudado.

Portanto, entender alguns conceitos da sociedade egípcia, como religião e práticas funerárias, assim como aplicar teorias, como a de pluralidade cultural na sociedade e cultura visual nas imagens, são cruciais para a análise, nessas perspectivas, do nosso objeto de pesquisa. As tumbas tebanas de particulares no período da XVIII Dinastia compreendem um imaginário da sociedade da época. No nosso caso, as tumbas de Nakht e de Nebamun se inserem no cerne de todo esse desenrolar de acontecimentos. Ambos são sacerdotes do templo de Âmon durante o período, vivenciam a cidade de Tebas e são membros da elite religiosa dessa cidade; além disso, portam planos decorativos em suas tumbas com características iconográficas consideradas, pelos egiptólogos, como especiais (raras) para a época. Sendo assim, o estudo dessas duas tumbas faz necessário o conhecimento do contexto social ao que elas estão inseridas. No capítulo seguinte iremos entender melhor sobre os costumes funerários dessa sociedade. São questões mais complexas, mas que podem ser exemplificadas com os documentos.

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2. A NECRÓPOLE TEBANA

A cultura egípcia não separa alguns ideais. Vimos, no capítulo anterior, que a religião egípcia está intrínseca na sociedade. Sendo assim, tentaremos entender, ao longo deste, como os egípcios interpretavam a morte. Para Jan Assmann (2003, p. 25), existem duas tradições antropológicas para o estudo da cultura que não se anulam: uma estuda a cultura na perspectiva da vida e outra na da morte. Dessa forma, uma cultura nasce da consequência da morte e da mortalidade do indivíduo (ASSMANN, 2003, p. 25). Portanto, para este autor, a preocupação com a morte é uma questão cultural. A morte é uma definidora de cultura. Dessa forma, dois conceitos são cruciais para o entendimento desse capítulo: cultura e crenças funerárias.

De acordo com os pressupostos do antropólogo norte-americano, Clifford Geertz, entendemos que a sociedade é composta por indivíduos ligados por teias de significados. Essas teias podem ser lidas e interpretadas, apresentando dimensões simbólicas da ação social. Essas ações não são, entretanto, guiadas por um determinado grupo, mas, sim, pela sociedade em geral, uma vez que essa cultura é pública e todos os indivíduos participam dela (GEERTZ, 1989, p. 9). Desse modo, seus escritos nos são relevantes no ponto em que ele entende a cultura como um padrão de significados que são transmitidos historicamente pelas sociedades (de forma simbólica). O homem vivencia esses padrões de significados; eles “comunicam-se, perpetuam-se, desenvolvem seu conhecimento sobre a vida e definem sua atitude em relação a ela” (GEERTZ, 1989, p. 89).

Seguindo o pensamento de Geertz e atualizando-o, é interessante a interpretação que nos fornece Sherry B. Ortner (2016) sobre o que é cultura. Para a autora, a cultura deve ser analisada a partir das transformações sociais que vivemos. Estas transformações representam a ruptura entre os conceitos de cultura a partir de estruturas, nas quais os indivíduos veem o mundo e atuam nele, ou de subjetividades, nas quais os indivíduos expressam seus sentimentos a respeito de si mesmos e do mundo. Dessa forma, a autora defende que as transformações sociais agem em uma cultura pública de forma a conformar novas e velhas ideias, sentimentos e ideologias (ORTNER, 2016, p. 30). Pensando nisso, uma cultura é feita em conjunto, por uma sociedade.

Para trabalhar com essas perspectivas culturais em tumbas tebanas do Egito Antigo, não as podemos desvincular das questões teóricas sobre o que é memória. Para Jan Assmann (2008)

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e Aleida Assmann (2011), a memória é um meio que nos capacita a formar uma consciência da identidade, tanto no nível pessoal como no coletivo. A identidade, por sua vez, é relacionada ao tempo (ASSMANN, 2008). Então, a junção de “tempo” e “identidade” é efetuada pela memória. A memória é necessária para identificar aquela manifestação (individual, familiar, comunitária, nacional, tradicional cultural ou religiosa) em seu tempo. Dessa forma, a preocupação de um egípcio em manter sua memória no Egito terreno para permanecer ativo no Além está relacionada à junção da função cultural e da memória em sua tumba, uma vez que a persona possui uma esfera social e requer que esta seja continuada no Além.

De modo a entender essa perspectiva de construção mnemônica a partir do plano decorativo disposto em uma tumba egípcia, precisamos utilizar de conceitos funerários do Egito Antigo. O imaginário de morte no Egito Antigo é complexo. Para compreender a visão de Além, precisamos analisar o que os antigos egípcios entendiam por morte. Os processos que cercam o morto são bem documentados em papiros e em paredes de tumbas, por exemplo, mas não significa que sejam de fácil interpretação. Sendo assim, precisamos explanar sobre a morte como uma forma de isolamento social, entendendo as esferas físicas e sociais no Egito Antigo, assim como a reintegração do morto na sociedade a partir dos elementos que o compõem.

2.1 O imaginário da morte no Egito Antigo

O imaginário está em todo indivíduo e é mais conhecido como aquilo que é fictício e pertencente ao mundo da imaginação, ligado à criatividade. Algumas questões teóricas sobre o imaginário podem ser encontradas em obras ilustres de psicanalistas como Jacques Lacan, Sigmund Freud, Carl Jung, entre outros. Gilbert Durand (2007) desenvolve a ideia que o conseguinte à morte é imaginado pelo homem de forma a negar e superar a mortalidade do indivíduo, transformando-o para algo que conforta a vida daquele indivíduo. A tese de Jan Assmann (2003) é de que os antigos egípcios negavam a morte. “Uma sociedade que deixa tantos resquícios funerários que permanecem até os dias atuais, mais de quatro milênios, como podem negar a morte?” podem se perguntar. Assmann explica que os egípcios reproduziam não uma imagem da morte, mas, sim, uma contra-imagem desta (ASSMANN, 2003, p. 37). Os equipamentos funerários e as suas manutenções explicitam que essa sociedade imagina o Além como uma continuidade da vida e não como um lugar para onde se vai após a morte. As tumbas (arquitetura), os rituais funerários (como a Abertura de Boca, nos capítulos 21, 22 e 23 do Livro

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dos Mortos), as oferendas (alimentos dispostos na tumba assim como preces realizadas no recinto), a mumificação do corpo, entre outros aspectos, são indicadores que essa sociedade acreditava em um Além como um lugar de vida e rejuvenescimento.

Figura 1 - Mesa de oferendas funerárias da tumba capela de Nebamun.

Fonte: Museu Britânico (BM EA 37985).

Esse fragmento de cena, oriundo da tumba capela de Nebamun, representa, à direita, o casal dono da tumba diante de uma mesa de oferendas (ao centro) e, posteriormente (na margem esquerda), o filho do casal, Netjermes, dispondo buquês de lótus nesta mesa.

De maneira semelhante, a amostra abaixo da Parede Sudoeste, cena do Banquete Funerário da tumba de Nakht, nos apresenta a mesma estrutura do recorte anterior. O casal dono da tumba à direita, ao centro a mesa de oferendas e, à esquerda, o filho do casal (Amenemapt) ofertando buquês de lótus.

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Figura 2 - Mesa de oferendas na cena do Banquete da tumba de Nakht (TT 52) - Parede Sudoeste.

Fonte: Desenho adaptado de DAVIES, 1917, pr. XV.

A partir dessa cena podemos analisar diversos motivos mortuários presentes no imaginário de Além egípcio. Para essa sociedade, a flor de lótus caracteriza a vida. É responsabilidade do filho mais velho do casal prestar oferendas para celebrar a vida do morto no Além. Dessa forma, ao ser representado com lótus diante dos donos das tumbas, os filhos estão simbolizando um imaginário de que estes mortos no Egito Terreno (Kemet) estão no Além (Duat) regozijando a vida neste local. Dessa forma, a tese de Jan Assmann, exposta anteriormente, se comprova na medida que existe uma continuidade representada no imaginário egípcio. A morte não é o fim, mas o processo de continuação da vida egípcia.

As teorias de Durand sobre o imaginário são fundamentais, contudo, limitadas ao nosso objeto de pesquisa. Durand defende que este imaginário é individual (ANAZ et al, 2014). Sendo assim, os caminhos e atualizações dessas perspectivas realizadas por Michel Maffesoli (2001), sociólogo, nos abrem formas de analisar a sociedade egípcia. O autor considera dois tipos de imaginários: um individual e outro coletivo. Ao defender sobre um declínio no individualismo

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nas sociedades de massa, Maffesoli alega que o imaginário se constrói a partir de uma convivência comum entre as pessoas. Desse modo, Maffesoli expõe que “a construção do imaginário individual se dá, essencialmente, por identificação (reconhecimento de si no outro), apropriação (desejo de ter o outro em si) e distorção (reelaboração do outro para si)” (ANAZ et al, 2014), enquanto que o coletivo é elaborado pela aceitação do modelo do outro, pela disseminação e, por fim, pela imitação. Maffesoli (2001) interpreta que o imaginário é criado a partir de uma fonte racional e não racional de impulsos para a ação. Sendo assim, esse imaginário está inserido na sociedade e, portanto, na cultura desta, não podendo ser analisado de forma individual, pois faz parte de uma rede social que engloba diversos pontos culturais.

Dessa forma, não podemos analisar a morte na sociedade egípcia desvinculada de seu imaginário coletivo sobre como esta é concebida. São diversas e complexas análises e interpretações sobre o que os antigos egípcios entendiam por Além. As teses sobre as práticas funerárias mais aceitas nos dias atuais pela Egiptologia partem de Jan Assmann.

2.2 Entendendo a Cultura Funerária no Egito Antigo

Assmann (2003, p. 17) parte da hipótese de que existe um ponto de união entre o homem e a morte a partir da cultura. A morte é, portanto, a origem e o berço da cultura. A morte é concebida pela sociedade de diversas maneiras, seja pela a experiência da morte, a consciência da finitude da vida, os quadros rituais de morte e luto, ou traços deixados pelos túmulos sobre a identidade daquele morto. A cultura significa um princípio básico de todas as culturas, assim como a linguagem está na raiz de todas as línguas (ASSMANN, 2003, p. 17). O homem existe em uma sociedade, logo, faz parte de uma cultura. No entanto, não existe apenas uma única cultura, assim como não existe apenas uma língua. Assmann defende, porém, que, em todas as culturas, assim como nas línguas, há um princípio de aptidão para a cultura ou para a linguagem inerente ao homem. Não é nosso objetivo averiguar até qual ponto essa tese está correta. De um ponto de vista antropológico, sociedades podem apresentar certos pontos comuns de características. Dessa forma, torna-se crucial entender o que é cultura e o que é morte no Egito Antigo.

De acordo com Assmann, na sociedade egípcia, podemos evidenciar o ideal de morte como isolamento social, assim como a ideia de reintegração do morto nessa sociedade. O egípcio só está realmente vivo quando este se relaciona com os outros. Em uma sociedade que,

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na interpretação de Assmann (2003, p. 37), nega a existência de morte reafirmando a vida em um outro plano mundano, é compreensivo que o morto esteja em uma espécie de Além. O exemplo das oferendas funerárias pelos filhos dos casais donos das tumbas anteriormente citados se encaixam nessa explicação. Na iconografia, podemos entender que o filho presta homenagens e rememora seus pais. Nesse sentido, a imagem representa algo que faz parte da cultura local, indicando que os mortos estão interagindo com os vivos e vice-versa, possibilitando a vida dos primeiros no Além. O ideal de memória cultural (ASSMANN, 2008) é aplicado nesse caso: a identidade do morto está sendo rememorada no presente. Identidade, memória e tempo são três conceitos presentes no espaço funerário egípcio.

A concepção de morte, no Egito Antigo, está ligada com o corpo. Este é composto por uma pluralidade de membros combinados em uma unidade animada pela mediação do sangue com as contra-imagens destinadas a remediar a morte por meio da coleta, reunião e recordação (ASSMANN, 2003, p. 52). Essas etapas e partes do corpo estão separadas em duas esferas, as quais Assmann chama de social e física. O conceito de pessoa para esses estudos sobre morte no Egito Antigo é trabalhado por Assmann no sentido moderno do termo, uma vez que os termos egípcios não possuem equivalentes em nossas línguas atuais. Esses conceitos são frequentes em textos funerários como o Livro dos Mortos. Esses elementos parecem estar ligados à pessoa e funcionam, de certa forma, de modos isolados e únicos, conduzindo a vida (ASSMANN, 2003, p. 141). O processo de separação desses elementos é chamado por Assmann de dissociação (2003, p. 141) e representa algo importante, desejável e necessário.

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Esquema 1 - As esferas física e social e os elementos de composição do morto.

Fonte: Adaptado de Sarmiento (2018, p. 291).

Os elementos que mais aparecem nos textos funerários egípcios sobre a composição da pessoa são o Ka e o Ba. Juntos a esses dois termos estão o corpo (Dt), o cadáver (kat), a múmia (sAH), o coração (ib), a sombra (Swt) e o nome (rn). O akh apresenta uma outra categoria, que não pode ser confundida aos demais, uma vez que ela não designa um elemento da pessoa, mas, sim, um status; “não possuímos o akh, somos akh” (ASSMANN, 2003, p. 142). De acordo com os pressupostos de Assmann, a esfera social é composta pelo Ka, o nome e a múmia, enquanto que o Ba, a sombra e o corpo pertencem à esfera física.

O objetivo dos rituais funerários é executar a união do Ba e seu cadáver, a fim de restituir, neles, a ideia de Um, como vistos no primeiro capítulo. Dessa forma, fórmulas como o Ritual da Abertura de Boca do Livro dos Mortos nos informam que determinados ritos realizados antes do enterramento do morto na tumba demonstram essa separação entre o cadáver e o seu Ba (ASSMANN, 2003, p. 145). No Capítulo 169 do Livro dos Mortos está a passagem “a tua Ba no céu, o teu corpo na terra” (Adaptado de LOPES, 1991, p. 236; BARGUET, 1967), o que indica essa separação. Esse ato é visto como uma forma de ser glorificado (maakheru em egípcio), um processo de transfiguração do morto em algo glorioso, necessário para sua vida no Além. Entretanto, essa separação deve ser desfeita. O Capítulo 89

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do Livro dos Mortos demonstra que o Ba se separa e retorna ao seu corpo constantemente, sendo necessário isso para a perpetuação da vida; o Ba se separa e desfruta sua vida para retornar e compartilhar com o imóvel (Ka), enquanto que o imóvel recebe as oferendas e nutre o móvel (Ba).

Um conceito complexo e de diversas interpretações entre os egiptólogos é o Ka. Esse elemento desempenha um papel importante tanto na imagem do indivíduo quanto na figura do rei e da divindade. Portanto, o caminho para a sua compreensão, de acordo com os escritos de Jan Assmann, é comparando-o com o que sabemos do Ba. Desse modo, dois pontos são importantes de ressaltar: o tema da liberdade de movimento, presente no Ba, não é desempenhado no Ka; o Ka não faz parte da esfera corpórea (física) da pessoa. Um aspecto em comum aos dois é que ambos se reúnem para receber as oferendas junto ao morto. O Ba circula livremente entre o Egito Terreno e o Além, enquanto que o Ka parece estar associado com a instância da justificação, que restitui ao homem seu status social no Além. Portanto, o Ba faz parte da esfera física do morto, fazendo dele sua mobilidade e habilidade de reencarnar no corpo, enquanto que o Ka é presente na esfera social, fornecendo ao morto seu status, sua honra e sua dignidade (ASSMANN, 2003, p. 157-158).

Todos os elementos presentes nas duas esferas são separados nos rituais que levam o morto ao Além. Contudo, é necessário que esses sejam restaurados e se reencontrem para que a pessoa esteja viva, da mesma forma como o indivíduo só está realmente vivo quando este se relaciona com os outros. Um dos encontros possíveis entre o Ka e o Ba é na chamada “estátua Ka”. Para os antigos egípcios, as estátuas possuíam um poder mágico que fazem presente quem está ali representado. Nas tumbas tebanas de particulares da XVIII Dinastia não é raro encontrar um nicho em sua arquitetura. Este nicho é o espaço reservado para essa estátua Ka. Nela, o morto está presente tanto como Ka quanto como Ba.

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Figura 3 - Estátua Ka encontrada na tumba de Nakht.

Fonte: SEIDEL; SHEDID, 1991, p. 18.

Essa estatueta (acima) foi encontrada na tumba de Nakht durante as expedições do Metropolitan Museum de Nova Iorque ao Egito no início do século XX. Contudo, no transporte dessa para o museu, o navio que a levava afundou e, com isso, foi perdida. O que resta são essas imagens. Nakht está representado sentado e segurando sua estela. Os hieróglifos presentes, traduzidos por Norman de Garis Davies (1917, p. 38-39) e aqui adaptados, representam como estão presentes os elementos (Ka e Ba) supracitados:

Uma adoração a Rê, do tempo que ele surge até que ele se ponha vivo, da parte do astrônomo e escriba [de Âmon] Nakht, maakheru - saudar a ti que és Rê quando tu és o maior e Áton quando tu te pões em beleza! Tu vens e és brilhante (psd) nas costas (psd) de tua mãe. Tu vens como rei [dos deuses]. Nut te recebe com boas vindas, Maat te acolhe em ambas ocasiões. Tu atravessas e o céu e teu coração se alegra; pois a região de Deswi é reduzida à paz, o inimigo réptil é derrubado, suas mãos amarradas e facas cortadas suas vértebras (DAVIES, 1917, p. 38-39).

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Repleta de simbolismos, a estátua representa o imaginário positivo para o Além, como forma de reafirmar e assegurar a vida do morto nesse lugar. A estela, onde está escrito o texto, representa um culto solar a Rê e Áton, dotada de características positivas para a sociedade egípcia. Para explicar essa forma de representação em aspectos religiosos e imaginários, certos elementos visuais das próprias cenas dispostas na tumba de Nakht podem nos auxiliar.

As paredes mais ao leste6, apelidadas de Parede 1 (Sudeste) e Parede 6 (Nordeste)7,

apresentam uma cena em comum: Nakht e sua esposa, Tawi, aparecem oferecendo alimentos para Rê. Nessa cena, o deus sol não está presente na iconografia, mas, sim, no ambiente. Entre as paredes está a saída para o pátio, que, por sua vez, é aberto (sem cobertura). Dessa forma, Rê se apresenta na tumba por meio da luz solar. A luz solar é brilhante e associada à beleza. A barca solar (o sol), na qual Rê está presente, passa no céu, que é representado pela deusa Nut. O fato de Nakht e sua família estarem caçando e pescando nos pântanos, na Parede 4 (Noroeste), indicam que o mal está sendo derrotado (crença egípcia associada à essa cena), então, Maat (Cf. Capítulo 1) está sendo mantida.

A estátua Ka assume um papel de intermediar a esfera social com a física. As oferendas, tão importantes e necessárias, feitas pelos vivos aos mortos, representam esse ponto de intercessão. Na medida em que se realizam oferendas para a estátua Ka do morto, está se rememorando o status social do morto, portanto o Ka, fazendo com que este perpetue para o Além, ao mesmo tempo que está provendo o mantimento do Ba para que este continue com sua mobilidade, transitando entre o Além e o Egito terreno. Dessa maneira, essas oferendas estão relacionadas com uma memória cultural. Como já mencionado, Assmann defende que existem vários tipos de memória (ASSMANN, 2008). Em especial, o autor trabalha com a ideia de memória episódica e semântica. A primeira simboliza uma experiência individual, enquanto que a segunda, social, ambos em constantes mudanças de significados. Juntos, esses dois representam a memória cultural, que é uma questão do coletivo social, pelo qual a memória não apenas teria uma base social, como também uma base cultural (SARMIENTO, 2018, p. 292). Dessa forma, a ideia de conectividade entre uma esfera física e outra social permite explicar a necessidade da existência de um culto funerário e, com isso, as práticas da sociedade e as formas de se socializar com o morto.

6 Cf. p. 68.

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2.3 O espaço funerário e suas repercussões na sociedade egípcia

O local de enterramento do morto é uma preocupação egípcia que nos remete desde os primórdios da ocupação desse povo ao longo do Nilo. Apesar de algumas diferenças ao longo da história do Egito Antigo, a intenção de construção da tumba para essa sociedade tem o objetivo de guardar o corpo do morto e garantir sua existência no Além. As tumbas são construções (arquitetônicas, culturais, imaginárias, identitárias e mnemônicas) chave para a continuação da existência, contudo, em outro plano. A Necrópole Tebana, na XVIII Dinastia, nos fornece importantes informações sobre as crenças funerárias dessa sociedade nesse período do Novo Império pré-Akhenaton. Nesse sentido, podemos inferir diversas teorias sobre as práticas funerárias e o espaço ao qual a tumba se insere para aprimorarmos nossos conhecimentos sobre como os egípcios compreendiam o Além e como este se organizava no imaginário dessa sociedade. A comparação dos diferentes aspectos arquitetônicos dessas tumbas da XVIII Dinastia na região de Tebas nos auxilia na compreensão do espaço funerário.

Figura 4 - Algumas plantas de tumbas de particulares da Necrópole Tebana.

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A Figura 4 nos apresenta alguns planos de tumbas tebanas de particulares próximas à tumba de Nakht tanto na localização quanto na temporalidade. Essas tumbas são catalogadas pelo Theban Mapping Project e, para facilitar a indicação e referência, recebem uma numeração, posta após a sigla “TT”, que significa Theban Tomb. Para tanto, a tumba de Nakht recebe o número 52 do catálogo e é comumente chamada de TT 52. Na figura acima, a planta da TT 52 aparece na última coluna da direita, na segunda linha de cima para baixo8.

Esse espaço funerário engloba diversos significados e problemáticas. As tumbas tebanas de particulares eram divididas, de um ponto de vista arquitetônico, em duas estruturas: uma superior, contendo a capela funerária, e uma inferior, onde estava localizada a câmara funerária com o sarcófago e a múmia. Dessa divisão, há um espaço de sociabilidade e público (o superior), o qual as pessoas podiam prestar suas oferendas e revitalizar o morto no Além, enquanto que o outro (o inferior) é restrito ao momento de enterramento do morto. Friederike Kampp-Seyfried (1998) possui a ideia de que os níveis da arquitetura do complexo funerário referem-se, teoricamente, à vida eterna do casal dono da tumba. Melinda Hartwig (2004) desenvolve esse pensamento, alegando que, se determinado elemento iconográfico não estiver evidenciado na imagem, este estará presente no simbolismo comum ao espaço que a própria imagem está inserida. Dessa forma, o nível mais externo da tumba (pátio) está relacionado ao culto solar e à trajetória do sol no Egito terreno. O nível médio (a capela funerária) era um local acessível aos vivos, onde eram realizados os cultos ao morto. Enquanto que o nível mais inferior (câmara funerária) era lacrado após as cerimonias funerárias e relacionado ao reino de Osíris, a Duat, onde o corpo estaria enterrado.

Assmann alega que, para viverem, os casais donos das tumbas precisam ser revitalizados no Egito Terreno por meio de oferendas, caracterizando, assim, uma memória cultural. Entretanto, Melinda Hartwig (2004) entende que essas oferendas e revitalizações também podem estar contidas no plano decorativo das tumbas e, portanto, auxiliando o morto no Além. A autora reflete sobre a funcionalidade das imagens em tumbas privadas de Tebas durante a XVIII Dinastia. Sua tese cerca os pressupostos de que essas imagens não representam apenas a realidade, mas, também, tinham o poder mágico de se tornar animadas (HARTWIG, 2004, p. 51). Dessa forma, pelo poder da mágica e do simbolismo, existem ligações que podem ser criadas entre o que estava representado e o que estava significado. Para tanto, é interessante o

Referências

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