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Entendendo a Cultura Funerária no Egito Antigo

2. A NECRÓPOLE TEBANA

2.2 Entendendo a Cultura Funerária no Egito Antigo

Assmann (2003, p. 17) parte da hipótese de que existe um ponto de união entre o homem e a morte a partir da cultura. A morte é, portanto, a origem e o berço da cultura. A morte é concebida pela sociedade de diversas maneiras, seja pela a experiência da morte, a consciência da finitude da vida, os quadros rituais de morte e luto, ou traços deixados pelos túmulos sobre a identidade daquele morto. A cultura significa um princípio básico de todas as culturas, assim como a linguagem está na raiz de todas as línguas (ASSMANN, 2003, p. 17). O homem existe em uma sociedade, logo, faz parte de uma cultura. No entanto, não existe apenas uma única cultura, assim como não existe apenas uma língua. Assmann defende, porém, que, em todas as culturas, assim como nas línguas, há um princípio de aptidão para a cultura ou para a linguagem inerente ao homem. Não é nosso objetivo averiguar até qual ponto essa tese está correta. De um ponto de vista antropológico, sociedades podem apresentar certos pontos comuns de características. Dessa forma, torna-se crucial entender o que é cultura e o que é morte no Egito Antigo.

De acordo com Assmann, na sociedade egípcia, podemos evidenciar o ideal de morte como isolamento social, assim como a ideia de reintegração do morto nessa sociedade. O egípcio só está realmente vivo quando este se relaciona com os outros. Em uma sociedade que,

na interpretação de Assmann (2003, p. 37), nega a existência de morte reafirmando a vida em um outro plano mundano, é compreensivo que o morto esteja em uma espécie de Além. O exemplo das oferendas funerárias pelos filhos dos casais donos das tumbas anteriormente citados se encaixam nessa explicação. Na iconografia, podemos entender que o filho presta homenagens e rememora seus pais. Nesse sentido, a imagem representa algo que faz parte da cultura local, indicando que os mortos estão interagindo com os vivos e vice-versa, possibilitando a vida dos primeiros no Além. O ideal de memória cultural (ASSMANN, 2008) é aplicado nesse caso: a identidade do morto está sendo rememorada no presente. Identidade, memória e tempo são três conceitos presentes no espaço funerário egípcio.

A concepção de morte, no Egito Antigo, está ligada com o corpo. Este é composto por uma pluralidade de membros combinados em uma unidade animada pela mediação do sangue com as contra-imagens destinadas a remediar a morte por meio da coleta, reunião e recordação (ASSMANN, 2003, p. 52). Essas etapas e partes do corpo estão separadas em duas esferas, as quais Assmann chama de social e física. O conceito de pessoa para esses estudos sobre morte no Egito Antigo é trabalhado por Assmann no sentido moderno do termo, uma vez que os termos egípcios não possuem equivalentes em nossas línguas atuais. Esses conceitos são frequentes em textos funerários como o Livro dos Mortos. Esses elementos parecem estar ligados à pessoa e funcionam, de certa forma, de modos isolados e únicos, conduzindo a vida (ASSMANN, 2003, p. 141). O processo de separação desses elementos é chamado por Assmann de dissociação (2003, p. 141) e representa algo importante, desejável e necessário.

Esquema 1 - As esferas física e social e os elementos de composição do morto.

Fonte: Adaptado de Sarmiento (2018, p. 291).

Os elementos que mais aparecem nos textos funerários egípcios sobre a composição da pessoa são o Ka e o Ba. Juntos a esses dois termos estão o corpo (Dt), o cadáver (kat), a múmia (sAH), o coração (ib), a sombra (Swt) e o nome (rn). O akh apresenta uma outra categoria, que não pode ser confundida aos demais, uma vez que ela não designa um elemento da pessoa, mas, sim, um status; “não possuímos o akh, somos akh” (ASSMANN, 2003, p. 142). De acordo com os pressupostos de Assmann, a esfera social é composta pelo Ka, o nome e a múmia, enquanto que o Ba, a sombra e o corpo pertencem à esfera física.

O objetivo dos rituais funerários é executar a união do Ba e seu cadáver, a fim de restituir, neles, a ideia de Um, como vistos no primeiro capítulo. Dessa forma, fórmulas como o Ritual da Abertura de Boca do Livro dos Mortos nos informam que determinados ritos realizados antes do enterramento do morto na tumba demonstram essa separação entre o cadáver e o seu Ba (ASSMANN, 2003, p. 145). No Capítulo 169 do Livro dos Mortos está a passagem “a tua Ba no céu, o teu corpo na terra” (Adaptado de LOPES, 1991, p. 236; BARGUET, 1967), o que indica essa separação. Esse ato é visto como uma forma de ser glorificado (maakheru em egípcio), um processo de transfiguração do morto em algo glorioso, necessário para sua vida no Além. Entretanto, essa separação deve ser desfeita. O Capítulo 89

do Livro dos Mortos demonstra que o Ba se separa e retorna ao seu corpo constantemente, sendo necessário isso para a perpetuação da vida; o Ba se separa e desfruta sua vida para retornar e compartilhar com o imóvel (Ka), enquanto que o imóvel recebe as oferendas e nutre o móvel (Ba).

Um conceito complexo e de diversas interpretações entre os egiptólogos é o Ka. Esse elemento desempenha um papel importante tanto na imagem do indivíduo quanto na figura do rei e da divindade. Portanto, o caminho para a sua compreensão, de acordo com os escritos de Jan Assmann, é comparando-o com o que sabemos do Ba. Desse modo, dois pontos são importantes de ressaltar: o tema da liberdade de movimento, presente no Ba, não é desempenhado no Ka; o Ka não faz parte da esfera corpórea (física) da pessoa. Um aspecto em comum aos dois é que ambos se reúnem para receber as oferendas junto ao morto. O Ba circula livremente entre o Egito Terreno e o Além, enquanto que o Ka parece estar associado com a instância da justificação, que restitui ao homem seu status social no Além. Portanto, o Ba faz parte da esfera física do morto, fazendo dele sua mobilidade e habilidade de reencarnar no corpo, enquanto que o Ka é presente na esfera social, fornecendo ao morto seu status, sua honra e sua dignidade (ASSMANN, 2003, p. 157-158).

Todos os elementos presentes nas duas esferas são separados nos rituais que levam o morto ao Além. Contudo, é necessário que esses sejam restaurados e se reencontrem para que a pessoa esteja viva, da mesma forma como o indivíduo só está realmente vivo quando este se relaciona com os outros. Um dos encontros possíveis entre o Ka e o Ba é na chamada “estátua Ka”. Para os antigos egípcios, as estátuas possuíam um poder mágico que fazem presente quem está ali representado. Nas tumbas tebanas de particulares da XVIII Dinastia não é raro encontrar um nicho em sua arquitetura. Este nicho é o espaço reservado para essa estátua Ka. Nela, o morto está presente tanto como Ka quanto como Ba.

Figura 3 - Estátua Ka encontrada na tumba de Nakht.

Fonte: SEIDEL; SHEDID, 1991, p. 18.

Essa estatueta (acima) foi encontrada na tumba de Nakht durante as expedições do Metropolitan Museum de Nova Iorque ao Egito no início do século XX. Contudo, no transporte dessa para o museu, o navio que a levava afundou e, com isso, foi perdida. O que resta são essas imagens. Nakht está representado sentado e segurando sua estela. Os hieróglifos presentes, traduzidos por Norman de Garis Davies (1917, p. 38-39) e aqui adaptados, representam como estão presentes os elementos (Ka e Ba) supracitados:

Uma adoração a Rê, do tempo que ele surge até que ele se ponha vivo, da parte do astrônomo e escriba [de Âmon] Nakht, maakheru - saudar a ti que és Rê quando tu és o maior e Áton quando tu te pões em beleza! Tu vens e és brilhante (psd) nas costas (psd) de tua mãe. Tu vens como rei [dos deuses]. Nut te recebe com boas vindas, Maat te acolhe em ambas ocasiões. Tu atravessas e o céu e teu coração se alegra; pois a região de Deswi é reduzida à paz, o inimigo réptil é derrubado, suas mãos amarradas e facas cortadas suas vértebras (DAVIES, 1917, p. 38-39).

Repleta de simbolismos, a estátua representa o imaginário positivo para o Além, como forma de reafirmar e assegurar a vida do morto nesse lugar. A estela, onde está escrito o texto, representa um culto solar a Rê e Áton, dotada de características positivas para a sociedade egípcia. Para explicar essa forma de representação em aspectos religiosos e imaginários, certos elementos visuais das próprias cenas dispostas na tumba de Nakht podem nos auxiliar.

As paredes mais ao leste6, apelidadas de Parede 1 (Sudeste) e Parede 6 (Nordeste)7,

apresentam uma cena em comum: Nakht e sua esposa, Tawi, aparecem oferecendo alimentos para Rê. Nessa cena, o deus sol não está presente na iconografia, mas, sim, no ambiente. Entre as paredes está a saída para o pátio, que, por sua vez, é aberto (sem cobertura). Dessa forma, Rê se apresenta na tumba por meio da luz solar. A luz solar é brilhante e associada à beleza. A barca solar (o sol), na qual Rê está presente, passa no céu, que é representado pela deusa Nut. O fato de Nakht e sua família estarem caçando e pescando nos pântanos, na Parede 4 (Noroeste), indicam que o mal está sendo derrotado (crença egípcia associada à essa cena), então, Maat (Cf. Capítulo 1) está sendo mantida.

A estátua Ka assume um papel de intermediar a esfera social com a física. As oferendas, tão importantes e necessárias, feitas pelos vivos aos mortos, representam esse ponto de intercessão. Na medida em que se realizam oferendas para a estátua Ka do morto, está se rememorando o status social do morto, portanto o Ka, fazendo com que este perpetue para o Além, ao mesmo tempo que está provendo o mantimento do Ba para que este continue com sua mobilidade, transitando entre o Além e o Egito terreno. Dessa maneira, essas oferendas estão relacionadas com uma memória cultural. Como já mencionado, Assmann defende que existem vários tipos de memória (ASSMANN, 2008). Em especial, o autor trabalha com a ideia de memória episódica e semântica. A primeira simboliza uma experiência individual, enquanto que a segunda, social, ambos em constantes mudanças de significados. Juntos, esses dois representam a memória cultural, que é uma questão do coletivo social, pelo qual a memória não apenas teria uma base social, como também uma base cultural (SARMIENTO, 2018, p. 292). Dessa forma, a ideia de conectividade entre uma esfera física e outra social permite explicar a necessidade da existência de um culto funerário e, com isso, as práticas da sociedade e as formas de se socializar com o morto.

6 Cf. p. 68.