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A pedagogia da ausência e outras ensinanças: Judith Grossmann e a cena da escrita

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Academic year: 2021

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(1)1. PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGÜÍSTICA. INSTITUTO DE LETRAS. A PEDAGOGIA DA AUSÊNCIA E OUTRAS ENSINANÇAS JUDITH GROSSMANN E A CENA DA ESCRITA. LÍVIA MARIA NATÁLIA DE SOUZA SANTOS. Orientadora: Profª Drª Antonia Torreão Herrera. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras e Lingüística, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.. Salvador, primavera de 2004.

(2) 2. A Nossa Senhora Aparecida, A meus pais, A Henrique..

(3) 3. AGRADECIMENTOS. Todo trabalho de pesquisa precisa, para o seu pleno desenvolvimento, da participação de inúmeras pessoas que nos sustentam emocionalmente, espiritualmente e intelectualmente. Este é um trabalho que exigiu de mim algumas ausências que jamais serão sanadas, exigiu, das pessoas que me cercaram, uma atenção e compreensão para suportarem os meus silêncios e preocupações. Mas este trabalho mais me deu do que me tirou. Ele me ofereceu, além da certeza de um caminho a ser trilhado, a certeza de que terei sempre pessoas que, ao meu lado, me apoiarão nesta trilha. Este trabalho me ofereceu a consciência da importância dos laços de amor que me unem a minha família e a reafirmação da força dos amigos, família outra, a qual recebo com humildade e gratidão. Agradeço a minha querida mãe, exemplo de vida e fortaleza mais segura para todas as minhas angústias. Ao meu pai, pelo carinho e cuidado de uma proteção que não se acaba. Ao meu irmão, pelos anos de amizade e amor. Ao meu esposo, par eleito de diálogo na vida, no amor e companheiro de angústias e reflexões, apoio indispensável na confecção deste trabalho e na travessia de minha vida. A minha avó, que se foi no decorrer desta caminhada. Agradeço aos amigos que Sônia Simon, Marcos Botelho, Tatiana Lima e Adriana Telles pela generosidade e disponibilidade a ouvir e a falar. Aos meus alunos pelas suas perguntas que sempre me serviram como respostas. Aos professores do Instituto de Letras, que me fizeram perceber aquela casa como um lugar de aprendizado e de estabelecimento de teias amorosas. Aos colegas do grupo de pesquisa, especialmente a Dalila e Juliana, pela força da voz e da experiência. A minha orientadora Antonia Torreão Herrera, pelos anos de diálo go e companheirismo.. A Mestra Judith Grossmann que muito me ensinou e orientou, qual Ariadne, nesta caminhada..

(4) 4. É esta fulguração da vida na literatura, este revérbero, que faz mesmo da vida cada vez mais literatura, cada vez mais literária, é isto que vitaliza simultaneamente a literatura e a vida, o que faz que a vida não possa passar sem literatura para ser mais vida, e tudo então é literatura, e o resto é silêncio, antiliteratura, antivida. Judith Grossmann, Memórias de Alegria – Discurso..

(5) 5. RESUMO. A dissertação intitulada A pedagogia da ausência e outras ensinanças: Judith Grossmann e a cena da escrita busca, através da leitura analítica de depoimentos, entrevistas, textos de crítica, teoria da literatura, romances e contos de Judith Grossmann, observar como se dão os trânsitos de cenas e idéias entre estes textos e a sua ligação com a prática acadêmica da autora. Este trânsito ilustra aquilo que chamamos de “Pedagogia da ausência”, que é a discussão de temas e questões pertencentes à Teoria da Literatura nos textos literários. Desta maneira, acreditamos que Judith Grossmann faz do seu texto de lavra criativa cena de discussão e debate de teorias da literatura que, comumente, encontram o seu local de reflexão nas salas de aula e mesas de congressos. Assim, a literatura se converte em sala de aula, fazendo com que a professora Judith Grossmann não deixe jamais de formar novos alunos e discípulos sem que o texto perca o apuro estético indispensável à obra de arte.. Palavras-chave: Teoria da literatura, pedagogia, crítica Literária, texto criativo..

(6) 6. ABSTRACT. This dissertation intends to comment the scenes and ideas sprung from the analytical reading of Judith Grossman’s statements, interviews, romances, short stories, and critical and theoretical texts and the relationship between these writings and Ms. Grossman’s academic work. This transit illustrates what we call “Pedagogy of the Absence” (Pedagogia da ausência) which is, in fact, a discussion. of themes and. questions within the realm of Theory of Literature. We believe Ms. Grossman turns her creative text a scene for discussion and debate of the theories of literature which usually find its reflective place in the classrooms and seminars. Thus, literature converts into classroom itself, and Ms. Grossman’s students can appreciate the aesthetical refinement indispensable in a work of art.. Key words : Theory of literature, pedagogy, crítical texts, creative texts..

(7) 7. SUMÁRIO.

(8) 8. INTRODUÇÃO. Um estudo que se dedique a discutir a obra de Judith Grossmann depara-se com o desafio de englobar, em sua análise, um discurso multifacetado, resultante de um intenso trânsito de idéias entre os dados biográficos, o exercício teórico-crítico e a prática literária. Os territórios na obra de Judith Grossmann, pensada aqui como um conjunto que encerra todos os seus textos, têm fronteiras muito tênues que, por vezes, se diluem. Quando adentrei, em meados do ano dois mil, no grupo de pesquisa O Escritor e seus múltiplos: migrações, não tinha, ainda, a idéia da complexidade da obra dos intelectuais que ali estudaríamos. Desde o início, no sistemático contato com os textos de Judith Grossmann, chamou-me a atenção a enorme versatilidade da autora, uma vez que ela tanto escreve textos de crítica como ficciobais, e a possibilidade de encontrar afirmações, quase que em sua total integridade, migrando de um depoimento ou artigo de crítica para um conto ou romance. Este trânsito de idéias suscitava a desconfiança de que devia haver, entre esses diversos textos, uma coerência discursiva. Coerência esta advinda não simplesmente da marca autoral, mas de um algo que o conjunto de sua obra parecia querer transmitir, como um conjunto orquestrado de falas que, unidos, constroem um concerto. Muitos caminhos de leitura da obra de Judith Grossmann são possíveis para o estudioso que se debruce sobre seus textos. O caminho por nós escolhido deriva de uma percepção da obra de Judith Grossmann como sendo sustentada por um projeto literário que conjugará, em si, as faces crítica e pedagógica. Localizamos como eixo catalisador das falas crítica, pedagógica e literária o texto ficcional de Judith Grossmann, pela escolha metodológica de uma abordagem que busca demonstrar a especificidade desta obra que é, simultaneamente, texto literário e reflexão sobre questionamentos da literatura. Um outro motivo que nos fez escolher este caminho de estudo crítico é mostrar que, no texto literário, há uma forte estratégia de permanência de uma voz professoral e crítica. Todo texto literário é feito para a posteridade, para ser perenizado e para perenizar o seu autor, e o texto de Grossmann não poderia ser diferente. Mas, esta permanência discursiva ultrapassa as fronteiras do literário construindo uma voz crítica e pedagógica que se quer ativa. A nossa principal hipótese de trabalho é a de que, através da escrita criativa, Judith Grossmann permanece exercendo a sua prática crítica e pedagógica. A obra de arte literária se coloca como infinita sala de aula, na qual.

(9) 9. cabem inúmeros alunos, se realiza como mesa interminável de debate em congressos atemporais e atópicos, sem prescindir do encantamento e apuro estético da obra de arte. Este projeto de Judith Grossmann é sinalizado em seus depoimentos, em suas entrevistas, enfim, em todas as oportunidades que ela tem de falar sobre a sua literatura. Podemos compreendê- lo como um jogo que engendra estratégias várias de permanência de seu discurso, para que a sensação de sua presença vá além da verificação física. Judith Grossmann busca a imortalidade, a perenização. O texto literário se converte em sala de aula, em mesa de debate e em ambiente de elucubração crítica de maneira que, ainda que afastada das salas de aula e dos congressos sobre literatura, Judith Grossmann permanece exercitando a sua prática pedagógica e a sua reflexão crítica. Este estudo buscará, então, discutir algumas obras de Judith Grossmann com vistas a este projeto de permanência através do texto literário. Dentre os textos tomados como base para a discussão da obra de Judith Grossmann, destaca-se Périplo Peregrino; o perfil do artista na produção textual de Judith Grossmann1 , de Lígia Guimarães Telles. A relevância deste texto para o nosso trabalho é muito grande, uma vez que se trata de um dos mais importantes estudos de fôlego sobre a obra de Judith Grossmann e serve de alicerce para todo estudo que pretenda versar sobre a obra de Grossmann. Para nós, ele foi indispensável para refletir, dentre outras coisas, o perfil do artista, principalmente a partir do texto Outros Trópicos Romance, bem como a discussão sobre o espaço pós-moderno do shopping center, no romance Meu Amigo Marcel Proust Romance. O estudo ora apresentado trabalhou com um número significativo de entrevistas e depoimentos cedidos por Judith Grossmann a periódicos nordestinos vários 2 . E foi esta leitura que embasou toda a discussão articulada no Capítulo I, intitulado Histórias do ínterim – as múltiplas faces do sujeito erigido nos meandros do discurso. Nesse capítulo, demos ênfase à análise de entrevistas e depoimentos para discutir a questão da criação literária de Judith Grossmann como sendo construída a partir de um diálogo crítico com outras obras. Consideramos as entrevistas e os depoimentos como desdobramentos de um discurso e personalidade literária que a autora assume em seus textos ficcionais. Desta maneira, buscamos esclarecer que tais textos podem ser compreendidos, em certa medida, como ficcionais. Eles, juntamente com os seus. 1. TELLES, Ligia Guimarães. Périplo Peregrino; o perfil do artista na produção textual de Judith Grossmann. Tese inédita, 2000. 2 Cf. Textos em anexo..

(10) 10. arquivos 3 , são construções de fala sobre um sujeito que se erige nas linhas de um discurso e que é, de certa forma, uma construção ideológica. Assim, no capítulo I, buscamos cruzar facetas constantes na crítica, depoimentos e arquivos a fim de vislumbrar o sujeito que se erige através desses discursos. Para tanto, retomamos algumas reflexões de Ricardo Piglia em Ficção e teoria, o escritor enquanto crítico, acerca das especificidades da produção literária de escritores-críticos e algumas anotações extraídas da palestra de Eneida Maria de Souza acerca da crítica biográfica, para discutir o arquivo como discurso sobre o sujeito. Na reflexão sobre os diálogos e debates estabelecidos entre Judith Grossmann e a tradição literária, buscamos, como eixos principais de discussão, T. S. Eliot, em Tradição e Talento individual, e Harold Bloom, em A angústia da influência, como teorias que, em sua discordância, servem para pensar a ambigüidade das relações entre a obra de Grossmann e a tradição. No Capítulo II, Meu amigo Marcel Proust: salões pós-modernos em aulas ficcionais, tomamos como ponto de partida o romance Outros Trópicos Romance como exemplo de exercício teórico na cena ficcional, no que tange às reflexões acerca do processo criativo da obra de arte. Entretanto, o capítulo se concentrará sobre o Meu Amigo Marcel Proust Romance e procura investigar como a pós- modernidade será discutida no romance. Para a análise da pós- modernidade utilizamos o texto de Andréas Huyssen, Mapeando o pós-moderno. Utilizamos também, para falar sobre o esmaecimento de afetos na pós- modernidade, o texto A lógica Cultural do Capitalismo Tardio, de Fredrich Jamesson Consideramos que Judith Grossmann toma o romance como ambiente para a discussão acerca das teorias do pós- moderno, vendo-o, não apenas como fenômeno artístico, mas também o analisando como um motivador de transformações comportamentais dos indivíduos. Colocando-se num lugar pós- moderno por excelência, o shopping, a autora ambienta a sua narrativa dentro desta nova lógica cultural, e, cercando-se de ícones de consumo, discute a massificação e a desindividualização do ser humano nos corredores do tempo do consumo. Desta maneira, ainda que se ambiente num dos não- lugares pós-modernos, a narrativa busca recolher com o seu olhar amoroso esta realidade e transmutar a cadeia de superficialidades e trânsitos em singularidades.. 3. Referimo -nos aos arquivos constantes na Universidade Federal da Bahia, em Salvador, e na Casa Ruy Barbosa, Rio de Janeiro. No arquivo de Salvador há um grande volume de textos inéditos livros de vários autores, fitas cassete com falas e entrevistas concedidas. No arquivo de Rio de Janeiro, além destes materiais, existe um certo número de obras que só podem ser publicadas após a morte de sua autora..

(11) 11. No Capítulo III, a discussão continua e nele buscamos demonstrar como, através de sua voz narrativa, Fulana Fulana reauratiza o ambiente e as pessoas que transitam no shopping, fazendo com que, através da sua consagração na obra de arte literária, eles se eternizem. Seguimos uma reflexão de Evelina Hoisel que, em seu texto Meu amigo Marcel Proust no salão da pós-modernidade, afirma que Judith Grossmann inaugura uma nova maneira de pensar o narrador pós- moderno. Acrescentamos que este narrador se forma de uma mescla do narrador pós- moderno, conforme pensado por Silviano Santiago, e o narrador tradicional de Walter Benjamin. Para nós, Fulana Fulana, ao contrário do narrador constante na categoria pensada por Silviano Santiago, narra a realidade como um espetáculo mas, principalmente, como vivência por ela experimentada. Ela não apenas se projeta na narrativa falando do outro e, simultaneamente, falando de si, como fala de si, e se coloca como alguém que tem uma sabedoria a transmitir, e ela advém de sua experiência. O narrador é, então, um híbrido do clássico com o pós-moderno, da vivência com a observação e, desta maneira, Judith Grossmann coloca uma outra maneira de pensar a pós- modernidade. No Capítulo IV, Retratos do artista, discutiremos, um dos principais eixos temáticos da obra de Judith Grossmann, o perfil do artista ali construído. Tomando como ponto de partida os textos As tranças de Charlienne, Fausto Mefisto Romance e Meu Amigo Marcel Proust Romance, observamos um retrato evolutivo do artista que começa em sua mais tenra infância, quando nasce nele a consciência de sua diferença em relação aos demais homens, representado por Charlienne; o início da adolescência, momento no qual o gênio artístico se manifesta em toda a sua força dionisíaca, conforme encontramos em Joris; e o fim da adolescência do artista, momento em que o apuro estético é colocado em relevância e se começa a construção de uma teia dialógica de escritores. É o momento em que se delineia o projeto literário. Este trabalho buscou acionar, não apenas as obras ficcionais de Judith Grossmann, mas também as suas obras críticas e registros de entrevistas e depoimentos, a fim de tentar vislumbrar, em sua multiplicidade de vozes, uma consonância de falas e idéias que irão desembocar na sua escrita criativa..

(12) 12. Eu quero que a minha obra seja um copo de água fresca que alguém sedento bebe em pleno deserto. Eu quero que a minha obra seja como uma cadeira de balanço onde alguém exausto senta, é isso que eu quero de minha obra. Judith Grossmann, Com a palavra o escritor..

(13) 13. CAPÍTULO I HISTÓRIAS DO ÍNTERIM – AS MÚLTIPLAS FACES DO SUJEITO ERIGIDO NOS MEANDROS DO DISCURSO.

(14) 14. Não tenho biografia, tenho grafias, caligrafias, dactiloescritos, textos, avatares, parábolas, alegorias, mitos, lendas, fábulas, sacadas e sacadas, varandas e janelas. E sincronias. Judith Grossmann, depoimento..

(15) 15. Caleidoscópios da subjetividade: o escritor e a sua inserção na crítica literária Nem todo escritor se dedica profissionalmente a crítica, mas eu diria que todos os escritores trabalham esta relação da escrita com a reflexão e com a teoria. Ricardo Piglia. Ficção e teoria: o escritor enquanto crítico.. Quando um indivíduo tem uma intensa participação no meio intelectual e cultural, a sua biografia se constrói numa convergência tamanha em relação a sua produção intelectual que se torna impossível uma narrativa do indivíduo afastada do pensador. A sua história se conta a partir de seus textos, dos diálogos com os seus pares e da memória de seus herdeiros. A narração do sujeito se constrói a partir de uma subjetividade que emana da cena da escrita pois a sua vida íntima se imiscui na vida intelectual, abrandando a noção de uma subjetividade erigida fora das margens do texto. Assim, a fala e as atitudes deste indivíduo não podem ser compreendidas sem que sobre elas se lance todo um cenário de vida que ultrapassa as referências correntes a uma biografia do cotidiano e o religue a uma comunidade de fatos que levaram a formação de seu lugar intelectual. Assim, revela-se um jogo em que nada é autobiográfico, no sentido de uma ligação deste indivíduo com fatos, datas e recortes de vida ligadas a uma história familiar, e tudo é autobiográfico, à medida que o sujeito se corporifica numa imagem emergente do papel. A escritora carioca Judith Grossmann encaixa-se neste perfil de subjetividade em que a interpenetração de saberes constrói um indivíduo múltiplo e infindável. Entretanto, é importante notar que não é um privilégio da atualidade termos produtores de arte que, concomitantemente, são produtores de questionamentos sobre a arte. Intelectuais como Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Paul Valéry, dentre outros, já se apresentavam como expoentes de indivíduos instigantes: escritores que conjugavam em si a figura do teórico e do crítico da literatura. Este entrecruzamento de campos do desenvolvimento e expressão intelectual faz parte de um fenômeno que dá conta da multiplicidade de feições que o sujeito pode assumir. Cientes deste acontecimento, podemos resgatar e analisar as produções do passado e procurar atentar para tantos.

(16) 16. outros que estão, no momento, colhendo os frutos de sua plurivocidade intelectual, a exemplo de escritores como Affonso Romano Sant'anna, Ruy Espinheira, Silviano Santiago, João Carlos Teixeira Gomes e Judith Grossmann4 . Dentre as indagações que cercam as reflexões sobre a produção destes indivíduos algumas se sobressaem: como se dá o processo criativo no qua l estão imersos os seus textos? Que nova feição a sua literatura vê m oferecer aos questionamentos sobre literatura? Como os diálogos entre produção e crítica literária se organizam em torno do discurso ficcional? E a noção de Obra5 , como compreender, a partir destes sujeitos, tal conceito? Entretanto, acima de tudo, estas produções abrem um campo, dentro dos estudos literários, que busca ser capaz de repensar os elementos motivadores da criação artística, as fronteiras entre o ficcional e o autobiográfico, e a reflexão sobre a literatura na própria cena do texto literário. Assim, a análise do texto busca averiguar não só as peculiaridades da literatura, mas também o perfil do sujeito produtor. O escritor argentino Ricardo Piglia, em seu texto intitulado Ficção e teoria; o escritor enquanto crítico6 , discute os lugares ocupados pelo escritor que, segundo ele, sempre será um crítico, um estudante e um professor. Mediando as formações destes papéis está a leitura, que neste sujeito se dá de uma maneira distinta, uma vez que ele lê em busca de modelos ou anti- modelos, que servirão de base para a construção de sua obra. Desta maneira, quando Ricardo Piglia afirma que todo escritor, ainda que não exerça a crítica, é crítico de literatura, ele nos chama a atenção para o caráter autoreflexivo da obra literária. Esta é a sua propriedade mais intrínseca e mais essencial. Todo aquele que escreve tem, imanente ao movimento de sua escrita, a reflexão sobre o próprio ato de escrever: Provavelmente, na verdade, a maior parte do labor de um autor, ao compor a sua obra, é o labor crítico; trabalho de peneirar, combinar, construir, eliminar, corrigir, testar...Alguns escritores criativos são superiores a outros apenas porque a sua faculdade crítica é superior 7 . 4. Ruy Espinheira, Silviano Santiago, João Carlos Teixeira Gomes e Judith Grossmann, são autores cujas obras ficcionais e críticas são estudadas por bolsistas de graduação e pós-graduação no projeto “O Escritor e seus múltiplos: Migrações” no qual a presente pesquisa se insere. 5 Referimo -nos aqui as reflexões e questionamentos trazidos por Michel Foucault em seu texto O que é um autor?.Cf.FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Trad. Antônio Fernando cascai; Edmundo Cordeiro. São Paulo: Passagens,1992. Col.Veja. 6 PIGLIA, Ricardo. Ficção e teoria: o escritor enquanto crítico.In: PIGLIA, Ricardo. TRAVESSIA33; Revista de Literatura. Florianópolis: Editora da UFSC, n1. p.47-59,1980. 7 ELIOT, T.S.19?? apud PERRONE-MOISÉS,Leyla. Valores modernos. S.l.: S.n., 199?? p.143..

(17) 17. A crítica pode se manifestar na eleição de um cânone pessoal com o qual o escritor dialoga, na escolha dos autores e obras dos quais deseja se afastar, as estratégias de construção textual, a relação com o público receptor. Assim, o princípio que rege a produção da literatura é a metacrítica e esta só se dá a partir da leitura das obras anteriores. Daí nasce a tão conhecida asserção de que o bom escritor é um bom leitor. Aquele escritor que adentra o terreno do crítico escrevendo textos reflexivos sobre a obra de arte literária confronta-se com aquele que sabe da literatura pelo que dela consegue fruir e analisar. Daí a querela interminável entre críticos e escritorescríticos: os primeiros são comumente definidos como escritores que, frustrados pelo pouco talento criativo para a invenção de suas próprias obras, analisam, à ponta de brasa, a obra alheia; os segundos são vistos como críticos pouco confiáveis, uma vez que a parcialidade oferecida pela experiência criativa os impediria de um juízo criterioso sobre a obra, seja ela sua ou de outrem: A crítica praticada pelos escritores é essencialmente parcial, pois ela está a serviço da prática de cada um... Essa parcialidade, Baudelaire a atribuía a toda boa crítica: "Para ter razão de ser, a crítica deve ser parcial, apaixonada e política, isto é, feita de um ponto de vista exclusivo, mas do ponto de vista que abre mais horizontes”8 .. Leyla Perrone-Moisés, em seu texto intitulado Valores Modernos, afirma que os escritores-críticos, diferente de críticos profissionais, quando tomam uma obra para a apreciação, comumente falam de seus "eleitos", falam das qualidades da obra e não de seus defeitos. Nos escritores-críticos o critério de escolha de textos a serem discutidos são as afinidades de leitura e escrita. Assim, a crítica dos escritores-críticos toma o aspecto de uma microcomunidade transnacional; a crítica feita pelos escritores é, assim, muito mais o reconhecimento de linhagens criativas do que cena de depreciação da obra do outro. Isto, é claro, engendra não uma bondade ou "piedade crítica", mas a eleição de pares para diálogo, a formação de um cânone que exclui, com o poder do silêncio, todo aquele que não deve ser citado. Judith Grossmann encaixa-se na esteira de escritores-críticos recebendo sobre esta peculiaridade ainda mais uma: o fato de ser também professora de Teoria da 8. PERRONE-MOISÉS,Leyla. Valores modernos. S.l.: S.n., 199?? p.143..

(18) 18. Literatura, disciplina metacrítica por natureza. Estas três áreas do saber, que se misturam no turbilhão da individualidade, oferecem à obra literária, pensada neste trabalho como eixo primordial de exposição e teste de hipóteses, que tanto podem nascer da crítica quanto do ensino, uma feição de um projeto a um tempo teórico e crítico. Se observarmos o levantamento de seus textos críticos, perceberemos que boa parte deles é resultado de trabalhos com grupos de pesquisa dentro da graduação na Universidade Federal da Bahia, ou que nasceram no decorrer de disciplinas ministradas por Judith nas turmas de graduação e pós-graduação da mesma instituição. Assim, percebe-se uma evidente ligação entre a formação do sujeito crítico e a reflexão provocada pelo ensino da disciplina Teoria da Literatura. Este diálogo ecoa na sua produção literária fazendo com que a sua literatura, alegoricamente, discuta questões várias que inquietam a crítica e a Teoria da Literatura. Em seu texto intitulado O Cânone narrativo do século XX, apresentado no 5º Congresso ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada), em 1997, ela busca, falando como teórico, escritor e leitor, refletir sobre como se dá, na escritora Judith Grossmann, o trânsito entre estas três categorias tomando, inicialmente, a formação do sujeito leitor: O leitor a que me refiro, aos três anos de idade, e poderia ter sido antes, como hoje se sabe, já lia e escrevia, e iniciou maciçamente o que até agora nunca deixou de fazer, a leitura, a criação e a especulação, que mais tarde desembocaria, como um rio que corre, na atividade ensaística9 .. Localizando todo o início do percurso de leitura nos contos de fada dos irmãos Grimm e nas fábulas de Esopo, décadas mais tarde, por este caminho aberto, viria a leitura de Primeiras Histórias, de Guimarães Rosa. E este leitor, que a esta altura já se constituía criador, uma vez que Judith localiza todo o seu começo na primeira infância: ...desde que me lembro de mim, sempre estive escrevendo, isto vem do quarto de brincar, com suas paredes inteiramente rabiscadas 10 ,sente a descoberta de Guimarães Rosa com o estranhamento e a familiaridade Freud ianos 11 . Segundo a autora, não houve 9. GROSSMANN, Judith. O cânone narrativo de século XX. In: GROSSMANN, Judith. Et alli.Anais ABRALIC- Cânones e Contextos. 5º Congresso Abralic. Rio de Janeiro:EdUFRJ, 1997. vol.01.p.345. 10 GROSSMANN, Judith. Judith Grossmann: Entrevista. Entrevistadores: Alunos Universidade Católica do Salvador. Salvador: Biblioteca Reitor Macedo Costa, 1996. 1 cassete sonoro (60 min) documento parcialmente transcrito por Lívia Souza. 11 Cf. GROSSMANN, Judith. O cânone narrativo de século XX. In: GROSSMANN, Judith. Et alli. Anais ABRALIC- Cânones e Contextos. 5º Congresso Abralic. Rio de Janeiro:EdUFRJ, 1997..

(19) 19. para ela os "fricotes iniciais dos recém-convertidos" e, em breve, já escrevia em diálogo com Rosa: E também assim pôde continuar a viagem, já como Criador, para ouvir coisas tais... "mas é Guimarães Rosa elevado a mil"...sim, a dois, a três mil, como queiram, ad libitum, porque Joyce é Joyce, Rosa é Rosa, cada um é cada um12 .. Após a descoberta de Guimarães Rosa, chega o tempo de Machado de Assis, visto como o "divisor de águas da narrativa", de quem a literatura sempre foi: a predileta, a escolhida, a soberana, a hegemônica 13 . Machado vem como uma preparação para a chegada de Clarice Lispector, dona de uma literatura na qual, segundo Judith Grossmann, a máquina narrativa está perfeitamente azeitada, onde nada range. Toda reflexão tecida nas malhas literárias e no campo da crítica, recupera um perfil de leitor que, a partir da escolha de seus pares para diálogos e debates, levanta os alicerces de todo o seu pensamento teórico, crítico e que se revela em sua escrita. Reiteradamente, nas oportunidades em que concedeu entrevistas e depoimentos 14 , Judith Grossmann chama a atenção dos ouvintes para uma rede familiar que inclui autores da literatura de todos os tempos. A estes autores ela chama de "predecessores", construindo, à moda borgiana 15 uma linhagem que inclui prioritariamente dois pais, Guimarães Rosa e Machado de Assis e uma mãe, Clarice Lispector: No início, como Leitor mesmo, aprendi o seguinte, que em Arte, como em Ciência, somente existe o grande trabalho coletivo, para que haja sempre grandes e novas novidades16 .. vol.01.p.346. “Foi assim que este Leitor mencionado se preparou para lei, décadas mais tarde, uma obra como Prime iras estórias (1962) de João Guimarães Rosa, tendo simultaneamente uma sensação de estranhamento e de familiaridade, conforme analisa Freud”. Cf. FREUD, Sigmund. O estranho.In: FREUD, Sigmund. Edição eletrônica brasileira das obras psicológicas completas. Trad. José Luís Meuer. Et. Alli. Rio de Janeiro:Z -movie studio, 20??.Vol.XVII. “Direi, de imediato, que ambos os rumos conduzem ao mesmo resultado: o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar. Como isso é possível, em que circunstâncias o familiar pode tornar-se estranho e assustador.” 12 GROSSMANN, Judith. O cânone narrativo de século XX. In: GROSSMANN, Judith. Et alli.Anais ABRALIC- Cânones e Contextos. 5º Congresso Abralic. Rio de Janeiro:EdUFRJ, 1997. vol.01.p.346. 13 GROSSMANN, op. cit., loc. cit. 14 O levantamento das entrevistas e depoimentos utilizados neste trabalho encontram-se em anexo. 15 BORGES, Jorge Luis. Kafka e sus precursores. In: BORGES, Jorge Luis. Obras completas II. São Paulo:ed. Globo,1998. 16 GROSSMANN, Judith. O cânone narrativo de século XX. In: Anais ABRALIC- Cânones e Contextos. 5º Congresso Abralic. Rio de Janeiro:EdUFRJ, 1997. vol.01.p.346..

(20) 20. Sendo assim, a autora localiza, nestes três escritores, pares eleitos para o diálo go que irá ser preponderante na formação de sua literatura..

(21) 21. Pátria, Mátria, Frátria: Laços de sangue nas veias do papel Porque nós, escritores, não temos o corpo fechado, nós temos o corpo vazado. Então, nós somos atingidos por todos os lados e isso não é um drama fictício, isso é um drama real. Judith Grossmann. Ricardo Piglia afirma, em seu texto Ficção e teoria: o escritor enquanto crítico 17 , que a leitura é forte motor para a escrita, uma vez que é através dela que se extraem modelos e anti- modelos de construção de obra. A leitura, como interface da criação, auxilia na formação de um modus operandi de escrita e insere o escritor numa rede infinita de vozes que avança sobre as fronteiras espaciais e temporais, formando uma comunidade criativa: Em certo sentido, diria que a gente lê para escrever e, portanto, começa a ver nos outros textos marcas daquilo que a gente quer fazer. Aliás, essa leitura não tende a ser exaustiva. O escritor não busca ler toda a literatura mas quer armar uma espécie de rede com a qual ele constrói sua ficção literária - seu romance familiar e literário, suas tradições, suas fraternidades e inimizades18 .. Judith Grossmann, conforme podemos observar em seus depoimentos e entrevistas, cabe neste modelo de escritor elaborado por Piglia, uma vez que a sua relação com a leitura começa muito cedo, simultaneamente à escrita, aos três anos de idade. Em seu depoimento colhido na Oficina Amorosa, ocasião em que se organizou uma homenagem à autora na Universidade Federal da Bahia, e talvez o depoimento mais completo dentre todos, a Grossmann desvenda como se deu a sua relação com a escrita e com a leitura, utilizando para tanto a metáfora do aleitamento. Segundo ela, muito cedo houve o desmame e o fim do período de aleitamento materno dá início ao aleitamento das letras: Para compensar esse desmame precoce, que, segundo dizem, foi por minha culpa mesmo, minha mãe me alfabetizou muito cedo19 . 17. PIGLIA, Ricardo. Ficção e teoria: o escritor enquanto crítico.In: PIGLIA, Ricardo. TRAVESSIA33; Revista de Literatura. Florianópolis: Editora da UFSC, n1. p.47-59,1980. 18 Idem, Ibidem, p47/48. 19 GROSSMANN, Judith. Oficina Amorosa: Depoimento. In: HOISEL, Evelina. (Org.)Estudos; Lingüísticos e Literários. Salvador, edUfba, nº15. p.47-71.1993.p48..

(22) 22. Revela-se, assim, o início de uma relação de Phylia com a literatura, explorando aqui a metáfora do aleitamento e da maternidade, alegorizada, agora, no texto literário. A relação com a literatura se estende vida a fora, construindo uma leitora insaciável e arguta. Toda a leitura era tocada pelo sentido do literário, uma vez que, tendo aprendido a ler, passou a devorar os livros infantis com uma voracidade que desconcertava os pais: Era comprar um livro num dia, no outro queria outro. E minha mãe dizia: - não, mas ontem eu comprei aquele. - Não, mas aquele eu já li! - então era necessário arranjar sempre novos livros 20 .. Segundo a autora, já naquele tempo, vida e literatura se faziam acompanhar como amigas inseparáveis: "realidade e letras, não havia lacuna, eu não entendia como coisas separadas"; esta relação é confirmada quando a vida toma dois destinos: primeiro, o desejo de, muito cedo, ser escritora; segundo, o encaminhamento para a profissão de professora. A consciência sobre a vontade de escrever e o exercício da escrita já são praticados na infância e, vida a fora, os seus escritos sempre foram bem recebidos. Quando entra na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil 21 para se formar Professora de Literatura Anglo-germânica, a adolescente tem, como professores, Alceu Amoroso Lima e Jorge de Lima; este último merece lugar de destaque na trama de seus predecessores. Formava-se então, em torno dela, um círculo de diálogo intele ctual que irá influenciar sobremaneira o seu perfil de pensador. Isto se nota por conta de que a sua primeira publicação, em lugar de ser um texto literário, foi um texto crítico sobre Olavo Bilac. Desta maneira, chega-se à outra vertente do pensamento Judithiano: a crítica. Eu queria ser um grande crítico literário; um grande ensaísta, porque eu já tinha a postura. Eu acreditava, eu confiava que o crítico é que acabava de engendrar a obra22 .. Esta inclinação para a crítica tem um reflexo na clínica. Grossmann, que antes de ser professora, tinha por vocação a medicina, principalmente a psicanálise, conforme afirma em inúmeros depoimentos, vê a crítica como forma de entrar em contato com o. 20. GROSSMANN, op. cit,. loc. Cit. Atual UFRJ. 22 GROSSMANN, Judith. Oficina Amorosa: Depoimento. In: HOISEL, Evelina. (Org.)Estudos; Lingüísticos e Literários. Salvador, edUfba, nº15. p.47-71.1993. 21.

(23) 23. outro, adentrar a alteridade e dialogar com ela: “... descobrir o universo do outro, e a obra era essa moeda”. Então, assim como a leitura fascina, a escrita e a crítica vêm completar as muitas faces desta menina que, segundo a sua mãe, numa definição muito adequada de Judith Grossmann: "trabalha em todos os fronts". Trabalhando, então, em todos os fronts, há uma complementação de um no outro. A leitura desperta a crítica, que embasa o ensino, que favorece a criação. Esta fórmula, na verdade, funciona, qual na matemática, sem que a ordem dos fatores interfira no produto. Mas, o fato de poder praticar todas estas vertentes, oferece a Judith Grossmann uma visão muito peculiar do texto literário. A leitura constante e insaciável, tanto de textos literários como críticos e teóricos, faz com que se construa um repertório de leitura amplo e um saber "enciclopédico"; a produção crítica oferece uma possibilidade de refletir sobre a obra do outro e a sua própria e, neste sentido, complementa tanto a leitura quanto a escrita. Esta última se desenvolve com o cabedal de leitura e o desenvolvimento do pensamento crítico e, finalmente, o diálogo de todos estes saberes é colocado em prática na sala de aula: A vida acadêmica como um alimento da obra literária, porque eu estava em contato com os maiores escritores da literatura brasileira e universal...eu sempre li muito dentro da Literatura Inglesa, dentro da Literatura Americana, dentro da Literatura Brasileira e isto é uma escola, é uma coisa insubstituível. Então eu adquiri assim um saber enciclopédico. Eu já li praticamente tudo. eu conheço todas as possibilidades estilísticas e no meu caso isto ajuda muito 23 .. A maioria dos escritores segue o que Piglia chama de escritos póstumos de escritores, que seria a substituição da prática literária pela escrita privada do escritor, na qual ele anotaria as suas convicções acerca de literatura, numa espécie de laboratório. Judith tem algumas maneiras muito peculiares de exercitar este laboratório: em seus prefácios, presentes em seus romances, nas salas de aula, nos seus depoimentos e entrevistas e nos artigos de crítica. Uma questão que sempre retorna nas reflexões de Judith em seus vários laboratórios é a relação entre a obra de arte e os seus predecessores. É importante notar a exposição, em vários dos seus textos, daquilo que a autora chama de "família": Nós, escritores, possuímos uma vasta família, à qual pertencemos, e esta ilustre família é a 23. GROSSMANN, Judith. Judith Grossmann: Entrevista. Entrevistadores: Alunos Universidade Católica do Salvador. Salvador: Biblioteca Reitor Macedo Costa, 1996. 1 cassete sonoro (60 min) documento parcialmente transcrito por Lívia Souza..

(24) 24. literatura de todos os tempos 24 , que seria um conjunto de autores eleitos com os quais são estabelecidas relações de parentesco literário construídas a partir da história de leitura de Judith Grossmann. Não podemos perder de vista que a percepção de leitura de Judith Grossmann é aguda, deve-se levar em conta não só a variada gama de leitura que ela detém, mas também a profundidade interpretativa a que esta pode alcançar. É ampla a família da leitora/escritora Judith Grossmann, envolvendo irmãos Grimm, fábulas de Esopo, Shakespeare, Jorge de Lima, Cecília Meireles, avançando sobre fronteiras lingüísticas, temporais e espaciais. O seu arcabouço contempla, igualmente, a psicanálise, filosofia e outras áreas do conhecimento humano. No texto O Cânone narrativo do século XX 25 , a autora fala sobre a sua história de leitura, e nos revela uma tríade de autores cujas vozes ressoam em sua obra, são eles: Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Podemos, dentre os predecessores, apontar como exemplo das relações interfamiliares a intensa relação existente entre a escritora/leitora Judith Grossmann e a literatura de Clarice Lispector. Há, nos textos de Grossmann, um intenso diálogo com os principais eixos temáticos de Lispector 26 . Quando Judith Grossmann retoma cenas e temas da literatura de Clarice Lispector ela o faz a fim de suplementar a obra anterior, mostrando possibilidades outras de resolução e de representação das personagens 27 . Neste diálogo são fortes dois movimentos antagônicos: por um lado a atração e a admiração pela obra de Lispector e, por outro lado, o desejo de superação, de retomar a fala de Clarice Lispector rasurando, reescrevendo e resolvendo problemas por ela expostos oferecendo novas soluções. Naturalmente, a convivência em família se realiza mediada por sentimentos ambíguos. Amor e ódio caminham de mãos dadas de tal maneira que se tornam opostos e complementares. Todos os sentimentos que dedicamos aos elementos da família são “de fronteira”, periclitantes entre o sim e o não e sempre prestes a converter-se em seu pleno oposto por um simples mover de peças, por uma palavra, um gesto. Mutatis mutandis isto pode ser sentido nas relações que se estabelecem dentro da família literária de Judith Grossmann. Inicialmente, percebemos que o Pai, Machado de Assis 24. GROSSMANN, Judith. O cânone narrativo de século XX. In: GROSSMANN, Judith. Et alli.Anais ABRALIC- Cânones e Contextos. 5º Congresso Abralic. Rio de Janeiro:EdUFRJ, 1997. vol.01. 25 Idem, Ibidem. 26 Temas como o dos irmãos, do roubo, das relações homem/mulher e da escrita estão presentes tanto em Clarice Lispector como em Judith Grossmann. 27. Cf. Capítulo VI deste trabalho..

(25) 25. figura preservado; enquanto a Mãe, Clarice Lispector é foco, por vezes, da ojeriza da comparação: ...toda vez que vai cuidar de minha obra, na ausência de um aparelho teórico, o crítico novo então recorre ao mesmo aparelho [a comparação com Clarice Lispector]. Isso não pode dar certo, não é?28. por vezes, do desejo de evidenciar a diferença que as separa: Então, como um parâmetro quantitativo eu agradeço, mas quanto à natureza da obra, não sei, não se pode repetir obra, então são naturezas completamente diferentes...29. por vezes, da admiração: Suas estruturas narrativas são leves, levíssimas tecelagens, com as quais ela vai movendo, construindo mundos 30. Duas vertentes teóricas que estudam a relação da obra de arte com a tradição são relevantes para se refletir as relações de Judith Grossmann com os seus predecessores: o talento individual, de T.S.Eliot, e a influência, de Harold Bloom. Dentre as duas, aquela que mais fortemente nos serve como instrumentalização para analisar a constituição da família de Judith Grossmann é a visão de Eliot, uma vez que, de maneira reiterada, a autora afirma uma relação de Phylia e proximidade dialógica com as obras anteriores. T. S. Eliot, em Tradição e Talento Individual 31 , afirma o lugar incômodo que a tradição ocupa na consciência dos críticos, uma vez que raramente ela é citada, a menos que seja para de traçar uma reconstrução arqueológica 32 ; mas, se ela servir de fonte de comparação entre presente e passado, ela é rechaçada. Os motivos deste melindre no uso da palavra advém da convicção de que para fazer um elogio ao trabalho de um poeta 28. GROSSMANN, Judith. Depoimento. In: Carlos Ribeiro (Org.) Com a Palavra O escritor. Salvador: fundação Casa de Jorge Amado; Braskem,2002.p28-38. p29. 29 Referindo-se a artigo de Samuel Ravet, Publicado no Jornal do Brasil, onde o articulista teria comparado o surgimento de O meio da pedra: nonas estórias genéricas ao surgimento de Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector. Cf. GROSSMANN, Judith. Depoimento. In: Carlos Ribeiro (Org.) Com a Palavra O escritor. Salvador: fundação Casa de Jorge Amado; Braskem,2002.p28-38. p28. 30 GROSSMANN, Judith. O cânone narrativo de século XX. In: GROSSMANN, Judith. Et alli.Anais ABRALIC- Cânones e Contextos. 5º Congresso Abralic. Rio de Janeiro:EdUFRJ, 1997. vol.01.p.348. 31. ELIOT, T.S. Tradição e Talento individual. In: ELIOT, T.S. Ensaios. Trad. Invan Junqueira. São Paulo: Art Editora, 1989. 32 Idem, Ibdem. p.37..

(26) 26. é indispensável enaltecer os elementos trazidos por ele que menos se assemelham à obra de outros escritores; busca-se descobrir algo que seja peculiar e mote de diferenciação para, assim, afastá- lo da tradição. Segundo Eliot, este é um preconceito que nos impede de ver que a peculiaridade de hoje só se realiza graças a reconfiguração de todo um trabalho anterior. É necessário, então, se aproximar dos textos novos buscando perceber que os seus traços mais individuais e julgados melhores são, na verdade, onde o poeta , verdadeiramente maduro, mostra a presença dos antepassados. A nova obra se desenvolve num terreno já preparado pela tradição, ocupa um lugar e, quando ela entra com este talento, modifica a tradição. Segundo Eliot o poeta maduro é aquele que tem consciência de seu sentido histórico: O sentido histórico leva um homem a escrever não somente com a própria geração a que pertence em seus ossos, mas com um sentimento de que toda a literatura européia desde Homero e, nela incluída, toda a literatura de seu próprio país têm uma existência simultânea e constituem uma ordem simultânea.33. Cotejando as reflexões de Eliot com afirmações de Jud ith Grossmann, percebemos uma convergência: O fato é que justo quando escrevo sou invadida por dezenas de textos que não só li como assimilei, em minha existência de leitor 34. Eliot afirma que é necessário que o poeta reconheça a sua obra como sendo um dado marco no tempo e, simultaneamente, admita um diálogo com obras que gravitam em outras temporalidades. Assim, o autor deve ter a consciência de seu lugar no tempo, ou seja, de sua temporalidade mas também ele deve buscar compreender como e onde ele se insere na linha do tempo e da história literárias. Por seu turno, Judith nos mostra compreender a literatura como um sistema dialógico no qual a criação é sempre mediada pela leitura. Esta oferece ao escritor uma rede de trocas possíveis na qual articulam-se as vias de passagem para o novo: Olhe, em cada momento vigora o moderno daquele tempo que já também é um pós-moderno sincrônico. Moderno, pós-moderno são sincronias [...] sempre quis escrever para o meu tempo num sentido 33. Idem, Ibdem. p.39. GROSSMANN, Judith. Ex-Hibit do laboratório de um conto. In: TELLES, Lígia F. (Org. Sel.) Pátria de Estórias; contos escolhidos de Judith GrossmannRio de Janeiro:Imago; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia , 2000. Col.Bahia Pros e poesia. 34.

(27) 27. muito específico, apenas aparentemente contraditório: com uma das mãos, não ignorando nada do que foi escrito, e com a outra mão ignorando tudo que foi escrito. 35. A obra se inscreve numa mesma história e, ao mesmo tempo, ilumina toda a história. A grande pretensão é de que, através de Jud ith Grossmann, se leia Clarice Lispector 36 . Eliot entende tal movimento não apenas no sentido estético da criação da obra, mas também como uma faceta crítica, uma vez que, a partir do contraste e da comparação com os poetas mortos, o novo poeta estaria empreendendo um movimento de revisão na literatura e repensando o seu lugar na órbita das obras:. Os monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si, e esta só se modifica pelo aparecimento de uma nova (realmente nova) obra entre eles. A ordem existente é completa antes que a nova obra apareça; para que a obra persista após a introdução da novidade, a totalidade da ordem existente deve ser, se jamais foi sequer levemente, alterada: a desse modo as relações, proporções, valores de cada obra de arte rumo ao todo são reajustados; aí reside a harmonia entre o antigo e o novo 37 .. Há aqui, uma convergência de falas entre T.S. Eliot e Judith Grossmann, o que demonstra uma aproximação possível entre os pensamentos teóricos dos dois 38 . E eu sou muito afeiçoada com a crítica literária, porque representa uma espécie de diálogo com o outro. Me interessa [sic]39 dialogar com meus antecedentes, com meus contemporâneos; não sou o tipo de escritor que, por ter uma obra própria, vai desconsiderar a obra do outro, mesmo porque isto é bom para mim, eu observo o que estão fazendo e o que foi feito para poder explodir o molde e conceber alguma originalidade.40 O que eu posso lhes dizer é que, nessa altura de minha vida, tudo continua o mesmo, cada livro novo que aparece, que é realmente. 35. TAVARES, Ildásio. Midas da poesia: Entrevista com Judirh Grossmann.Tribuna da Bahi a, Salvador, 25 Jan,1997. 36 Anotações de Aula. Reunião de orientação com a Prof. Antonia Herrera. 37 ELIOT, T.S. Tradição e Talento individual. In: ELIOT, T.S. Ensaios. Trad. Invan Junqueira. São Paulo: Art Editora, 1989.p.39. 38 No Capítulo VI veremos uma margem de discordância entre Judith e Eliot no que diz respeito à força narcísica necessária para a criação da nova obra de arte. 39 Este foi um depoimento oral que foi transcrito. Assim como na transcrição original, a citação decidiu por manter a espontaneidade do discurso oral. 40 GROSSMANN, Judith. Judith por Judith:Depoimento. In: CABRAL, Otávio; MAGALHÃES, Belmira da Costa. (Org) Sinfonia inacabada do amor ameno: Algumas reflexões críticas em torno de Meu Amigo Marcel Proust Romance, de Judith Grossmann. Maceió: EdUFAl,1999.p.176..

(28) 28. inovador e que quebra, explode paradigmas e é isto que a arte faz...41. Percebemos, então, que há uma proximidade com as reflexões de T.S. Eliot, no que tange a visão da tradição como um círculo que só pode ser reconfigurado por uma obra verdadeiramente “inovadora”. Parece-nos, então, que o que rege as ligações entre as obras literárias é a lógica do suplemento42 . A novidade surge da reconfiguração da fala anterior e, assim, a criação é sempre mediada pela memória de leitura e, no momento da escrita, ela adentra no campo da criação ativando afastamentos e aproximações que irão definir não apenas a obra, mas a relação de seu autor com os seus predecessores: Amo aqueles que são capazes de amar tanto predecessores quanto continuadores, compreendendo-se a si mesmos como um elo indispensável à grande construção universal da arte e do homem através da arte43 .. Tem-se, então, uma visão das relações entre um autor e seus predecessores como regida por um sentimento de Phylia, mediadas pelo diálogo e pela ocupação de um espaço junto a obra precedessora. Neste sentido, o texto de Judith obedece a este sentimento de Phylia através do reconhecimento do lugar e da importância de seus predecessores para a sua literatura: Romance é aquilo que os meus predecessores do século XX fizeram. Eu não inventei nada, apenas encontrei um caminho44 .. Entretanto, conforme já dissemos, na ambigüidade que rege todas as relações familiares reside o espaço para uma outra forma de encarar a tradição, tendo-a como débito e obstáculo a ser superado. Harold Bloom apresenta a sua teoria, inicialmente com o livro A angústia da Influência; uma teoria da poesia 45 , no qual se inicia uma travessia crítica que só se encerraria com a publicação e Poesia e Repressão, obra 41. Idem, Ibidem.p168 No sentido Derridiano: Cf.: SANTIAGO, Silviano. (Org) O glossário de Derridá.s.l.:s.n., 199? 43 GROSSMANN, Judith. Ex-Hibit do laboratório de um conto. In: TELLES, Lígia F. (Org. Sel.) Pátria de Estórias; contos escolhidos de Judith GrossmannRio de Janeiro:Imago; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia , 2000. Col.Bahia Pros e poesia.p.234. 44 LINS, Ênio.Letras no final do século XX.: Entrevista com Judirh Grossmann. Caderno B, Gazeta de Alagoas, Maceió, 17 Abr,1997. 45 BLOOM, Harold. A Angústia da Influência: Uma teoria da Poesia. Trad. Arthur nestroviski. Rio de Janeiro: Imago, 1991. 42.

(29) 29. publicada após os livros Um mapa da desleitura e Cabala e crítica, construindo, assim, aquilo que poderíamos chamar de a tetralogia da influência. Para Bloom todo poema é um desvirtuamento do poema-pai. Um poema não é a superação de uma angústia, mas a própria angústia 46 .. Para ele o poema é um ato de leitura, uma postura, um. movimento em direção ao poema anterior, sempre permeado pela angústia e pela sede da superação. Em A Angústia da influência, ele afirma ter dois objetivos básicos: desmentir as idealizações das versões oficiais sobre como um poeta ajuda a formar o outro e desenvolver uma poética que nos leve a uma forma mais adequada e pragmática de crítica. Afirmando que a história da poesia é indivisível da história da influência poética, ele separa os poetas em fortes e fracos, numa teoria que tem um tom darwinista de seleção natural: Os poetas fortes fazem a história deslendo-se uns aos outros, de maneira a abrir um espaço próprio de fabulação47 .. O efebo ou poeta jovem, estará sempre exposto à possibilidade de repetir o seu antecessor e é nesta luta que estará a angústia: ele deve matar o precursor para poder viver e eternizar-se. O poeta forte é aquele que, no enfrentamento com o predecessor, passa em visita as seis razões visionárias, que delimitariam os padrões de desapropriação entre os poemas. São elas o Clinamen, a desleitura propriamente dita, o desvio do poeta em relação ao seu predecessor; Tessera, complementação do precursor na obra do novo autor; Kenosis que é a defesa contra a compulsão de repetição, através de um esvaziamento do poeta; Demonização é a adoração ao avesso, o contra-sublime do predecessor; Arkesis: movimento de purgação, diminuição de si mesmo que acarreta a diminuição do precursor; Apophrade é o retorno dos mortos. O novo poeta sustenta o seu poema aberto à obra do predecessor, sendo já uma reescrita deste. Bloom faz, entre os movimentos revisionários e as figuras de linguagem, uma analogia. O Clinamen seria a Busca, o equivalente a Ironia 48 , no seu sentido mesmo desconstrutor, de arte de interrogar, com vista a provocar a maiêutica ou forçar o surgimento idéias. O desvio se configura, então, no sentido de contestar o anterior e apontar as suas falhas:. 46. Idem, Ibidem. BLOOM, Harold. A Angústia da Influência: Uma teoria da Poesia. Trad. Arthur nestroviski. Rio de Janeiro: Imago, 1991. 48 Neste trecho, todas as figuras de linguagem são estudadas segundo as definições de Massoud Moisés. Cf. MOISÉS, Massoud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix,1974. 47.

(30) 30. O poema do precursor seguiu até um determinado ponto , mas depois teve de ser desviado, precisamente na direção em que segue o novo poema 49 .. Cotejando, mais uma vez com falas de Judith temos: Então, em O meio da Pedra: nonas histórias genéticas, a forma está muito em evidência. É uma coisa que não herdei de nenhum predecessor meu brasileiro50 .. Assim, o novo texto apontaria a falha e as limitações do anterior e traçaria, com o seu próprio corpo, o caminho pelo qual o anterior deveria ter seguido. A Tessera se identifica com a Queda e a Antítese, que é a conjunção do contraste, da oposição, com a afirmação, este conceito já é encontrado no próprio étimo da palavra: Anti = Contra; Thésis = Afirmação. Assim, na negação do anterior há a afirmação do eu, é preciso que o predecessor caia para que o efebo se erga: O poeta ‘completa’ antiteticamente seu predecessor, lendo o poema-pai de modo a reter seus termos, mas usando-os em outro sentido, como se o precursor não houvesse ido longe o bastante.51. A Kenosis é o Giro, é representado pela Metonímia que é “a substituição de um vocábulo por outro, com o qual estabelece uma constante e lógica relação de contigüidade 52 ”, o poeta novo, de tão próximo do seu predecessor, precisa esvaziar-se para que ele também se esvazie, seguindo a lógica metonímica da parte pelo todo e do todo pela parte, tudo aquilo que atingir o efebo alcança também o predecessor: O poeta que vem depois, aparentemente esvaziando-se de seu próprio estro, sua divindade imaginativa, parece submeter-se, como se estivesse deixando de ser poeta, mas esse refluxo é realizado em relação ao poema de refluxo do precursor de um modo que também esvazia o precursor, e assim, o poema de esvaziamento posterior não é tão absoluto quanto parece.53. 49. BLOOM, Harold. A Angústia da Influência: Uma teoria da Poesia. Trad. Arthur nestroviski. Rio de Janeiro: Imago, 1991. p. 64. 50 GROSSMANN, Judith. Depoimento. In: Carlos Ribeiro (Org.) Com a Palavra O escritor. Salvador: fundação Casa de Jorge Amado; Braskem,2002.p28-38.p.32. 51 BLOOM, Harold. A Angústia da Influência: Uma teoria da Poesia. Trad. Arthur nestroviski. Rio de Janeiro: Imago, 1991. p. 64. 52 MOISÉS, Massoud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix,1974. 53 BLOOM, Harold. A Angústia da Influência: Uma teoria da Poesia. Trad. Arthur nestroviski. Rio de Janeiro: Imago, 1991. p. 64..

(31) 31. A Daemonização é a Progressão, na construção de um Contra –sublime em relação ao sublime do precursor, é uma tentativa de desconstruir aquilo que é visto como peculiar e único no precursor, apontando tais qualidades fora da obra do anterior generalizando o que é visto como especial nele e encontrando tal traço nas obras de uma época na qual o poema-pai se insere. Representado pela Hipérbole, que é uma figura de exagero, o efebo realiza, com a Daemonização este excesso, deslocando e democratizando um traço particular do poema-pai para uma comunidade inteira: O poeta que vem depois abre-se para o que acredita ser um poder no poema-pai que não pertence ao pai mesmo, mas a uma gama de ser logo além de precursor. Ele faz isso, em seu poema, colocando a relação da obra com o poema-pai e modo a desfazer, pela generalização a unicidade da obra anterior 54 .. A Arkesis aproxima-se da Kenosis, mas, diferente dela, em lugar de esvaziar o poema-pai, ele toma uma atitude de autopurgação passando por uma redução, abrindo mão de parte de suas qualidades para afastar-se de uma gama de outros poetas, inclusive de seu predecessor. Há, neste sentido, um Mascaramento, um jogo de disfarces que objetiva produzir uma idéia de si que o afaste dos outros. Desta maneira, o sujeito constrói uma Metáfora de si que faz com que se observe uma imagem menor e mais humilde para que, exercitando o próprio conceito de metáfora possa-se ver, além da máscara, um traço de diferenciação em relação aos demais escritores: O poeta que vem depois não passa, como na Kenosis, por um movimento revisionário de esvaziamento, mas de redução; abre mão de parte de seu dom humano e imaginativo para separar-se de outros, incluindo seu precursor, e faz isso em seu poema deslocando-o em relação ao poema-pai de modo a fazer com que esse poema também passe por uma Arkesis; o talento do precursor é igualmente truncado. 55. Na última fase tem-se a Apophrades, é o retorno dos mortos, o Combate que se reconfigura numa preponderância aparente do poema-pai. Na verdade, engendra a Melalespse, ou seja, a substituição do posterior pelo anterior, assim parece que foi o efebo que escreveu antes do pai e não o contrário. Segundo Bloom:. 54 55. Idem, ibidem, p 65. Idem, Ibidem, p.25.

(32) 32. ...o poema agora é mantido aberto ao precursor, quando antes estava aberto, e o efeito fantástico é que a realização de novo poema o faz parecer a nós não como se fosse o precursor a estar escrevendo-o, mas como se fosse o próprio poeta posterior houvesse escrito a obra característica do precursor.56. As reflexões de Bloom provocaram e provocam muitas divergências e, para nós, não se aplicam de maneira completa nas relações entre a literatura de Judith e seus predecessores. Conforme já dissemos, compreendemos a relação das idéias de Judith com T.S.Eliot e Bloom como as duas faces de um processo que é, por sua própria natureza, ambíguo. Angústia e Phylia convivem no espaço criativo. Mas concluímos que relação de Judith com os seus predecessores é muito mais regida por uma ambivalência, um circuito descontínuo de idas e vindas entre prazer e desprazer; do reconhecimento e agradecimento ao predecessor à vontade de soterrá- lo.. 56. Idem, ibidem, p.25.

(33) 33. Não roubarás: A estética literária e a ética divina A criação artística e literária é este ato de limpeza, de depuração, o aparecimento de uma linguagem ainda inexistente, nova. Mas o que é este novo arrancado do velho, novo, ovo, trisnovo, não rapinado? É assim a luta contra a biblioteca. Judith Grossmann, Ex-Hibit do laboratório de um conto .. Sarah Kofman, em seu livro intitulado A infância da arte: uma interpretação da estética Freudiana, analisa toda a obra de Freud, discutindo o texto artístico e fazendo uma leitura sintomal da teoria frediana de maneira que, seguindo o modelo da clínica freudiana, coloca o texto para falar. Baseando-se nos estudos de Freud, ela afirma a proximidade entre a técnica de interpretação dos sonhos e da obra de arte, segundo ela: Ele tem o mesmo objetivo, descobrir o arcaico sob o que parece novo. Permite compreender os temas das obras tirados de uma memória coletiva ou individual.57. Obedecendo às estruturas de dissimulação e recalque presentes nos sonhos, na obra literária a "matéria primitiva das obras" está coberta por edificações que a escondem a ponto de, muitas vezes, não ser reconhecida. Se entendermos esta matéria primitiva não apenas como dados vividos, biográficos, mas também como sendo o arcabouço de leitura, compreenderemos que, no texto ora escrito ecoam vozes a custo silenciadas ou, como bem nos mostra Umberto Eco em seu texto Borges e a minha angústia da influência 58 , vozes que emanam do texto à revelia da consciência de seu escritor. Eco, neste ensaio, tenta nos mostrar como a literatura de Borges está presente na sua obra desde detalhes de nomes a cenas inteiras de romances, e nos alerta para a inconsciência em que estes fatos muitas vezes ocorreram, revelando-se para o autor pelos olho s dos leitores ou por revisões feitas por ele mesmo a sua obra. Assim, Kofman arremata:. 57. KOFMAN, Sarah. A infância da arte; uma interpretação da estética freudiana.Trad. Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995. 58 ECO, Umb erto. Borges e a minha angústia da influência. In: ECO, Umberto. Ensaios sobre a literatura. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 2003..

(34) 34. A concepção de Freud é que a verdade só se oferece em suas deformações e é construída a partir delas. Não existe um texto originário traduzido por outros, mas sempre se é remetido de um texto a outro, de uma versão a outra, produzida pelo jogo diferencial de um mesmo fantasma universal que assim se estrutura59 .. Na palavra escrita e apagada está uma escrita ulterior. Todo movimento de escrita é, antes, uma rasura, uma tentativa de apagamento, de remodelação da escrita do predecessor. O processo criativo engendra a negação do outro, a auto-afirmação, a modulação de ecos, vozes e sussurros do predecessor no texto ora escrito. Segundo a reflexão de Michel Schneider em Ladrões de palavras: ...Cada livro é feito de todos os livros, ou que todos os livros são um fragmento de um único livro infinito. A assinatura, a singularidade dos nomes é uma ilusão moderna que encobre o fato de que cada autor é muitos autores e que aquilo que constitui a literatura é muito mais a cadeia de repetições e a sucessão de formas impessoais do que o eco repercutindo nomes próprios. Escrever é perder o poder de dizer 'eu'60 .. Assim sendo, Schneider reforça uma idéia já presente em muitos depoimentos e prefácios de textos de Judith Grossmann. Destaco, neste momento, uma afirmação presente no texto Exhibt: o laboratório de um conto61 . Nele, a autora afirma que existe não um livro, escrito por um autor, e sim O Livro Interminável: escrito por todos os escritores que existiram, existem e que existirão. Assim sendo, Judith Grossmann encarna a Penélope, uma vez que ela tece fio a fio a sua literatura durante o dia após o trabalho traiçoeiro e taciturno de desconstrução do trabalho de seu predecessor, entretanto é interessante refletir: os fios são os mesmos, ou seja, o mesmo livro interminável, mas o novo escritor, segundo a concepção de Grossmann, tecerá, com estes mesmos fios, um novo desenho. Tecerá o seu desenho: Eu quero é continuar a estirpe que me precedeu, a genealogia , a raça, o laborioso trabalho de gerações e gerações de artistas, e ao 59. KOFMAN, Sarah. A infância da arte; uma interpretação da estética freudiana.Trad. Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995. 60 SHNEIDER, Michel Ladrões de Palavras; ensaios sobre plágio, a psicanálise e o pensamento. Trad.: Luiz Fernando P.n. Franco. Campinas:UNICAMP,1990. 61 GROSSMANN, Judith. Ex-Hibit do laboratório de um conto. In: TELLES, Lígia F. (Org. Sel.) Pátria de Estórias; contos escolhidos de Judith GrossmannRio de Janeiro:Imago; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia , 2000. Col.Bahia Pros e poesia..

(35) 35. mesmo tempo livrar-me de toda origem, tornar-me nesta raça agora que ambiciona fazer um texto puro em seu caráter destrutivo, que longe de ser todos os nomes da história, os elimina a todos - e nunca me ocorreria pronunciá -los no espaço do próprio texto.62. Numa outra fala de Grossmann percebe-se sede da remodelação, da destruição para a construção do “novo”, como se querendo garantir um espaço de fala, de poder: Apesar disto, o fundamental se mantém o que eu escrevi, e não o que o outro escreveu, sendo esta, de todas as verdades, a maior verdade63 .. Podemos recuperar as reflexões de Sarah Kofman acerca do caráter edipiano, no sentido mesmo de matar o pai e tomar o seu lugar, de toda a obra de arte:. ...De todos os modos, admirar o herói é ainda admirar indiretamente o pai, pois o herói só o é por identificação com o pai e por desejo de substituí-lo. O 'assassinato' do pai pelo artista se realiza através de uma regressão ao estado narcísico64 .. Judith Grossmann parte do pressuposto que toda obra vem para preencher o vazio deixado pela anterior, e é neste movimento de suplementação que a sua obra emerge. O seu investimento é na remodelação de temas, roubando e apropriando-se o discurso anterior a fim de suplementá- lo. Os rastros de leitura podem ser perseguidos pelas pistas deixadas no decorrer do seu texto, ou numa visita ao "Acervo Judith Grossmann", pelos riscos, exclamações e grifos efetuados por Judith em várias obras ali depositadas. Quem for ao acervo e folhear as obras notará, em muitas delas, um traço sutil, como que temente de rasgar a integridade branca da margem com as suas anotações e exclamações. O espaço da margem escrita a próprio punho no livro de outrem tem uma forte simbologia de tornar este texto "meu", apossar-se dele, marcá- lo com outra grafia e, ali mesmo, dentro de seu espaço, corrigi- lo, criticá- lo; acariciando a fibra do papel, mas, na carícia, imprimindo a. 62. GROSSMANN, Judith. Ex-Hibit do laboratório de um conto. In: TELLES, Lígia F. (Org. Sel.) Pátria de Estórias; contos escolhidos de Judith GrossmannRio de Janeiro:Imago; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia , 2000. Col.Bahia Pros e poesia.p.230. 63 GROSSMANN, Judith. Ex-Hibit do laboratório de um conto. In: TELLES, Lígia F. (Org. Sel.) Pátria de Estórias; contos escolhidos de Judith GrossmannRio de Janeiro:Imago; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia , 2000. Col.Bahia Pros e poesia.p.230. 64 KOFMAN, Sarah. A infância da arte; uma interpretação da estética freudiana.Trad. Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995..

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