Provas públicas para obtenção do Título de Especialista
Recital
FLAUTA E PIANO NO SÉCULO XX
Alexei Eremine
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PROGRAMA
FLAUTA E PIANO NO SÉCULO XX
Francis Poulenc: “Sonata para Flauta e Piano” (1956‐1957)
I ‐ Allegro malinconico II ‐ Cantilena III ‐ Presto giocosoPaul Hindemith: “Sonata para Flauta e Piano” (1936)
I – Heiter bewegt II – Sehr langsam III – Sehr lebhaft MarschSergei Prokofiev: “Sonata para Flauta e Piano op.94” (1943)
I ‐ Moderato II – Scherzo. Presto III ‐ Andante IV – Allegro con brioNuno Inácio (flauta)
Alexei Eremine (piano)
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Flauta e Piano no Século XX
O presente trabalho tem como objetivo dar cumprimento à alínea b) do nº 1 do artigo 11º e da alínea b) do n.º 3 do artigo 13º do Regulamento para atribuição do Título de Especialista da Academia Nacional Superior de Orquestra aprovado pelo Conselho de Direção a 26 de julho de 2018, após reunião do Conselho Técnico‐ Científico a 20 de julho de 2018.Em conformidade como estipulado pelo aludido Regulamento, o trabalho tem a natureza profissional no âmbito da minha actividade como pianista – acompanhador, desenvolvida ao longo de vários anos na Academia Nacional Superior de Orquestra e, em particular, na classe de Flauta em conjunto com o músico e professor Nuno Inácio.
Ao longo destes anos seria impossível não pensar na particularidade do destino da flauta como instrumento de concerto. De facto, este é um dos instrumentos de orquestra (senão o instrumento de orquestra) com uma das histórias mais repletas de ascensões e quedas, períodos de florescimento que se intercalam com períodos de quase inexistência.
É sabido que o papel da flauta na música de câmara e de pequena orquestra de câmara dos séculos XVII e XVIII possui uma particular relevância. Por exemplo, a flauta ocupa um papel fulcral em composições como sonatas de C.F.E. Bach e J.S. Bach, os Concertos de Brandeburgo n. 4 e n. 5 de J.S. Bach, os quartetos com flauta e concertos para flauta e orquestra de W. A. Mozart, entre outras. As obras acima mencionadas fazem realmente parte dos melhores exemplos de música instrumental.
Contudo, durante todo o século XIX a tradição da flauta não parece ter sofrido alterações significativas. É certo que obras para flauta ou com a participação da mesma, em vários contextos e géneros, não pararam de ser produzidas. E de facto a grande parte dos compositores do romantismo escolheu a flauta como recurso de assinalável significado para expressar as suas ideias musicais. Ao longo de todo o século XIX, são inúmeros os solos de flauta que podiam ser ouvidos em várias obras sinfónicas e nas óperas. E precisamente nesta altura T. Boehm realizou uma significativa reviravolta na construção da flauta, que iria levar à descoberta de imensas possibilidades que não tinham sido exploradas até então. No entanto, e apesar de todos estes fatores, o processo de evolução da escrita para a flauta no período romântico parece estagnar, criando a impressão que a época dourada do instrumento estava prestes a terminar. O número de autores que escrevem destacadamente ou com alguma predileção pelo instrumento é relativamente reduzido, entre os quais C.‐ M. von Weber, F. Schubert, F. Chopin, C. Saint‐Saens, G. Faure, B. Godard, F.‐ J. Fétis, C.Reinecke. Mas as obras notáveis são raras. H. Berlioz refere no seu Tratado da
Instrumentação que “a flauta é um instrumento quase privado de uma expressão específica”; por seu turno, N. Rimsky‐Korsakov escreve em Princípios da Orquestração
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flauta. Já o historiógrafo russo P.N. Stolpianski afirmava que (para fraseando) no timbre da flauta para os músicos russos ouvia‐se um excesso do sentimentalismo tão pouco característico para a alma eslava. Estas três afirmações representam bem, à semelhança doutras, uma certa desconfiança em relação ao potencial criativo do instrumento.
Podemos supor que as razões do afastamento da flauta, como instrumento de primeira escolha na Era de Oitocentos, prendem‐se com os dois seguintes fatores: as características tímbricas da flauta, que prevalecem na cultura europeia até o século XIX, associam predominantemente o instrumento às cenas pastorais e campestres. Mas, por outro lado, as características tímbricas da flauta nas suas vertentes bélica, penetrante e invocativa foram exploradas em menor escala pelos compositores românticos. Dessa forma, sustentado por tradições centenárias, o campo semântico da flauta parece insuficientemente versátil aos olhos dos compositores românticos, que procuram a descoberta de novas sonoridades, e por isso não querem estar limitados na sua imaginação criativa.
A utilização do som da flauta nas obras destinadas para a prática musical doméstica (“Hausmusik”) também não foi suficientemente atractiva para os compositores românticos, sobretudo na primeira metade do século XIX. A quase ausência de mudança de atitude perante essa particularidade da música escrita para a flauta é perceptível: desde a tolerância estética no uso habitual da flauta no desenvolvimento criativo da tradição nas obras de Schubert, Mendelssohn e Brahms, até a rejeição e ridicularização do “filistinismo” nas obras de Schumann e Wagner. Esta última tendência foi, aliás, acompanhada por manifestos e declarações ousadas, e ajudou a formar activamente a opinião pública.
Outra razão, igualmente viável, é a relação inovadora dos compositores românticos perante o conceito do timbre. Os mais notáveis inovadores do século XIX davam a preferência às combinações timbricas entre os instrumentos, exploravam o potencial sonoro da orquestra, ou recorriam ao uso dos instrumentos raros ou pouco habituais. Naturalmente, o timbre por assim dizer monocórdico e acomodatício da flauta era menos desejável para um compositor romântico do que as combinações entre harpas e violinos, trompas e fagotes, ou timbre dos instrumentos recentemente inventados como o saxofone e a tuba wagneriana ou ainda, timbres originais do corne inglês e contrafagote.
Também é importante sublinhar que a reforma de T.Boehm, que gerou as alterações na construção e na sonoridade do instrumento da flauta, não foi aceite amplamente pelos músicos seus contemporâneos. Os músicos mais conservadores achavam que a flauta tinha perdido o seu timbre específico. Em suma, e duma forma geral, podemos afirmar que o timbre da flauta não era uma prioridade para os compositores românticos.
No entanto, na história da música do século XX a ascensão da flauta foi bem mais notável. Os novos movimentos artísticos deram origem ao crescimento e
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desenvolvimento das novas estéticas musicais que, por sua vez, vieram a elevar o prestígio da música para flauta. A reforma de Boehm não foi apenas elogiada, mas também abriu o caminho para o aperfeiçoamento da flauta em consecução àquilo que foi descoberto e inventado por ele. A flauta que, até agora, era considerada um instrumento primordialmente de foro orquestral, tornou‐se de novo num instrumento solista, virtuoso e auto‐suficiente. As novas estéticas musicais transformaram as imperfeições timbricas da flauta ligadas à sua sonoridade poética, mitológica e nostálgica em qualidades e benefícios, e numa enorme riqueza de virtualidades.
No início do século XX surgem várias obras que evidenciam a popularidade ascendente da flauta. Essas obras demonstram as características brilhantes e intrínsecas da flautista, as potencialidades poéticas do instrumento, e até transformam a flauta numa “personagem” específica.
A atração pela flauta reúne compositores das mais diversas estéticas musicais, por vezes, opostas. O som da flauta ouve‐se no teatro musical, em solos orquestrais, a solo com orquestra, nas obras de música de câmara e, por fim, integralmente, a solo. Os recursos expressivos do instrumento e as técnicas de execução são efetivamente atualizados substancialmente.
As obras de Claude Debussy deram um contributo importante para o renascimento da flauta. Ainda na década de 1890, Debussy escreve a sua obra intitulada Prélude à l’après‐midi d’unfaune (1892‐1894) que marcou a história da música e deu início à estética do impressionismo musical. É emblemático que a obra se inicia com um solo de flauta e, ao mesmo tempo, marca o início do renascimento do instrumento. Nesta obra a flauta revela o seu potencial semântico associado às cenas pastorais mitológicas, no entanto através duma linguagem musical muito própria. O material musical atribuído à flauta reúne dois modos favoritos do compositor: o modo cromático, que pertence ao primeiro motivo da obra e parece estar inserido no âmbito do intervalo de trítono, e o modo pentatónico. A obra ganhou enorme popularidade e, através dela, o prestígio da flauta começou de novo a crescer.
No início do século XX, Debussy volta a utilizar a flauta. O ciclo vocal Les
Chansons de Bilitis (1897‐1901) consiste em três miniaturas para voz, duas flautas, uma
celesta e duas harpas, sendo a primeira La flûte de Pan. Nesta obra o compositor desenvolve as imagens que tinha descoberto no Prelude à l’après‐midi d’unfaune como a pastoral da flauta estilizada preenchida pela simbologia do eros. Mais tarde, em 1912, Debussy resolve apresentar a flauta ao palco sem qualquer acompanhamento através da peça intitulada Syrinx. Este acontecimento tornou‐se uma marca na história do instrumento e contribuiu para a sua autodeterminação, pois, desde o período barroco os mais célebres solos de flauta (salvo raríssimas exceções) surgiram apenas em obras com acompanhamento. Com esta obra, Debussy dá início a uma nova vaga de obras para flauta a solo que cresce e se desenvolve até aos dias de hoje. A aparência melódica de Syrinx reúne a forma quase arcaica e a complexidade na utilização dos modos. Nesta obra é possível ouvir a ansiedade da perseguição por traz
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da qual esconde‐se a saudade simbólica pelo inalcançável. Debussy considerava mais práticas para execução as frases virtuosísticas breves, e evitava cantilenas ou melopeias longas. O compositor também adere ao mesmo princípio na sua ultima obra com a participação da flauta ‐ Sonata para Flauta, Viola e Harpa, composta em 1915.
Nas suas obras, M. Ravel utiliza a flauta em menor escala face a Debussy. Contudo, não podemos ignorar a melodia extensa atribuída à flauta no início do
Bolero, a obra composta em 1928, que é apresentada numa tessitura invulgarmente
baixa, com timbre translúcido, num estilo oposto ao de Debussy. Igualmente importante é mencionar o tema encantado da flauta, que existe na cena do Bosque Sagrado do bailado Daphnis et Chloé, obra composta em 1912.
Uma atenção redobrada à flauta nota‐se também nas obras do romantismo tardio e/ou pós‐romantismo austríaco e alemão, escritas no início do século XX. Por exemplo, nas suas composições sinfónicas G. Mahler utiliza frequentemente o timbre tradicional da flauta relacionando‐o com a semântica da música na floresta. No entanto, nos momentos mais dramáticos, o compositor faz vibrar o instrumento num tom alto e estridente, como por exemplo na Quinta Sinfonia ou, numa tessitura paradoxalmente grave, como na marcha fúnebre da Primeira Sinfonia, onde a flauta parece esconder‐se sob uma máscara grotesca. Richard Strauss também introduz as novas formas de tocar no instrumento. No seu poema sinfónico Also Sprach
Zarathustra, composto em 1896, ele utiliza o flatterzunge (tremolo com uso de língua)
que é aperfeiçoado na obra intitulada Dom Quixote, composta em 1897, para ilustrar o barulho do moinho. É desta forma, entre outras menos evidentes, que os compositores do romantismo tardio deram o seu contributo para um novo lançamento da flauta.
O consagrado líder da estética musical do Neoclassicismo, Igor Stravinsky, utiliza a flauta nas suas diversas composições instrumentais escritas durante a década de 1920. A obra Sinfonias em memória de C. Debussy (1919‐1920) possui um carácter sacro e, seguindo o espírito do mestre francês, inicia‐se com um cântico de flauta, ainda que no estilo russo. Numa entrevista o compositor afirma que “é uma música
limpa. Tentei criar algo que remetesse à atmosfera de igreja, mas sem a componente religiosa. É uma composição rigorosa, ácida, mas genuína”. Não é por acaso, ainda no
seu período “russo” que o Stravinsky no seu bailado Petrushka (1911) oferece à flauta solista a melodia do Ilusionista que dá a vida aos bonecos (através do som da flauta). De uma forma metafórica, ao instrumento é atribuída uma função mística. Mais tarde, o compositor recorre novamente ao auxílio da sonoridade de flauta nas suas Três
Canções de William Shakespeare escritas em 1953 e na obra intitulada Epitáfio
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Nas obras do compositor Paul Hindemith a flauta também possui uma presença ativa, tanto nas obras sinfónicas e obras para amplos conjuntos instrumentais, quanto em obras a solo e para ensambles mais pequenos de música de câmara. Nas duas obras para flauta e piano, Sonata (1936) e Echo (1942), o compositor desenvolve os princípios da estética neoclássica tais como: a variação, a polifonia e a improvisação barroca. Um passo importante para o reconhecimento da importância da flauta foi a composição por Hindemith de várias obras para ensamble de flautas durante a década de 1920. Por sua vez, a obra Sonatina canônica para duas flautas, composta em 1923, demonstra uma transição estilística duma poesia romântica com tecido musical denso e expressivo para uma estrutura ampla de sonatina com uma precisão melódica linear. Importante mencionar que mais tarde o compositor compôs oito peças para flauta a solo (1927). A flauta ocupa também um lugar importante na atividade do “Grupo dos Seis”, que decorreu no cruzamento do Neoclassicismo (anti‐romântico) com uma música avançada indo formalmente em múltiplos sentidos, contudo sempre muito mais ligada concretamente à vida citadina e cultura urbana do que a representações idílicas ou refúgios campestres. Ao reabilitar os géneros da música pura, os compositores franceses acentuam na sonoridade da flauta a sua natureza instrumental. Desta forma a flauta deixa de ter aos poucos a sua ligação com os conceitos poéticos e mitológicos. Em substituição nasce uma nova concepção musical ligada à consciência intelectual e espiritual do mundo em constante mudança pelo cidadão contemporâneo. Neste paradigma são escritas as obras para flauta de Milhaud, Poulenc, Tailleferre. Fugindo um pouco da estética do grupo d’ Os Seis, com a clara influência de Debussy surge a obra La danse de la Chèvre de Honegger (1919) que conjuga o conceito de pastoral antiga com a atividade rítmica pós‐impressionista.
Na mesma altura de Syrinx de Debussy, nasce a obra intitulada Pierrot Lunaire de Schönberg conhecida como a “Bíblia do Expressionismo Musical”. A constituição instrumental desta obra inclui igualmente a flauta e a flauta piccolo. Do ponto de vista de autodeterminação e emancipação crítica do instrumento, a obra do Schönberg é importantíssima, pois a flauta é introduzida no novo campo de organização atonal. Através do acompanhamento musical o compositor cria um ambiente assustador de obsessão lunar, onde a voz falada (Sprechstimme) surpreende o ouvinte de uma forma eficaz. No prefácio da obra o autor menciona que deve “criar a atmosfera e o carácter baseado no sentido musical, e não apenas no significado de palavras”. Assim, foi traçado o caminho para uso de novas expressividades na flauta como: gritante, suplicante, louca, irónica, tempestiva.
Em suma, no início do século XX a flauta percorreu uma evolução na sua utilização, desde um instrumento orquestral a um instrumento solista. A flauta,
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utilizada inicialmente como instrumento orquestral associado à semântica pastoral e “cantilena diatónica”, torna‐se um elemento importante da paleta orquestral com as características do Mundo Antigo (tal como era ou foi esteticamente revisitado) combinadas com a progressiva sofisticação cromática. Um dos pontos‐chave na evolução da flauta é a utilização da mesma como instrumento a solo. Como consequência, a flauta intervém na qualidade dum instrumento integrado nos mais diversos conjuntos instrumentais e orquestrais, revelando a sua capacidade virtuosística na realização das tarefas técnicas complexas. Além disso, a flauta começa a fazer parte de uma nova tipologia do conjunto instrumental, cujo objectivo abrange a execução de música contemporânea até à técnica serial e extremos emocionais.
Em meados do século XX, na etapa seguinte da evolução, os compositores de vanguarda musical lançaram vários desafios à flauta, relacionadas com as novas técnicas de composição e execução experimental.
O programa supramencionado engloba o conjunto de três sonatas para flauta e piano que representa, por sua vez, as mais importantes escolas de composição: francesa, alemã e russa. Entre as sonatas para flauta e piano, os compositores como Poulenc, Hindemith e Prokofiev são mais marcantes. É importante mencionar que, as obras integradas no programa não seguem a ordem cronológica (a lógica de ordenação tornar‐se‐á clara nos parágrafos seguintes). A primeira a ser interpretada é a Sonata para flauta e piano de Francis Poulenc escrita em 1957, a última na ordem cronológica das três sonatas acima mencionadas. A escolha de colocar esta obra em primeiro lugar do programa é simbólica, visto que é graças à escola francesa de composição que a flauta regressa aos palcos de concerto.
Esta obra apresenta as características mais importantes do estilo de Poulenc tais como: uma linguagem musical com harmonia requintada, a combinação entre o carácter lírico e terno, quase ingénuo, com uma ironia quase grotesca. O espectro de emoções que preenchem o conteúdo da sonata é também bastante amplo tais como: tristeza e melancolia no allegretto do primeiro andamento, angústia no segundo andamento, e alegria incontrolável no terceiro andamento.
Nas suas obras Poulenc consegue transmitir a sensação que a matéria musical surge completa num só instante, através da espontaneidade na apresentação da ideia musical e da textura harmónica que surge com naturalidade. Podemos encontrar estas características de atitude ou gesto criativo também nas obras de Mozart, Schubert, Glinka e Dvořák. Nesta obra, o compositor abandona a forma tradicional da sonata clássica, substituindo‐a com uma exposição em relevo de secções contrastantes. Por várias vezes o carácter do tema é intercalado com o seu motivo oposto, como acontece no primeiro e terceiro andamentos da obra.
Poulenc utiliza a forma de sonata para reflectir sobre as questões universais de um ser humano tais como: a temporalidade do ciclo da vida humana, a angústia da
8 perda, a tentativa de manter um equilíbrio emocional. Uma aparente simplicidade que esconde um profundo sentido é um paradoxo característico do compositor. A música de Poulenc provoca no intérprete um desejo de romantizar a obra em busca da expressividade sentimental. Ao mesmo tempo, o compositor obriga o executante o procurar o equilíbrio necessário entre o sentimento e o sentimentalismo, entre a alegria de viver e uma leviandade ativa; ser flexível na execução do material musical, mas sem recorrer às alterações rítmicas exageradas. É importante mencionar, que o Poulenc é um autor francês do século XX e por isso, uma abordagem romântica na interpretação da sua obra retirará o essencial da mesma.
A Sonata para flauta e piano de Paul Hindemith é um exemplo de música incrivelmente viva e flexível que reflete um espectro de diversos humores: clara meditação impressionista no primeiro andamento; estados depressivos, quase doentios, no segundo andamento, e uma arrogância ou mesmo sarcasmo rítmico no terceiro andamento.
Na nossa opinião, em termos interpretativos o objetivo musical desta obra é resumido e revelado mais precisamente no segundo andamento. Por detrás da beleza melódica da flauta e do acompanhamento controlado pelo piano esconde‐se um profundo sentido relacionado com a intensidade da dúvida do autor e, possivelmente, a descrença na sua explicação. A escolha de Hindemith para retratar este quadro lírico é particularmente fascinante. Ao invés de recorrer aos instrumentos preferidos, como violoncelo ou viola de arco, o compositor optou pelo instrumento que geralmente é associado à luz. O terceiro andamento é uma espécie de marcha e possível paródia à expansão fascista que ganha formas reais durante a sua concretização, sobretudo tendo em conta que a obra foi escrita em 1936. Contudo, na nossa opinião, o sentido da obra é mais abrangente do que apenas uma reacção do artista aos acontecimentos do seu tempo. No conteúdo da sonata são refletidas perturbações e interrogações pessoais, não delimitadas somente pelo contexto histórico.
De certa forma, Hindemith segue os passos de J. S. Bach na sua relação com o processo de composição musical, sobretudo, no ciclo das peças polifonias intitulado
LudusTonalis. O legado de Hindemith consiste na polifonia como base da composição
musical, na criação de uma linguagem musical própria, na escrita de sonatas para todos os instrumentos. Em todos estes aspectos acima mencionados podemos encontrar a honestidade, um raro profissionalismo e uma fé inabalável na responsabilidade do artista. No entanto, a música de Hindemith é dotada de um certo sentido de humor e auto‐ironia que não lhe permite tornar‐se “demasiado sério”. A obra em questão a tudo isto faz jus.
A última obra do programa é a Sonata para flauta e piano de Sergei Prokofiev, escrita em 1943.Tal como a sonata para flauta em lá maior de J. S. Bach ou os concertos para flauta e orquestra de W. A. Mozart, a obra de Prokofiev exige a todos
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os flautistas não apenas um domínio da técnica interpretativa, mas também conhecimento da estilística musical, maturidade artística e alguma experiência de vida. Para esta sonata, Sergei Prokofiev escolhe uma tonalidade confortável para a flauta – ré maior (D‐dur). A tonalidade de ré maior (D‐dur), bem como a tonalidade de sol maior (G – dur), são as tonalidades comummente utilizadas pelos compositores nas obras para flauta desde o século XVIII. O uso das mesmas deve‐se à construção ainda não plenamente aperfeiçoada do instrumento, bem como à indefinição na mecânica de válvulas. Mas esse aparente conforto é falso. A facilidade técnica, tão característica nas obras em ré maior de Haydn ou Mozart, torna‐se uma ilusão e desaparece após os primeiros compassos da obra. A quantidade de cromatismos, saltos, passagens, e a frequente utilização do limite do registo agudo da flauta exigem do intérprete uma perfeição técnica e uso de todo o seu arsenal de expressividade artística.
Ao contrário das outras sonatas apresentadas no presente programa, Prokofiev escolhe um ciclo de quatro andamentos e encontra para cada um deles as características específicas, ao mesmo tempo sem se afastar do plano geral da composição. No que toca à construção da linha melódica, são poucos os compositores do século XX a igualarem Prokofiev. Ultrapassando todas as etapas do modernismo musical, nas suas últimas composições Prokofiev descobre um novo estilo clássico, sem perder a sua assinatura artística que é reconhecível às primeiras notas. Cada andamento desta sonata poderia ser considerada uma obra‐prima. Encontramos a mestria na composição do primeiro andamento inaugural (nos planos macro‐, meso‐ e micro – estrutural), a originalidade rítmica no segundo, a beleza melódica demonstrada no terceiro andamento e um caleidoscópio de secções musicais próximas pelo seu carácter a Petrushka de Stravinsky no final da obra.
Além de outros fatores, o equilíbrio na forma musical e a fantasia imaginativa no conteúdo colocam esta sonata de Prokofiev num lugar importantíssimo entre as obras escritas para flauta e piano no século XX.
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© Copyright for all countries 1958 All rights reserved J. & W. Chester/Edition Wilhelm Hansen London Ltd. J. W. C. 1605 Printed in England
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