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Liberdade religiosa e ecumenismo: caminho realizado e perspectivas para o terceiro milénio

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Liberdade religiosa e ecumenismo

Caminho realizado e perspectivas para o

terceiro milénio

A questão da liberdade religiosa está no cerne da preocupação ecuménica, e o progresso do m o v i m e n t o ecuménico tem sido, de facto, u m dos elementos determinantes n o r e c o n h e c i m e n t o cada vez mais amplo do direito à liberdade religiosa. N a consciência disso, o p r e s e n t e e s t u d o e n t e n d e - s e c o m o u m a reflexão, e m diversos registos, à volta da relação estreita que existe entre liber-dade religiosa e e c u m e n i s m o . N u m a primeira parte p r o c u r a - s e mostrar essa interdependência, tomando c o m o p o n t o de partida a Declaração sobre a liberdade religiosa do Concílio Vaticano II e os desenvolvimentos do ecumenismo no pós-Concílio. U m a segunda parte, mais voltada para tarefas e perspectivas de futuro, pergunta-se por alguns critérios fundamentais que devem presidir à cooperação ecuménica na perspectiva do respeito integral e cada vez mais p r o f u n d o da liberdade religiosa.

Antes, p o r é m , há duas o b s e r v a ç õ e s prévias a fazer, c o m significado também para a compreensão correcta do texto que se segue. E m primeiro lugar anota-se que se trata de uma reflexão de ordem sistemática, concretamente na perspectiva de uma teologia fundamental e ecuménica. A preocupação prioritária vai, pois, para aspectos da razoabilidade e da credibilidade da fé, por u m lado, e, por outro, para dimensões de u m diálogo ecuménico que procura caminhos de m a i o r fidelidade ao E v a n g e l h o . Visa-se, assim e principalmente, apresentar elementos de uma criteriologia básica em ordem ao discernimento das complexas questões que se colocam no âmbito da liberdade religiosa. N u m a segunda observação pretende--se lembrar que a questão da liberdade religiosa não p o d e ser considerada simplesmente em abstracto, antes é indispensável uma

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consciência profunda da historicidade real do problema1. De facto e c o m o é sabido, o simples reconhecimento constitucional do direito à liberdade religiosa, por mais importante que seja, não esclarece de uma vez p o r todas a forma c o m o o Estado se relaciona com as confissões religiosas existentes na sociedade, o m o d o c o m o se avaliam os factores e condicionamentos de ordem histórica, social, cultural, etc., que caracterizam cada situação. D e resto, não pode ignorar-se a multiplicidade de situações que se verificam a nível m u n d i a l , u m a m u l t i p l i c i d a d e q u e q u e s t i o n a s e m p r e de n o v o qualquer pretensão de análise m e r a m e n t e teórica do problema. N e s t a o r d e m de ideias, a p r e o c u p a ç ã o p o r u m a criteriologia f u n d a m e n t a l q u e p r e v a l e c e n o p r e s e n t e estudo não i g n o r a a necessidade de u m confronto c o m a realidade concreta, nem ilude a complexidade que esse confronto inevitavelmente envolve.

1. A liberdade religiosa n o c o n t e x t o d o e c u m e n i s m o pós-conciliar

1.1. A Declaração conciliar c o m o realização duma esperança ecuménica

A aprovação pelo Concílio Vaticano II da Declaração sobre a liberdade religiosa — e assim o reconhecimento do direito, baseado na dignidade da pessoa humana, ao exercício privado e público, individual e comunitário da religião (ou à ausência desse exercício) segundo os ditames da própria consciência — representou, sem dúvida, u m marco no diálogo entre a Igreja católica e as outras

' " O q u e é a l i b e r d a d e religiosa, n ã o d e v e ser r e s o l v i d o a priori o u e m a b s t r a c t o " : J . C . M U R R A Y , Le problème de la liberté religieuse au Concile, in J. C . M U R R A Y E. S C H I L L E B E E C K Y A. F. C A R R I L L O D E A L B O R N O Z -P . - A . L I E G E , La liberté religieuse, exigence spirituelle et problème politique, -Paris 1965, 31 (alguns d o s c o n t r i b u t o s aqui p u b l i c a d o s e n c o n t r a m - s e t a m b é m e m : Catolicismo e

liberdade. A consciência individual, critério inviolável, P e t r ó p o l i s 1 9 7 1 ) . C o m p r e e n d e - s e

assim t a m b é m o j u í z o d e A. H E N S E , s e g u n d o o qual as questões respeitantes à r e g u l a m e n t a ç ã o j u r í d i c a d o r e l a c i o n a m e n t o e n t r e o Estado e as Igrejas c o n s t i t u e m , " p e r a n t e o p a n o d e f u n d o d o seu d e s e n v o l v i m e n t o h i s t ó r i c o e face às t r a n s f o r -m a ç õ e s s o c i o l ó g i c o - r e l i g i o s a s e -m c u r s o , u -m â -m b i t o j u r í d i c o t e o r e t i c a -m e n t e -m u i t o i n t e r e s s a n t e " : Flexible Kontinuität. Neuere Veröffentlichungen zum deutschen

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confissões cristãs. D o lado não católico fazia-se da aprovação de u m documento que reconhecesse o direito à liberdade religiosa " u m a condição de todo o ecumenismo e u m critério da sinceridade de toda a intenção ecuménica"2. U m a tal iniciativa, na medida em que permitia a superação de muitos preconceitos e a eliminação de acusações mútuas (de resto, n e m sempre injustificadas!), era vista na altura c o m o algo que constituía mesmo "a pedra de t o q u e do diálogo e c u m é n i c o "3. " E c o m p l e t a m e n t e e v i d e n t e — escrevia pouco antes da aprovação do texto conciliar u m especialista no tema — que uma declaração clara e sem ambiguidades do Concílio do Vaticano sobre a liberdade religiosa será duma importância crucial para definir a posição da Igreja católica romana para c o m os não-católicos. T o d o o 'avanço' ecuménico da Igreja católica será totalmente desprovido de fruto e de significado real enquanto a Igreja não tiver declarado de maneira clara e oficial que tenciona respeitar a liberdade dos outros crentes, mesmo se tiver o poder ou a ocasião de agir de outro m o d o , e que ela condena a intolerância, a perseguição, a discriminação por motivos de crença religiosa"4. Compreende-se assim que o efeito imediato da aprovação do texto conciliar — u m passo de alcance epocal em termos de pensamento católico, pelo que significou de cesura relativamente à tradição magisterial anterior5, mas t a m b é m pelos horizontes que apontava e

2 P . - A . Liégé, La liberte religieuse, impératif de la mission, in J . C . M U R R A Y — E. S C H I L L E B E E C K X — A. F. C A R R I L L O D E A L B O R N O Z — P . - A . L I E G E , La liberté religieuse, 166 s.

3 P H . - I . A N D R É - V I N C E N T , La liberté religieuse, droit fondamental, P a n s 1976, 55.

4 A. F. C A R R I L L O D E A L B O R N O Z , La liberté religieuse et le deuxième

Concile du Vatican, in L u m i è r e et V i e 69 (1964) 51. O artigo a p a r e c e u o r i g i n a l

-m e n t e e -m T h e E c u -m e n i c a l R e v i e w 16 ( 1 9 6 3 - 6 4 ) 3 9 5 - 4 0 5 . São d e salientar, pela i m p o r t â n c i a e c u m é n i c a q u e t i v e r a m na altura da sua p u b l i c a ç ã o , os s e g u i n t e s e s t u d o s d e A. F. C A R R I L L O D E A L B O R N O Z : Le catholicisme et la liberté

religieuse, Paris 1961; Bases de la libertad religiosa, M é x i c o - B u e n o s Aires 1964; La libertad religiosa y cl Concilio Vaticano II, M a d r i d 1966.

5 C f . E . - W . B Ö C K E N F Ö R D E , Die Bedeutung der Konzilserklärung

über die Religionsfreiheit. Überlegungen 20 Jahre danach, in S t i m m e n d e r Z e i t 2 0 4

(1986) 303. Para se c o m p r e e n d e r t o d o o alcance e p o c a l da D e c l a r a ç ã o c o n c i l i a r cf. p a r t i c u l a r m e n t e : J . C . M U R R A Y , Le problème, 9 - 1 1 2 , e m e s p e c i a l 3 3 - 8 7 ; J . E. B O R G E S D E P I N H O , Kirche und politische Gemeinschaft in ökumenischer

Perspektive. Ein Vergleich zwischen Verlautbarungen der ökumenischen Bewegung und der römisch-katholischen Kirche (insbesondere von 1931 bis 1966),

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que iam muito para além da mentalidade então maioritariamente vigente n o campo católico6 — foi a criação de uma base indis-pensável para u m diálogo ecuménico leal e confiante, assente no r e c o n h e c i m e n t o sem reservas do direito à existência das c o m u -nidades de fé não católicas7. D o c o n j u n t o dos textos conciliares relevantes para esta questão — a Declaração sobre a liberdade religiosa, mas também o Decreto sobre o ecumenismo — podia-se concluir, sem margem para hesitações, que "a liberdade religiosa é e d e v e ser e m i n e n t e m e n t e e c u m é n i c a , e isto p o r duas razões principais: a primeira é que não pode haver ecumenismo verdadeiro sem liberdade religiosa; e a segunda é que esta liberdade deriva necessariamente do ecumenismo"8.

Importa assinalar que, para além do próprio acontecimento em si e c o m o elemento importante subjacente ao acolhimento que a Declaração conciliar mereceu n o m u n d o não católico, a aprovação da "Dignitatis H u m a n a e " significou a confirmação pelo magistério católico que, n ã o obstante possíveis diferenças de acentuação quanto a aspectos de fundamentação teológica9, se estava diante e se

M ü n s t e r 1976, 2 3 3 - 2 5 3 ; P H . - I . A N D R É - V I N C E N T , La liberte religieuse, 9 9 - 1 5 2 ; R . C L A U D E - G É R E S T , La liberte religieuse dans la conscience de 1' Église. Des

méfiances extrêmes d' hier à la franche acceptation de demain, in L u m i è r e et V i e 6 9

(1964) 5 - 3 5 ; H . M A D E L I N , La liberté religieuse selon Vatican II et la perspective de la

laicité, in La D o c u m e n t a t i o n C a t h o l i q u e 1 9 8 6 (1989) 5 8 9 - 5 9 2 . C f . ainda, e m b o r a

n u m a p e r s p e c t i v a mais a m p l a , J . C O M B Y , De l' intolérance à la convivialité religieuse.

Histoire d' une transformation, i n L u m i è r e et V i e 2 2 2 (1995) 5 - 1 7 .

6 Isso explicará q u e este d o c u m e n t o c o n c i l i a r n ã o t e n h a t i d o n o c a m p o c a t ó l i c o e, s o b r e t u d o , nas Igrejas d e alguns países, a r e c e p ç ã o q u e m e r e c i a (não t a n t o n o q u e se r e f e r e à a f i r m a ç ã o g e n é r i c a f u n d a m e n t a l d o d i r e i t o à l i b e r d a d e religiosa, mas s o b r e t u d o n o q u e respeita a todas as c o n s e q u ê n c i a s práticas q u e d e c o r r e m desse r e c o n h e c i m e n t o ) . Esta q u e s t ã o da l i b e r d a d e religiosa constituirá m e s m o a i n d a u m d o s a s p e c t o s da d o u t r i n a c o n c i l i a r m e n o s p r o f u n d a m e n t e assimilados na c o n s c i ê n c i a reflexa d e m u i t o s católicos.

7 E . - W . B Ö C K E N F Ö R D E , Die Bedeutung, 3 0 9 .

8 A . F. C A R R I L L O D E A L B O R N O Z , Vers une conception oecuménique de la

liberté religieuse, i n J . C . M U R R A Y — E . S C H I L L E B E E C K X — A . F.

C A R R I L L O D E A L B O R N O Z — P . - A . L I É G É , La liberté religieuse, 188.

' C f . a este p r o p ó s i t o J . A. H E B L Y , Religionsfreiheit und der Ökumenische Rat

der Kirchen, i n Ö k u m e n i s c h e R u n d s c h a u 3 2 ( 1 9 8 3 ) 4 9 ; H . Z E D D I E S , Religionsfreiheit als Anspruch und Herausforderung der Kirchen, i n Ö k u m e n i s c h e

R u n d s c h a u 3 5 (1986) 3 9 0 s.; P H . - I . A N D R É - V I N C E N T , La liberté religieuse, 2 0 5 ss.

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podia partir, desde agora, de uma concepção basicamente c o m u m entre as principais confissões cristãs acerca da liberdade religiosa. D e facto, as afirmações e preocupações fundamentais da Declaração conciliar coincidem c o m as que estão presentes na Declaração sobre a liberdade religiosa aprovada, em 1948, pelo Conselho E c u m é n i c o das Igrejas na sua p r i m e i r a A s s e m b l e i a G e r a l r e a l i z a d a e m Amsterdão, o que ressalta c o m toda a evidência n u m a comparação entre ambas10. A Declaração do C E I toma c o m o p o n t o de partida a afirmação da liberdade religiosa c o m o u m dos direitos humanos fundamentais. E m termos de evolução do pensamento ecuménico sobre esta matéria e na linha do que aconteceria mais tarde no texto conciliar (opção por u m conceito de liberdade religiosa c o m o direito social e civil à imunidade de coacção neste domínio), esta Declaração distingue-se precisamente pelo facto de ter acolhido uma concepção mais jurídico-formal de liberdade religiosa (face à tendência a n t e r i o r m e n t e d o m i n a n t e n o campo e c u m é n i c o , q u e privilegiava uma consideração sobretudo teológica do problema), tornando assim possível uma linguagem c o m u m para as Igrejas, a s o c i e d a d e e o E s t a d o1 1. N e s t a o r d e m de ideias o t e x t o de Amsterdão define a liberdade religiosa c o m o u m direito que, "sem consideração da raça, da cor, do sexo, da língua ou da religião e sem prejuízos através de determinações legais ou medidas admi-nistrativas", deve ser reconhecido a cada indivíduo na sociedade b e m c o m o aos grupos religiosos, u m direito por cuja observância e

garantia os poderes públicos t ê m especial responsabilidade12. Mais

10 C f . Eine Erklärung über die religiöse Freiheit, in W . A. V I S S E R ' T H O O F T (ed.), Die erste Vollversammlung des Ökumenischen Rates der Kirchen in Amsterdam vom

22. August bis 4. September 1948 (Die U n o r d n u n g d e r W e l t u n d G o t t e s H e i l s p l a n

V ) , G e n f 1 9 4 8 , 1 2 9 - 1 3 3 ; O . F . N O L D E , Religionsfreiheit und verwandte

Menchenrechte, in Die Kirche und die internationale Unordnung. Ökumenische Studien

(Die U n o r d n u n g d e r W e l t u n d G o t t e s H e i l s p l a n IV), G e n f 1 9 4 8 , 1 6 8 - 2 2 6 ; J . E . B O R G E S D E P I N H O , Kirche und politische Gemeinschaft, 7 5 - 8 1 ; A . F. C A R R I L L O D E A L B O R N O Z , Vers une conception oecuménique, 1 7 9 - 1 9 9 .

" C f . J . E. B O R G E S D E P I N H O , Kirche und politische Gemeinschaft, 7 6 - 8 1 , e m p a r t i c u l a r 7 7 . Q u a n t o aos d e s e n v o l v i m e n t o s v e r i f i c a d o s n a c o m p r e e n s ã o e c u m é n i c a da l i b e r d a d e religiosa, cf. H . Z E D D I E S , Religionsfreiheit, 3 8 5 - 3 9 0 . S o b r e a i m p o r t â n c i a d o C o n s e l h o E c u m é n i c o das Igrejas nesta m a t é r i a da l i b e r d a d e religiosa cf. P. L A N A R E S , La liberte religieuse dans les Conventions internationales et dans le droit public general, A m b i l l y - A n n e m a s s e 1964, 2 0 8 s.

12 Eine Erklärung Uber die religiöse Freiheit, in W . A . V I S S E R ' T H O O F T (ed.), Die erste Vollversammlung, 130.

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tarde, n u m a outra Declaração sobre o tema aprovada pela terceira Assembleia Geral do Conselho Ecuménico das Igrejas em 1961, em N o v a Delhi, assinala-se que os cristãos "consideram a liberdade de religião c o m o consequência da criação de Deus, da sua redenção da humanidade e m Cristo e da sua chamada aos homens para o seu serviço", acrescentando-se que, em razão da clara base cristã da liberdade religiosa, estamos diante de u m direito que deve ser tido " c o m o fundamental para todas as pessoas em todos os lugares"13. Neste contexto de pensamento a Declaração de N o v a Delhi c o n -clui: " O r e c o n h e c i m e n t o da dignidade inviolável e dos mesmos direitos irrenunciáveis de todos os membros da família humana exige que a norma geral aqui declarada encontre realização expressa em qualquer âmbito da sociedade"14.

Aliás, o facto de o Concílio ter aprovado u m d o c u m e n t o sobre a l i b e r d a d e religiosa cerca de 17 anos depois da D e c l a r a ç ã o dimanada da primeira Assembleia Geral do Conselho Ecuménico das Igrejas, em Amsterdão, e sobretudo a forma como no texto conciliar se apresentam as perspectivas essenciais sobre a questão colocam-nos diante de uma situação típica de recepção ecuménica, neste caso da Igreja católica romana relativamente ao pensamento já consolidado em termos ecuménicos sobre o assunto15. Este facto, n e m sempre devidamente reconhecido em todo o seu alcance, con-firma, antes de mais, a importância estrutural que cabe à mútua recepção n o caminho de aproximação entre as Igrejas. E sobretudo faz ressaltar como, t a m b é m para os católicos, a inserção no movi-m e n t o ecumovi-ménico movi-mais amovi-mplo representa umovi-ma ocasião de indis-pensável aprendizagem, tornando realmente possíveis caminhos de progressão na sua consciência actual da fé e na percepção mais plena da Verdade.

Q u e c o m o Concílio Vaticano II se tenha chegado a uma concepção ecuménica basicamente c o m u m do direito à liberdade religiosa (e assim à concomitante superação, a nível dos princípios pelo menos, de u m problema pendente no relacionamento entre as Igrejas) explicará, c o m o razão principal, que o tema da liberdade

13 Stellungnahme zur Religionsfreiheit, in W . A. V I S S E R ' T H O O F T (ed.), Neu-Delhi 1961. Dokumentarbericht über die dritte Vollversammlung des Ökumenischen Rates der Kirchen, S t u t t g a r t 2 / 1 9 6 2 , n°s 2 e 3, 179.

14 IB., n ° 6, 180.

15 C f . J . E. B O R G E S D E P I N H O , A recepção como realidade eclesial e tarefa

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religiosa não tenha merecido uma atenção específica desenvolvida entre os temas de debate e c u m é n i c o nos últimos trinta anos16. Continuaram a acontecer, é certo, tomadas de posição pontuais sobre a liberdade religiosa, n o m e a d a m e n t e a nível do Conselho E c u m é n i c o das Igrejas e s o b r e t u d o e m relação c o m situações concretas problemáticas, mas o tema p r a t i c a m e n t e desapareceu como objecto de controvérsia ecuménica no campo dos princípios, deixando mesmo de merecer grande atenção e m termos de reflexão teórica. Factores vários pesaram indubitavelmente t a m b é m no facto de ter ocorrido, no âmbito do Conselho E c u m é n i c o das Igrejas, u m certo silenciamento progressivo do assunto17. Mas, n u m a perspectiva ecuménica mais ampla, o e l e m e n t o decisivo foi o facto que o consenso básico atingido a partir do Concílio se mostrou, apesar de toda a complexidade das múltiplas situações concretas, uma base de relacionamento e de reflexão s u f i c i e n t e m e n t e consistente. U m consenso que — como é b e m sabido — não se resumia à afirmação do direito à liberdade religiosa e seu entendimento fundamental, mas assentava igualmente na maneira diferente — em comparação

Isso p o d e c o n f i r m a r - s e n u m a rápida c o n s u l t a a revistas da especialidade, m o r m e n t e n o s ú l t i m o s 1 0 - 1 5 a n o s . V e r i f i c a - s e , assim e p o r e x e m p l o , q u e as revistas Una Sancta, Ökumenische Rundschau, Studi Ecumenici, Catholica, r a r a m e n t e se d e b r u ç a r a m s o b r e o t e m a . A revista Concilium d e d i c o u p o u c o d e p o i s d o V a t i c a n o II u m n ú m e r o m o n o g r á f i c o (n° 18) à q u e s t ã o da l i b e r d a d e religiosa, mas nos anos posteriores n ã o v o l t o u e x p r e s s a m e n t e ao assunto. O m e s m o d a d o ressalta se c o n s u l t a r m o s a Stimmen der Zeit o u ainda — e o f a c t o é d e assinalar p o r q u e se trata p r e c i s a m e n t e d e u m p e r i ó d i c o c o m u m c a r á c t e r e s p e c í f i c o d e síntese d e artigos publicados e m várias línguas e c o n s i d e r a d o s mais significativos — a revista

Sellecciones de Teologia. D e resto, é i n t e r e s s a n t e t a m b é m verificar q u e , n o s b a l a n ç o s

feitos mais r e c e n t e m e n t e acerca d o C o n c í l i o V a t i c a n o II p o r p a r t e d e a u t o r e s n ã o católicos, a a p r o v a ç ã o da D e c l a r a ç ã o c o n c i l i a r s o b r e a l i b e r d a d e religiosa n ã o é e s p e c i a l m e n t e p o s t a e m r e l e v o e n t r e os e l e m e n t o s d e p a r t i c u l a r s i g n i f i c a d o e c u m é n i c o . O q u e se explicará talvez e x a c t a m e n t e p o r q u e a q u e s t ã o da l i b e r d a d e religiosa se t o r n o u já n u m p r e s s u p o s t o e c u m é n i c o ó b v i o . C f . , a t í t u l o d e m e r o e x e m p l o , P. R I C C A , A vent' anni dei Concilio, in S t u d i E c u m e n i c i 4 (1986) 3 5 7 -375; G. L A R E N Z T A K I S , Das Vatikanum II nach 25 Jahren aus dem Blickwinkel eines

orthodoxen Theologen, in C a t h o l i c a 45 (1991) 2 1 4 - 2 3 5 .

17 E n t r e esses f a c t o r e s p o d e m m e n c i o n a r - s e os s e g u i n t e s : o r e c e i o d e d e f e n d e r posições q u e p o d e r i a m p a r e c e r r e i v i n d i c a ç ã o d e privilégios p o r p a r t e das Igrejas; a i n f l u ê n c i a das tensões políticas registadas n o p e r í o d o da g u e r r a fria; o r e c e i o d e u m a p r o v e i t a m e n t o a b u s i v o para fins p o l í t i c o s d e algumas t o m a d a s d e posição d o C o n s e l h o ; a i n f l u ê n c i a c r e s c e n t e n o C E I das Igrejas d o Leste e u r o p e u e as i n i b i ç õ e s q u e a sua s i t u a ç ã o c a u s a v a . C f . a e s t e r e s p e i t o J . A . H E B L Y ,

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c o m o p e r í o d o pré-conciliar — c o m o a Igreja católica perspecti-vava doravante as suas relações c o m o Estado, superando definiti-v a m e n t e a tese d o Estado católico c o m o ideal18, e se c o m p r e e n d i a a

si m e s m a e m relação c o m as outras Igrejas e C o m u n i d a d e s eclesiais.

1.2. Novos pressupostos no relacionamento da Igreja católica romana c o m as outras confissões cristãs

Nesta nova autocompreensão da Igreja católica e em estreita c o n e x ã o c o m a liberdade religiosa — u m a conexão porventura não imediatamente perceptível, mas realmente existente e m termos de pressupostos eclesiológicos e de visão global do r e l a c i o n a m e n t o inter-eclesial — é aspecto fulcral o facto de o C o n c í l i o Vaticano II ter superado a concepção tradicional q u e identificava pura e simples-m e n t e "Igreja de Jesus Cristo" e "Igreja católica r o simples-m a n a " , passando a admitir expressamente a realidade eclesial e o papel salvífico de Igrejas e C o m u n i d a d e s eclesiais existentes fora das fronteiras visíveis da Igreja de R o m a . Neste p o n t o é de importância fundamental o n° 8 da L ú m e n G e n t i u m , que contém, sem dúvida, u m a das afirmações eclesiológicas conciliares mais inovadoras e mais cheias de conse-quências. Depois de falar da única Igreja de Cristo que n o C r e d o confessamos ser u n a , santa, católica e apostólica, confiada p e l o S e n h o r R e s s u s c i t a d o a P e d r o e aos demais apóstolos, o t e x t o conciliar prossegue: "Esta Igreja, constituída e organizada neste m u n d o c o m o sociedade, é na Igreja católica q u e se encontra (subsistit

in Ecclesia catholica), governada pelo sucessor de P e d r o e pelos bispos

e m união c o m ele, embora, fora da sua estrutura, se e n c o n t r e m muitos elementos de santificação e de verdade, que, p o r serem dons pertencentes à Igreja de Cristo, i m p e l e m para a unidade católica".

Aspecto primordial a reter é o facto de o t e x t o final aprovado pelos Padres conciliares apresentar a f o r m a verbal subsistit o n d e i n i c i a l m e n t e estava a f o r m a v e r b a l est. C o m o é s o b e j a m e n t e c o n h e c i d o , na revisão do esquema sobre a Igreja, realizada entre a sessão de 1963 e a de 1964, foi decidido substituir-se a palavra " e s t " p o r "subsistit", e isto para q u e a expressão pudesse estar mais de a c o r d o c o m a afirmação dos elementos eclesiais existentes fora d o espaço visível da Igreja católica r o m a n a . P o s i t i v a m e n t e p r e -t e n d e - s e assim dizer q u e a Igreja de C r i s -t o subsis-te na Igreja

18 C f . J . C . M U R R A Y , Le problème, 6 1 - 6 4 e 9 5 - 1 0 6 ; J. E. B O R G E S D E P I N H O , Kirche und politísche Gemeinschaft, 2 3 3 - 2 4 4 .

(9)

LIBERDADE RELIGIOSA E ECUMENISMO 8 5

católica c o m aquela i n t e g r i d a d e de todas as suas p r o p r i e d a d e s inalienáveis, c o m aqueles dons e meios de salvação essenciais c o m q u e Cristo integralmente a d o t o u . C o m o refere o D e c r e t o sobre o e c u m e n i s m o , "só pela Igreja católica de Cristo, q u e é o m e i o geral de salvação, p o d e ser atingida toda a p l e n i t u d e dos meios

salu-tares"19. Mas — observa j u s t a m e n t e F. A. Sullivan — trata-se aqui,

n a t u r a l m e n t e , da " i n t e g r i d a d e e s t r u t u r a l o u i n s t i t u c i o n a l " , da "plenitude de meios de salvação", isto é, fala-se da Igreja " c o m o

sacramentum, n ã o c o m o res sacramenti". N ã o se exclui, p o r isso

m e s m o , " q u e u m a c o m u n i d a d e não católica, na qual talvez haja graves deficiências na o r d e m do sacramento, possa realizar a res, o u seja, a c o m u n h ã o de vida de Cristo na fé, na esperança e n o a m o r , c o m maior perfeição q u e muitas c o m u n i d a d e s católicas. O s meios da graça d e v e m ser b e m usados a f i m de q u e consigam p l e n a m e n t e o seu efeito, e a posse da p l e n i t u d e dos meios não dá a garantia de c o m o serão utilizados"2 0. P o r o u t r o lado, mas d e n t r o da m e s m a

intencionalidade f u n d a m e n t a l , o D e c r e t o "Unitatis R e d i n t e g r a t i o " não atribui u m valor salvífico apenas aos sacramentos q u e p o d e m encontrar-se nas c o m u n i d a d e s não católicas, mas t a m b é m a estas Igrejas e C o m u n i d a d e s eclesiais c o m o tais, pois o Espírito Santo

serve-se dessas c o m u n i d a d e s c o m o meios de salvação21. E m síntese,

ao adoptar a fórmula "subsistit in", o C o n c í l i o Vaticano II "quer

dizer que só na Igreja católica a Igreja de Cristo contínua existindo com aquelas propriedades e aqueles elementos estruturais que não pode perder, enquanto que, ao mesmo tempo, o Concílio reconheceu que fora da Igreja católica não há simplesmente 'elementos eclesiais' mas 'Igrejas particulares', nas quais se constrói a Igreja de Deus graças à celebração da eucaristia, e

19 U R 3.

20 F. A. S U L L I V A N , El significado y la importancia dei Vaticano II de decir, a

propósito de la Iglesia de Cristo, no "que ella es", sino que ella "subsiste en" la Iglesia católica romana, in R . L A T O U R E L L E (ed.), Vaticano II: balance y perspectivas.

Veinticinco anos después, Salamanca 1 9 8 7 , 6 1 2 .

21 " T a m b é m n ã o p o u c a s acções sagradas da religião cristã são celebradas e n t r e os nossos i r m ã o s separados. P o r vários m o d o s , c o n f o r m e a c o n d i ç ã o d e cada Igreja o u c o m u n i d a d e , estas acções p o d e m r e a l m e n t e p r o d u z i r a vida da graça. D e v e m m e s m o ser tidas c o m o aptas para abrir a p o r t a à c o m u n h ã o da salvação". E o t e x t o conciliar prossegue: " P o r isso, as Igrejas e c o m u n i d a d e s separadas, e m b o r a c r e i a m o s q u e t e n h a m defeitos, d e f o r m a a l g u m a estão despojadas d e s e n t i d o e d e significação n o m i s t é r i o da salvação. P o i s o E s p í r i t o d e C r i s t o n ã o recusa servir-se delas c o m o de m e i o s d e salvação c u j a v i r t u d e deriva da p r ó p r i a p l e n i t u d e d e graça e v e r d a d e c o n f i a d a à Igreja c a t ó l i c a " : U R 3.

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86 DIDASKALIA

há também comunidades eclesiais que são análogas às Igrejas particulares, enquanto que a única Igreja de Cristo está de algum modo presente e operante nelas para a salvação dos seus membros"22.

A i m p o r t â n c i a d e c i s i v a destas p e r s p e c t i v a s c o n c i l i a r e s é confirmada pela recepção q u e delas é feita na Encíclica " U t U n u m Sint". L o g o a seguir a u m a citação do D e c r e t o sobre o e c u m e -nismo, c o m a sua referência aos múltiplos bens presentes nas outras Igrejas e C o m u n i d a d e s eclesiais e às acções sagradas q u e nelas são celebradas e q u e p o d e m m e s m o p r o d u z i r a vida da graça, a " U t U n u m Sint" sublinha: " T r a t a - s e de textos ecuménicos da maior i m p o r t â n c i a . Para além dos limites da c o m u n i d a d e católica, não existe o vazio eclesial. M u i t o s elementos de alto valor (eximia), que estão i n t e g r a d o s na Igreja católica, na p l e n i t u d e dos meios de salvação e dos dons de graça q u e a edificam, acham-se t a m b é m nas o u t r a s C o m u n i d a d e s cristãs"2 3. U m a a f i r m a ç ã o q u e , l o g o n o

n ú m e r o seguinte, nos aparece ainda mais explícita n o seu sentido e nas suas consequências: " O s e l e m e n t o s desta Igreja, já presente, existem, i n c o r p o r a d o s na sua plenitude, na Igreja católica e, sem tal plenitude, nas outras C o m u n i d a d e s , o n d e certos aspectos do

mis-tério cristão t ê m sido, p o r vezes, mais eficazmente manifestados"2 4.

Assim, ao m e s m o t e m p o q u e se e x p r i m e a convicção da presença

na Igreja católica da p l e n i t u d e dos meios de salvação25, reafirma-se

t a m b é m a consciência católica " d e ter recebido m u i t o do teste-m u n h o , da p r o c u r a e teste-m e s teste-m o até da teste-m a n e i r a c o teste-m o f o r a teste-m sublinhados e vividos pelas outras Igrejas e C o m u n i d a d e s eclesiais certos bens cristãos comuns"2 6.

N ã o obstante a recepção e a c o n f i r m a ç ã o feitas pelo magistério pontifício dos indicativos deixados pelo C o n c í l i o neste p o n t o , há

22 F. A . Sullivan, El significado, 6 0 7 . C f . ainda p a r t i c u l a r m e n t e 6 1 3 - 6 1 6 . 23 U U S 13, q u e cita U R 3 (Apelo à unidade dos cristãos. Carta Encíclica Ut

Unum Sint do Santo Padre João Paulo II sobre o empenho ecuménico, Lisboa 1995).

24 U U S , 1 4 . N o u t r a p a s s a g e m r e t o m a s e a m e s m a ideia básica para f u n d a -m e n t a r , a partir deste r e c o n h e c i -m e n t o d o s e l e -m e n t o s salvíficos q u e se e n c o n t r a -m nas outras Igrejas e C o m u n i d a d e s eclesiais, a p r ó p r i a tarefa e c u m é n i c a : " C o m o b e n s da Igreja d e C r i s t o , p o r sua n a t u r e z a i m p e l e m para a restauração da u n i d a d e . D a í resulta q u e a p r o c u r a da u n i d a d e d o s cristãos n ã o é u m a c t o facultativo ou o p o r t u n i s t a , m a s u m a e x i g ê n c i a q u e d i m a n a d o p r ó p r i o ser da c o m u n i d a d e cristã" (n° 49).

25 C f . U U S 8 6 .

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LIBERDADE RELIGIOSA E ECUMENISMO 87

que reconhecer que esta nova consciência eclesiológica na maneira de situar a Igreja católica entre as outras confissões cristãs t e m encontrado e continua a experimentar dificuldades tanto em termos de afirmação teológica como de consequências práticas. A história da interpretação destas afirmações conciliares não é t o t a l m e n t e pacífica, ela t e m sido mesmo acompanhada de alguns recuos e receios, e o processo de reflexão eclesial posto em marcha pelo Concílio neste p o n t o está ainda l o n g e de ter atingido aquela maturidade teológico-dogmática que a nuclearidade eclesiológica da questão m e r e c e e a urgência da tarefa e c u m é n i c a exige2 7. D e qualquer forma — e isso é reconhecido também por autores não católicos — foi colocado aqui " u m n o v o f u n d a m e n t o ecuménico"2 8 e estamos diante de u m processo de revisão eclesiológica irrever-sível. A Igreja católica p ó s - c o n c i l i a r sabe q u e a f u n ç ã o de representação eclesial de Cristo por parte das Igrejas cristãs não está isenta de descontinuidades, que nas circunstâncias actuais de ruptura da unidade a sua existência real é necessariamente u m a existência em configuração fragmentária, q u e ela própria não p o d e mais assumir uma atitude de auto-suficiência eclesiológica exclusivista, que a sua pretensão de catolicidade não pode ser pensada e vivida à margem do contributo e dos valores existenciais das outras Igrejas e Comunidades eclesiais29.

Por esta via da reflexão sobre a identidade da Igreja católica no seu relacionamento c o m as outras confissões cristãs, o Concílio colocou, pois, u m dos fundamentos essenciais para que o r e c o n h e cimento do direito à liberdade religiosa encontrasse u m e n q u a d r a m e n t o eclesiológico mais adequado e pressupostos de m e n -talidade mais abrangentes, n o m e a d a m e n t e n o q u e se refere à aceitação das consequências que resultam para a Igreja do facto de ela se situar d e n t r o d u m Estado d e m o c r á t i c o n u m a sociedade pluralista. U m a transformação que se percebe melhor se se tiver

27 C f . , a l é m d o t e x t o j á c i t a d o d e F. A . S U L L I V A N , p a r t i c u l a r m e n t e os seguintes c o n t r i b u t o s : G . P A T T A R O , "Ecclesia subsistit in Ecclesia catholica", i n Studi E c u m e n i c i 4 (1986) 2 7 - 5 8 ; J. W I L L E B R A N D S , La signification de "subsistit

in" dans V ecclésiologie de communion, in La D o c u m e n t a t i o n C a t h o l i q u e 1 9 5 3 (1988)

3 5 - 4 1 ; A. H O U T E P E N , La realtà salvifica di una communione imperfetta. II "subsistit

in" in LG 8 e UR 3, i n Studi E c u m e n i c i 11 (1993) 1 5 7 - 1 7 5 .

28 G . L A R E N T Z A K I S , Das Vatikanum, 2 3 5 .

2<) C f . H . W A G N E R , Einheit der katholischen Kirche in "fragmentarischer

Gestalt"?, i n Ö k u m e n i s c h e R u n d s c h a u 2 5 ( 1 9 7 6 ) 3 7 1 - 3 8 1 . C f . a i n d a C H .

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88 DIDASKALIA

p r e s e n t e c o m o , na visão p r é - c o n c i l i a r , se partia da d o u t r i n a tradicional do primado da verdade relativamente à liberdade e da tese de que só a verdade tem direitos, isto é, só a Igreja Católica os

possui enquanto única verdadeira Igreja de Cristo30. Ao reconhecer

que fora da Igreja católica não existe o vazio eclesial — para utilizar a expressão, já citada, de João Paulo II na " U t U n u m Sint" — a Igreja católica desiste da sua pretensão de ter a posse exclusiva da verdade em todos os seus aspectos e de ser a única mediação do acontecimento cristão, ela mostra-se assim disponível para aceitar o facto do pluralismo confessional cristão e para perspectivar u m m o d o diferente de se situar numa sociedade onde coexistem outras confissões cristãs e até outras religiões. A Igreja católica romana não é mais a "societas p e r f e c t a " q u e exclusivamente dialoga e se c o n f r o n t a c o m o Estado n u m a dada sociedade, mas é sempre t a m b é m u m a c o m u n i d a d e de pessoas e n t r e o u t r o s g r u p o s e comunidades que convivem numa mesma sociedade, que actuam c o n j u n t a m e n t e no mesmo espaço social-público. A aceitação desta realidade não era fácil em muitas sociedades de maioria católica no t e m p o do Concílio, e para muitos continua a ser difícil assumir e x i s t e n c i a l m e n t e todas as c i r c u n s t â n c i a s e c o n s e q u ê n c i a s d o pluralismo que o reconhecimento do direito à liberdade religiosa pressupõe31.

1.3. Ecumenismo e condições de realização prática da liberdade religiosa

O p e r c u r s o d o m o v i m e n t o e c u m é n i c o n o p ó s - C o n c í l i o permitiu desenvolver e amadurecer elementos vários — em termos de convicções, de valores, de c o m p o r t a m e n t o s práticos — que caracterizam as actuais relações interconfessionais e que, não e n v o l v e n d o e m b o r a e m linha directa e imediata a questão da l i b e r d a d e religiosa, c o n s t i t u e m , n o e n t a n t o , u m clima e u m c o n j u n t o de pressupostos essenciais em o r d e m a uma concretização efectiva desse direito fundamental. Enquanto elementos fulcrais no relacionamento m ú t u o entre as diversas confissões cristãs e como

30 C f . W . S E I B E L , Von der Toleranz zur Religionsfeiheit, in S t i m m e n d e r Z e i t 2 1 3 (1995) 73. C f . t a m b é m J . E. B O R G E S D E P I N H O , Kirche und politische

Gemeinschaft, 2 4 3 s.

31 C f . J . E . B O R G E S D E P I N H O , Kirche und politische Gemeinschaft, 2 1 9 -- 2 2 2 , esp. 2 2 1 s. C f . ainda 3 5 5 .

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LIBERDADE RELIGIOSA E ECUMENISMO 89 impulsos de avanço nessas relações eles r e p r e s e n t a m — e aqui s u b l i n h o apenas q u a t r o g r a n d e s aspectos — d i m e n s õ e s d e t e r -minantes t a m b é m para a questão prática da liberdade religiosa, e m particular p o r q u e r e v e l a m u m a n o v a a t i t u d e , d e n t r o da qual é possível reconhecer m e l h o r , mais p l e n a m e n t e , aquele direito.

U m primeiro e l e m e n t o — algo genérico embora, mas r i g o r o -samente basilar — é a convicção de q u e o m o v i m e n t o e c u m é n i c o actual é fruto da acção do Espírito, constituindo-se assim não só e m acontecimento epocal — e, de certa forma, i n d e p e n d e n t e m e n t e j á de toda a e v o l u ç ã o q u e se v i e r a v e r i f i c a r — na história d o cristianismo neste final do s e g u n d o milénio, mas t a m b é m e m dado irreversível de u m a c o n s c i ê n c i a cristã q u e p r o c u r a ser o mais possível fiel ao Evangelho. A afirmação conciliar dessa presença e

acção do Espírito3 2 é retomada de f o r m a constante e p r e m e n t e na

" U t U n u m Sint", p o d e n d o m e s m o dizer-se q u e a referência ao Espírito e sua acção transcendente na Igreja e n o m u n d o é a ideia-chave que impregna a encíclica (em mais de u m terço dos n ú m e r o s

do d o c u m e n t o f a z e m - s e referências ao Espírito Santo!)3 3. U m a

transcendência da acção do Espírito que os católicos descobrem na

vida dos m e m b r o s das outras Igrejas e C o m u n i d a d e s eclesiais34.

U m a transcendência do p o d e r do Espírito q u e se revela de m o d o p a r t i c u l a r c o m o c a p a c i d a d e de v e n c e r b a r r e i r a s criadas p e l o s homens, o que se manifesta de f o r m a expressiva e concreta — e esta é uma pertinente intuição do magistério pontifício mais r e c e n t e — na presença universal dos mártires e dos santos nas diversas Igrejas e C o m u n i d a d e s eclesiais: " V i s t o q u e , na sua i n f i n i t a misericórdia, D e u s p o d e tirar o b e m até m e s m o das situações q u e o f e n d e m o seu desígnio, p o d e m o s então descobrir que o Espírito fez c o m que as oposições servissem, e m algumas circunstâncias, para explicitar aspectos da vocação cristã, c o m o sucede na vida dos

santos"3 5. E nos frutos desta acção do Espírito q u e os cristãos

conseguem captar o m u i t o de c o m u m q u e já os une, e isso c o m o convicção e impulso basilares de t o d o o m o v i m e n t o e c u m é n i c o . E esta consciência da presença viva e actuante do Espírito Santo nas o u t r a s I g r e j a s é t a m b é m a b a s e m a i s c o n s i s t e n t e p a r a o

32 Nesse s e n t i d o a p o n t a t o d o o D e c r e t o s o b r e o e c u m e n i s m o , l o g o a p a r t i r d o seu n° 1.

11 Cf. a este p r o p ó s i t o J. M . T I L L A R D , Du décret conciliaire sur l' oecuménisme

à l' Encyclique Ut unum sint, in La D o c u m e n t a t i o n C a t h o l i q u e 2 1 2 4 (1995) 9 0 1 .

34 C f . U U S 48.

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90 D I D A S K A L I A

d e s e n v o l v i m e n t o de u m a teologia das "Igrejas irmãs"3 6 e do p r ó p r i o

m o d e l o de u n i d a d e a que, nesta m e s m a linha de p e n s a m e n t o e de acção, se p r e t e n d e dar concreta configuração histórica. A esta luz, n o r e c o n h e c i m e n t o do direito à liberdade religiosa não está sim-plesmente e m j o g o a tolerância de u m a realidade t o t a l m e n t e nega-tiva, mas u m a consciência renovada de t u d o q u a n t o positivamente já u n e os cristãos e, s o b r e t u d o , o respeito p r o f u n d o p o r opções existenciais das quais n ã o está ausente a presença e acção do Espírito.

Nesta consciência e c o m o f r u t o e x t e r i o r m e n t e mais visível do e c u m e n i s m o nas últimas décadas aparece o desenvolvimento do diálogo

a todos os niveis, e e m particular o diálogo teológico entre as grandes

famílias confessionais. A visão pós-conciliar do e c u m e n i s m o é a de u m amplo e p e r m a n e n t e diálogo, u m diálogo q u e abrange todas as dimensões do viver eclesial, u m diálogo q u e assenta na capacidade de escutar o q u e cada u m a das Igrejas t e m a dizer às outras na busca de u m a maior fidelidade ao Evangelho, u m diálogo que é a a t i t u d e essencial d o p r ó p r i o e c u m e n i s m o : " E preciso passar — exorta a " U t U n u m Sint" — de u m a posição de antagonismo e de conflito para u m nível o n d e u m e o u t r o se r e c o n h e ç a m recipro-c a m e n t e recipro-c o m o parrecipro-ceiro. Q u a n d o se recipro-c o m e ç a a dialogar, recipro-cada uma das

partes deve pressupor uma vontade de reconciliação no seu interlocutor, de unidade na verdade"37. E c o m u m a insistência q u e não p o d e deixar de ser sublinhada, a m e s m a encíclica, depois de lembrar que o diálogo se t o r n o u "uma expressa necessidade, uma das prioridades da

Igreja"38, destaca a i m p o r t â n c i a vital q u e cabe ao diálogo e c u m é n i c o

e m o r d e m a u m c o n h e c i m e n t o mais verdadeiro e a u m a apreciação m a i s j u s t a e m a i s c o m p l e t a da d o u t r i n a e da v i d a de cada

C o m u n h ã o3 9. E, de facto, n ã o p o d e m deixar de assinalar-se neste

c o n t e x t o os imensos progressos, v e r d a d e i r a m e n t e impensáveis há umas décadas atrás, q u e f o r a m c o n s e g u i d o s n o p ó s - c o n c í l i o n o âmbito do diálogo teológico, p e r m i t i n d o q u e se tivesse passado de u m a amálgama, mais o u m e n o s i n d e f e r e n c i a d a , de questões de controvérsia a u m c o n j u n t o de problemas nucleares, de certa forma relacionados entre si c o m o focos principais da divisão doutrinal que persiste. N u m a passagem q u e vale a pena destacar pelo que significa

36 C f . U U S 5 5 — 5 8 .

37 U U S 2 9 .

3 8 U U S 3 1 .

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L I B E R D A D E R E L I G I O S A E E C U M E N I S M O 91 de síntese magisterial acerca dos principais p r o b l e m a s de divisão confessional, a " U t U n u m Sint" aponta cinco grandes temas q u e se torna necessário ainda a p r o f u n d a r para se alcançar u m verdadeiro consenso de fé: 1) as relações e n t r e Escritura e T r a d i ç ã o ; 2) a E u c a r i s t i a e m t o d a s as suas d i m e n s õ e s ; 3) a O r d e m c o m o sacramento e o ministério tripartido; 4) o Magistério da Igreja e sua

autoridade; 5) a V i r g e m Maria, M ã e de D e u s e í c o n e da Igreja40.

N e s t a b u s c a de u m c o n s e n s o f u n d a m e n t a l na f é , o d i á l o g o e c u m é n i c o aparece, então, c o m o indispensável e x a m e de c o n s

-ciência pessoal e eclesial41, c o m o interpelação a descobrir o c e n t r o

da fé (hierarquia das verdades), c o m o necessidade de discernir entre o que é essencial e o q u e é secundário e m termos de vivência e de expressão da fé, c o m o desafio a reler o p a t r i m ó n i o cristão à luz do nuclear do Evangelho, c o m o busca incondicional e p e r m a n e n t e da V e r d a d e . O r e s p e i t o p r á t i c o da l i b e r d a d e religiosa n ã o p o d e acontecer sem esta capacidade constante de diálogo e m busca da verdade mais plena e c o m o r e c o n h e c i m e n t o da nuclearidade q u e essa atitude de espírito t e m de e n c o n t r a r na consciência de cada crente.

Nesta o r d e m de ideias é preciso sublinhar o q u e significa o

dinamismo de busca de verdade presente tanto n o esforço e c u m é n i c o

c o m o no respeito pela liberdade religiosa. N a sua mais p r o f u n d a intencionalidade, o e c u m e n i s m o é a c o l h i m e n t o das riquezas do outro e a disponibilidade para a correcção dos próprios limites a partir da percepção dos valores do o u t r o , e isto c o m o dimensão essencial d o c a m i n h a r e c u m é n i c o e n q u a n t o b u s c a e x i g e n t e e constante da verdade. Este p o n t o da consciência católica é t a m b é m claramente r e t o m a d o na " U t U n u m Sint": " O a m o r à verdade é a d i m e n s ã o mais p r o f u n d a de u m a a u t ê n t i c a p r o c u r a da p l e n a c o m u n h ã o e n t r e os cristãos. S e m esse a m o r , seria i m p o s s í v e l enfrentar as reais dificuldades teológicas, culturais, psicológicas e sociais q u e se e n c o n t r a m ao e x a m i n a r as d i v e r g ê n c i a s . A esta d i m e n s ã o i n t e r i o r e pessoal está i n s e p a r a v e l m e n t e associado o espírito de caridade e de humildade: caridade para c o m o i n t e r l o -c u t o r , h u m i l d a d e para -c o m a v e r d a d e q u e se d e s -c o b r e e q u e

poderia exigir revisão de afirmações e de atitudes"4 2. A m e s m a ideia

f u n d a m e n t a l é s u b l i n h a d a p e l a e n c í c l i c a n u m o u t r o l u g a r ,

40 Cf. U U S 79.

41 Cf. U U S 34.

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92 DIDASKALIA

ressaltando-se a "graça de v e r d a d e " que o e c u m e n i s m o representa: " U m a das vantagens d o e c u m e n i s m o é que, p o r seu intermédio, as C o m u n i d a d e s cristãs são ajudadas a descobrir a insondável riqueza da verdade. T a m b é m neste contexto, t u d o aquilo q u e o Espírito o p e r a n o s ' o u t r o s ' p o d e c o n t r i b u i r para a e d i f i c a ç ã o de cada c o m u n i d a d e , e, de certo m o d o , para a instruir acerca do mistério

de Cristo. O e c u m e n i s m o autêntico é u m a graça de verdade"4 3.

Mas esta relação í n t i m a do e c u m e n i s m o c o m a verdade — e a " U t

U n u m Sint" l e m b r a - o expressamente4 4 — t e m p o r pressuposto o

r e c o n h e c i m e n t o de q u e a busca da verdade deve ser feita de acordo c o m as exigências da d i g n i d a d e da pessoa h u m a n a e na plena consciência de que, e m última análise, a verdade só se i m p õ e pela sua própria força. R e t o m a - s e assim a convicção conciliar de q u e o r e c o n h e c i m e n t o do direito à liberdade religiosa e seus presupostos é c o n d i ç ã o f u n d a m e n t a l para q u e o h o m e m possa ter acesso à verdade de a c o r d o c o m a sua inviolável dignidade. " N ã o contra a verdade, mas sim p o r causa da verdade, para q u e o i n d i v í d u o a possa captar e m liberdade e aderir a ela e m c o n f o r m i d a d e c o m a sua convicção, existe liberdade religiosa c o m o direito"4 5. O r e c o n h e c i m e n t o da

l i b e r d a d e n o p l a n o j u r í d i c o ( i m u n i d a d e de coacção e m matéria religiosa) n ã o elimina a p e r g u n t a pela verdade, antes esta pergunta p e r m a n e c e c o m o h o r i z o n t e e orientação da liberdade subjectiva, mas, d e f a c t o , ela só p o d e ser h u m a n a m e n t e r e s p o n d i d a e m liberdade pessoal inalienável.

F i n a l m e n t e , salientase c o m o pressuposto e c u m é n i c o i m p o r -tante, f o m e n t a d o r de respeito pela liberdade religiosa, a consciência crescente de q u e a u n i d a d e a construir entre as Igrejas não p o d e deixar de ser u m a unidade na diversidade. Trata-se aqui de acolher o dado e l e m e n t a r — n ã o c o m p r e e n d i d o p o r u m a qualquer m e n t a -lidade uniformista ou monolitista — q u e a diversidade enriquece a Igreja na sua realidade vivencial e na sua capacidade de c u m p r i r a

43 U U S 3 8 . C f . a i n d a no s 79; 3 9 e 60. 44 C f . U U S 3 e 3 2

45 E . - W . B Ó C K E N F Õ R D E , Die Bedeutung, 3 0 9 . S o b r e a relação e n t r e l i b e r d a d e religiosa e a o b r i g a ç ã o d e a d e r i r à v e r d a d e , cf. ainda: P. A. L I E G É , La

liberte religieuse, 168; A . F. C A R R I L L O D E A L B O R N O Z , Vers une conception oecuménique, 195 s.; P H . - I . A N D R É - V I N C E N T , La liberté religieuse, esp. 5 1 - 5 4 e

(17)

L I B E R D A D E R E L I G I O S A E E C U M E N I S M O 93

sua missão46 ou, dito de outro m o d o , que a complementaridade vivida através do i n t e r c â m b i o de dons e n t r e as Igrejas " t o r n a fecunda a comunhão"4 7. A percepção de que a unidade a realizar é uma "unidade na legítima diversidade"4 8 permite compreender que a busca de c o m u n h ã o entre as Igrejas não se enquadra em exigên-cias maximalistas de u m c o n s e n s o total na l i n g u a g e m e nas expressões da fé4'\ mas assenta nos critérios e nas exigências daquela unidade visível que, n u m processo de diálogo e de descoberta recíproca, deve ser considerada simultaneamente "necesssária e

sufi-ciente"50. O verdadeiro espírito ecuménico está consciente de que

tradições diferentes, precisamente ou sobretudo na medida em que representam experiências e intuições diversas do mistério cristão, devem ser englobadas, dentro de u m a tensão dialéctica de comple-mentaridade, na Igreja una a construir c o m o e q u a n d o a graça de Deus e a disponibilidade dos homens a tornar possível. A liberdade religiosa só pode ser verdadeiramente respeitada em ligação estreita com esta consciência cultural ecuménica de uma Igreja una c o m o diversidade reconciliada, capaz não só de tolerar diferenças legítimas mas também de captar os valores de realização existencial humana e cristã contidos nessas diferenças.

2. Tarefas e perspectivas de futuro

Nesta segunda parte trata-se de sublinhar algumas tarefas priori-tárias c o m u n s q u e se apresentam às Igrejas e m o r d e m a u m a realização mais efectiva e profunda da liberdade religiosa, n o desen-volvimento de u m espírito verdadeiramente ecuménico. C o m o se referiu no início, a concentração da análise em termos de critérios

4Í' E a convicção de q u e "a legítima diversidade n ã o se o p õ e de f o r m a

a l g u m a à u n i d a d e da I g r e j a , a n t e s a u m e n t a o seu e s p l e n d o r e c o n t r i b u i significativamente para o c u m p r i m e n t o da sua missão": U U S 50.

47 U U S 57.

48 U U S 54.

49 H á q u e d i s t i n g u i r e n t r e i n t e n c i o n a l i d a d e f u n d a m e n t a l da fé e sua

expressão: " E c e r t a m e n t e possível t e s t e m u n h a r a p r ó p r i a fé e explicar a sua doutrina de u m m o d o q u e seja correcto, leal e compreensível, e s i m u l t a n e a m e n t e tenha presente tanto as categorias mentais, c o m o a experiência histórica concreta do o u t r o " — U U S 36.

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94 D I D A S K A L I A

fundamentais não significa ausência de sentido da historicidade do problema, ignorando-se assim a indispensável atenção que sempre deve ser prestada à diversidade das situações e sua complexidade.

2.1. O lugar da religião no Estado secular

O l h a n d o j á para a realidade actual, mas t e n d o em vista sobretudo elementos previsíveis de evolução futura, a questão da liberdade religiosa numa perspectiva ecuménica aparece cada vez menos c o m o u m problema a dirimir entre as principais confissões cristãs — onde isso acontece ainda, tal dever-se-á principalmente à p e r m a n ê n c i a de mentalidades ou de factores sociopolíticos do passado! — e cada vez mais c o m o a tarefa de se reflectir em c o m u m sobre o lugar da religião na sociedade, sobre o papel que cabe (deve caber) à religião n u m Estado que se entende (e se entenderá previsivelmente ainda mais no futuro) como secular. N ã o obstante todas as questões interconfessionais que possam ainda surgir neste c a m p o , i m p o r t a ter clara consciência de q u e é este o h o r i z o n t e d e t e r m i n a n t e de reflexão a m e r e c e r concentração de esforços no sentido de uma resposta cristã c o m u m .

N e s t e d o m í n i o da a t i t u d e do E s t a d o face ao f e n ó m e n o religioso, é necessário reconhecer, antes de mais — e não é inútil lembrá-lo perante possíveis retrocessos de mentalidade ou de prática — o significado histórico que t e m e o progresso cultural que representa — basta recordar as situações, passadas ou actuais, das "religiões de Estado" — o Estado secular. C o m isso não se trata de consagrar c o m o absoluto e em todos os seus aspectos o desenvol-vimento que t e m marcado o espaço ocidental, c o m o se estivéssemos diante do último estádio possível de evolução nesta matéria. Muito menos significa isso aceitar os pressupostos de u m Estado laicista que, em razão de uma concepção ideológica, negativa, da laicidade, p r o p u g n e u m a separação total e sem qualquer r e l a c i o n a m e n t o (possível ou desejável) entre Estado e religião (e Igrejas), pelo que t u d o é orientado, em última análise e de forma clara ou sub-reptícia, n o sentido do afastamento da religião da vida pública. E m contrapartida, o Estado secular de que aqui se fala c o m o expressão do d e s e n v o l v i m e n t o da c o m u n i d a d e política m o d e r n a é p r i n -cipialmente neutro do p o n t o de vista religioso-ideológico. Isto é, a atitude a assumir pelo Estado nesta matéria não t e m qualquer tendência prévia anti-religiosa, antes supõe uma abertura de prin-cípio ao significado da religião e às suas potencialidades, sem que,

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LIBERDADE RELIGIOSA E ECUMENISMO 95

no entanto, o Estado se identifique c o m uma convicção religiosa concreta ou se deixe apropriar p o r ela para fins especificamente religiosos51. Trata-se, pois, de u m a "neutralidade aberta"52, positiva, u m a n e u t r a l i d a d e q u e está e s t r u t u r a l m e n t e l i g a d a ao r e c o n h e c i m e n t o — c o n s t i t u c i o n a l , legislativo e p r á t i c o — da liberdade religiosa c o m o direito inviolável da pessoa h u m a n a e dos grupos religiosos n u m a sociedade: " U m a o r d e m política q u e reconhece a liberdade de religião c o m o princípio constitucional próprio já não engloba e m si mesma a religião. Ela já não se comporta para c o m a religião c o m o seu necessário f u n d a m e n t o e já não procura a sua própria legitimação na religião. Nesta o r d e m a religião tem a possibilidade do desenvolvimento na e a partir da convicção dos que a ela aderem, carece n o entanto — na pers-pectiva da ordem política — de necesssidade. Ela já não é a base sobre a qual o Estado e as Igrejas indubitavelmente assentam e em relação à qual se reportam quando agem em colaboração m ú t u a ou enfrentam conflitos"53. Em síntese, u m p o n t o de partida essencial neste campo é a percepção da realidade e da tarefa próprias do Estado moderno, obrigado constitucionalmente à salvaguarda dos direitos humanos fundamentais de todos os cidadãos.

Mas, assente isto, é preciso sublinhar logo t a m b é m que, c o m o r e c o n h e c i m e n t o e a defesa da s e c u l a r i d a d e d o E s t a d o e sua consequente neutralidade religioso-ideológica, não está dito tudo quanto é necessário para se formular positivamente o papel da religião na sociedade e a atitude que o Estado deve tomar, em correspondência c o m as exigências inerentes a u m respeito efectivo (não meramente formal ou legal) do direito à liberdade religiosa. O princípio da neutralidade, da não confessionalidade, c o m o norma orientadora para a definição do relacionamento do Estado c o m as comunidades religiosas " n ã o significa a indiferença religiosa do Estado, mas simplesmente a não identificação do Estado c o m uma determinada orientação religiosa"54. Pressupõe-se assim uma atitude positiva do Estado face ao lugar da religião na sociedade, c o n -c e d e n d o - l h e e s p a ç o livre de d e s e n v o l v i m e n t o , e isso -c o m o condição para que seja efectiva e plenamente respeitado o direito à

51 C f . E . - W . B Ö C K E N F Ö R D E , Religion im säkularen Staat, i n U n i v e r s i t a s 51 (1996) 9 9 1 .

52 C f . P . - A . L I É G É , La liberte religieuse, 1 7 4 - 1 7 7 . 53 E . - W . B Ö C K E N F Ö R D E , Religion, 9 9 1 s. 54 A. H E N S E , Flexible Kontinuität, 137.

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96 D I D A S K A L I A

liberdade religiosa. Nesse sentido, e depois de lembrar que pertence a qualquer autoridade civil "tutelar e p r o m o v e r os direitos humanos invioláveis", afirmava já a Declaração "Dignitatis H u m a n a e " que cabe ao poder civil "assegurar eficazmente, p o r meio de leis justas e outros meios convenientes, a tutela da liberdade religiosa de todos os cidadãos, e p r o p o r c i o n a r condições favoráveis ao desenvol-vimento da vida religiosa, de m o d o que os cidadãos possam real-m e n t e exercitar os seus direitos e cureal-mprir os seus deveres, e a p r ó p r i a sociedade b e n e f i c i e dos bens da justiça e da paz que derivam da fidelidade dos homens a Deus e à sua santa vontade"5 5.

Sem dúvida que não é fácil formular teoricamente de forma positiva ou definir u m a vez p o r todas, i n d e p e n d e n t e m e n t e das situações concretas, e m que consistem essas "condições favoráveis ao desenvolvimento da vida religiosa" de que fala o texto conciliar. E consensual q u e se trata do f o m e n t o do direito à liberdade religiosa, tanto nas suas dimensões individuais c o m o comunitárias, não propriamente da religião em si mesma ou da verdade religiosa c o m o tal, objectivos esses que não cabem na tarefa própria do Estado56. E t a m b é m claro, p o r outro lado, que a separação da Igreja (das Igrejas) do Estado não deve ser entendida c o m o u m "princípio de luta" entre duas sociedades ou dois poderes, antes só se pode realizar adequada e correctamente n u m espírito de mútua colaboração. E igualmente p o n t o assente que a afirmação da i n c o m -petência do Estado em matéria religiosa não deve ser entendida c o m o equivalente a uma atitude de pura e simples ignorância do facto religioso, pois o Estado constitucional m o d e r n o não pode autodispensar-se da sua responsabilidade de "reconhecer, garantir, proteger e p r o m o v e r " o direito à liberdade religiosa das pessoas e dos grupos5 7. Assim, e n ã o o b s t a n t e todas as dificuldades de concretização existentes neste campo (é impossível definir medidas concretas, válidas para todas as situações!), importa sublinhar que essa atitude positiva passa, antes de mais e basilarmente, pelo

55 D H 6.

' C f . J . E. B O R G E S D E P I N H O , Kirche und politische Gemeinschafi, 2 4 7 s. 57 " N ã o é e x a c t o d i z e r p u r a e s i m p l e s m e n t e q u e o E s t a d o é i n c o m p e t e n t e e m m a t é r i a religiosa, c o m o se tratasse aí d e u m a espécie d e p r i n c í p i o s u p r a t e m p o r a l , d e r i v a d o d e q u a l q u e r lei e t e r n a . A f ó r m u l a exacta é q u e o E s t a d o , nas c o n d i ç õ e s p r e s e n t e s d o c r e s c i m e n t o da c o n s c i ê n c i a pessoal e política, n ã o é c o m p e t e n t e e m relação à religião s e n ã o para u m a coisa, a saber: r e c o n h e c e r , garantir, p r o t e g e r e p r o m o v e r a l i b e r d a d e religiosa d o p o v o . Está aí t o d a a e x t e n s ã o da c o m p e t ê n c i a d o E s t a d o c o n s t i t u c i o n a l c o n t e m p o r â n e o " : J . C . M U R R A Y , Le problème, 47.

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L I B E R D A D E R E L I G I O S A E E C U M E N I S M O 97

r e c o n h e c i m e n t o explícito e isento de p r e c o n c e i t o s (no f u n d o , produto de visões limitadas do humano) do facto religioso enquanto expressão legítima de liberdade pessoal inalienável e da trans-cendência que ele, em toda a sua realidade, envolve relativamente

ao Estado e ao m u n d o do Estado58. U m a atitude positiva que

implica t a m b é m a atenção concreta às condições — de o r d e m jurídica, educativa, financeira, de presença na opinião pública, etc. — que permitam efectivamente realizar a liberdade religiosa. O decisivo aqui é superar definitivamente concepções fechadas da laicidade (mais rigorosamente, de u m certo laicismo, p o r vezes presente m e s m o q u a n d o a p a r e n t e m e n t e se d e f e n d e o direito à liberdade religiosa!), incapazes de admitir que neste d o m í n i o — como lembra o texto conciliar — se deve reconhecer a cada pessoa o espaço mais amplo possível de liberdade para o c u m p r i m e n t o dos

seus direitos e dos seus deveres59. Trata-se de entender, em termos

culturais e de consenso básico n o âmbito de cada sociedade, que o Estado não garante a liberdade religiosa apenas pelo facto de não proibir o seu exercício o u de simplesmente não intervir neste campo, mas que é fundamental também assegurar e fomentar as condições que permitam a plena efectivação deste direito, propiciar meios para que as pessoas e os grupos possam cumprir o mais cabalmente possível os deveres e as potencialidades que decorrem da sua convicção religiosa.

Nesta exigência de u m a atitude positiva do Estado face à religião, de sensibilidade aberta aos valores contidos n o factor religioso, é essencial perceber que não se trata de i m p o r ao Estado algo que é alheio às suas próprias funções e obrigações estruturais, mas que o que está em causa é t a m b é m a criação das condições de que, afinal, o Estado secular necessita para o c u m p r i m e n t o mais adequado e completo das suas tarefas. E importante ter consciência de que, enquanto ideologicamente neutro, o Estado secular não pode criar ou garantir por si mesmo a base e os critérios irredutíveis dos seus valores, os f u n d a m e n t o s irrecusáveis para as

responsa-58 ' " R e c o n h e c e r o f a c t o religioso, tal é a e x i g ê n c i a f u n d a m e n t a l através da qual ' o E s t a d o laico' p o d e r á r e c o n h e c e r r e a l m e n t e a l i b e r d a d e religiosa. O f a c t o religioso e m t o d a a sua realidade e n v o l v e u m a t r a n s c e n d ê n c i a e m relação ao E s t a d o e ao m u n d o d o E s t a d o . N o f a c t o religioso, o E s t a d o r e c o n h e c e o q u e o ultrapassa, e ele r e c o n h e c e - o nas pessoas. O b s e r v a r este f a c t o é o p r i m e i r o m a n d a m e n t o q u e se i m p õ e a t o d o o E s t a d o e o salva d o t o t a l i t a r i s m o " : P H . - I . A N D R É - V I N C E N T ,

La liberte religieuse, 2 2 8 .

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98 DIDASKALIA

bilidades e obrigações que lhe são exigidas no que se refere, por exemplo, ao respeito efectivo dos direitos humanos, à convivência pacífica na sociedade, ao uso responsável e solidário da liberdade

p o r parte dos cidadãos60, aos elementos indispensáveis de consenso

sobre as questões controversas que se levantam a cada m o m e n t o . É neste pano de f u n d o que a pergunta pelo papel da religião, sua função cultural, seu significado para a fundamentação e a afirmação dos valores, é (cada vez mais) irrecusável. A consciência das catástrofes q u e m a r c a r a m a m o d e r n a história da liberdade e a discussão actual sobre os problemas do viver em sociedade legiti-m a legiti-m legiti-meslegiti-mo a pergunta "se a razão, c o legiti-m a perda crescente de influência da tradição cristã, t e m suficiente força de convicção e de motivação para assegurar a pretensão de liberdade e dignidade da pessoa em toda a sua incondicionalidade"6 1. Os sinais apontam, de facto, e m sentido contrário, e vai mesmo crescendo a convicção de que u m a sociedade não p o d e viver h u m a n a m e n t e sem que o espaço público seja atravessado por questões que as consciências, e só elas, t ê m que resolver, pelo que — sublinhe-se mais uma vez — a referida neutralidade do Estado não pode ser entendida como "o vazio de u m meio social asséptico"62. Percebe-se, assim, a relevância fulcral que têm as questões respeitantes às deficiências de cultura religiosa numa sociedade, às raízes últimas de uma moral c o m u m , aos f u n d a m e n t o s c o n v i n c e n t e s de u m a solidariedade capaz de renúncia, ao sentido irrecusável de u m a liberdade m o r a l m e n t e responsável e c o m p r o m e t i d a c o m o outro. Trata-se de questões que, afinal e em última análise, perguntam pelo serviço que os cristãos, as Igrejas, as religiões p o d e m e devem prestar aos seus concidadãos e às sociedades de que fazem parte.

Neste contexto de reflexão, não pode certamente ignorar-se que, tanto ao longo da história c o m o nos tempos mais recentes, sempre de n o v o t ê m sido atribuídas à religião determinadas funções n o interesse da conservação e da fundamentação interior da própria c o m u n i d a d e política, n o m e a d a m e n t e u m a f u n ç ã o de tipo

inte-60 C f . H . J . P O T T M E Y E R , Das Evangelium der Freiheit und der freiheitliche,

säkulare Staat, i n S t i m m e n d e r Z e i t 2 1 3 (1995) 7 6 0 .

61 IB., 7 5 9 . C f . G . S I E G W A L T , Le christianisme et le discours inter-religieux:

Vérité et tolérance, in L u m i è r e et V i e 2 2 2 (1995) 49 s.

62 A i d e i a e a e x p r e s s ã o r e t i r o - a s d e u m a r t i g o d e G A S T O N P I E T R I , p u b l i c a d o e m La C r o i x , 1' É v é n e m e n t s o b o t í t u l o La neutralité et ses illusions, mas d o q u a l j á n ã o m e é possível i n d i c a r as r e f e r ê n c i a s exactas.

(23)

L I B E R D A D E RELIGIOSA E E C U M E N I S M O 99

grador-legitimador pela mediação e transmissão de u m consenso básico no que respeita a valores que devem ser respeitados p o r todos na sociedade. O que inevitavelmente coloca ã consciência dos cristãos e das Igrejas a questão de saber se não haverá aí t a m b é m apropriações abusivas da religião e das comunidades religiosas, riscos de uma instrumentalização que não salvaguarda a identidade da própria fé e a autenticidade da missão eclesial. A resposta não é fácil n e m m e r a m e n t e t e ó r i c a , ela t e m de ser e n c o n t r a d a e m cada situação histórica: "Cada religião e comunidade religiosa t e m de responder a esta questão por si mesma, de acordo c o m o c o n t e ú d o da sua fé e da sua mensagem. Ela não pode deixar que a resposta lhe seja imposta pelo Estado ou pela sociedade, d o u t r o m o d o ela perde a sua incomensurável posição e é reduzida a u m factor de integração da ordem estatal"63. Mas se é verdade que a resposta t e m de ser dada por cada Igreja, numa leitura responsável e crítica, à luz do Evangelho, das circunstâncias em que se situa, ela não deve ser menos também objecto de u m esforço de discernimento c o m u m , em diálogo ecuménico. Isto é, as Igrejas cristãs t ê m de enfrentar em conjunto a tarefa de redescobrir qual o seu papel n o Estado e na sociedade, qual o contributo que são chamadas a dar para a cons-trução do viver h u m a n o comunitário, sabendo que é decisivamente desse m o d o q u e a religião será t a m b é m r e c o n h e c i d a na sua dimensão potenciadora do H u m a n o na sociedade.

2.2. Credibilidade na defesa do direito à liberdade religiosa N a sua exigência de que o Estado assuma u m a atitude positiva na concretização o mais ampla possível do direito à liberdade reli-giosa, as Igrejas cristãs têm de ter em conta, e c o m o pressuposto fundamental, a questão da credibilidade c o m que se apresentam, em geral e especialmente neste aspecto da reivindicação e defesa da liberdade religiosa. Aliás, o papel que a religião e, em particular, as Igrejas p o d e m desempenhar na sociedade está em relação m u i t o estreita c o m a credibilidade c o m que elas conseguem afirmar, na prática, o seu direito à liberdade religiosa em todas as suas conse-quências.

Neste ponto, e c o m o atitude de prévia e indispensável a u t o -crítica, não pode deixar de partir-se d u m sincero reconhecimento

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