• Nenhum resultado encontrado

MACABÉA, UMA MULHER INSOSSA: REPRESSÃO SEXUAL E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE FEMININA

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2020

Share "MACABÉA, UMA MULHER INSOSSA: REPRESSÃO SEXUAL E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE FEMININA"

Copied!
17
0
0

Texto

(1)

MACABÉA, UMA MULHER INSOSSA: REPRESSÃO

SEXUAL E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE

FEMININA

MACABÉA, A LIFELESS WOMAN: SEXUAL

REPRESSION AND THE CONSTRUCTION OF

FEMININE IDENTITY

José Raymundo F. Lins Jr.

Univérsidadé Estadual do Valé do Acarau (UEVA)

Rilna Marcia Barros Lima

Univérsidadé Estadual do Valé do Acarau (UEVA)

RESUMO |INDEXAÇÃO | TEXTO | REFERÊNCIAS | CITAR ESTE ARTIGO | OS AUTORES RECEBIDO EM 06/05/2016 ● APROVADO EM 16/01/2018

Abstract

This study proposes a reading of the work "A hora da estrela", by Clarice Lispector (1998), based on concepts of sexual repression (USSEL, 1980; CHAUÍ, 1987), seen

(2)

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 2, p. 54-70, jul.-dez. 2017 as a set of interdictions, permissions, norms, values and historically and culturally established rules to control the exercise of sexuality. The identity construction (BOURDIEU, 1998; 2012) of the repressed, opaque, opaque, virgin, innocuous, unadornéd woman imagé réflécts Macabéa’s childhood and thé rélationship with her religious aunt, under the influence of religion (FOUCAULT, 2013). Through the flashbacks, reported by a fictional narrator, and Macabéa’s (ré)actions in thé world, it is discussed how one of the last female characters by Lispector is developed, her abnegation to libido, desire and sex until her last breath reveals her whole existence. This analysis proposes a dialogue between Literature, Psychoanalysis and Philosophy, which is anchored in non-disciplinary applied linguistics (MOITA LOPES, 2006), as an attempt to reduce the distance between studies on language and literature, a problem in many courses of Letters.

Resumo

O présénté trabalho propõé uma léitura da obra “A hora da éstréla”, dé Claricé Lispector (1998), a partir da ideia de repressão sexual (USSEL, 1980; CHAUÍ, 1987), como um conjunto de interdições, permissões, normas, valores, regras estabelecidas histórica e culturalmente para controlar o exercício da sexualidade. A construção identitária (BOURDIEU, 1998; 2012) da mulher reprimida, de corpo escasso, opaco, virgem, inócuo e sem enfeites reflete a infância de Macabéa e a relação com a tia beata, influenciada pelo poder da religião (FOUCAULT, 2013). Através dos flashbacks relatados por um narrador fictício e das (re)ações de Macabéa perante o mundo, busca-se entender como se constitui uma das últimas personagens femininas de Clarice Lispector, sua abnegação à libido, ao desejo e ao sexo até sua existência plena, exercida no último suspiro. Trata-se de uma análise que propõe um diálogo entre Literatura, Psicanálise e Filosofia, que se ancora na linguística aplicada indisciplinar (MOITA LOPES, 2006), como tentativa de diminuir a distância entre os estudos sobre a língua e a literatura, tão presente em muitos cursos de Letras.

Entradas para indexação

KEYWORDS: Macabéa. Sexual Repression. Identity. Interdisciplinarity.

PALAVRAS-CHAVE: Macabéa; Repressão Sexual; Identidade; Interdisciplinaridade. Texto integral

INTRODUÇÃO

Você, Macabéa, é um cabelo na sopa, não dá vontade de comer.

(3)

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 2, p. 54-70, jul.-dez. 2017

Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. (Gn 1.28)

Os estudos teóricos acerca da repressão sexual ainda são recentes, mas a questão existe há muito tempo, tendo ganhado força no mundo acadêmico após os estudos freudianos sobre histeria. O fato é que o sexo é tratado de diferentes formas, dependendo da cultura, religião, sociedade ou mesmo da área de conhecimento. No que diz respeito à repressão sexual, esta pode ser entendida como um conjunto de interdições, permissões, normas e valores que controlam a sexualidade. O sexo, sob essa ótica, é visto como uma arma ou campo cheio de perigos, uma vez que ele tem grande participação na vida humana e, consequentemente, grande repercussão sobre o indivíduo, suas ações, experiências e suas visões.

Discorrer sobre repressão sexual implica discutir, por exemplo, os diferentes aparelhos ideológicos e as demais formas de poder que circulam na sociedade. Ao pénsar o qué séria uma “démocracia séxual”, sob a qual répousa a livre associação entre sexo e orgasmo, optamos por direcionar esta pesquisa para o papel repressor das instituições sociais na identidade sexual do indivíduo, em especial o papel da igreja neste processo. Neste sentido, o objetivo deste estudo é discutir a sexualidade feminina, a partir dos modelos construídos pela igreja apostólica romana, que entende o “ato séxual” como um méro méio dé procriação.

Assim, nossa pesquisa de natureza teórico-bibliográfica deseja analisar como se dá a construção da identidade sexual de Macabéa – personagem do livro A hora da estrela, de Clarice Lispector (1988) –, partindo do pressuposto de que a repressão sexual funciona não apenas como uma espécie de castração sexual, mas pode transformar o indivíduo em um ser apático nas diferentes dimensões da vida social. Para tal, utilizaremos as ideias sobre o inconsciente e a formação do recalque/repressão presentes em (FREUD, [1907]1980a); já sobre o poder das instituições sociais, adotaremos (FOUCAULT, 2013); em última instância, para compreender a formação identitária de Macabéa, pautar-nos-emos em (Bourdieu 2012).

1 O FEMININO NO BRASIL: UMA HISTÓRIA DE ALCUNHAS E TABUS

A história do sexo no Brasil passou por longos e largos caminhos até chegar aos dias de hoje. Liberdade ou repressão? No que concerne ao sexo, será que o passar dos séculos conseguiu enxugar as normas de conduta ou apenas mascará-las?

Mary Del Priore (2011), ao tratar sobre a sexualidade e o erotismo no Brasil, aponta-nos caminhos para possíveis respostas às perguntas supracitadas. Em seu livro Histórias Íntimas – sexualidade e erotismo na história do Brasil, a autora propõe uma linha do tempo para analisarmos conceitos que identificam a construção identitária sexual do brasileiro. O livro traz uma pesquisa relevante para os estudos da sexualidade e passa por diversos campos que vão desde a

(4)

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 2, p. 54-70, jul.-dez. 2017 relação entre colonizadores, índios e escravos, que tentavam sobreviver num ambiente de desconforto e pobreza, à nudez e pudor, que impulsionaram os sacerdotes a vestirem as imagens da Virgem Maria, numa época em que, muitas vezes, a virgem era representada com seus seios expostos (quando amamentando Jesus).

As relações com a intimidade refletem como os processos civilizatórios modelaram gradualmente as sensações corporais, acentuando seu refinamento, desenrolando suas sutilezas e proibindo o que não parecia decente. A história que vamos contar inscreve-se nesse quadro. É aquela do polimento das condutas e do crescimento do espaço privado e da autorrepressão. Do peso progressivo da cultura no mundo das sensações imediatas, do prazer e do sexo. Do cuidado de si e do trabalho permanente para definir as fronteiras entre o íntimo e o social. De como esse complexo mecanismo migrou do Velho para o Novo Mundo, atravessando séculos. E de como, hoje, a relação entre os sexos, na intimidade ou fora dela, está em plena transformação. Resta saber aonde ela nos levará (PRIORE, 2011, p. 6-7).

Nessa linha do tempo proposta pela autora, é fácil perceber que, indépéndéntéménté da época, a quéstão dé gênéro (“rélação éntré os séxos”) é um procésso (ém “transformação”), e não uma categoria definida. Neste sentido, a perspectiva que tomamos, a partir deste momento, é do analista do discurso que faz crítica literária numa perspectiva indisciplinar1 (MOITA LOPES, 2006).

Os registros sobre a história do sexo no Brasil têm, em suas raízes, alguns pontos, como o “polimento das condutas” (PRIORE, 2011, p.10, ou seja, a Igreja ensinava como se comportar em sociedade, ditava, por exemplo, que mulheres não podiam banhar-se com (e como) os homens –, esse era um comportamento prostituto–, afirmava que era necessário vestir o índio, perfumar os ambientes e o corpo; tratava-se de proibir (condutas) para permitir (a socialização através da diferença).

Houve também o “crescimento do espaço privado” (PRIORE, 2011, p.10), as casas foram divididas em mais quartos, o uso de fechaduras (consideradas, por muito tempo, artigos de luxo) nas portas cresceu, e, principalmente, a ideologia da autorrepressão era plantada e alimentada pela igreja católica. E nesse espaço foram configurando-se os papéis do masculino e do feminino, o que lhes era permitido e proibido.

No Velho Mundo, a construção da identidade sexual dos indivíduos foi moldada, entre o período clássico até a Baixa Idade Média, para apresentar o que era íntimo ao social. No Brasil, a visão cristã proibia os comportamentos considerados pecaminosos (associados a comportamentos animalizados, irracionais) para permitir uma vida social digna, em uma nova concepção de mundo que, na terra, agradasse os olhos burgueses; no céu, aos de Deus. E nessa nova concepção de mundo, o papel feminino foi, mais uma vez, subalternizado.

A autora discute, a partir de documentos coloniais e inquisitórios, uma imensidão de alcunhas e superstições sobre erotismo, sexo e, principalmente, sobre o corpo feminino como objeto de pecado – não apenas ignorando, mas

(5)

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 2, p. 54-70, jul.-dez. 2017 reprimindo o próprio zelo pelo corpo. Grande parte dessas construções tem como fiel divulgadora a Igreja, que demonizava o corpo feminino, uma vez que, segundo a própria instituição, este suscitava o erotismo. Além disso, o clero condenava ainda o comportamento feminino que fugisse às regras impostas pelos manuais de comportamento.

Apesar da pobreza material que caracterizava a vida diária no Brasil colônia, a preocupação feminina com a aparência não era pequena. Mas vivia sob o controle da Igreja. A mulher, perigosa por sua beleza e sexualidade, inspirava toda sorte de preocupações dos pregadores católicos. Não foram poucos os que fustigaram o corpo feminino, associando-o a um instrumento do pecado e das forças diabólicas que ele representava na teologia cristã. [...] Era preciso enfear o corpo para castigá-lo. Os vícios é as “férvénças da carné”, ou séja, o desejo erótico, tinham como alvo o qué a Igréja considérava sér “barro, lodo e sangue imundo”. Ondé tudo éra féio porqué pécado. Isso, porque a mulher – a velha amigada serpente e do Diabo – era considerada, nesses tempos, como um veículo de perdição da saúde e da alma dos homens. Aquela “bém aparécida”, sinônimo no século XVII para formosa, éra a pior (PRIORE, 2011. p. 20-21).

Devido a sua preocupação com a libido que a forma do corpo feminino podia suscitar, a Igreja viu as vestimentas como a melhor forma de inibir o erotismo. Os seios, como parte sensualizada da mulher, eram uma das principais partes do corpo feminino que se necessitava cobrir. Até as imagens sacras davam exemplo de comportamento cristão.

Os seios jamais eram vistos como sensuais, mas

como instrumentos de trabalho de um sexo que

devia recolher-se ao pudor e à maternidade. O colo

alvo, o pescoço como “torre de marfim” cantado

pelos poetas, pouco a pouco começa a cobrir-se. E

isso até nas imagens sacras. Estátuas da Virgem

Maria em estilo barroco, antes decotadas, ou a

própria Virgem do Leite – que no Renascimento

expunha os bicos–, desaparecem de oratório se

igrejas. Nossa Senhora passa a cobrir-se até o queixo,

quando não era vestida pelas próprias devotas

(PRIORE, 2011, p. 12).

Na obra, a história do Brasil é contada paralelamente à história da sexualidade e do erotismo. Logo após a República, com o surgimento do lingerie, da pílula anticoncepcional e, principalmente, das mídias que traziam imagens de casais e suas vidas íntimas, o cenário sexual nacional passou a ter um olhar mais crítico sobre o limite entre o sexual, o social e o repressivo.

(6)

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 2, p. 54-70, jul.-dez. 2017 Essa criticidade nos leva a Jurandir Freire Costa (1999), que indaga sobre os perigos do sexo mal vivido e as delícias do sexo bem gozado, denunciando os efeitos repressivos ou libertadores na sexualidade de homens e mulheres, adultos e crianças. O autor questiona se o sexo é, de fato, um problema na cultura brasileira, chegando à conclusão de que o problema não estava na sexualidade, mas na idealização do amor romântico, intocável e absolutamente bom.

O mal do sexo é, hoje, o que o mal du siècle2 foi no passado: ornamento das

elites aculturadas, insígnia dos bem-nascidos, destinada, no máximo, a consolidar a imagem democrática-modernizante com que o poder tenta seduzir seus possíveis aliados. Fome de sexo é problema dos que não tem fome de pão, isto sim verdadeiro problema brasileiro (USSEL,1980, p. 14).

2 SEXUALIDADE E (DES)(EM)PODER(AMENTO)

Esta seção visa oferecer um pequeno, porém necessário, introito a dois conceitos fundamentais para nossa análise, que lida com a questão identitária: “repressão como discurso ideológico” e “recalque”. Para tal, utilizar-nos-emos de Foucault (2013) e Thompson (2000), para o primeiro conceito e Freud ([1907]1980a; [1937]1980b), para o segundo, a fim de apresentar a concepção de identidade apresentada neste trabalho.

2.1 A IGREJA ENQUANTO INSTITUIÇÃO DE (RE)PRESSÃO

A sexualidade é marca da constituição identitário do sujeito, desde o seu nascimento até a sua velhice. O ser humano é um ser sexuado por natureza, conforme afirma a ciência. Partindo dessa certeza científica, podemos afirmar que qualquer forma de inibir essa sexualidade inerente ao ser humano é uma atitude repressiva e, consequentemente, contrária ao que é natural no indivíduo.

A tradição judaico-cristã é um dos pilares e motivos para a forte repressão sexual presente, sobretudo, em nossa sociedade ocidental, através, principalmente, da Igreja Católica Apostólica Romana. Pautada na Bíblia, ela via a necessidade de reprimir o sexo visando uma vida pudica (leia-se recatada e humanizada), afastada do comportamento animal e mais próxima de Deus, justificativa dada aos fiéis (AQUINO, 2001). Contudo, apenas os ensinamentos bíblicos não eram o bastante, assim o medo foi o principal aliado na educação sexual cristã.

Como nos lembra Priore (2011, p. 12), “os castigos divinos” estavam presentes nos discursos de ensinamento dos padres. Por exemplo, a nudez e a luxúria: “a luxúria foi associada a uma profusão de animais imundos: sapos, serpentes ou ratos que se agarravam aos seios ou ao sexo das mulheres lascivas”. A nudez, continua a autora, era passaporte para o inferno. Inúmeras representações mostravam o Diabo recebendo as pecadoras “nuas em pelo”. Os livros de oração eram fortes instrumentos de difusão deste medo, pois traziam imagens nas quais o

(7)

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 2, p. 54-70, jul.-dez. 2017 justo sempre morria de camisola e o pecador, sem roupa. A igreja encontrava, desse modo, sua forte arma: educar pelo medo.

Mas não apenas o medo, há outro ponto que necessita de considerações: a ideia bíblica de corpo como espaço sagrado. Essa concepção de buscar a santidade do corpo tem origem bíblica, especialmente com os ensinamentos de Jesus no Novo Testamento, e a igreja, por sua vez, tomava-os como embasamento religioso para a proibição que difundia. O corpo do homem é “témplo do Espírito Santo” (Coríntios, 6:19). Jesus, no novo testamento, ao ser questionado pelos fariseus, afirma que o homem deve casar-se apenas uma vez, com uma única mulher, mesmo que as leis de Moisés afirmassem o contrário, pois davam direito à dissolução do sacramento3.

Assim, o sexo deveria ser praticado unicamente com o cônjuge, para a continuação da espécie. Conforme CHAUÍ (1987, p. 91),

o corpo não pode ser tratado de qualquer maneira, pois é recinto sagrado.

Contra ele, erguem-se os pecados da carne, em número de quatro: fornicação (isto é, sujeira, prostituição), adultério, masturbação e homossexualismo. Essa classificação esclarece, por que, na impossibilidade da virgindade, somente o casamento servirá como remédio.

Sob a afirmação de que o corpo é sagrado e morada do próprio Deus, instaura-se a repressão sexual pela instituição igreja. Porém, por trás da pureza pregada, os representantes da Igreja almejavam também uma sociedade controlada política e socialmente, o que torna esta instituição um aparelho ideológico (THOMPSON, 2000), cujos discursos naturalizam4 construções sociais, a

ponto de não se perceber o quanto elas, de natural, nada têm.

A Igreja, assim, produz um discurso que expressa uma ideologia repressora, que opera diretamente no controle social. Em a Microfísica do Poder, Foucault (2013) esclarece-nos acerca dos modos com os quais as monarquias clássicas fizeram o poder circular de uma forma “natural”, sem fazer parecer que havia a presença física de instituições repressoras, uma vez que os próprios indivíduos exerciam e reproduziam, numa atitude de obediência, o discurso que os oprimia.

As monarquias da época clássica não só desenvolveram grandes aparelhos de estado - Exército, polícia, administração local -, mas instauraram o qué sé podéria chamar uma nova ‘’économia’’ do podér, isto é, procedimentos que permitissem fazer circular os efeitos de poder de forma ao mesmo tempo contínua, ininterrupta, adaptada e ‘’individualizada’’ ém todo o corpo social (FOUCAULT, 2013, p. 45).

Desse modo, esse poder individualizado no corpo social fortalece a própria instituição que o instala, já que os próprios indivíduos o tomam para si e o exercem como se fosse algo inerente a sua própria natureza. O que fortaleceu a perspectiva de que o sexo tem um único fim: a procriação, sendo retirado dele qualquer tipo de prazer, satisfação ou alegria, podendo ser praticado apenas com uma única outra pessoa, isto é, o cônjuge.

(8)

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 2, p. 54-70, jul.-dez. 2017

2.2 O RECALQUE COMO RESULTADO DA REPRESSÃO

Longe de ser uma análise psicanalítica, o que propomos nesta seção é o mesmo proposto na introdução desse texto, ou seja, apropriarmo-nos de conceitos para melhor entender nosso objeto de estudo, no caso, o recalque. E esta apropriação, desde já informamos, não pretende esgotar a sua definição, mas apenas trazer o que dela pode ser aplicado à análise de Macabéa. Em outras palavras, sem desconsiderar os contextos histórico, religioso e epistemológico descritos acima, o nosso fazer crítica literária se configura como atividade discursiva, numa perspectiva pós-modernista5.

Dizer que a sexualidade humana é perturbada é justificar, com pelo olhar freudiano, que o papel da Igreja foi bem cumprido. Como vimos, esta instituição soube muito bem fazer uso do medo para imprimir nos fiéis a ideia de um sexo ‘regrado’ e, assim, controlar parte da natureza do homem.

Entretanto, sob um olhar psicanalítico, isso fez com que “o homem [fosse] a única espécie biológica que destruiu sua própria função sexual natural e está doénté ém conséquência disso’’ (REICH, 1990, p.92). Partindo desse pressuposto, podemos observar que a sexualidade foi mortificada6, pois, para Freud

([1937]1980b, p. 185), “qualquér qué séja o caso é qualquér qué séja o sintoma que tomemos como ponto de partida, no fim chegamos infalivelmente ao campo da experiência sexual”, é ésta, inévitavélménté, associa-se a uma situação de histeria7.

A obra de Freud, traduzida para o português não diretamente do alemão, traz consigo problemas com a tradução do vocábulo Verdrängung, não aceitando o uso de palavras como repressão e recalcamento. Segundo Paiva (2011, p. 233), “as traduções mais recentes, feitas diretamente do alemão, nos possibilitam uma melhor apreensão das ideias de Freud, no que se refere à fundação do aparelho psíquico freudiano”, inclusive apresentando a tradução desse termo com as palavras recalcamento/recalcamento originário e repressão, bem como derivados dessas palavras.

Para Freud ([1907]1980a, p. 55), é no terreno do inconsciente que o recalque se instaura, ou seja, “as idéias só são réprimidas porqué éstão associadas à liberação de sentimentos que devem ser evitados”. Podemos considerar, então, que o recalque é o principal mecanismo de defesa da mente, é ele que evita que tomemos ações inesperadas frente aos traumas, transtornos, abusos, dentre outras coisas que atrapalham o indivíduo nas suas relações interpessoais. Contraditoriamente, essa repressão de sentimentos e ações garante a vida psíquica ‘normal’ do indivíduo, operando inconscientemente por meio das memórias, desejos, ou fantasias de percepção consciente. Para o pai da psicanálise, o recalque ainda opera como uma espécie de herança psíquica, o que quer dizer que

podemos presumir com segurança que nenhuma geração pode ocultar, à geração a que sucede, nada de seus processos mentais mais importantes, pois a psicanálise nos mostrou que todos possuem, na atividade mental inconsciente, um apparatus que os capacita a

(9)

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 2, p. 54-70, jul.-dez. 2017

interpretar as reações de outras pessoas, isto é, a desfazer as deformações que os outros impuseram à expressão de seus próprios sentimentos. Uma tal compreensão inconsciente de todos os costumes, cerimônias e dogmas que restaram da relação original com o pai pode ter possibilitado às gerações posteriores receberem sua herança de emoção (FREUD, 1912-1913 apud PAIVA, 2011, p. 237-238).

Deste modo, podemos concluir que, além de funcionar como um mecanismo de defesa mental, as heranças psíquicas podem ser herdadas de uma geração para outra, por meio da família ou da própria sociedade.

Frente às colocações postas até agora, a saber, a repressão sexual, os mecanismos ideológicos operacionalizados pelas instituições sociais, no caso específico, a igreja, e as consequências desta repressão (o recalque), passamos à análise da nossa personagem, a Macabéa, de Clarisse Lispector.

2.3 IDENTIDADE: UMA QUESTÃO E MUITAS ABORDAGENS

Falar sobre identidade nos levaria a uma seara teórica que não seria finalizada em um trabalho de conclusão de curso. Limitamo-nos a discorrer, agora, sobre a identidade de gênero segundo Bourdieu (2012). Para isso, encurtamos o caminho da compreensão da dominação masculina a partir da leitura de Anjos (2000, p. 276), que entende que:

as relações estabelecidas a partir da percepção social das diferenças biológicas entre os sexos est[ão] fundada[s] em esquemas classificatórios que opõem masculino/feminino, sendo esta oposição homóloga e relacionada a outras: forte/fraco; grande/pequeno; acima/abaixo; dominante/dominado.

Como podemos ver, essas dicotomias são caracterizadas por valores que sempre priorizam o macho, seguindo toda a tradição ocidental cristã, como vimos acima. Trata-se, portanto, de uma hierarquia arbitrária e historicamente construída, que colocou o masculino acima do feminino. Nas palavras de Bourdieu (2012, p. 17), a distinção entre os sexos se estabelece na “ordem das coisas, [...] ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas [realizado...] em todo o mundo social e em estado incorporado, nos corpos [dos indivíduos, através] de percepção, de pensamento e de ação”.

Como pudemos ver com Foucault (2013), a igreja teve grande participação na elaboração das categorias que naturalizaram as relações de gênero, nas quais as mulheres, em particular, foram tomadas como subordinadas. Mas é importante alertar para o fato de que a identidade feminina, antes de ser uma realidade natural é entendida, neste trabalho, como um acontecimento social, política e ideologicamente determinado. Isso quer dizer que, a condição de mulher só pode ser entendida na relação com o seu oposto, o homem, a partir da construção dos valores que estabelecem essa dicotomia.

Dessa forma, o comportamento, como ação identitária, materializa-se através de representações, vocabulários e discursos, gestos e todo o tipo de

(10)

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 2, p. 54-70, jul.-dez. 2017 linguagem possível, que torna visível a relação entre sexualidade e dominação. E nessa relação, a dominação masculina se concretiza desde o momento em que do homem faz-se a mulher.

Então o Senhor Deus fez o homem cair em profundo sono e, enquanto este dormia, tirou-lhe uma das costelas, fechando o lugar com carne. Com a costela que havia tirado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher e a levou até ele. Dissé éntão o homém: “Esta, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada mulher, porque do homem foi tirada” (Génésis, 2: 21-23).

Do mito criacionista à dominação simbólica das sociedades paternalistas, reafirma-se a primazia do homem sobre a mulher, pois “ao dizér coisas com autoridade, quer dizer, à vista de todos e em nome de todos, publicamente e oficialmente, [...] subtrai-as ao arbítrio, sanciona-as, santifica-as, fazendo-as existir, como conformés à naturéza das coisas” (BOURDIEU, 1998, p. 114). Assim, a identidade é sempre uma luta por representação, por visibilidade. Ela não se constitui como algo fixo e determinado, mas como um processo (HALL, 2005), o que Butler (2001) chama de performatividade.

Para Bourdieu (1998), a força simbólica reduz o valor da pessoa à sua identidade social, e a luta tende a conservar ou transformar essa força simbólica, podendo se dar em duas dimensões: individual, quando da aceitação do estigma ou da assimilação do padrão dominante, ou coletiva, quando não se trata da superação dos estigmas, mas da erradicação destes. É o que nos propomos a investigar, quando a protagonista da obra analisada é, ela própria, uma criação do narrador que a apresenta.

3. MACABÉA, UMA MULHER INSOSSA

Quanto à moça, ela vive num limbo impessoal, sem alcançar o pior nem o melhor. Ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando. Na verdade – para que mais do que isso? (LISPECTOR, 1998, p. 23).

Macabéa é uma das últimas personagens femininas de Clarice Lispector. Assim, a construção desta identidade feminina na fase final do trabalho desta escritora é o que configura-se como o âmago deste estudo.

Macabéa, que nasce de uma dor de dentes8 e de uma explosão9, é uma

alagoana qué vivé ‘’numa cidadé toda féita contra éla’’, o Rio de Janeiro. Já, de início, a protagonista é apresentada como objetivada (a cidade contra ela), sendo a própria cidade do Rio de Janeiro o sujeito da ação. Rodrigo S.M (narrador fictício criado por Lispector) será o responsável por trazer à tona os flashbacks de infância que tornarão possíveis a compreensão da identidade insossa da protagonista: a relação de Macabéa com a tia e com ele próprio e as situações repressivas que podem ter contribuído para o emudecimento de Macabéa –“ela falava, sim, mas era extremamente muda" (LISPECTOR,1998, p.29).

Macabéa traz, em sua essência, o desenvolvimento escasso do corpo que, segundo Pierre Bourdieu (2012, p. 16), em seus movimentos e deslocamentos, está

(11)

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 2, p. 54-70, jul.-dez. 2017 enraizado numa “topologia sexual”, que se reveste de significação e tema sua construção fincada em bases sociais. Daí, pode-se ver a submissão da protagonista no uso gestual que ela própria faz do corpo, sempre com uma aparência não saudável, que por vezes, a torna menos em estatura do que ela mesma é.

Ao ser adjetivada sob as características de mulher, pobre, migrante e educada pela tia sob o vigor da religião cristã, a identidade de Macabéa é construída a partir de valores não dominantes na escala hierárquica apresentada por Bourdieu. No que diz respeito à identidade social, sua tia, outra figura feminina na obra, fora a grande responsável pela sua “formação’’. Foi a tia quem a iniciou nos estudos, deu-lhe um curso de datilografia para que pudesse trabalhar, ensinou o que comer e com quem deveria andar e, principalmente, deu-lhe uma educação sexual que seria o alicerce do seu caráter.

A tia, conhecida por nós apenas através das lembranças de Macabéa, e mesmo já estando morta, continua exercendo uma força repressora sobre a protagonista. Como nos coloca Medeiros (2008, p. 1), “dada a orfandade da sobrinha, ela toma para si uma disciplina que seria de responsabilidade paterna, sem deixar também de preencher esta falta com toda uma amargura proveniente de um dever cumprido sob a tutela da obrigação”, ou seja, trata-se de uma tarefa que foi cumprida por obrigação e não por dedicação.

Com dois anos de idade lhe haviam morrido os pais de febres ruins no sertão de Alagoas [...]. Muito depois fora para Maceió com a tia beata, única parenta sua no mundo. Uma outra vez se lembrava de coisa esquecida. Por exemplo a tia lhe dando cascudos no alto da cabeça porque o cocuruto de cabeça devia ser, imaginava a tia, um ponto vital. Dava-lhe sempre com os nós dos dedos na cabeça de ossos fracos por falta de cálcio. Batia, mas não era somente porque ao bater gozava de grande prazer sensual – a tia que não se casara por nojo – é que também considerava de dever seu evitar que a menina viesse um dia a ser uma dessas moças que em Maceió ficavam nas ruas de cigarro aceso esperando homem. Embora a menina não tivesse dado mostras de no futuro a ser vagabunda de rua. Pois até mesmo o fato de vir a ser uma mulher não parecia pertencer à sua vocação. A mulherice só lhe nasceria tarde porque até no capim vagabundo há desejo de sol. As pancadas ela esquecia, pois esperando-se um pouco a dor termina por passar (LISPECTOR, 1988, p. 28).

Macabéa é fruto de uma educação punitiva, na qual a tia acreditava que ela aprenderia com os castigos, mas, ainda assim, temia não conseguir atingir seu objetivo de responsável (única no mundo). Essa punição não se limitava à repressão moral, mas também ao corretivo físico (cascudos na cabeça, que deixavam de doer com o tempo), que parecia dar certo prazer à tia. Seria um recalque à repulsa que tinha pelo casamento – ou pela obrigação sexual que lhe é condicionada, a reprodução da espécie? Um recalque que se materializa na atitude sádica da tia e masoquista da sobrinha, ao se acostumar com a agressão.

Sobre este particular, Winter e Motta observam no texto clariceano referências fortes não só ao sadismo, mas também ao sadomasoquismo. A réspéito, os autorés assinalam qué: “Nas práticas éróticas, o sujéito

(12)

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 2, p. 54-70, jul.-dez. 2017

que tem prazer com a dor de outrem é nomeado sádico, enquanto que o sujeito que se faz objeto de si mesmo, tendo prazer com sua própria dor, é chamado masoquista”. Essé sadismo é éssé masoquismo, são individualizados pelos autores, não no caso da relação da Macabéa e sua tia, mas na conduta do Rodrigo S(ado). M(asoquismo), narrador que faz sofrer a sua criação (postura sádica dada pelo prazer da dor dos outros) e que sofre por ela (postura masoquista dada por ocasionar o próprio sofrimento). Em A hora da estrela, na visão dos autores, existe uma interessante vinculação entre a relação sujeito/objeto no plano ficcional e a relação sujeito/objeto no campo do erotismo, ambos extremos unidos por um elemento comum, a tensão entre dor e prazer (WINTER; MOTTA, 2006 apud VACCARO, 2011, p.148).

Aqui surge mais um elemento para a nossa análise no que diz respeito a esse narrador criado por Lispector, que nos remete a um afastamento identitário com a protagonista, a ponto de criar um intermediário entre a autora e a obra. Esse afastamento também pode ser identificado através do passado de Macabéa, que chega até nós mediante suas lembranças.

Voltando às inicias do suposto sobrenome deste narrador fictício, a relação sadomasoquista entre a tia beata e a jovem Macabéa, também aparece na representação das histórias de vampiros e sangue, contadas para assustar a menina, bem como as privações de alimento e diversão. Algumas dessas privações estavam na memória de Macabéa: “o castigo prédiléto da tia sabida” (LISPECTOR, 1998, p. 28), que dizia respeito à impossibilidade de a menina comer a sobremesa que mais gostava, isto é, goiaba com queijo e a impossibilidade de criar um bichinho, pois “a tia achava que ter um bicho éra mais uma boca para comér” (LISPECTOR, 1998, p. 29). Desses fatos, restou à protagonista da obra, a topologia sexual de Macabéa, ou seja, “do contato com a tia ficara-lhé a cabéça baixa” (LISPECTOR, 1998, p. 29) e o sentimento de inferioridade e submissão consentida.

Ao pensar na vida, fora da beatice da tia, “se por acaso viesse alguma vez a sentir um gosto bem bom de viver – se desencantaria de súbito de princesa que era é sé transformaria ém bicho rastéiro” (LISPECTOR, 1998, p. 32). Em outras palavras, dar à vida um gosto bom, ou seja, a experimentação do sexo, resultaria em um castigo bíblico, que desumaniza o indivíduo, transformando-o em bicho rasteiro, uma cobra, talvez. Então, reclusa no seu próprio eu e sem precisar (ou assim ela o pensava) ter alegrias e realizações, é como Macabéa viveria, pois “por pior que fosse sua situação, não queria ser privada de si” (ibidem). Ou seja, não iria desobedecer aos ensinamentos da tia, ainda que já estivesse morta. Mas como vimos anteriormente, o recalque sempre surge de alguma forma para dar vazão ao que está aprisionado no inconsciente, o sexo se fazia presente nos sonhos de Macabéa.

Quando dormia quase que sonhava que a tia lhe batia na cabeça. Ou sonhava estranhamente em sexo, ela que de aparência era assexuada. Quando acordava se sentia culpada sem saber por quê, talvez porque o que é bom devia ser proibido. Culpada e contente. Por via das dúvidas se sentia de propósito culpada e rezava mecanicamente três ave-marias, amém, amém, amém. Rezava, mas sem Deus, ela não sabia quem era Ele e, portanto, Ele não existia. (LISPECTOR, 1998, p. 34)

(13)

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 2, p. 54-70, jul.-dez. 2017 Contente, porém culpada. Por isso, apelava para a religião como quem tenta afastar de si a culpa de gostar daquilo que lhe ocorria em sonho. O religioso e erótico mesclam-se e configuram-se como arma de adestramento: rezar para purificar-se do que dá prazer. Ao “quasé sonhar” qué a tia lhé batia na cabéça, é observável o que Bourdieu (2012) fala do estado objetivado nas coisas: a representação institucional da religião materializando-se na repressão que a tia exercia sobre Macabéa; uma força ideológica religiosa que também lhe causara repulsa pelo casamento. Dessa forma, a tia, concomitantemente, é aquela que reproduz o poder e dele sofre repressão. Tudo isso ocorre sem que ela própria se dê conta. A tia transmitia um discurso que não era seu, que também lhe fora colocado, e Macabéa, obedientemente, repetia-o. E, assim, naturaliza-se a abominação do sexo, do desejo, e o pecado da luxúria.

Foucault (2013) afirma que o poder não é inerte, mas circula em todo o plano social, por meio das instituições e, sobretudo, dos próprios indivíduos. Assim, o sujeito atua como um agente desse poder, no entanto, a qualquer instante, sofrer as mesmas privações e repressões que exerce sobre o outro.

Assim, por um lado, a religiosidade que se pretende inculcar e, por outro,o s atos que originam prazer nas práticas desenvolvidas na educação que a tia carola dá a Macabéa, convivem e perdem seu caráter de elementos a priori contrários e se erigem como a base de uma instrução que pretende estar mais perto do adestramento que de uma educação familiar. Adestrar para não sentir, para adormecer o erotismo, para anestesiar os impulsos sexuais. Um domesticar da tia devota da

Macabéa que não impedem suas próprias

sensações (e seguramente suas culpas) sádicas e que também não funcionarão na tentativa de amestrar a sexualidade da pequena sobrinha. Os cascudos, os sofrimentos ligados às proibições ou interdições, o vedar as ações que a menina desejava, o acionar ligado a um forte componente religioso, enfim, a educação extremamente castradora não atinge o alvo perseguido pela violência da educação brindada pela tutora (VACCARO, 2011, p. 149-150).

O sexo fora reprimido não somente no intuito de prostrá-lo, criando indivíduos assexuados, uma vez que a própria Macabéa “dé aparência éra asséxuada” (LISPECTOR, 1998, p.34), mas como arma de poder, que o considera como ato abominável (Romanos 1: 26).

Nossa protagonista tinha dificuldades de se expressar, repetia o que ouvia, quase sempre o que a Rádio Relógio falava (sem se dar conta do que repetia), como anúncios de creme, informações históricas e palavras desconhecidas, que era o que mais lhe chamava atenção, como a palavra cultura, quase sempre repreendida pelo namorado, “isso lá é coisa pra moça virgém falar?” (LISPECTOR, 1998, p. 55). Em outros momentos, quando Macabéa trancava-se e só o acompanhava, ele, então, dizia-lhe: “mas puxa vida! Você não abre o bico é ném tém assunto!” (ibidem, p.56). Assim, a jovem representa muitas outras mulheres que foram silenciadas10. Em

suas lembranças, havia as recorrentes imagens dos castigos da infância, porém vistas com um certo conformismo por parte da jovem, pois “tinha saudade de

(14)

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 2, p. 54-70, jul.-dez. 2017 quando era pequena” (LISPECTOR, 1998, p.35), e de sua tia que lhe ensinou a nunca se queixar de nada.

Esta é a Macabéa, apresentada por Rodrigo S.M: um ser apático, mudo, amarelo e sem vida, incapaz de argumentar sobre algo, conformada comas condições sociais em que se encontra. Quando o namorado a indagava sobre mudar de vida, éla “não quéria, pois députada parécia nomé féio” (LISPECTOR, 1998, p. 47). Em outra passagem ela tenta se justificar ao rapaz dizendo: “desculpe mas não acho que sou muito gente” (LISPECTOR, 1998, p.48).

Não é de estranhar que o desfecho da narrativa culmine com a morte da jovem. E somente ali, no local de sua morte, como não acontecido em toda a obra, ela é vista por todos. Nos últimos instantes, ou suspiros, como bem coloca Rodrigo S.M, ela, ainda com vida, denuncia o seu estar/ser dentro da obra: “méxéu-se devagar e acomodou o corpo ém posição fétal” (LISPECTOR, 1998, p.84). Naquele momento, e só ali é que Macabéa se descobre e tem voz, dando sentido ao título da obra, A hora da estrela – a única hora dé Macabéa. A hora ém qué “agarrava-se a um fiapo de consciência e repetia para si mentalmente sem cessar: eu sou, eu sou, eu sou” (LISPECTOR, 1998, p. 84).

O que é curioso é que a morte da heroína em A hora da estrela é sempre, num eufemismo sui generis, a sua salvação. E isto também se aplica à temática corporal. Para quem não tem um corpo em que se sustentar na narrativa, na hora da morte é protagonizado para a moça, passo a passo, a mulher que não fora em toda a obra. É criança quando, depois de atropelada, acomoda “o corpo ém posição fétal”, é é adulta, é não mais virgem, quando, em estremecimento final, seu rosto faz lembrar, em esgares de desejo, um momento de intensa ânsia sexual [...]. É como se a narrativa quisesse lhe devolver, nos últimos instantes, tudo aquilo que lhe fora tira do no texto. Na morte é como se ela vivesse, num sugestivo encontro entre Eros e Tânatos (MEDEIROS, 2013, p. 6-7. Grifos da autora.).

Esse encontro de Eros (o desejo, a vida) com Tânatos (a sublimação de tudo, a morte) é o que faz de A hora da estrela ter sentido enquanto uma obra sobre a dor do ser humano – e não apenas da mulher Macabéa. É a certeza de que só teremos plena consciência do que somos, quando essa realidade não mais existe.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse artigo, analisamos o papel da repressão sexual para na formação identitária da figura feminina representada em uma das últimas personagens de Clarice Lispector. Para tal, propomos um diálogo entre a sexualidade e sua repressão, sobretudo através dos valores religiosos.

Macabéa chega até nós por meio de lembranças de infância relatadas por um narrador criado pela autora, o que nos permite compreender a colcha de retalhos que se constrói no desenvolver da personagem. Das suas Ave-Marias

(15)

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 2, p. 54-70, jul.-dez. 2017 rezadas após um medo súbito de ter sonhado com sexo, passando pela lembrança das proibições e pelos atos sádicos praticados por sua tutora, Macabéa vai (re)nascendo e “inspirando é éxpirando”, na sua mudez, e opacidade até o último suspiro, que a realiza, definitivamente, como mulher consciente de sua existência.

Percebe-se de que forma a Igreja impõe seu poder, fazendo com que os indivíduos reproduzam discursos que parecem ser naturais, a fim de moldar os comportamentos e sentimentos humanos. Da mesma forma, denunciamos o papel que a família, como grupo social mais imediato, é responsável pela construção identitária da protagonista.

Como é declarado na dedicatória do livro, a história de Macabéa retrata um “éstado dé émérgência é calamidadé pública”, que justifica essa investigação, no sentido de denunciar o poder exercido sobre as instituições sociais no agir humano, para que nós, leitores, não esperemos o último sopro de vida para reconhecermos que estivemos vivos, mesmo sem viver plenamente.

Notas

1 Segundo o autor, uma perspectiva que permite o atravessamento de fronteiras disciplinares, contestação de ideologias e mistura de disciplinas e conceitos, o que justifica nossa opção metodológica, que vai de encontro a uma perspectiva que parece dominar os saberes nos cursos de Letras das universidades brasileiras, a ponto de considerar Literatura e Linguística como disciplinas estanques e sem diálogo. Nesse estudo, o diálogo proposto perpassa questões sócio históricas, religiosas e psicológicas.

2 Aqui nos referimos ao conceito metalinguístico para relacionar o termo a uma construção ideológica pautada na sexualidade como entendida pela psicanálise e pela filosofia – e não apenas um vocábulo do senso comum, repetido com base na banalização do sexo e das suas manifestações.

3 Os sacramentos são a garantia da salvação para a Igreja Católica, no caso específico do matrimônio, torna-se santificado na indissolubilidade e na fidelidade (cf. http://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/p2s2cap1_1210-1419_po.html).

4 Na obra em questão, o autor investiga os modos de operacionalização da ideologia a fim de perceber como o sentido pode ser mobilizado no mundo social e como ele pode estar a serviço da dominação, neste caso em particular, a repressão sexual por parte da igreja.

5 Nos referimos, aqui, à teoria epistemológica fundada a partir dos Estudos Culturais e, mais recentemente, das noções de Globalização e Identidade, trazidas, por exemplo, por Santos (2000) e Santos (2004) e Bauman (1999; 2004), respectivamente.

6 Segundo Rodrigues (2013) “toda sexualidade necessita de um grau de agressividade, em proporções variadas. Essas polaridades são os cernes dos conflitos psíquicos. Em psicanálise, elas podem ser nomeadas pelos conceitos de pulsão de vida (Eros) e pulsão de morte (Tânatos)” versus a ideia de mortificação, pregada pela religião católica. Uma dessas práticas de mortificação usava o cilício, objeto que incomoda a pele, podendo ser constituído por tecidos ásperos, sacos de estopa ou mesmo pequenos ferros que, longe de perfurar a pele, causam um incômodo desagradável. Este é o sentido da mortificação: ordenar as coisas dentro de nós mesmos, já que, pelo pecado original, nossa carne corrompida quer governar a nossa alma.

(16)

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 2, p. 54-70, jul.-dez. 2017 7 A histeria é um termo conhecido há mais de dois milênios e, até a Idade Média, associado às mulheres. Durante a Inquisição, relacionava-se à possessão demoníaca. No século XIX, Freud começa a desenvolver estudos que mostram a histeria como um fenômeno que não demonstrava perturbação neurológica orgânica, não se caracterizava como fingimento e que não se apresentava somente em mulheres, mas tinha suas raízes em questões de ordem sexual.

8 A história de Macabéa será acompanhada, do início ao fim, por uma interminável dor de dentes. A dor é também uma característica da obra que se constrói sobre o alicerce de outras dores que serão vistas durante o trabalho.

9 As vezes em que Rodrigo S.M se refere a um acontecimento de grande relevância, como o começo da obra, a aparição de Macabéa, e a proximidade da morte, quando ela visita a cartomante, o narrador usa a palavra explosão.

10 A mulher, no campo religioso e sexual, assume uma condição subordinada em relação ao homem. Macabéa é constantemente repreendida pelo namorado e a todo instante lembra das proibições da tia. A repressão sexual na infância contribuiu para o consentimento dessa subordinação.

Referências

ARGUEDAS, José María. Los ríos profundos. Edición de Ricardo González Vigil. 14ª ed. Madrid: Ediciones Cátedra, 2016.

BAY, Carmen Alemany. Singularidades de José María Arguedas como escritor. América sin nombre. Alicante, Dept. de Filología Española, Lingüística General y Teoría de la Literatura/UA, n. 13-14, 2009, p. 160-167. Disponível em:

https://rua.ua.es/dspace/bitstream/10045/13383/1/ASN_13_14_19.pdf. Acesso em: 06 de nov. 2016.

BERGSON, Henri. Do reconhecimento das imagens. A memória e o cérebro. In: ______. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução Paulo Neves. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

CANDAU, Joël. Memória e identidade. Tradução Maria Leticia Ferreira. São Paulo: Contexto, 2014.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. NORONHA, Jovita M. G (org). Tradução: Jovita Maria Gerheim Noronha; Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

RAMA, Ángel. Transculturación narrativa em América Latina. México: Siglo XXI, 1982.

VIGIL, Ricardo González. Vida e obra de Arguedas: consideraciones generales. In: ARGUEDAS, José María. Los ríos profundos. 14 a. ed. Madrid: Ediciones Cátedra (Edición de Ricardo González Vigil), 2016.

(17)

Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli | V. 4, N. 2, p. 54-70, jul.-dez. 2017

Para citar este artigo

LINS JÚNIOR, José Raymundo F., LIMA, Rilna Marcia Barros. Macabéa, uma mulher insossa: repressão sexual e a construção da identidade feminina Macabéa – Revista Eletrônica do

Netlli, Crato, v. 6, n. 2, p. 54-70, jul.-dez. 2017.

Os autores

José Raymundo F. Lins Jr é Professor Assistente no Centro de Filosofia, Letras e

Educação da Universidade Estadual Vale do Acaraú, Doutorando em Linguística (UFPB), Mestre em Linguística Aplicada (UECE), Especialista em Planejamento e Gestão em Educação (UNEB). Coordenador de Estágios Supervisionados (Letras/UEVA) e Coordenador de área do PIBID-UEVA Letras/Inglês.

Referências

Documentos relacionados

Essa recomendação, aprovada pela American Dental Association e pela American Heart Association (1964), especifica que os vasoconstritores não são contraindicados em portadores

•   O  material  a  seguir  consiste  de  adaptações  e  extensões  dos  originais  gentilmente  cedidos  pelo 

O PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANÁLISE DE BACIAS E FAIXAS MÓVEIS, DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO –UERJ, torna público o presente Edital, com normas,

Este trabalho buscou, através de pesquisa de campo, estudar o efeito de diferentes alternativas de adubações de cobertura, quanto ao tipo de adubo e época de

Para definição da metodologia de projeto ótimo que minimize o peso estrutural (P) dos pórticos planos de aço, é necessário estabelecer um modelo matemático para o

O enfermeiro, como integrante da equipe multidisciplinar em saúde, possui respaldo ético legal e técnico cientifico para atuar junto ao paciente portador de feridas, da avaliação

To demonstrate that SeLFIES can cater to even the lowest income and least financially trained individuals in Brazil, consider the following SeLFIES design as first articulated

The histological cross-sections of the freeze-dried scaffold stained by alcian blue (Figure III 4-D) and eosin (Figure III 4-E) showed a homogeneous distribution of the