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Maternidade negra e a valoração da vida de jovens negros frente ao horizonte de violência

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIA DA SOCIEDADE E DESELVOLVIMENTO REGIONAL LICENCIATURA EM CIÊNCIAS SOCIAIS

CAROLINA NASCIMENTO DE MELO

MATERNIDADE NEGRA E A VALORAÇÃO DA VIDA DE JOVENS NEGROS FRENTE AO HORIZONTE DE VIOLÊNCIA

Campos dos Goytacazes 2018

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CAROLINA NASCIMENTO DE MELO

MATERNIDADE NEGRA E A VALORAÇÃO DA VIDA DE JOVENS NEGROS FRENTE AO HORIZONTE DE VIOLÊNCIA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a obtenção do grau de Licenciatura em Ciências Sociais.

ORIENTADORA: Profª Drª Jussara Freire

Campos dos Goytacazes 2018

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Ninguém nos disse que seria fácil Segurar a onda, dá na cara e continuar Não deixe que tentem te colonizar Te converter, te doutrinar Te alienar Eu quero voar Escrever o meu enredo Liberdade é não ter medo

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos que me guiam e me guardam. Oke Aro, meu pai Oxóssi.

Em toda as minhas tentativas de imersão para a partir do mundo me compreender e tentar compreender o mundo a partir de mim, os caminhos sempre estiveram iluminados. Com a umbanda, consegui traçar uma ideia de como os que vieram antes de mim sobreviveram à materialidade cruel da violência. A construção da minha fé, acompanha a minha construção da minha própria identidade, do meu entendimento enquanto sujeito no mundo. Ao contrário de uma anestesia que me fizesse ver o mundo de forma turva, minha fé e minha conexão com os meus guias, com o astral, me fez fincar os pés no chão e olhar o mundo de forma coerente e sincera, a maioria das vezes isso machuca, mas também me fez sempre saber o porquê eu busco ocupar os espaços que ocupo, de lutar pelo que luto, de simplesmente não esquecer do que me trouxe até aqui. Agradeço, então, aos que me guiam e me guardam, por me ajudarem a manter minha espinha ereta, meu corpo no presente.

Agradeço aos que vieram antes e lutaram, em uma batalha sangrenta secular, para que eu tivesse o “direito” de estar viva. A conquista de direitos básicos e as possibilidades que se abrem cada vez mais, existem porque incontáveis pessoas não aceitaram as injustiças, porque questionaram o que estava posto como única possibilidade de vida. Olhar pra trás também me ajuda a olhar que o que tenho agora são conquistas de lutas, mas ainda poucas. Me fazem entender que a luta por novas possibilidades de vida para os nossos é um processo que não se vê o fim, mas me faze ter força para segui-lo, pois no mundo há novos aromas e auroras que os que virão poderão ter para si. A minha busca por narrativas contra-hegemônicas impostas, me fez encontrar as mais diversas histórias e estratégias para se viver, para sobreviver. Agradeço, então, aos outros que vieram antes e lutaram, o aprendizado transmitido foi como ondinhas e tsunamis que me sacudiram para acender o que já estava aqui dentro, mas que a sociedade sempre buscar apagar. Minha existência e minha insistência de me manter viva, lutando e não me calando frente a esse mundo-cão, eu tenho porque essas vozes me foram ecoadas e vibraram dentro do meu corpo, dentro da minha alma.

Agradeço às mulheres maravilhosas da família Nascimento. Agradeço à todo o amor, carinho, afeto que, no meio de tanta dor, vocês fizeram questão de me dar. Todo esse carinho preencheu meu coração de tal forma que tudo que eu faço, eu vejo como uma devolutiva possível. Acho que nunca conseguiria explicar como tê-las ao meu redor, podendo observar,

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amar, me inspirar em vocês, mulheres tão incríveis, guerreiras, afetuosas me fizeram a mulher que sou. Vocês são flores-rosas que têm todo o amor do mundo para transmitir e, ao mesmo tempo, as armas para sobreviverem a um mundo que o amor não é a premissa básica. Minha busca constante é ser um orgulho para vocês. Essa monografia eu dedico à essa família, de mulheres incríveis, que como tantas outras Nascimento, Silva, Santos, etc. precisam ter suas vozes ecoadas, suas histórias contadas. As imposições estruturais para as mulheres pobres, negras são esmagadoras, mas mesmo assim todas vocês lutaram por mim, pelos que vieram depois. Agradeço, então às mulheres maravilhosas da família Nascimento por me criarem inúmeras possibilidades para que eu pudesse viver e lutar pelos meus sonhos, por maior que fossem as dificuldades.

Agradeço à cada amiga maravilhosa que tenho. Vocês são pura luz em minha vida, vocês me inspiram, me iluminam quando não consigo enxergar direito. Eu me sinto honrada de poder ser amiga de tantas mulheres fodas e aprender tanto, de formas tão diferentes. Sempre que penso em vocês, que estão em São Paulo, eu sinto minhas partículas vibrarem de tanto carinho que sinto por cada uma de vocês. Esse ano foi crucial para eu entender o quanto eu sou sortuda de estar sempre rodeada de pessoas incríveis. Agradeço, então, à cada amiga maravilhosa pelos afetos e trocas sinceras.

Agradeço ao universo que me possibilitou ter vindo para Campos dos Goytacazes e a tudo que vivi nessa cidade. O tanto que aprendi e cresci vivendo na Planície Goytacá são infinitos e inimagináveis para mim antes de vir para cá. Agradeço à cidade por ter me feito criar laços fortes e sinceros que levarei para a vida. Esse lugar parece um imã para mulheres multiplamente admiráveis que tive o prazer e honra de conhecer. E, também, devido à toda carga histórica há muitas pessoas incríveis que desabrocham aqui e transformam dores históricas em lutas diárias. Na Planície, só sobrevive quem é guerreira (o). Agradeço, então, ao universo que me possibilitou ter vindo para Campos dos Goytacazes e crescer e aprender sempre a estar armada de força e voz porque a luta é constante.

Agradeço ao grupo CEP28 pela abertura de se pesquisar pautas tão relevantes. Me orgulho de fazer parte de um grupo com pesquisadores excelentes. Foi com cada integrante que aprendi a ser uma pesquisadora. Agradeço especialmente à Jussara Freire, uma professora, pesquisadora e, o mais importante, um ser humano maravilhoso. Agradeço por sempre acreditar nos seus orientandos, por sempre acreditar nas nossas narrativas e dores possibilitando vocaliza-las através de pesquisas e, principalmente, não silenciá-vocaliza-las através de uma falsa neutralidade de pesquisa. E agradeço à Proppi e CNPq pela possibilidade de tornar o projeto de pesquisa nessa monografia.

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Agradeço a possibilidade de poder ter composto o Coletivo Negro Mercedes Baptista e o Movimento Negro Unificado, o tanto que aprendi com cada pessoa é imensurável. Negras (os) organizadas (os) causam medo constante porque todos sabem o quanto ele pode abalar as estruturas eurocêntricas capitalistas impostas.

Agradeço a todos que acreditaram em mim, mesmo e que me ajudaram a enxergar minha potência quando eu só conseguia enxergar que eu não conseguiria fazer nada. E, também, aos que me ajudara financeiramente a me manter nessa cidade para estudar. Eu cruzei o caminho de tantos seres de luz que não pareciam pertencer a esse mundo. Sou eternamente grata aos que possibilitaram todo essa jornada acadêmica que pude trilhar.

Agradeço às mulheres que abriram suas portas para que eu pudesse ouvir sobre suas histórias enquanto mulheres-negras-mães. Falar sobre vocês é falar sobre toda a base estrutural social brasileira. Então, agradeço por falarem sobre suas trajetórias, suas dores, suas lutas. Agradeço por fazerem possível esse Trabalho Final.

Por fim, agradeço a mim mesma por não ter desistido frente às violências recorrentes de se estar em um ambiente que “não é seu” e, ainda, se fazer ser ouvida. Só eu sei o quanto minha existência foi ferida e machuca neste ambiente hostil, nesta cidade hostil. Mas, vaso ruim não quebra e continuei aqui, com a espinha ereta e o faro fino, vocalizando tudo o que me era possível e válido. Ser mulher, negra lgbt ocupando a universidade e uma cidade essencialmente escravocrata é uma luta diária e amarga, mas com um gostinho de que a história do mundo está dada e é inegável. As tentativas de se calar essa história do mundo é incansável, mas minha vontade, como a de muitos, de vocalizar é muito maior. Sou uma enquanto sujeito, mas somos muito falando e rachando as estruturas que estamos inseridos.

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RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar as experiências de maternidade de mulheres negras moradoras da cidade de Campos dos Goytacazes. Propõe-se explorar o repertório da “maternidade negra” a partir do ângulo de mulheres que não são necessariamente engajadas no movimento social, particularmente no movimento negro. Tem-se como proposta, descrever e interpretar os sentidos conferidos à categoria e as experiências sensíveis por ela sugeridas e a carreira moral (Becker, 2008) de mães negras a partir de seus pontos de vista. Partindo da hipótese de diferenciação nos desiguais tratamentos referentes às mães negras das demais mães, mostra-se necessário um recorte racial cujo qual fundamenta uma denúncia pública de díspares tratamentos institucionais em relação às vidas negras e não negras, propõe-se uma análise das experiências maternas no que tange às formas de se viver junto e em comunidade nos seus bairros e, por isso, privilegiando avaliações ordinariamente realizadas por mães negras quando estas encontram-se em situação de explicar “problemas de maternidade” e suas consequências no que se refere aos ordenamentos sociais e morais da cidade.

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ABSTRACT

The present study aims to analyze the experiences of motherhood of black women living in the city of Campos dos Goytacazes. It is proposed to explore the repertoire of "black motherhood" from the angle of women who are not necessarily engaged in the social movement, particularly the black movement. It is proposed, describe and interpret the meanings conferred to the category and the sensitive experiences suggested by it and the moral career (Becker, 2008) of black mothers from their points of view. Starting from the hypothesis of differentiation in the unequal treatment of the black mothers of other mothers, it is necessary to have a racial cut which is based on a public denunciation of disparate institutional treatments in relation to black and non-black lives, it is proposed an analysis of maternal experiences with regard to the ways of living together and in community in their neighborhoods and, therefore, favoring evaluations ordinarily carried out by black mothers when they are in a position to explain "maternity problems" and their consequences with regard to the ordinances social and moral aspects of the city

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SUMÁRIO

1. Introdução ... 1

1.1. A mulher negra no debate público ...4

2. Eu, mulher negra, pesquiso ... 7

3. Identidade Racial no Brasil ... 10

3.1 Miscigenação e negação do racismo ... 11

3.2 Dificuldade de se compreender enquanto negro ... 14

4. Violência urbana e o horizonte de medo ... 19

5. Considerações Finais ... 28

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1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho consiste em um desdobramento de pesquisas anteriores coordenadas por Jussara Freire sobre experiências públicas de familiares de vítimas de “violência urbana” e das quais participei. Dentre estas pesquisas, a penúltima que Jussara Freire coordenou, no ano de 2017-2018, intitula-se “Justiça dos homens” e “Justiça divina”: experiências públicas de familiares de vítimas de violência em Campos dos Goytacazes1. A equipe desta pesquisa foi formada por parte de integrantes do grupo de pesquisa Cidades, Espaços Públicos e Periferia - CEP28 (Diretório CNPq), também coordenado por Jussara Freire. Destaco que Thayna Araújo Carvalho foi bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Pesquisa (PIBIC) e eu participei da equipe como fui pesquisadora voluntária.

Em seguida, desde março de 2019, participo enquanto bolsista PIBIC/CNPq da pesquisa Sociabilidade fragmentada: Uma análise por contraste de “maternidades negras e brancas também coordenada por Jussara Freire. Partindo das contribuições de Rocha sobre a maternidade negra (2016), o objetivo é de realizar uma comparação por contraste de experiências de maternidade, procurando compreender os efeitos das interseções entre questões de raças/gêneros/áreas residenciais no que tange à definição de situação problemáticas quanto à circulação de filhos jovens de (e por) mulheres que são as nossas interlocutores. Trata-se, em particular, de descrever e interpretar como mulheres negras e periféricas problematizam os riscos que seus filhos encontram no cotidiano da cidade. Desta forma, propusemos desta vez refletir sobre as experiências maternas em relação a filhos vivos.

Durante estas experiências, fui profundamente afetada pelos relatos das interlocutoras, reflexões e diálogos que ocorreram nos períodos destas pesquisas. Estas últimas me fizeram explorar cada vez mais as questões da negritude. Os relatos e experiências estudadas ecoavam diretamente com vivências que resultam de minha cor. Além disso, percebi como as diversas mães negras e/ou de filhos negros que conheci no decorrer da minha vida desenvolveram as mais diversas estratégias para valorizar a vida de seus filhos, protegê-los dos perigos da rua e incentivar um “futuro melhor”. Paralelamente, percebo o presente trabalho como um esforço devolutivo à todas que vieram antes de mim e que, com lutas seculares, me ajudaram a chegar

1 Este trabalho foi desenvolvido por Jussara Freire (coord.), Carolina Nascimento de Melo, Thayna Araujo e

Vviany Santos, membros do grupo de pesquisa Cidades, Espaços Públicos e Periferias (CEP 28) durante os anos de 2017 - 2018 em Campos dos Goytacazes/RJ.

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neste papel de pesquisadora, antes negra, que compreende a importância de vocalizar questões por vezes silenciadas.

Participando de movimento social e, especificamente, do movimento negro, observava que as “vitórias” das pessoas negras, como cursar uma graduação em uma universidade pública, por exemplo, resultam frequentemente de mobilizações coletivas., A posição de entrar na universidade e meu engajamento no movimento negro me estimularam para pesquisar questões étnico-raciais. Este campo de pesquisa me parecia indispensável para compreender parte das estruturas da sociedade brasileira e suas desigualdades. Ainda considerava que meu trabalho poderia ser um meio de “ecoar” com o silenciamento histórico de inúmeras vozes negras em nossa sociedade cujas desigualdades raciais são exacerbadas.

Com efeito, a juventude negra no Brasil é o principal alvo de múltiplas formas de violência: O Atlas da Violência de 20162, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) aponta para o fato de que, dentre todas as pessoas assassinadas no Brasil em 2016, 71,5% eram pretas ou pardas3. Os dados são alarmantes, mais ainda em relação aos perfis das vítimas, jovens, negros e homens em grande maioria: em 2016, 33.590 jovens foram assassinados, 94,6% deste número era homens. Corroborando com estes dados, a cidade de Campos dos Goytacazes é considerada a 19ª cidade mais violenta do mundo4, segundo pesquisa da ONG Conselho Cidadão para Segurança Pública e Justiça Penal que baseou sua lista de cidades violentas a partir do número de homicídios por 100 mil habitantes. Estes números de mortes frequentemente associadas à “violência urbana” apresentam a amplitude do problema da letalidade da/na juventude negra. Paralelamente, eles ainda nos indicam a quantidade de famílias que se encontram em situação de luto e se desestruturam após a perda de um ente querido. Diante da amplitude do problema das mortes de jovens negros, procuramos compreender uma outra de sua faceta, isto é, como ele também afetam a vida cotidiana de famílias negras que não sofrem de lutos, mas que podem temê-lo.

Em suma, diante deste contexto brasileiro de violência contra negros, procuramos compreender as estratégias que as mulheres fazem para valorizar de seus filhos negros, os principais alvos das formas de violência no Brasil, de modo que os riscos de exposição de suas vidas sejam reduzidos. Diferentemente de pesquisas anteriores de Freire (2017; 2010), nesta

2 Esses e outros dados são encontrados no próprio site do FBSP:

http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/atlas-da-violencia-2018/ e

https://www1.folha.uol.com.br/empreendedorsocial/colunas/2017/11/1937240-racismo-no-brasil-e-o-exterminio-da-juventude-negra.shtml

3 O IBGE utiliza a categoria “negro” para se referir às pessoas que se declaram pretas ou pardas no Brasil 4

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pesquisa, nossas interlocutoras foram mulheres não engajadas em coletivos e organizações, os quais poderiam ancorar mães e ajuda-las para encaminhar denúncias públicas

Metodologia da pesquisa

Para analisar este problema de pesquisa, realizamos uma análise documental com o objetivo de levantar e sistematizar a produção científica referente aos temas da pesquisa, em particular estudos sobre relações raciais no Brasil, sobre mobilizações coletivas negras e sobre maternidade (em uma abordagem socioantropológica).

A técnica relatos de vida foi utilizada para retratar as trajetórias de maternidade das mulheres que foram minhas interlocutoras. Conduzimos as entrevistas em tom de conversa informal, procurando estabelecer um ambiente favorável a narração das experiências pessoais das mães. Fazíamos perguntas com a máxima de abertura de modo que as mães pudessem discorrer sobre suas trajetórias particulares e narrar a posteriori possíveis correspondências entre as situações contadas e as problematizações dos atores em relação à vida cotidiana e a circulação dos filhos na cidade de Campos dos Goytacazes.

Foram entrevistadas cinco mulheres mães de filhos negros jovens. Assim, maternidade negra neste trabalho, enquanto categoria de análise, se referirá às mães cujas experiências maternas similares se dão, entre outros fatores, pela negritude de seus filhos. As mães que consideramos negras têm experiências comuns, em particular quanto a vivências estigmatizações delas e/ou de seus filhos. No entanto, vale destacar que nem todas se apresentavam como negras.

A primeira mãe, aposentada de cerca de 60 anos, que conheci no quadro desta pesquisa foi apresentada por um amigo negro de 26 anos. Ele me passou o número de telefone de sua mãe que aceitou facilmente a situação de entrevistas. A segunda entrevistada é mãe de um jovem campista participante de um movimento universitário. A terceira entrevistada, diarista, me foi apresentada pela minha orientadora. A quarta mãe foi indicada pela primeira mãe, são irmãs. E, por fim, a última mãe foi escolhida por ter mais envolvimento político com a questão étnico-racial na cidade. Fiz esta opção feita para tentar refletir sobre os contrastes entre mães que teriam “consciência negra” ou não.

Nas ocasiões destas conversas, realizei observações nas casas e, em alguns casos, nos trabalhos destas mães. Em geral, as entrevistas foram realizadas em suas casas, ambiente que pareceu mais adequado para falar de assuntos muito pessoais.

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A maternidade negra como categoria analítica

A categoria maternidade negra foi retomada do capítulo de Luciane Rocha, “De-matar: Maternidade negra como ação política na Pátria Mãe (Gentil?)”, do livro Antingritude – O impossível sujeito negro na formação social brasileira (Rocha in Pinho; Vargas 2016). Neste capítulo, a autora ressalta a importância da participação das mulheres negras dentre as estratégias que permitem transcender o genocídio da juventude negra. Para esta autora, é destacada “a noção de maternidade negra como uma alternativa política em exercício frente à antinegritude brasileira” (Rocha, 2016, p. 177). Rocha (op. cit.) ainda propõe a categoria de-matar para caracterizar este esforço de mães que tiveram seus filhos e filhas vitimadas pela violência e demonstrar senão provar à sociedade que eles não eram “bandidos” e, consequentemente, elas não são “mães de bandido”.

Propomos retomar a categoria maternidade negra para caracterizar experiências comuns de mulheres negras, incluindo aquelas relacionadas com o de-matar, mas desta vez para analisar como outra pode ser a de antecipar que “algo acontece” com os filhos vivos, tentando evitar exposição aos riscos de assassinatos de seus filhos.

A proposta é, portanto, de analisar a maternidade negra de mulheres de e em vida desses filhos. Com efeito, se a violência representa um horizonte constante e perturbador na rotina destas mães, procuro compreender que estratégias de “segurança” as mães desdobram para manter seus filhos vivos. Vale destacar que, no caso que analiso, a maternidade negra é entendida como categoria analítica que nos auxilia para a compreensão das estratégias maternas de preservação da vida dos filhos. Como já mencionei acima, as mulheres com quem conversamos (em duas ocasiões, minha orientadora estava presente) não são necessariamente negras ou não têm uma “consciência negra”. Como abordarei mais adiante, a construção identitária no Brasil se dá por percalços históricos que afetaram-nas. Sendo assim, a maternidade negra parece ser a priori uma categoria analítica relevante para analisar como questões estruturais de raça e classe determinam experiências comuns de se viver essas maternidades que se dão através do medo e formas de estigmatização.

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No primeiro momento da pesquisa, realizei um levantamento bibliográfico sobre o tema da maternidade negra. Além do trabalho de Luciane Rocha que é um referencial analítico neste trabalho, encontrei alguns estudos raciais se referiam à maternidade ou pesquisas sobre maternidade que enfatizavam questões raciais. A maioria das obras e artigos encontrados em acervos digitais sobre mães negras se referiam a violência obstétrica que as mulheres negras sofreram durante a gravidez, a movimentos de mães de vítimas de violência policial, à representação de mulheres negras nas mídias e obras literárias. Em seguida, realizei buscas em plataformas digitais, lançando os seguintes temas: violência urbana, família negra, narrativas negras e gênero e raça. Encontrei meia dúzia de artigos sobre cada temática. É importante ressaltar a importância das mídias sociais como blogs e canais no Youtube, pois nos últimos anos, foram criados inúmeros blogs e perfis em redes sociais justamente para divulgarem narrativas negras (MENEGON, 2013). Muitos jovens negros, acadêmicos negros, mulheres e homens negros, dentre outros, utilizavam seus perfis nessas redes sociais para abordar questões raciais das formas mais diversas possíveis. É interessante observar a diversidade de posições sobre a negritude e suas vicissitudes na sociedade brasileira. Em particular, pode-se observar que mulheres negras utilizavam essas redes para falar de suas vivências cotidianas e, às vezes, de questões em torno da categoria maternidade.

Observando este cenário, compreendi a importância de se debruçar sobre as questões que mães negras levantam quando elas falam de seus filhos, quais são as estratégias possíveis que elas invocam para que seus filhos permaneçam vivos em um contexto de violência racial constante.

Uma dificuldade que encontrei se relacionava precisamente com a forma de uma categoria unificada, como a maternidade pressupõe se não for considerada como categoria de análise. Pois, as experiências de identidades maternas são as mais diversas possíveis. Paralelamente, na medida em que realizei a pesquisa de campo, observei uma série de repetições de experiências comuns nos ciclos de vida de mães que permitiam identificar claramente uma relação entre a maternidade e a negritude.

Devido à delicadeza do assunto, a minha proximidade e envolvimento com o tema, temi que este trabalho ficasse com um “caráter de psicanálise”. Devido à minha afetividade com o tema, precisei realizar um trabalho constante – em particular durante as interlocuções com minha orientadora - para voltar ao problema sociológico analisado nesta pesquisa.

Esse trabalho será divido em 4 capítulos: em primeiro lugar, faço uma contextualização da escolha do tema, da metodologia e busco justificar o trabalho, no segundo apresento brevemente a produção intelectual negra e como isso interfere na escrita e escolha de

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pesquisadores que se debrucem sobre temas que lhe impliquem; no terceiro capítulo, Identidade Racial no Brasil, apresento algumas das dimensões da identidade racial no Brasil e suas problematizações. No quarto, analiso os medos e estratégias que as mães encontram cotidianamente para evitar a exposição aos riscos de violência de seus filhos e o último se refere às considerações finais da pesquisa.

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2. EU, MULHER NEGRA, PESQUISO

Durante a graduação, observando a universidade e as interações que nela ocorriam, percebi uma mudança significativa no cenário universitário. Na Universidade Federal Fluminense e, mais amplamente em Campos dos Goytacazes, houve um crescimento de organizações negras e um aumento significativo do debate sobre o racismo. Vozes negras emergiam com muito mais frequência na cidade. Essas “novas” narrativas emergiam no espaço público durante um período de expansão do ensino superior no país e de crescimento do número de estudantes negras e negros nas universidades. Paralelamente, havia ainda um processo de retomada das discussões raciais em torno da estética política do corpo negro. Essas “novas” narrativas incidiram na ordem moral e na sociabilidade da universidade. Observei uma tentativa, nem sempre tranquila e amigável, de adaptação desses novos corpos e discursos produzidos neste ambiente.

Pude perceber frequentemente tensões relacionas com diferentes concepções de mundo. Em particular, havia desqualificações de saberes não considerados científicos pela mesma. Ressalto esse aspecto pois isso afetou toda a minha produção acadêmica durante a graduação. Inúmeras vezes, eu observava uma desqualificação de minhas contribuições em debates acadêmicos, pois minhas abordagens não eram consideradas científicas e isso, independentemente da coerência metodológica utilizada. Percebia frequentemente a desvalorização de opiniões, posições e contribuições de negras, por vezes francamente evitadas de serem tratadas em público. A universidade era assim um espaço por vezes hermético, pouco receptivo e inventivo em relação à introdução de abordagens que poderiam favorecer tratamentos mais simétricos com negros.

Essas problemáticas afetaram toda minha produção acadêmica durante minha graduação porque internalizei essa desqualificação. Então, por mais que eu estudasse o conteúdo curricular de meu curso e outros ainda, que julgava importantes na minha formação enquanto pessoa, sem muitas vezes achava que não estava conseguindo, que estava fazendo pouco ou não sabia o que estava fazendo, que eu não devia estar onde estava. Meu engajamento em movimentos sociais foi o que me permitiu permanecer na universidade. Esta participação no coletivo estava intrinsecamente relacionada com meus estudos universitários e extra-acadêmicos. Ainda assim, minha sanidade mental e capacidade intelectual eram constantemente questionadas, o que foi particularmente difícil de vivenciar. Meu engajamento em movimentos sociais foi essencial para que eu conseguisse compreender a coerência das minhas explorações de muitos mundos simultâneos nestes anos.

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Todavia, a tentativa de escrever uma monografia com essa temática foi um processo muito denso. As minhas cobranças internas aumentaram exponencialmente. Dificuldade psíquicas se agravaram, bem como problemas financeiros e precisei encontrar um emprego. Neste processo, a solidão da própria escrita, que se soma à experiencia de solidão que afeta especifica e cruelmente mulheres negras, tornava mais ainda dolorosa a escrita. Por mais que eu estivesse escolhido o tema, dialogasse constantemente com minha orientadora sensível à minha experiência e já tivesse uma bagagem de leitura considerável, eu fiquei muitas vezes extasiada e paralisada. Muitas vezes, não achava válido o que eu tinha me proposto a produzir.

Outra importante dificuldade foi ainda o forte vínculo afetivo que mantinha com o tema. Sendo a Ciências Sociais a ciência da alteridade, como analisar um objeto que implica intensas relações de proximidade com minha experiência? Como um ser completo com um corpo atravessado por tantas questões sociais, produzir sobre a temática negra me fez perceber cada vez mais a importância de se descolonizar o pensamento e o saber científico. Ser uma universitária negra me parece apontar para a importância de produzir conhecimentos voltados para outras narrativas, as negras e contribuir para o reconhecimento intelectualidade negra no fazer científico. Sobre este ponto, destaco que um texto central que conduz minhas reflexões foi o Intelectuais Negras da bell hooks5.

hooks (1995) explica que o caráter anti-intelectualista da sociedade faz com que o trabalho intelectual seja desvalorizado, o que afeta diretamente a importância que grupos marginalizados dão ao trabalho intelectual como uma atividade útil, pois as emergências materiais cotidianas fazem com que haja um afastamento dessa atividade pois essa produção não “gera retorno”. A autora observa que este trabalho não está desvinculado da política e do cotidiano e que este permite entender a realidade, o mundo, o concreto. Prossegue explicando-nos que “o trabalho intelectual é uma parte necessária da luta pela libertação, fundamental para os esforços de todas as pessoas oprimidas e/ou exploradas, que passariam de objeto a sujeito, que descolonizariam e libertariam suas mentes.” (hooks, 1995, p. 466)

Ela retrata como ser intelectual e negra traz complexidades distintas das outras pessoas que se propõe a percorrer por este caminho. Segundo ela, essa intelectualidade específica é vista como “suspeita” pois ameaça o status quo. Vale ainda ressaltar que o racismo e sexismo atuam historicamente na perpetuação de uma representação da negra que serve e cuida dos outros, isto

5 bell hooks é o pseudônimo de Gloria Jean Watkins, escritora norte-americana. Em homenagem à mãe e avó, ela

utiliza a grafia toda minúscula pois, segundo ela: “o mais importante em meus livros é a substância e não quem eu sou”. Essa explicação foi tirada da postagem https://mardehistorias.wordpress.com/2009/03/07/bell-hooks-uma-grande-mulher-em-letras-minusculas/

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é, vistas como corpos sem mentes. Para ela, “(...) os corpos femininos negros são postos numa categoria, em termos culturais, tida como bastante distante da vida mental” (hooks, 1995, p. 469).

Esses pontos em conjunto com a secundarização do trabalho intelectual devido às emergências matérias cotidianas, a solidão exigida durante o processo de escrita e afastamento da coletividade, influenciados pelo que ela chama de modelo burguês de atividade intelectual e o racismo e sexismo que fazem com que os outros duvidem da capacidade da excelência da intelectual negra fazem com que inúmeros bloqueios sejam criados, dificultando tanto a escrita, quanto a própria vontade de fazê-la.

A descolonização da própria mente torna-se necessária para encontrar estratégias de avaliações críticas de nossos trabalhos e compreender que eles podem ter impactos significativos na estrutura coletiva. Concordando com a autora “(...) devemos com frequência tomar a iniciativa de chamar a atenção para o nosso trabalho de um modo que reforce e fortaleça um senso de público” (hooks, 1995, p. 474). As contribuições desta autora me ajudaram, pois apesar da afetividade e perturbação gerada por esse trabalho na minha própria e na vida de pessoas próximas, a minha abordagem é essencialmente sociológica. Por este motivo, utilizei a metodologia científica necessária e exigida para ser considerado acadêmico. Os problemas abordados não são individuais, afetam um público negro e permitem compreender para compreender os efeitos de uma sociabilidade violenta para mulheres negras.

Minhas preocupações intelectuais estão intrinsicamente relacionadas com as questões sociais vigentes no presente. Reitero a importância de ser negra, produzindo um trabalho negro através de narrativas negras. Retomo novamente as palavras de bell hooks: “Quando o trabalho intelectual surge de uma preocupação com a mudança social e política radical, quando esse trabalho é dirigido para as necessidades das pessoas, nos põe em uma solidariedade e comunidade maiores. Enaltece fundamentalmente a vida.” (hook, 1995, p. 478)

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3. IDENTIDADE RACIAL NO BRASIL

Esse capítulo apresento algumas considerações sobre os questionamentos que observei na pesquisa de campo. Durante as conversas, algumas das mulheres entrevistadas duvidavam da própria negritude. Na fase exploratória da pesquisa de campo, refletimos sobre a categoria analítica de maternidade negra. Por este motivo, pareceu-me indispensável compreender, no processo histórico nacional, os motivos dessas dificuldades de reconhecimento identitário das mulheres entrevistadas.

Nos séculos XIX e XX, no pós-abolição, dois processos se entrecruzaram na tentativa de se criar uma identidade nacional no Brasil: o primeiro foi a tentativa de embranquecer o Brasil e o segundo, de negar os conflitos raciais gerados desde a escravidão.

Influenciado por ideias eugenistas e positivistas de desenvolvimento e rumo à modernidade que surgiam no mundo neste período, tanto a elite local, quanto os políticos e intelectuais tentaram adaptar as teses raciais clássicas ao contexto brasileiro. Nesse período, havia uma preocupação quanto ao “futuro da nação”, particularmente aqueles que eram percebidos como aqueles que o comprometeria: as “raças inferiores”, os descendentes das pessoas que foram escravizadas, os negros.

Segundo Hofbauer (2007), houveram inúmeras políticas públicas destinadas a transformar o Brasil em um país majoritariamente branco. Esta busca do Brasil se tornar uma país “superior” e “evoluído” pode ser exemplificado com a importação de mão-de-obra europeia quando 2,5 milhões de europeus migrassem para o Brasil. Quase um milhão dentre eles tinham suas viagens financiadas pelo Estado. Outro exemplo é o controle reprodutivo sobre as mulheres negras para evitar a procriação de crianças negras. Segundo, Goes e Santos (2014) dentro da medicina legal, “(...) os métodos contraceptivos hormonais e definidos como a esterilização em massa, [foram utilizados] com a finalidade de diminuir o contingente populacional negro do país” (GOES, SANTOS, 2014, p. 2532)

Em 1971, Abdias do Nascimento ressaltava como as leis de imigração impediam legalmente a vinda de negros e asiáticos ao Brasil: “é inteiramente livre a entrada nos portos da República dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho [...] excetuados os indígenas da Ásia ou da África, que somente mediante autorização do Congresso Nacional poderá ser admitidos” (NASCIMENTO, 1978, p. 71).

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Porém, diante da impossibilidade de executar um projeto nacional com a maioria dos habitantes brancos, tentou-se posteriormente construir um ideal de nação a partir da tematização da harmonia racial interligada com a pauta da miscigenação. Esta era vista de forma paradoxal: de um lado, acreditava-se que o país era degenerado justamente por causa da mistura entre raças consideradas “superiores” (branca) e “inferiores” (negra). Por outro, a miscigenação era vista como uma possibilidade de branqueamento da nação. Porém, o ponto principal da miscigenação no Brasil foi a inserção de uma percepção do Brasil como uma nação harmoniosa e sem conflitos raciais. Por mais que Gilberto Freyre não tenha utilizado o termo democracia racial em suas obras, Casa-grande e Senzala (1933) contribuiu de forma decisiva para a consolidação do mito da democracia racial no Brasil. A interpretação desta obra gerou a constituição de um lugar comum: devido às “relações harmoniosas” entre brancos e não brancos, não haveria conflitos raciais no país.

Nesse sentido, o mito da democracia racial teve um papel fundamental para amenizar a gravidade das violências sistemáticas sofridas pela população negra desde a escravidão e ocultar as políticas de branqueamento no Brasil. Paralelamente, o pressuposto de harmonia racial contribuiu para o desprezo senão desconsideração das pautas e reivindicações da população negra durante décadas, pois não existiria diferenças de tratamentos e desigualdade decorrentes de ser negro.

3.1 Miscigenação: negação do racismo

A miscigenação é crucial para compreender o que influi na tentativa de criação de uma futura nação desenvolvida sem os imperativos raciais dos negros que eram tidas como aqueles que gerava uma “sociedade degenerada”. Paralelamente, negava-se justamente as desigualdades raciais e imposições sofridas pelos negros diante de políticas públicas tão desiguais e orientadas por valores racistas.

Todavia, a miscigenação também contribuiu para a negação do racismo no Brasil por meio da associação do país com uma forma de harmonia social, frequentemente comparada a países que sofriam explicitamente de segregação racial como os Estados Unidos. No Brasil, a

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miscigenação produziu uma negação da negritude devido à dificuldade da população negra de se entender enquanto tal.

Segundo Silva e Weschenfelder (2018, p. 219),

A miscigenação torna-se o nexo que articula o não-racismo, pois inscreve-se na narrativa da nação como uma “prova material” de que o racismo não existe, posto que um novo povo que se miscigena não pode ser racista. Nesse sentido, a miscigenação atua como antídoto ao racismo ao mesmo tempo que funciona como estratégia de branqueamento, atendendo ao propósito eugenista. A democracia racial faz a miscigenação o dispositivo que organiza a narrativa do não-racismo simultaneamente ao branqueamento do corpo-espécie da população.

Para Fernandes, “mitos existem para esconder a realidade. Por isso mesmo, eles revelam a realidade intima de uma sociedade ou uma civilização” (FERNANDES, [1959] 1989, p. 13 apud JUNIOR, 2014, p. 26). Assim como Florestan Fernandes, a partir de revisões das teorias sociais brasileiras na metade do século XX, inúmeros pensadores sociais passaram a criticar incisivamente em como a sociedade e o Estado tentavam negar o racismo e as desigualdades socioeconômicas decorrentes dele.

Outro trabalho apontou para as relações étnico-raciais na década de 1950, o Projeto UNESCO; O intuito do Projeto realizado entre 1951 e 1952 no Brasil, era “(...) apresentar ao mundo os detalhes de uma experiência no campo das interações raciais julgadas, na época, singular e bem-sucedida, tanto interna quanto externamente.” (MAIO, 1999, p. 141) em contraposição a países que foram atingidos pelas guerras ou tinham relações étnico-raciais conflituosas e segregacionistas. Desta forma, este documento contribuiu para reforçar as representações do Brasil como país racialmente harmonioso. No entanto, diversos cientistas sociais da época como Florestan Fernandes, Bastide, Guerreiro Ramos participaram deste projeto. Estes autores contribuíram para a constituição de uma visão mais crítica das relações raciais no Brasil, buscando compreender as vicissitudes do racismo à brasileira. Para estes autores, o ideal hegemônico das relações raciais criou uma visão simplificada e deturpada do contexto social brasileiro (MAIO, 1999), frente à complexidade das relações socioeconômicas e culturais. Nega-se os efeitos de uma sociedade racializada de forma desigual que ignora a estrutura imposta aos negros violentamente.

Os dados do Atlas da Violência de 2017 organizado pelo IPEA e Fórum Brasileiro de Segurança Pública apresentam a continuidade dos problemas enfrentados pela população negra. Foram poucas as conquistas se consideramos o tempo que se passou após a abolição. A população brasileira é composta de 46% de brancos e 54% de negros (pretos e pardo). A cada

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10 pessoas, três são mulheres negras. A população negra correspondente a maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídio. Uma pesquisa da ONG britânica Oxfam apresenta ainda a enorme discrepância salarial entre negros e brancos: em média, o trabalhador branco recebe o dobro que o trabalhador negro. E, ainda, 67% dos negros do Brasil estão incluídos na faixa dos trabalhadores que que recebem até 1,5 salário mínimo. A taxa de desemprego também atinge mais incisivamente a população negra, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio: 8,3 milhões de negros estão desempregados.

No Mapa da Violência de 2015 organizado pela Faculdade Latino-Americana de Estudos Sociais, é possível observar a forte correlação entre raça e gênero: entre 2003 e 2013, o índice de feminicídio entre mulheres negras e brancas teve, respectivamente, um aumento de 54% e uma queda de 10%. E, segundo informações da Central de Atendimento à Mulher, as mulheres negras são as mais vitimadas pela violência doméstica, que representam 58,68% das denúncias. E, por fim, segundo o Atlas da Violência de 2017, os jovens negros são as principais vítimas de mortes violentas no país. A população negra corresponde a 78,9% dos 10% dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídio. E, atualmente, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil 71 são negras6.

Neste contexto, a negação do racismo pode ser entendida como um sufocamento tanto das estruturas socioeconômicas sobre a vida da população negra quanto de sua influência sobre as relações sociais no Brasil como afirma Júnior (2007),

É notório como a categoria da “mestiçagem” compõe o substrato dessa representação do Brasil como um país racialmente harmonioso. Ela é o fundamento conceitual dessa negação da legitimidade do conflito, das lutas que poderiam quebrar a nossa “paz social”. Nessa ordem harmoniosa e mestiça, não pode haver nenhum tipo de “orgulho racial”, já que somos todos parte da mesma família, e consequentemente nenhuma política pública calcada na diferenciação das pertenças étnico-raciais. Como diz Sérgio Costa (2001, p. 149), na ideologia da mestiçagem a “ideia de raça é desqualificada enquanto instrumento dos discursos políticos públicos, ainda que continue orientando a ação e as hierarquizações estabelecidas pelos agentes sociais em seu cotidiano. (JÚNIOR, 2014, pp. 35-36)

A partir da miscigenação e da própria tentativa de branqueamento, há uma maior dificuldade do reconhecimento da negritude no Brasil. Para Stuart Hall, em Quem precisa de identidade? (2000), a identidade é construída a partir da diferença. Esta última se estabelece em relação ao outro, o externo constitutivo, ou seja, o eu é construído a partir do outro. Assim,

6 Todos os dados foram extraídos da reportagem de Tory Oliveira à Carta Capital na data de 20/11/2017:

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a unidade da identidade é constituída no interior dessa relação de exclusão e é baseada nesse ato de exclusão que cria uma violenta hierarquização.

Ele define identidade da seguinte forma:

(...) o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos ‘interpelar’, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode falar. As identidades são, pois, pontos de apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para nós. (HALL, 2000, p. 112)

Assim, é necessário a retomada dos processos identitários como uma categoria de análise pois “identidade é ação, processo, dinâmico, histórico e político; em detrimento daquilo que é, concebemos identidade como aquilo que está.” (FERREIRA, PINTO, 2014, p. 261).

Diante do sufocamento constante da negritude no Brasil, como algo a ser aniquilado da sociedade, houve a tentativa de apagamento da história da população negra. Esta história moldava um conjunto de representações e, escondendo a importância dos negros na construção da sociedade brasileira. Sempre se buscava uma associação direta do negro com a condição de escravo. Essa associação espelha como a condição social dessa população está diretamente relacionada com uma condição de subjugação.

3.2 Dificuldade de se compreender enquanto negro

Fanon, em sua obra Pele negra, Máscaras Brancas (2008), evidencia como a negação da negritude é global na modernidade marcada por resquícios de colonização. Assim como no Brasil, acreditava-se que o racismo contra os negros era uma particularidade de sociedades anglo-saxônicas. Porém, apesar de um contexto específico no qual o racismo contra o negro se apresentava de modo peculiar na França, a obra mostra “como a ideologia que ignorava a cor podia apoiar o racismo que negava. Com efeito, a exigência de ser indiferente à cor significava dar suporte a uma cor específica: o branco” (FANON, 2008, p. 14). Assim, o autor ajuda a

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compreender a racialização brasileira a partir de formas de colonização eurocêntrica. Para ele, “o negro quer ser branco. O branco incita-se a assumir a condição de humano (...) para o negro só há apenas um destino. E ele é branco” (p. 28). Nesse sentido, a construção do sujeito negro é demarcada essencialmente pela sociedade no qual está inserido.

Ele tenta descobrir as diferentes posições adotadas pelo negro diante dos brancos e analisa como o ideal imposto de humanidade corresponde apenas aos brancos. Esta configuração implica uma busca pela humanidade do negro, constantemente negada. Os brancos manuseiam assim diversas ferramentas, diversas máscaras brancas, para atingir o objetivo de ser humano.

Apesar de sua análise remeter ao período conflitivo de descolonização de países africanos, essa obra nos ajuda ainda para compreender a complexidade e dificuldade de assumir a negritude para os negros em sociedades racializadas. No Brasil, esta dificuldade resulta principalmente do longo processo de escravidão e, depois, de tentativa eugenista de branqueamento que culminou na categoria pardo.

Durante a história do Brasil, sempre houve a tentativa de classificação a partir do quesito cor da população brasileira e o termo pardo esteve presente, dependendo do contexto histórico da época. O primeiro registro vem do dicionário Vocabulário Portuguez e Latino de 1720, feito pelo padre Rafael Bluteau, no qual o significado de pardo era “(...) cor entre branco e preto, própria de pardal, de onde parece ter vindo o nome” Em suas versões atualizadas, o termo sofreu algumas poucas alterações: em 1789, o significado era “cor entre branco e preto, mulato” (SILVA, WESCHENFELDER, 2018, p. 310). Para Bluteau (1720) mulato tinha o seguinte significado:

todas da gente vaga, e baça, donde diz, quiere dezir, que la gente dessas partes es de color ni branca, ni negra, que em Portugal llamamos pardo, o amulatado, porque se llaman mulatos los hijos de negro y blanco, a los quales de essa mescla de padres que da esse color dudoso, o neutral entre los dos malistimo sin duia , porque hasta alli sea malo, el ser neutral, cosa aborrecible. (Bluteau, v. 5, 1720, pp. 628 apud SILVA, WESCHENFELDER, 2018, p; 311).

Segundo Silva e Weschenfelder (2018), a mestiçagem, enquanto dispositivo, auxiliava como uma engrenagem que produzia verdades e formas de condução da população. Todavia, a partir da década de 1970, devido às inúmeras mudanças sociais e políticas, ocorre uma desconstrução deste dispositivo. Tenta-se produzir outros conjuntos de práticas, também

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nomeado de dispositivo da negritude. Eles defendem que “a gestão biopolítica da população no Brasil contemporâneo tem produzido outras subjetividades nos sujeitos que se autodefinem como negros” (SILVA, WESCHENFELDER, 2018, p; 311) e isso é evidente com o crescimento de arenas de discussões criadas por negras e negros que giram em torno da temática étnico-racial, como blogs, canais no Youtube, encontros em todo o Brasil7, etc.

Em A cor da mestiçagem: o pardo e a produção de subjetividades negras no Brasil contemporâneo (2018), Silva e Weschenfelder analisam a categoria pardo “(...) é cambiante politicamente interessante para diferentes finalidades, o que contribui para a produção de subjetividade nos sujeitos afrodescendentes” (SILVA, WESCHENFELDER, 2018, p. 311),

Nesse arranjo civilizatório, a miscigenação inclui o negro numa narrativa que o exclui, que perspectiva o seu desaparecimento. O proselitismo, do mestiço como símbolo nacional, a inclusão dos elementos de uma “cultura africana” na narrativa identitária da nação, a absolvição da capoeira, do violão, do samba, e da feijoada ilustram este processo celebratório em que o mestiço se constitui como articulador de uma narrativa que, ao mesmo tempo que inclui o sujeito negro no corpo-espécie da população, o faz desaparecer no cromatismo e na pardificação . (idem, p. 320)

Sobre a lógica da mestiçagem enquanto solução para as sociedades brasileira e latino-americanas os autores destacam que “(...) o embranquecimento coloca o pardo tanto como problema quanto como solução, isto é, problema porque não é branco, e solução porque não é negro” (CAMPOS, 2013, p. 120). Desde o primeiro Censo a categoria ‘pardo’ foi incluída para dimensionar o estrato da população que não se classifica nem como branco, nem como preto. Segundo ele, desde a mestiçagem sendo vista como algo nocivo à sociedade e, em seguida, convertendo o ‘mestiço’ em símbolo de uma brasilidade orgulhosa.

A categoria ‘pardo’, apesar de frequentemente utilizada, causa muitas dúvidas quando um sujeito busca se identificar; `Por exemplo, é frequente que nos censos a opção “pardo” apareça depois de “preto” e “branco”; sugerindo que a escolha seja feita depois da recusa das alternativas polares (Campos, 2013). Por outro lado, devido à pouca quantidade que se declarem “pretos” no Brasil, houve a junção de ambas categorias em uma só, a “negro”: segundo o Censo

7 Nos últimos anos, houve um aumento significativo de plataformas digitais e muitas pessoas negras passaram a

utilizá-las como forma de ampliar o debate em torno da questão de negritude. Os temas vão desde dicas de beleza e cuidados com a pele negra e cabelos cacheados e crespos até exposições sobre o genocídio da juventude negra. Muitos jovens utilizaram seus canais no Youtube ou seus blogs para discutirem sobre isso. Alguns exemplos de canais e blogs são: Afros e Afins, Papo de Preta, Xongani (sendo eles canais no Youtube), os blogs Alma Preta e

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de 2010 do IBGE8, a população brasileira é composta de 46,7% de pardos e 8,2% de pretos. Em outros termos, há 54,9% de pessoas negras no país.

Apesar da semelhança de suas condições socioeconômicas em relação aquelas dos pretos, para os pardos, há uma maior dificuldade de se identificar com o problema da discriminação racial. Logo, há uma ausência de percepção de discriminação dos pardos e uma falsa consciência:

Para autores como Munanga ([1999], 2008), a rejeição à identificação como negro poderia ser pensada como alienação, ou esquizofrenia, dos pardos (Almeida dos Reis, 2002). Como defendido por Souza (1983), o pardo que se conscientiza naturalmente se torna negro. Sob esse entendimento, indivíduos que se identificam como pardos seriam negros sem consciência. (CAMPOS, 2013, p. 119)

Esse aspecto apareceu no campo na primeira entrevista, pois Lírio é filha de um casal inter-racial e não sabia como se auto-identificar. Quando perguntamos se ela se considerava negra, nos respondeu primeiro que era sarará porque sua pele era clara, porém seus cabelos eram crespos. Porém, no decorrer da pesquisa, ela afirma sua negritude ao nos apresentar seus laços de parentesco e o fato de ter “sangue de negro”.

Essa suposta consciência racial parece ter se construído após ter seu terceiro filho, cujo pai era negro, e a partir de ascendentes negros na sua família. Como eles trabalhavam na mesma rede de ensino na qual seu filho estuava, muitos colegas de trabalho lhe perguntavam se ela não ficava receosa com a cor de seu filho. Estes amigos diziam que outros poderiam fazer piadas em relação ao marido, como se ele estivesse com sorte por ter se casado com uma mulher branca. Ao mesmo tempo, diziam que ela poderia “escurecer” a família. Ao longo do crescimento e desenvolvimento do filho, ela passou a vivenciar situações que não tinha até vivenciados com os outros dois filhos brancos.

Sua irmã, Tulipa, apresentava similaridade com Lírio. Não sabia como se identificar racialmente por ter se casado com um homem negro. No entanto, ela já sentia o preconceito das pessoas antes de seu filho nascer pois ela afirma que constantemente as pessoas lhe perguntavam, quando era grávida, se não temia qual seria a cor de seu filho.

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A dificuldade do “pardo” de se entender enquanto “negro” decorre, portanto, de configurações históricas a partir das quais se problematizou a negritude. “A não-consciência” foi imposta estruturalmente, pois o negro sempre foi associado aos adjetivos “ruim”, “degenerado”, “primitivo” em oposição aqueles usados para caracterizar o branco (“o bom”, “civilizado”,) etc. O racismo, por fim, se constrói no Brasil a partir da negação de tensões raciais, apesar dos números alarmantes da juventude negra.

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4. VIOLÊNCIA URBANA E O HORIZONTE DO MEDO

Nesse capítulo, analiso como a violência urbana e o medo de perder o filho influenciam a busca por estratégias de mulheres para a proteção dos filhos negros.

Como apresentado no primeiro capítulo, participei enquanto pesquisadora voluntária do projeto Da “justiça dos homens” à “justiça divina”: Experiências públicas de familiares vítimas em Campos coordenada por Jussara Freire e do qual Thayna Carvalho foi bolsista de iniciação científica (2017). Ante de apresentar os resultados de minha pesquisa, apresento alguns dados do Relatório Final de Freire e Carvalho (2018), importantes para meu argumento

Em Campos dos Goytacazes, observou-se a ausência de arenas públicas que problematizem as mortes violentas relacionadas com a criminalidade violenta. Nessa cidade, a violência urbana está associada exclusivamente aos confrontos entre personagens qualificados pela polícia e, mais amplamente, pelo debate público como “bandidos”. Outro aspecto que deve ser destacado é que as mortes de jovens negros em periferias da cidade, como foi observado nesta pesquisa, parece mais diretamente relacionados com conflitos entre traficantes, usuários e vizinhos. Nos registros oficiais consultados, eram extremamente raros os casos de “auto de resistência” ou de “mortes em decorrência de ação policial” em Campos (FREIRE et al, 2017).

Observamos ainda um profundo silenciamento das mulheres cujos filhos são negros. Como dito acima, Campos dos Goytacazes é considerada a 19ª cidade mais violenta do mundo. No ano de 2015, houveram 168 homicídios dolosos e em 2016, este número passou para 272. De 2006 a 2016, houve um aumento de 23,1% do homicídio de pessoas negras. Neste contexto, por mais que algumas das mulheres com quem conversei tivessem dúvidas sobre sua identidade racial, elas tinham certeza daquela de seus filhos: todos eram negros. Esta classificação anuncia o conjunto de cautelas que procuravam adotar quando seus filhos circulam na cidade, de acordo com o que observei.

No entanto, no caso da pesquisa da qual participei, várias ainda diziam que que seus filhos não “aprontariam” devido à criação que elas deram a eles. O medo de algo de ruim acontecer com seus filhos era recorrente, pois elas acreditavam “que a maldade dos ‘outros’ havia crescido nos últimos anos”. Apesar de não explicitarem inicial e nitidamente o motivo de seus medos, ao longo da entrevista, explicavam-nos que era justamente pelo dato de que os temiam o que poderiam ocorrer com seus filhos negros. Estes últimos eram vistos como mais

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propensos a sofrer alguma violência. Os cuidados de vigilância dos filhos, por vezes qualificados de “excessivos”, foram explicitamente associados à raça dos filhos.

Estar fora de casa, para elas, é visto como uma exposição ao risco de ser vítima de violência e, portanto, de perigo. Neste sentido, as mães desdobravam uma série de cuidados constantes para a segurança e preservação da vida dos filhos. Por exemplo, após a eleição para presidente deste ano, as duas últimas mulheres com quem conversei compartilharam o aumento de seus medos quanto à intensificação dos riscos de violência contra seus filhos.

Tulipa9, em nossa conversa, explica:

“Se esse senhor, né? Que tá se apresentando como o salvador da pátria que vai fazer, vai acontecer, com ditames tão radicais e tão negativos, né? Tão preconceituosos... E, e... eu tô vendo sair do armário coisas muito ruins (...), a perversidade está saindo do armário, né? A maldade, o ódio, a maledicência, tudo isso tá saindo do armário e meu filho é negro, né? Então eu tô com medo. Tô com medo dessas agressividades aflorarem e uma forma que podem atingi-lo de uma forma muito séria. (...) A intolerância está sendo permitida, ela tá tendo um aval” (Tulipa, 2018)

Além disso, deve-se ressaltar uma correlação entre a discriminação racial e a área residencial que aumenta o sentimento do medo de mães que residem em periferias da cidade. Apesar de todas as mulheres com quem conversei darem exemplos de racismo que seus filhos já sofreram, as que tiveram suas vidas mais marcadas por violências são as duas que moram em bairros periféricos, no caso, a Rosa que mora em Guarus e a Flor de Lótus, moradora do bairro Penha. Elas foram as que demonstraram maiores temores em relação à vida dos filhos. Flor de Lótus, por exemplo, disse que todas as vezes que seus filhos saem para algum evento noturno, ela fica sem dormir até eles chegarem devido às preocupações. Nestes casos, elas não demonstraram dúvidas em relação à sua negritude.

Os lugares de moradia podem assim afetar os direcionamentos dos laços e trajetórias de maternidades diante da maior antecipação e apreensão de violências que podem atingir seus filhos. Flor de Lótus, por exemplo, explicou que precisou se mudar para um bairro periférico da cidade e perdeu todos os seus clientes (era enfermeira), que não queriam mais até a nova casa dela. Por isso, para sustentar seus filhos, precisou mudar suas atividades profissionais e cuidou de cachorros, ou ainda, cozinhou em uma casa de família.

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As outras três entrevistadas demonstraram ter outras preocupações das mães periféricas, pois suas vivências e sociabilidade eram distintas destas últimas. As três moravam em um bairro nobre na cidade. Flor de Lótus e Tulipa são irmãs, ambas formadas na área da educação. Conseguiram bolsas de estudo para seus filhos em colégios renomados da cidade. Ao perguntar a elas se tiveram medo de ocorrer algo com seus filhos por estarem em colégios majoritariamente brancos, elas explicaram que no primeiro momento sim. Depois, este medo diminuiu, pois conheceram os amigos de seus filhos e avaliaram que o círculo social por eles frequentados era seguro.

As preocupações descritas ainda podiam remeter às amizades. Todas as mães demonstraram que a amizade pode interferir na segurança dos filhos. Nas entrevistas, elas situam suas maiores preocupações no período da adolescência de seus filhos, quando esses jovens começaram a sair sem elas. O medo se relaciona principalmente com o fato de que os filhos podiam ser influenciados pelos amigos, agindo contra o que elas lhes ensinaram durante as primeiras fases da vida. Referiam-se em particular ao uso de drogas. Para elas, as drogas podem levar a situações violentas, como brigas, no caso do álcool, e abordagens policiais que poderiam ser evitadas sem o uso destas substâncias. Sobre este ponto, Tulipa descreveu que quando seu filho saia com os amigos, ela ligava algumas vezes para verificar se havia alterações na fala do filho, sabendo que ele estava bebendo álcool. Já Lírio, não deixava o filho ir sozinho para nos eventos da Pecuária, pois esse local é conhecido pelas festas lotadas e brigas devido ao uso excessivo de bebidas alcoólicas. Assim, ela só deixava seu filho ir se fosse acompanhado de uma prima mais velha que ele. E mesmo quando ela deixava, havia inúmeras recomendações para que o filho não fosse vítima de qualquer tipo de violência. Essas mães preferiam que os amigos de seus filhos frequentassem suas casas. A diversão em casa permitia garantir uma maior segurança dos filhos. Paralelamente, algumas explicaram que também podiam analisar com quem seus filhos andavam quando os amigos viam se divertir na casa delas.

Flor de Lótus, cujo um dos filhos é assumidamente usuário de maconha, tem inúmeras ressalvas em relação às amizades deste filho. Ela explicou como estas frequentações poderiam ser perigosas para ele, pois eles ficavam em uma praça próxima à sua casa fumando maconha ou ia baile do bairro no qual poderia “ocorrer algo com ele”, mesmo que não estivessem “aprontando” nada nesses lugares. Ela foi a quem mais demonstrou não gostar de um grupo de amigos do filho. Estranhando esta resposta, perguntei sobre as amizades do outro filho e ela não demonstrou a mesma aversão. Explicou-me que as amigas dele estudavam e frequentavam lugares mais tranquilos. Nesse momento da conversa, começou uma “discussão”, pois o

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primeiro filho - que ouvia a conversa - argumentava que ela só gostava das amigas de seu irmão por elas serem “patricinhas”. Ingenuamente, perguntei se não era porque elas eram brancas. Nesse momento, a discussão ficou acalorada. O filho começou a argumentar que fazia sentido, pois ela tratava bem e não “desmerecia” vizinhos que eram usuários e brancos. Nessa discussão, ela se justificou, dizendo que não era racista, e que as escolhas do primeiro filho em relação às amizades, lugares que frequenta, etc., poderiam colocá-lo mais em perigo que as escolhas do outro irmão que frequentava mais as festas da região nobre.

Essa conversa, particularmente, foi a primeira entrevista que fiz sozinha e senti que em determinado momento eu perdi o controle da conversa pois ela seguiu caminhos que eu não controlei. Posteriormente, compreendi que meu erro metodológico foi toda a família estar presente durante a conversa com essa mãe. Isso gerou algumas discussões íntimas e familiares, que desviaram um pouco dos temas que procurava explorar na entrevista. No entanto, ela foi a que mais me ensinou metodologicamente, em particular, em relação às formas de enfrentar situações imprevistas em campo.

Paralelamente, ainda percebi que a definição de riscos de violência ou não podiam ser inteiramente dependentes do ponto de vista do familiar. Lírio, Orquídea e Tulipa demonstravam menos preocupações em relação à circulação de seus filhos e amigos, pois o circuito de pessoas no qual circulava era majoritariamente branco. As regiões centrais da cidade são também demarcadas racialmente e, por mais, que eles frequentem diariamente essa região são vistos sempre como ameaça ou suspeita, a violência sofrida por eles é mais simbólica, não havendo violência física. E estar com seus amigos, interagindo, conversando, rindo, etc., demonstrava que eles também faziam parte daquele grupo poderia blindá-los de algum risco de violência. Durante a primeira conversa com Lírio, ela compartilhou que sentiu uma ameaça à segurança do filho em um bairro popular da cidade. Diz-nos que passou “a sofrer bullying por ser considerado playboy”. Percebendo estas agressões verbais e preocupadas com ofensas que poderiam se converter em violência física, ela organizou um dia para chamar todos os meninos da rua para comerem e brincarem em sua casa com o intuito de fazer com que ele fosse aceito no grupo.

A rede de sociabilidade das mães podia ocasionalmente funcionar como rede de segurança. Pois, como trabalhavam durante anos na área da educação e moravam perto do trabalho, as pessoas conheciam seus filhos, os vigiavam. Lírio lembrou de dois casos de discriminação de seu filho e de seu sobrinho, filho de Tulipa, quando estes eram pequenos. Na primeira vez, o caso ocorreu quando foram expulsos de um restaurante em uma praia do Espírito

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Santo. Segundo ela, esse foi o momento a partir do qual seu filho percebeu que esse tratamento ocorreu por ele ser negro. No outro caso, dois homens abordaram os mesmos jovens na rodoviária do centro da cidade, convidando-os para vender objetos roubados.

Estes casos nos apresentam como as mães experimentam com seus filhos ásperas experiências de discriminação, de tratamentos desiguais e violências devido à cor dos filhos. Se a pesquisa apenas se focaliza nos filhos vivos, a ameaça de perder a vida parece se colocar sempre como um horizonte do possível e do provável. Pode-se lembrar que, segundo o Atlas da Violência de 2016, de 2006 e 2016, enquanto a taxa de homicídio da população negra cresceu de 23,1%, aquela dos não-negros diminuiu 6,8%.

Por mais que eu soubesse que Flor de Lótus não era racista, ela sentia que seu filho se juntar com outros corpos negros aumentavam as chances de “ocorrer algo”. Temia incidência de violência e se preocupava muito com seu filho. Sobre este ponto, destaco que sua “aversão” às amizades do filho se entremeava com uma aversão aos perigos que ela identificava mesmo que nem sempre com nitidez. Durante seu relato, ela lembrou que viu uns policiais colocando uma quantidade pequena de drogas na roupa de um menino negro para forjar uma prisão.

Analisando as entrevistas, pude perceber que as mulheres que mais lidaram com experiencia deste tipo mães de áreas periféricas. Por exemplo, quando Flor de Lótus engravidou do primeiro filho, este último nasceu morto. Seus pais o enterraram sem que ela ou o marido soubessem. Quando engravidou no seu segundo casamento, seu marido tentou obriga-la a abortar por não ter sido uma gravidez pobriga-lanejada. No entanto, eobriga-la optou por criar sua filha mais velha sozinha. Depois de 12 anos, ela engravidou novamente de seus filhos que nunca receberam cuidado do pai. Durante toda a conversa, ela enumerou várias situações descrevendo como tinha conseguido criar os três filhos sozinha sem nenhum auxílio da família ou de algum próximo. Ela ainda descreve um sentimento de grande medo de um de seus filhos (um é gay e o outro, transgênero sofrer atos de violência.

Rosa é casada e descreveu uma série de problemas para criar seus filhos. Quando Jussara Freire e eu fomos conversar com ela, observamos a estigmatização do bairro onde mora por meio de reclamações que o motorista do Uber compartilhou. Repetiu várias vezes que os motoristas não gostavam de dirigir para lá por ser um bairro muito violento. Quando chegamos, Rose nos descreveu sua trajetória de vida e aquela de seus três filhos. Descreveu a violência no seu bairro. Por exemplo, lembrou que seu filho brincava de empinar uma pipa em campinho e viu um jovem ser morto do seu lado. Em outra ocasião, descreveu que seu filho brincava na rua

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