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Testamento vital à luz do princípio da dignidade da pessoa humana

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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA LUIZA DA SILVA SENA

TESTAMENTO VITAL À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Palhoça 2019

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TESTAMENTO VITAL À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Direito, da Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientadora: Prof.ª Janaína Carvalho de Souza, Esp.

Palhoça 2019

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Dedico esta monografia aos meus amados pais, por serem meus maiores exemplos de vida e fonte de inspiração.

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Inicialmente agradeço aos meus pais, Lairton e Anderléia, por sempre estarem ao meu lado. Pelo apoio e incentivo na realização de meus sonhos, e não mediram esforços para que hoje eu pudesse concluir mais esta etapa. Agradeço pelos ensinamentos, dedicação e amor incondicional.

Ao meu querido irmão Victor, por todos os momentos compartilhados, pelo carinho e companheirismo.

Aos familiares, pelos conselhos e estímulo em permanecer firme nesta trajetória. Aos amigos que conquistei durante esses anos de graduação, que estiveram presentes ao longo desta caminhada, por todas as risadas e cumplicidade.

À minha orientadora, Janaína Carvalho de Souza, que demonstrou paciência, competência e dedicação para que este trabalho fosse concluído da melhor forma possível.

Aos professores desta instituição, pela partilha de conhecimento e lições que não se encontram em livros.

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“Deve-se morrer orgulhosamente quando já não é mais possível viver com orgulho” (Nietzsche).

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O presente trabalho monográfico tem por escopo a análise do instituto do testamento vital, espécie de diretiva antecipada de vontade, tendo como objetivo garantir que a vontade do paciente em estado vegetativo ou terminal seja concretizada sob o prisma da dignidade da pessoa humana e autonomia da vontade. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu diversos princípios fundamentais, dentre eles, o direito à vida e a dignidade da pessoa humana, que se mostram intrinsecamente ligados, porém, verifica-se que em determinadas situações, principalmente aquelas que versam sobre o fim da vida, esta relação pode entrar em conflito. Com o avanço da medicina prolongou-se o evento morte, submetendo pacientes à obstinação terapêutica, sem que o mesmo possa expressar o seu consentimento ou recusa, não possuindo mais autonomia sobre a sua vida, dado ao estágio avançado da doença. Assim, buscou-se trazer uma reflexão sobre o impasse encontrado do direito à vida, no uso de métodos artificiais para o seu prolongamento a qualquer custo, frente ao direito do paciente de ter uma morte com dignidade. Para este estudo, foi utilizado o método dedutivo, que consiste em uma pesquisa explicativa, empregou-se a técnica de pesquisa bibliográfica, baseada em doutrinas, artigos, revistas, legislação, bem como jurisprudência acerca do tema.

Palavras-chave: Testamento vital. Morte digna. Autonomia privada. Dignidade da pessoa humana.

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1 INTRODUÇÃO... 9

2 DIREITOS HUMANOS ... 11

2.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ... 13

2.1.1 Direito à vida ou dever de viver ... 17

2.1.2 Autonomia da vontade e autonomia privada ... 20

2.1.2.1 Autonomia privada nas questões existenciais ... 23

2.1.3 Direito à morte digna ... 25

3 PROCESSO DE MORRER ... 28

3.1 HUMANIZAÇÃO DA MORTE: CUIDADOS PALIATIVOS ... 29

3.2 INTERFERÊNCIA HUMANA NO FIM DA VIDA ... 30

3.2.1 Eutanásia ... 32

3.2.2 Ortotanásia ... 35

3.2.3 Distanásia ... 37

3.2.4 Suicídio assistido ... 39

3.3 BIOÉTICA ... 41

4 DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE ... 44

4.1 TESTAMENTO VITAL ... 47

4.1.1 Aspectos gerais ... 49

4.1.2 Requisitos de elaboração ... 52

4.2 POSSIBILIDADE DE LEGISLAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO ... 55

5 CONCLUSÃO ... 59

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1 INTRODUÇÃO

O avanço científico na área da saúde, principalmente nas últimas décadas, trouxe inúmeras melhorias à vida das pessoas, como tratamentos mais eficazes que possibilitaram a cura de determinadas doenças, alívio de dores causadas por enfermidades, como também a manutenção da vida humana por meios artificiais. Os limites do corpo humano passaram a ser explorados pela medicina, utilizando-se de todo um aparato tecnológico para prolongar a vida e evitar a morte a todo custo.

Neste sentido, a ideia da morte como um evento natural acabou por se alterar com o tempo. A resistência em dizer adeus à vida é fator que dificulta a transição para o fim dela, pois muitas vezes é tida como sinônimo de fracasso pela medicina. A noção de que a morte de um paciente é resultado de um insucesso dos tratamentos empregados, faz com que a equipe médica submeta o paciente à terapias intensivas e excessivas com o intuito de prolongar ao máximo o ciclo vital do mesmo, sem que essa prática apresente algum tipo de benefício ou melhora no estado de saúde. Tal prática é denominada de distanásia, ou seja, a manutenção exagerada e inútil da vida.

É imprescindível que haja um debate acerca da limitação da medicina sobre o corpo humano, impedindo que este seja encarado como objeto de tratamento, mas sim, como sujeito merecedor de cuidados que correspondam com as suas necessidades e, quando não houver recursos disponíveis, que seja oferecida alternativas para tão somente amenizar seu sofrimento.

Diante dessas questões conflituosas, tem-se de um lado a crença de que a vida é um bem supremo e, como tal, merece o lugar de direito absoluto, não sendo passível de flexibilização. Em contrapartida, há o entendimento de que a vida humana não merece ser vivida se não houver dignidade, possuindo caráter subjetivo, ou seja, o próprio indivíduo teria autonomia para decidir o que é viver dignamente, e com isso, aceitar ou recusar tratamentos médicos.

No momento em que o paciente estiver acometido de uma doença grave ou em terminalidade de vida que não puder expressar o seu desejo, o testamento vital vem para garantir que a sua vontade seja respeitada nesse momento tão delicado. O objetivo do presente trabalho é averiguar a possibilidade e validade do testamento vital no ordenamento jurídico e a sua aceitação perante a equipe médica.

A motivação para a escolha do tema baseia-se na importância em preservar a autonomia do indivíduo em situações onde não possuir mais capacidade plena para decidir

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sobre o fim da própria vida, impedindo que esta decisão fique a cargo de terceiros. Como também a pouca visibilidade que o testamento vital ainda possui na sociedade brasileira.

O estudo foi norteado pelo método dedutivo e auxiliado pela pesquisa bibliográfica, incluídas doutrinas, jurisprudência, legislação e resolução, componentes de todo o ordenamento jurídico pátrio.

Quanto a sua estrutura, o mesmo está dividido em quatro capítulos, sendo o primeiro esta breve introdução, que tem como objetivo situar o leitor no contexto do tema abordado, especificando os limites e objetivos do estudo.

O segundo capítulo tratará dos direitos humanos, sua evolução histórica, conceito, características e aplicabilidade. Dar-se-á ênfase ao princípio da dignidade da pessoa humana, como também o direito à vida, à autonomia e à morte.

O capítulo terceiro versará sobre questões pertinentes ao processo de morrer, como a sociedade encara esta etapa da vida e as diferentes formas de intervenção humana, como a eutanásia, ortotanásia, distanásia e o suicídio assistido, verificando a sua admissibilidade no Brasil.

Por fim, no quarto e último capítulo será abordada as diretivas antecipadas de vontade, instrumento de declaração prévia constante na Resolução nº 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina. Explanando sobre a importância desta resolução na seara do Direito e medicina, a sua viabilidade e fazendo a distinção entre as duas espécies existente: o mandato duradouro e o testamento vital. Após, será adentrado o tema do testamento vital, seus aspectos gerais, capacidade, forma, validade e requisitos de elaboração e os fundamentos constitucionais e infraconstitucionais, que trazem à baila a possibilidade de criação de lei que discipline sobre o testamento vital, proporcionando segurança jurídica e requisitos formais para a sua elaboração.

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2 DIREITOS HUMANOS

Neste primeiro momento, faz-se mister abordar os principais direitos que concernem a vida, tanto em seu aspecto histórico quanto prático, sendo pilares para a sustentação de uma vida e morte digna e autônoma.

Os direitos humanos dos quais são conhecidos hoje, são resultado de uma evolução árdua e lenta através do espaço e tempo. Contudo, foi após as atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial que a sociedade internacional se sentiu na obrigação de proteger o indivíduo para que este episódio desumano da história jamais acontecesse de novo, contra qualquer pessoa.1

Por esta razão e, objetivando restabelecer a paz entre as nações, foi criada a Organização das Nações Unidas, e com ela a Declaração Universal dos Direitos do Homem, tendo como enfoque crucial reconhecer direitos e garantias a todas as pessoas, demonstrando uma preocupação de caráter universal:

As atrocidades perpetradas contra os cidadãos pelos regimes de Hitler e Stalin não significam apenas uma violência moral que chocou a consciência de humanidade; elas foram uma real ameaça à paz e à estabilidade internacional. E assim, implicaram em uma verdadeira revolução no direito internacional: em uma única geração, um novo código internacional foi desenvolvido, enumerando e definindo direitos humanos e liberdades fundamentais para todos os seres humanos, em qualquer parte do mundo, e, a partir de então, esses direitos não mais podem ser concebidos como generosidade dos Estados soberanos, mas passaram a ser inerentes ou inalienáveis, e, portanto, não poderiam ser reduzidos ou negados por qualquer motivo.2

A referida Declaração é formada por 30 artigos que discorrem sobre direitos inalienáveis, como a liberdade individual, a justiça, a dignidade e valor da pessoa humana, a paz mundial, proclamando, assim, a conscientização dos direitos fundamentais do homem, estabelecendo igualdade entre gêneros e nações. É o que se depreende do preâmbulo:

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da

família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em

atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os todos gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de

1 SIEGHART, Paul apud PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 7.

2 SIEGHART, Paul apud PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 7.

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viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum.3

Cabe ressaltar que, embora este documento não possua força de lei, serve como base para a regulamentação de Constituições e Tratados Internacionais a diversos países, incluindo o Brasil. 4

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, traz em seu texto inúmeros direitos e garantias fundamentais, destarte, faz-se importante diferenciar as expressões “direitos humanos” e “direitos fundamentais”.5

O primeiro advém de um conjunto de princípios universais que resguarda uma convivência digna, livre para todos os seres humanos em plena igualdade, ultrapassando fronteiras, épocas, etnias, atingindo a todos os povos sem qualquer distinção, ou seja, é um direito intrínseco à pessoa humana, ainda que não esteja positivado. Já o segundo trata dos direitos fundamentais, que são aqueles garantidos jurídica e constitucionalmente, determinados de acordo com o momento histórico em que uma sociedade se encontra.6

Nesta linha de raciocínio, esclarece Ana Maria D’Ávila Lopes:

Conclui-se, então, que a expressão direitos humanos faz referência aos direitos do homem em nível supranacional, informando a ideologia política de cada ordenamento jurídico, significando o pré-positivo, o que será antes do Estado, ao passo que os direitos fundamentais são a positivação daqueles nos diferentes ordenamentos jurídicos, adquirindo características próprias em cada um deles.7

É na Constituição que se verifica a preocupação do Estado de proporcionar e assegurar aos seus cidadãos amplos direitos, incluindo aqueles trazidos na Declaração Universal e Tratados Internacionais, dos quais o Brasil é signatário. O princípio da dignidade da pessoa humana assume papel primordial na interpretação e aplicação de normas compostas de todo o ordenamento jurídico pátrio, conferindo-lhe uma unidade de sentido, valorando os

3 ONU. Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS

HUMANOS. 10 dez. 1948. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf.

Acesso em: 31 ago. 2019.

4 NAÇÕES UNIDAS BRASIL. O que são direitos humanos?. Disponível em: https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/. Acesso em: 31 ago. 2019.

5 BRASIL. BRASIL.Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 31 ago. 2019

6 LOPES, Ana Maria D’Ávila. Os Direitos Fundamentais como Limite ao Poder de Legislar. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2001. p. 41.

7 LOPES, Ana Maria D’Ávila. Os Direitos Fundamentais como Limite ao Poder de Legislar. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2001, p. 42.

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direitos fundamentais, fazendo da pessoa humana fundamento e fim da sociedade e do Estado Democrático de Direito.8

Diante da narrativa, é cediço afirmar que a observância dos direitos humanos é imprescindível à ordem jurídica, tendo como a dignidade da pessoa humana o fim a ser alcançado em todas as suas esferas.

2.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Primordialmente, caberia definir o que seria dignidade de uma forma clara, objetiva e universal que revestisse todos os seres humanos igualitariamente, suprindo suas necessidades e desejos pessoais. Todavia, não há como existir e fixar um conceito que abrangesse todos os aspectos da dignidade, sendo esta uma questão conceitual ampla e divergente na doutrina, posto a sua ambiguidade e pessoalidade.

Uma figura histórica que primeiro reconheceu o homem como um ser atribuindo- lhe valor, e não preço, foi Immanuel Kant, precursor da idealização de autonomia da vontade, como também o princípio da dignidade da pessoa humana, passando a considerar o indivíduo como um fim em si mesmo e não apenas um meio, passível de objetificação.9

Assim, mister se faz elucidar as considerações levantadas por Kant que o levaram à ideia de dignidade. Primeiramente, tentou-se constatar um conjunto de ações das quais fossem moralmente aceitas pela sociedade, de modo universal, livres de dogmas religiosos, política ou qualquer outro meio que influenciasse uma definição conceitual livre. Desta forma, Kant buscou na moral a união entre a ética e o direito, chegando, assim, no chamado

“imperativo categórico”.10 Cabe explanar, nas palavras de Ricardo Terra, a distinção entre o

imperativo categórico e o hipotético de Kant:

Um imperativo é hipotético quando afirma que para atingir um determinado fim deve-se usar certos meios. Esse não pode ser o princípio da moral, pois os fins são postos de forma heterônoma (já que podem visar desde a satisfação sensível até a salvação da alma segundo determinada religião) e implicam certos meios necessários à sua realização. Já o imperativo categórico, como a própria expressão indica, comanda absolutamente. Uma de suas formulações é a seguinte: “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”, a máxima sendo uma regra que elaboramos para nós mesmos quando vamos agir, de modo que a questão está em saber se essas regras são morais ou não. A máxima será moral quando for universalizável. O imperativo é o procedimento para testar essas regras subjetivas, isto é, para testar sua capacidade de

8 MIRANDA, Jorge apud PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 26.

9 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 21. 10 TERRA, Ricardo Ribeiro. Kant e o Direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p.12.

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universalização. Daí vem a caracterização da moral kantiana como procedimental. Nesse sentido, pode-se dizer igualmente que a moral é formal e não material. Pois Kant não estabelece uma lista de mandamentos (que seria material), mas propõe um procedimento (formal) para testar qualquer princípio moral.11

Partindo do imperativo categórico, a moral atinge uma dimensão de lei própria, ou seja, é aceita como máxima perante todas as pessoas, de modo que as regras pessoais subjetivas passam ao nível universalizável, independentemente do credo, costume ou cultura. Assim sendo, Kant formula a ideia acerca de um fim em si mesmo como base para o imperativo categórico.

O fundamento deste princípio é: A natureza racional existe como fim em si. É assim que o homem se representa necessariamente a sua própria existência; e, neste sentido, este princípio é um princípio subjectivo das ações humanas. Mas é também assim que qualquer outro ser racional se representa a sua existência, em virtude exactamente do mesmo princípio racional que é válido também para mim; é portanto simultaneamente um princípio objectivo, do qual como princípio prático supremo se têm de poder derivar todas as leis da vontade.12

Diante do exposto, a moral ultrapassa as fronteiras da subjetividade, pautando-se na razão de ser e fazer do homem, ou seja, a moral tem um viés exclusivamente racional, pois este possui a capacidade de reconhecer seu caráter universal, visando a preservação da dignidade das pessoas.

Como bem clarifica Fábio Konder Comparato:

Se eu soubesse de algo que fosse útil a mim, mas prejudicial à minha família, eu o rejeitaria de meu espírito. Se eu soubesse de algo útil a minha família, mas não à minha pátria, procuraria esquecê-lo. Se soubesse de algo útil à minha pátria, mas prejudicial à Europa, ou então útil à Europa, mas prejudicial ao Gênero Humano, consideraria isso como um crime.13

Com base nos ensinamentos de Kant, pôde-se atribuir a dignidade da pessoa humana como fundamento universal, do qual todos os seres humanos, independentemente de sua localização geográfica, são possuidores de direitos inerentes da própria condição de pessoa humana. “O imperativo categórico vai desembocar no mandamento: não instrumentalizes ninguém! Pode-se também verter isto positivamente, dizendo: respeita-o como sujeito de direito! Ou com Kant pode se dizer: respeita-o em sua ‘dignidade’!”.14

11 TERRA, Ricardo Ribeiro. Kant e o Direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p.12.

12 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2005, p. 69.

13 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 33. 14 TUGENDHAT, Ernest. Lições sobre ética. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 155.

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Com o passar do tempo o conceito de dignidade evoluiu, sendo hoje considerado um valor supremo. Assim, Ingo Wolfgang Sarlet traz o conceito de princípio da dignidade humana:

Qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existentes mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.15

No ordenamento jurídico, o princípio da dignidade da pessoa humana é um dos pilares que guarnecem a Constituição Federal, impondo limites e preservando direitos estes adquiridos ao longo da história. A partir do entendimento da dignidade como sendo inerente a todos os seres humanos, tem-se a irrenunciabilidade deste, ou seja, não é passível de concessão ou afastamento, ao contrário disto, deve ser reconhecida, respeitada e protegida.16

Por conta de tratar-se de valor de todos e ao mesmo tempo de cada um em particular, deve-se reconhecer e proteger a dignidade da pessoa nas diversas searas do direito, zelando pela igualdade de condições, considerações e respeito, seja por parte do Estado ou sociedade. É o que se depreende da Carta Magna, em seu artigo 1º, inciso III, trazendo a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito.17 Por esta

ótica, nota-se que este princípio estabelece a obrigação do Estado de promover condições que tornem viáveis o exercício do direito, proporcionando o mínimo existencial para viver dignamente, como também respeitando a liberdade individual.

Desta maneira, o entendimento constitucional atual pauta-se na garantia da dignidade para com seus cidadãos de forma a assegurar o mínimo existencial, ou seja, um padrão de vida estabelecido na sociedade, permitindo que as pessoas exerçam seus direitos garantidos na Lei Maior, tal como o direito à saúde, educação, moradia, liberdade, igualdade, entre outros elencados.18 Posto isto, o mínimo existencial não se limita em o Estado garantir

ao ser humano o mínimo para permanecer vivo, mas sim, viver com qualidade e dignidade,

15 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal

de 1988. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 46.

16 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade as pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 53.

17 BRASIL.Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 01 ago. 2019. 18 BRASIL.Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 01 ago. 2019.

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através da proteção da integridade física, moral e psíquica abrangendo todas as dimensões do ser.

O princípio da dignidade humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito à criação, independentemente da crença que se professe quanto à sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência. Não tem sido singelo, todavia, o esforço para permitir que o princípio transite de uma dimensão ética e abstrata para as motivações racionais e fundamentadas das decisões judiciais. Partindo da premissa anteriormente estabelecida de que os princípios, a despeito de sua indeterminação a partir de um certo ponto, possuem um núcleo no qual operam como regras, tem-se sustentado que no tocante ao princípio da dignidade da pessoa humana esse núcleo é representado pelo mínimo existencial. Embora existam visões mais ambiciosas do alcance elementar do princípio, há razoável consenso de que ele inclui pelo menos os direitos à renda mínima, saúde básica, educação fundamental e acesso à justiça.19

Por derradeiro, o princípio da dignidade da pessoa humana deixará de existir a partir do momento em que o valor pela vida, integridade e moral do homem não forem respeitados, quando não houver limitações por parte do poder estatal e outras instituições sobre a vida, liberdade individual, autonomia da vontade e igualdade, assim como as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas.20

Cabe explanar que, apesar do Estado assegurar e garantir uma vida digna a todos, é de suma importância que o ser humano possua consciência sobre a sua própria vida, utilizando a sua liberdade para viver da forma que julgar mais adequada. Assim entende John Stuart Mill que o homem não é uma máquina da qual o Estado dita aspectos pertinentes à vida privada, moldando de acordo com regras impostas pelo mesmo, mas sim, que o homem é uma árvore da qual necessita desenvolver e crescer conforme seus valores próprios, tornando-se uma coisa viva.21

A dignidade também incumbe em uma realização pessoal: “eu tenho que ser o que sou e o que sou não o sou de todo. Tenho uma dignidade, um valor absoluto, devo fazer minha própria realidade pessoal, realizar a mim mesmo em minha verdade mais profunda: na

19 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 305.

20 OLIVEIRA, Antônio Ítalo Ribeiro. O mínimo existencial e a concretização da dignidade da pessoa

humana. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/50902/o-minimo-existencial-e-a-concretizacao-do-

principio-da-dignidade-da-pessoa-humana. Acesso em: 01 ago. 2019.

21 MILL, John Stuart Mill. On Liberty. Boston: Ticknor and Fields, 1863. p. 114 apud SOARES, Josemar Sidinei, LOCCHI, Maria Chiara. O papel do indivíduo na construção da dignidade da pessoa humana. Revista de

Brasileira de Direito. 2016. Disponível em:

https://seer.imed.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/1118/928#footnote-39895-42. Acesso em: 01 ago. 2019.

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minha dignidade pessoal”.22 Assim, o homem é dono do seu destino, cabendo a ele decidir o

que é viver dignamente, baseando-se em crenças que moldam sua personalidade, pensamentos e ações, influenciado pela cultura e costumes vividos.

Por fim, conclui-se que a dignidade da pessoa humana como princípio e fundamento do Estado possui caráter absoluto, inalienável e irrenunciável, disciplinado no devido respeito ao ser humano como detentor de direitos, sendo este a essência e o bem maior de um Estado Democrático de Direito. Em contrapartida, a dignidade pode ser relativizada quando trazida a seara individual, sendo dirimido um possível conflito entre princípios por meio de sua ponderação, onde busca-se alcançar a harmonia destes, fazendo com que o indivíduo não sofra violação de seus direitos.

Assim, com base no exposto, cabe adentrar em alguns princípios constitucionais, visando a preservação da dignidade da pessoa humana, através de uma ótica humanista.

2.1.1 Direito à vida ou dever de viver

A vida é um bem jurídico tutelado pela Constituição Federal, onde expressa em seu artigo 5º a sua especial proteção no que tange a inviolabilidade do direito à vida. Com isso, tem-se um direito fundamental que antecede qualquer outro, visto que é pressuposto indispensável para o exercício dos demais direitos da pessoa humana.

A existência humana é o pressuposto elementar de todos os demais direitos e liberdades disposto na Constituição e que esses direitos têm nos marcos da vida de cada indivíduo os limites máximos de sua extensão concreta. O direito à vida é a premissa dos direitos proclamados pelo constituinte; não faria sentido declarar qualquer outro se, antes, não fosse assegurado o próprio direito estar vivo para usufruí-lo. O seu peso abstrato, inerente à sua capital relevância, é superior a todo outro interesse.23

Desta maneira, pode-se pontuar que o direito à vida é o primeiro valor moral de qualquer pessoa, originando-se a dignidade da pessoa humana, liberdade, integridade física e psíquica. Tendo como imprescindível à existência do ser humano, o Estado deve preservar e repelir atos que atentam contra ela.

22 ÁLVAREZ-VALDÉS, Lourdes Gordillo. ¿La autonomía, fundamento de la dignidad humana? Cuadernos de bioética, Murcia, v. 19, 2008. p. 251 apud SOARES, Josemar Sidinei, LOCCHI, Maria Chiara.O papel do

indivíduo na construção da dignidade da pessoa humana. Revista de Brasileira de Direito. 2016. Disponível em: https://seer.imed.edu.br/index.php/revistadedireito/article/view/1118/928#footnote-39895-42. Acesso em: 01 ago. 2019.

23 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 5 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 441.

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Frisa-se que o direito à vida não possui caráter absoluto, como bem observado por Gilmar Antônio Bedin:

O direito à vida é, portanto, um direito que transpassa todo o mundo moderno. Além disso, este direito está tão arraigado em nosso cotidiano que qualquer iniciativa em restringi-lo torna-se, de imediato, uma questão polêmica. Com efeito, basta olharmos para as controvérsias estabelecidas diante da pena de morte, da liberação do aborto e da permissão da eutanásia para verificarmos a veracidade da afirmação anterior.24

A Constituição, no artigo 5º, inciso XLVII, alínea a, traz a impossibilidade de pena de morte no Brasil, salvo em caso de guerra declarada, todavia, é notável a exceção ao direito à vida também em casos de legítima defesa, aborto legal, como anencefalia, saúde da gestante ou estupro. Cabe ao Estado utilizar-se de mecanismos para que estas exceções se deem nos limites impostos pela legislação, sem haver excessos.25

O entendimento do Supremo Tribunal Federal ratifica o caráter não absoluto de direitos fundamentais:

Os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.26

Deste modo, tais exceções são admitidas pelo fato de que inexistem regras absolutas previstas constitucionalmente, devendo o operador do direito fazer uso do princípio da proporcionalidade para, no caso concreto, solucionar qual direito fundamental deve prevalecer sobre o outro, ou seja:

Haverá colisão ou conflito sempre que se deva entender que a constituição protege simultaneamente dois valores ou bens em contradição concreta […] O problema agora é outro: é o de saber como vai resolver-se esta contradição no caso concreto,

24 BEDIN, Gilmar Antonio. Os direitos do homem e o neoliberalismo. Ijuí: Editora da Unijuí, 2002, p. 44. 25 BEDIN, Gilmar Antonio. Os direitos do homem e o neoliberalismo. Ijuí: Editora da Unijuí, 2002, p. 44 26 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Mandado de Segurança nº 23.452. Relator Min. Celso de Mello. 16 de agosto de 1999. Disponível em:https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/738746/mandado-de-seguranca-ms- 23452-rj. Acesso em: 01 ago. 2019.

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como é que se vai dar solução ao conflito entre bens, quando ambos (todos) se apresentam efetivamente protegidos como fundamentais.27

Assim, tem-se o conflito de direitos fundamentais. A grande dificuldade encontrada aqui é na aplicação da proporcionalidade, haja vista que esses direitos não possuem hierarquia entre si, pois estão equiparados em questão de valor e importância para o indivíduo, porquanto “os direitos colidem porque não estão dados de uma vez por todas; não se esgotam no plano da interpretação in abstrato. As normas de direito fundamental se mostram abertas e móveis quando de sua realização ou concretização na vida social. Daí a ocorrência de colisões”.28

Urge salientar que, no âmbito do direito à vida e da dignidade da pessoa humana, tendo em vista que são dois princípios constitucionais que podem entrar em conflito quando a decisão for no sentido de permanecer vivo a qualquer custo ou de viver nos limites da dignidade.

As questões pertinentes da atualidade sobre o ser humano que geram controvérsias na doutrina e na sociedade, despertam uma preocupação que deve ser discutida e dirimida com bastante cautela, visto que adentra a vida privada e a intimidade de cada pessoa. O direito à vida não repousa apenas no direito de não ser morto, mas sim, de ter uma vida digna e, mais além, a uma morte com dignidade. 29

Cabe trazer alguns questionamentos levantados por Maria de Fátima Freire de Sá: As novas premissas suscitadas nesse limiar do século XXI, referentes aos seres humanos, são as seguintes: Independentemente de sua qualidade, a vida humana deve ser sempre preservada? Há de serem empregados todos os recursos biotecnológicos para prolongar um pouco mais a vida de um paciente terminal? Há de serem utilizados processos terapêuticos cujos efeitos são mais nocivos do que os efeitos do mal a curar? É lícito sedar a dor se tal ato a consequência será o encurtamento da vida? O que fazer com os nascituros portadores de doenças congêneres do sistema nervoso central, cujas vidas, se mantidas obstinamente, significarão a condenação ao sofrimento permanente ou a estado vegetativo de vida? 30

Há no ser humano a característica da interioridade, onde é manifestado seus desejos, vontades e sentimentos que fazem dele único, especial, protagonista da própria vida, 27 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987. p. 220.

28 STEIMENTZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e o princípio da

proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 63.

29 LENZA, Pedro. Direito à vida - célula-tronco, aborto, eutanásia. São Paulo, 2009. Disponível em:

http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/direito-a-vida---celula-tronco-aborto-eutanasia/4060. Acesso em: 22 set. 2019.

30 SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de Morrer: Eutanásia, Suicídio Assistido. Belo Horizonte: Del Rey. 2001, p. 59.

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até que chegue a hora de partir. Posto isso, não há o que se falar em privilegiar tão somente o aspecto da vida no sentido biológico do ser e, em contrapartida, ignorar a pessoa, inobservando a qualidade de vida do mesmo.

Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra o todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.31

A obstinação encontrada por parte do Estado e equipe médica em prolongar a vida de um paciente acometido de doença grave e incurável a qualquer custo, atenta contra a própria dignidade desta, pois o resultado da obstinação é levar a pessoa a um estado de permanente sofrimento e angústia. Compreender as diversas dimensões individuais que fazem da pessoa um ser digno, é respeitar a qualidade e bem-estar e, assim, prestar compromisso não só com a vida, mas com o ser humano. De modo a não permitir que o amor pela vida se transforme em idolatria, levando a uma batalha incansável contra o fim natural de todo ser vivo, a morte.32

Neste sentido, entende-se que o Estado não obriga ninguém a permanecer vivo, haja vista que a vida é um direito assegurado a todos. Direito este que deverá ser ponderado e relativizado quando outros estiverem em conflito, visando, em primazia, a vontade e bem- estar do detentor do direito.

2.1.2 Autonomia da vontade e autonomia privada

A definição dada para o termo “autonomia” tem origem grega, sendo autos significado para próprio ou a si mesmo, e nomos que significa lei ou norma, resultando no sentido de uma pessoa se autogovernar ou de estipular normas próprias, livre de influências exteriores.33

31 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos

fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011a, p. 73.

32 SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de Morrer: Eutanásia, Suicídio Assistido. Belo Horizonte: Del Rey. 2001, p. 60.

33 BAPTISTA, Bárbara Maria de Morais Machado. Autonomia do Doente - dos Fundamentos Teóricos às

Diretivas Antecipadas de Vontade. 2012. 45 f. Dissertação (Mestrado) - Ciências da Saúde, Universidade da

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Assim, tem-se um indivíduo que utiliza da autonomia para decidir sobre determinada questão, de acordo com seus próprios fundamentos, sendo que terceiros deverão respeitá-la, visando a preservação da sua vontade. Neste sentido, são abrangidas questões como a liberdade em diferentes dimensões, como a moral, psíquica e física.34

A autonomia possui caráter de independência, ou seja, a pessoa possui a capacidade de agir e tornar-se autônomo. Aqui o sentido de autonomia sobrepuja o simples comportamento de independência, uma vez que prevê pensamentos, sentimentos e decisões envolvendo o próprio indivíduo em seus diversos ambientes, seja na sua individualidade ou coletividade. Por esta razão, a autonomia está presente como um valor que capacita o protagonismo em todas as circunstâncias e momentos da vida, sendo uma necessidade humana.35

Diante do conceito exposto, cabe fazer a distinção entre autonomia da vontade e autonomia privada, pois muitas vezes são tidas como sinônimas, mas guardam sentidos diversos.

A autonomia da vontade possui raízes europeias dos séculos XVII e XIX, relacionando-se com os ideais do Estado Liberal. Pauta-se na ideia de que a interferência do Estado na vida das pessoas e nas suas relações deve ser mínima ou nula, permitindo que os particulares possam pactuar de forma livre. Aqui o indivíduo tem o poder de gerar normas jurídicas.

Para Immanuel Kant, a autonomia da vontade trata-se da prerrogativa que a vontade da pessoa tem de ser a lei para si mesma, de modo que as escolhas devem ser tais que as máximas destas possam ser compreendidas como leis universais, no ato de querer. Sendo livre o indivíduo para determinar-se de acordo com a sua própria vontade, porém a vontade só poderá ser válida se for passível de universalização, de acordo com o imperativo categórico36,

como visto anteriormente.

Nas palavras de Natália Berti:

a autonomia da vontade está diretamente relacionada a elementos subjetivos, etéreos, baseados na psique dos contratantes [...] era, pois, o poder do indivíduo de criar e regular

previa-de-vontade-de-pacientes-terminais-a-luz-da-autonomia-da-vontade-e-sua-aplicabilidade-no-sistema- juridico-brasileiro/3. Acesso em 22 set. 2019.

34 CASTRO, Olga de. Reflexões em Torno da Autonomia e Autonomização. Revista do SNESup: Lisboa, 2011. Disponível em: http://www.snesup.pt/htmls/EFkFEZyyVuKhVISOmg.shtml Acesso em: 22 set 2019.

35 CASTRO, Olga de. Reflexões em Torno da Autonomia e Autonomização. Revista do SNESup: Lisboa, 2011. Disponível em: http://www.snesup.pt/htmls/EFkFEZyyVuKhVISOmg.shtml Acesso em: 22 set 2019.

36 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1997, p. 85.

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os efeitos jurídicos de sua contratação, sem intervenção externa: o contrato era uma esfera de livre atuação dos particulares.37

Com o passar do tempo, o Estado Liberal sofre seu declínio e a autonomia ampla e irrestrita que o cidadão tinha de contratar passa por alterações, assim, a autonomia da vontade transmuta-se na autonomia privada, revestindo-se de um poder normativo concedido pelo Estado através de lei aos indivíduos, que exerceriam nos ditames e limites desta mesma lei. Assim, a autonomia da vontade precede o reconhecimento da autonomia privada, ou seja, “a autonomia privada é a atualização da autonomia da vontade”.38

A autonomia privada pode ser conceituada como “o poder jurídico dos particulares de regularem, pelo exercício de sua própria vontade, as relações de que participam, estabelecendo o seu conteúdo e a respectiva disciplina jurídica”.39

No exercício de sua autonomia privada e, portanto, na realização de negócios jurídicos, as pessoas tem, do ordenamento jurídico, o poder criador, modificativo e extintivo de situações e relações jurídicas, no âmbito e na forma previstas pelo mesmo ordenamento que concede este poder. Ao regulamentar, de forma direta e individual, seus próprios interesses pessoais, o sujeito faz coincidir sua autonomia privada com os interesses que o ordenamento escolhe proteger. A competência pessoal e jurídica que o sujeito tem para autorregular certos interesses encontra sua fonte no ordenamento jurídico.40

No ordenamento jurídico brasileiro a autonomia privada é um princípio previsto implicitamente pela Constituição, de modo que concede aos cidadãos, em determinadas situações jurídicas, o direito de dispor de acordo com os seus interesses, tanto na esfera patrimonial quanto extrapatrimonial.41

Deste modo, observa-se a intrínseca ligação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e a autonomia da vontade, visto que para concretizar-se a dignidade de uma pessoa, esta precisa exercer sua liberdade conforme seus conceitos moral e ético.42

37 BERTI, Natália. Da autonomia da vontade à autonomia privada: um enfoque sob o paradigma da pós- modernidade. Revista de Direito Privado, v. 57, p. 69-94. 2014. Disponível em:

https://periodicos.uni7.edu.br/index.php/revistajuridica/article/view/268/301. Acesso em: 22 set. 2019.

38 NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Da quebra da autonomia liberal à funcionalização do direito contratual. In: FIUZA, César; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; SÁ, Maria de Fátima Freire (Coord.). Direito Civil: atualidades II. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 236.

39 AMARAL NETO, Francisco dos Santos. Autonomia Privada. Revista do Conselho da Justiça Federal. n. 9, 1999. Disponível em: http://www.jf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/view/235/397. Acesso em: 22 set. 2019. 40 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Autonomia privada e negócio jurídico. Revista do Curso de Direito

da UNIFACS, Porto Alegre, v.5, p.70, 2005.

41 RATTI, Fernanda Cadavid. Autonomia da vontade e/ou autonomia privada? 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/38318/autonomia-da-vontade-e-ou-autonomia-privada. Acesso em: 27 set 2019. 42 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; PENALVA, Luciana Dadalto. Terminalidade e autonomia: uma abordagem do testamento vital no direito brasileiro. In PEREIRA, Tânia da Silva; MENEZES, Rachael

Aisengart; BARBOZA, Heloisa Helena(Coord) Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ, 2010. p. 60.

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Em um Estado Democrático de Direito, não há o que se falar em uma autonomia absoluta individual, pois tem-se como objetivo resguardar os direitos fundamentais e com ele a dignidade da pessoa humana.

Por fim, nota-se a existência de uma distinção clara entre a autonomia da vontade e autonomia privada. Essa primeira tem caráter subjetivo, pois trata-se da manifestação da vontade em si mesma visando satisfazer o interesse próprio, pois não tem a interferência estatal. Já a segunda refere-se ao poder concedido pelo próprio ordenamento jurídico aos indivíduos para criação de situações jurídicas, dentro dos limites impostos pela lei, sendo que possui caráter objetivo, porém não elimina o subjetivismo, apenas limita-o ao que dispõe o próprio Direito.

2.1.2.1 Autonomia privada nas questões existenciais

A autonomia privada pode ser estabelecida como um reconhecimento do poder do indivíduo de se autogovernar, permitindo que crie suas próprias leis, desde que coexistam harmoniosamente com as ditadas pelo Estado, em especial, pela Constituição Federal. Dessa forma, a autonomia expressa-se pela livre decisão individual a respeito de seus interesses e da vida, sem que afete os interesses de terceiros.43

Assim, dispõe Luciana Dadalto e Ana Carolina Teixeira:

Questões afetas à intimidade, à privacidade, à vida privada de maneira geral, competem apenas à pessoa a decisão do que fazer e do que não fazer. Afinal, ninguém melhor do que a própria pessoa para decidir qual a melhor decisão quando estiver diante de questões afetas a si mesmo e à sua individualidade, pois num Estado Democrático de Direito que tem como fundamentos o pluralismo jurídico e a dignidade humana, cada um tem a ampla liberdade para construir o próprio projeto de vida dentro daquilo que considera bom para si.44

Nota-se que as questões existenciais são amparadas pelo princípio da autonomia privada, uma vez que está diretamente ligada ao exercício da liberdade e da dignidade da pessoa humana. Assim, cada um tem o direito de construir a sua realidade e projeto de vida como bem desejar, sendo autores de sua própria existência. Considerando que a Carta Magna 43 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; PENALVA, Luciana Dadalto. Terminalidade e autonomia: uma abordagem do testamento vital no direito brasileiro. In PEREIRA, Tânia da Silva; MENEZES, Rachael

Aisengart; BARBOZA, Heloisa Helena(Coord) Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ, 2010. p. 58-59.

44 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; PENALVA, Luciana Dadalto. Terminalidade e autonomia: uma abordagem do testamento vital no direito brasileiro. In PEREIRA, Tânia da Silva; MENEZES, Rachael

Aisengart; BARBOZA, Heloisa Helena(Coord) Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ, 2010. p. 60

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elevou a pessoa ao patamar de centralidade e objetivo, é possível que seus cidadãos tomem decisões baseadas em suas concepções e vontades.45

Tendo em vista que a pessoa possui papel fundamental para o Estado, destaca-se as mais variadas dimensões da vida humana que passaram a ser observadas e discutidas pela doutrina:

Assim, situações que envolvam idoso, relações conjugais, técnicas de reprodução assistida, filiação, biotecnologia, direito de morrer e direito ao corpo, entre outras, são situações jurídicas existenciais que passaram a ser mais discutidas pela doutrina brasileira após a Constituição de 1988 e após a entrada em vigor do Código Civil de 2002, vez que todas essas situações tutelam a autonomia da pessoa humana em suas mais variadas facetas.46

Por outro lado, o Estado poderá intervir na esfera privada de alguém contra a sua vontade, possuindo legitimação para o exercício, nos casos em que indivíduo estiver obrigado por lei ou violando direitos e causando danos a outrem, conforme preceitua o artigo 5º, inciso II da Constituição Federal.47

Nesta linha de raciocínio, elucida Stuart Mill:

o indivíduo não pode legitimamente ser compelido a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, porque na opinião dos outros tal seja sábio ou reto. Essas são boas razões para o admoestar, para com ele discutir, para tentar persuadi-lo, para aconselha-lo, mas não para coagi-lo, ou para infringir-lhe um mal caso aja de outra forma. Para justificar a coação ou a penalidade, faz-se mister que a conduta de que se quer desviá-lo tenha em mira causar dano a outrem. Naquilo que diz respeito unicamente a ele próprio, a sua independência é, de direito, absoluta. Sobre si mesmo, sobre o seu próprio corpo e espírito, o indivíduo é soberano.48

Com base no exposto, depreende-se que a autonomia privada não se trata de uma liberdade irrestrita, mas sim condicionada à responsabilidade, isto é, as decisões precisam ser tomadas visando o bem-estar do indivíduo, estabelecendo uma relação onde a dignidade, liberdade e responsabilidade possam estar em plena harmonia. Dessa forma, será possível o exercício efetivo da autonomia privada, oportunizando a construção da própria personalidade do ser, tendo como resultado a realização pessoal.

45 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; PENALVA, Luciana Dadalto. Terminalidade e autonomia: uma abordagem do testamento vital no direito brasileiro. In PEREIRA, Tânia da Silva; MENEZES, Rachael Aisengart; BARBOZA, Heloisa Helena(Coord) Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ, 2010. p. 60

46 DADALTO, Luciana. Testamento Vital. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 25.

47 BRASIL. BRASIL.Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 27 set. 2019.

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Desta forma, independentemente das diferenças existentes entre os seres humanos, todos possuem igual valor para o Direito, sendo detentores de autonomia para escolher seu próprio caminho, decidir sobre seu destino, manifestar sua vontade e que esta seja respeitada tanto por terceiros quanto pelo Estado.

2.1.3 Direito à morte digna

A sociedade pluralista da qual se vive hoje, com diversas vertentes religiosas e valores morais diversificados, encontra um grande obstáculo para alcançar um consenso universal do que seria morrer dignamente.

Quando se fala em direito à morte digna, não se propõe a banalização da vida ou a diminuição da sua força no ordenamento jurídico como direito fundamental. As situações onde se busca a aplicação desse direito não são aquelas consideradas temporárias ou reversíveis, mas sim, aquelas que se tratam de quadros terminais de pacientes acometidos de grave doença ou que não são passíveis de cura e, por consequência, são submetidos a tratamentos que visam apenas prolongar a vida a todo custo, adiando a morte inutilmente. Por esta razão, compromete-se a dignidade daquela pessoa, uma vez que a sua vida encontra-se sustentada por aparelhos ou outro artifício. Assim, o indivíduo teria o direito de escolha de limitar este tipo de tratamento para que seja-lhe garantido o direito de ter uma morte digna.49

No tocante ao assunto, está a importância de que a vida termine da melhor forma, com respeito e humanização.

É uma trivialidade pensar que as pessoas vivem a vida inteira sob a sombra da morte. É também verdade que se morre na sombra das próprias vidas. O pior da morte é o esquecimento - a morte terrível e absoluta da luz. Mas a escuridão não é tudo o que há na morte. Segundo Dworkin, se assim fosse, as pessoas não se preocupariam tanto se suas vidas biológicas e técnicas teriam continuidade depois que elas se tornassem inconscientes e que o vácuo começasse, depois que a luz se apagasse para sempre. A morte tem domínio porque não é apenas o começo do nada, mas o fim de tudo e, como se pensa e se conversa a respeito dela, a ênfase que se coloca em morrer com dignidade, mostra quão importante é a vida terminar adequadamente e que a morte mantenha a fé na maneira como se vive.50

Uma morte digna decorre do direito fundamental da dignidade da pessoa humana, do qual exige que o sujeito seja tratado com total consideração e empatia, principalmente em 49 BARROSO, Luís Roberto. A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida. Revista da

Faculdade de Direito - UFU, v. 38, n. 1, p. 247. Disponível em:

http://seer.ufu.nr/index.php/revistafadir/article/view/18530/0. Acesso em: 29 set. 2019.

50 SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 121.

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um momento tão delicado de sua vida. Tendo em vista que a Constituição Federal instituiu a cláusula da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, representa que a dignidade deve acompanhar o indivíduo até o final da vida, no processo de morrer, e ninguém melhor do que o próprio paciente para decidir como deseja partir.

Neste sentido, esclarece Letícia Ludwig Möller:

Definição do que seja morte digna e atitude digna perante a morte (se é mais digno e honrado lutar ao máximo pela vida, buscando prolongar o final da vida ao extremo, ou, ao contrário, se é para nós mais importante e digno não prolongar o processo de morrer, aceitando a morte iminente e buscando uma morte serena, sem dor e sofrimento) deve ser respeitada pelos profissionais da saúde, pelos familiares, pelo Estado e pelos indivíduos em geral.51

Sendo que o processo de morrer faz parte da vida humana, e por isso deve ser vivida dignamente, se está diante da existência de um direito à morte digna, que é “um apelo ao direito de viver uma morte de feição humana [...] significa o desejo de reapropriação de sua própria morte, não objeto da ciência, mas sujeito da existência”.52

Pessoas têm razão para querer morrer se uma vida inconsciente, vegetativa, é tudo que lhes restou. Para algumas é a preocupação compreensível sobre a maneira pela qual serão lembradas. Para a maioria, é mais uma preocupação abstrata e autodirecionada de que sua morte expressa sua convicção de que a vida tem valor porque o que se realizou tornou a pessoa capaz de sentir e fazer. Não há dúvida que a maioria das pessoas trata suas vidas de maneiras diferentes, com uma importância simbólica: se possível para expressar ou confirmar os valores nos quais elas acreditam ser mais importantes para suas vidas.53

Por derradeiro, é resguardado o direito de morrer com dignidade, não cabendo ao Estado ou a terceiros decidir o que é digno para o paciente que está acometido de alguma doença grave ou incurável. Por toda a trajetória de vida, a pessoa foi adquirindo consciência de pensamento, crenças, valores morais e vivendo de acordo com seus conceitos e da melhor forma que julgou para si, tendo a tutela estatal para exercer sua liberdade individual. No fim da vida isso não poderá lhe ser tirado, pois enquanto o sujeito tiver discernimento e capacidade para decidir sobre o que gostaria de receber como tratamento médico, ou até

51 MÖLLER, Letícia Ludwig. Direito à morte com dignidade e autonomia. Curitiba: Juruá, 2008, p. 99. 52 BAUDOUIN, Jean-Louis; BLONDEAU, Danielle. Éthique de la mort et droit à la mort. Paris: Press

Universitaries de France, 1993, p. 89. apud BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de personalidade e

autonomia privada. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 231.

53 SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 121.

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mesmo não receber, permitindo que a morte chegue de forma natural, deverá ser respeitada sua vontade, como foi no decorrer de toda a vida.54

Dessa forma, passa-se ao próximo capítulo, tendo como enfoque dirimir questões referentes aos cuidados paliativos, valorizando e respeitando aquele que está passando pelo processo de morrer, resguardando seus direitos fundamentais.

54 CARVALHO, Gisele Mendes de; KAROLENSKY, Natália Regina. Aspectos bioético-jurídicos da

eutanásia: Análise das recentes resoluções do CFM e do Anteprojeto de Código Penal de 2012. In:

CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, 21, 2012, Florianópolis: FUNJAB, 2012. p. 1-31. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=74249bfb36330626. Acesso em: 27 out. 2019

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3 PROCESSO DE MORRER

Neste capítulo objetiva-se refletir a respeito do processo de morrer, sobre os cuidados paliativos necessários nesta fase da vida do enfermo e as diferentes formas de interferência humana.

O processo de morrer e a morte são questões que geram angústia, medo e ansiedade quando mencionados, apesar de fazerem parte da própria natureza. A reação das pessoas quando deparadas com a morte está ligada ao sistema de crenças pessoas, sociais e culturais que irão moldar o seu comportamento, de forma consciente ou não, diante de tal situação.55

Em plena Idade Média, séculos XI - XV, o homem via a morte com dramaticidade e era um fenômeno que fazia parte do cotidiano, visto com simplicidade. Nesse período, a morte era denominada de morte domada, referindo à ideia básica de que a morte faz parte da vida, que sabemos dela e que vivemos em função deste conhecimento, que é coletivo e público. Com o desenvolvimento da indústria e da tecnologia médica, observa-se uma grande mudança na repreobserva-sentação da morte domada. O momento da morte passa a perder importância, não se percebe mais os avisos.56

No século XX, a morte vira um tabu, deixa de representar um momento para virar um processo, pois a morte agora é aguardada no leito de hospital, da qual frequentemente o paciente encontra-se inconsciente, não possuindo mais autonomia para decidir como morrer, tendo até o seu direito de saber quando o fim se aproxima tirado.57

Diante de tal situação, busca-se humanizar o processo da morte de um paciente acometido de uma doença grave e incurável, visando evitar ao máximo o sofrimento desnecessário e um prolongamento inútil da vida. Esta preocupação se faz necessário para que a dignidade da pessoa humana seja respeitada em todo e qualquer aspecto da vida.

No cuidado em saúde, cotidianamente os profissionais se deparam com o sofrimento físico, emocional, social e espiritual das pessoas e, em muitos casos, com situações de difícil resolução. O modelo de atenção à saúde baseia-se em prevenção, diagnóstico, tratamento efetivo e cura de doenças, mas diante da incurabilidade de determinadas 55 LIMA, Roberta de, BORSATTO, Alessandra Z., VAZ, Danielle C., PIRES, Anne C. da F. et al. A morte e o processo de morrer: ainda é preciso conversar sobre isso. Revista Mineira de Enfermagem, Belo Horizonte, MG. v. 21, 2017. Disponível em: http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1178. Acesso em: 13 de out 2019. 56 SILVA, Rudval S. da, CAMPOS, Ana E. R., PEREIRA, Álvaro. Cuidado do paciente no processo de morte na Unidade de Terapia Intensiva. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v. 145, n. 3, São Paulo. 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-62342011000300027&lng=en. Acesso em: 13 out 2019.

57 SILVA, Rudval S. da, CAMPOS, Ana E. R., PEREIRA, Álvaro. Cuidado do paciente no processo de morte na Unidade de Terapia Intensiva. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v. 145, n. 3, São Paulo. 2011. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-62342011000300027&lng=en. Acesso em: 13 out 2019.

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doenças esse modelo se mostra ineficaz. Aliviar sintomas, nesse caso, requer medicamentos, mas também abordagens aos sintomas emocionais, sociais e espirituais, bastante complexos de se lidar.58

A humanização tem como enfoque tornar algo humano, dando condições humanas, afável, tratável, ou seja, requer a conscientização e preparo da equipe médica para um cuidado diferenciado, colocando o paciente como um ser humano e não apenas objeto de tratamento.59

Existem estudos na área da medicina intensivista que indicam a necessidade de mudar o foco que é preponderantemente tecnicista, ou seja, relação paciente-doença, para uma perspectiva mais humana. Essa mudança engloba tratar o paciente de forma holística, isto é, compreendendo-o como um ser inserido num contexto de vida da qual necessita de atendimento em diferentes searas, seja físico, psicológico, social e até mesmo espiritual, proporcionando o bem-estar.60

Dessa forma, humanizar, no processo de morte, significa assumir uma posição ética de respeito e consideração com o enfermo, acolhendo-o e reconhecendo seus limites. 3.1 HUMANIZAÇÃO DA MORTE: CUIDADOS PALIATIVOS

A Organização Mundial de Saúde, em 1990 e atualizado em 2002, definiu o conceito de Cuidados Paliativos:

Cuidados Paliativos consistem na assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais.61

58 LIMA, Roberta de, BORSATTO, Alessandra Z., VAZ, Danielle C., PIRES, Anne C. da F. et al. A morte e o processo de morrer: ainda é preciso conversar sobre isso. Revista Mineira de Enfermagem, Belo Horizonte, MG. v. 21, 2017. Disponível em: http://www.reme.org.br/artigo/detalhes/1178. Acesso em: 13 out. 2019. 59 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mine Aurélio: século XX: minidicionário da língua portuguesa. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

60 GARROS, Daniel. Uma “boa” morte em UTI pediátrica: é isso possível? Jornal de pediatria, Rio de Janeiro, v. 79. supl. 2, 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/jped/v79s2/v79s2a14.pdf. Acesso em: 13 out. 2019. 61 BRASIL. Ministério da Saúde. Serviços de Cuidado Paliativo Gestão da Qualidade. Brasília, DF:

Ministério da Saúde, 2012. Disponível em:

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São cuidados que devem estar presentes desde o diagnóstico da doença até o momento inevitável de sua morte. Podem ser denominados, também, como cuidados de conforto, de suporte e gerenciamento de sintomas.62

Estes cuidados são prestados ao paciente e a sua família no momento em que o médico identifica que não há mais possibilidade da doença ser curada. O objetivo aqui não é a cura, pois quando o paciente chega em um estágio do qual o tratamento não surte mais efeito, os cuidados paliativos se tornam de suma importância, passando a ser administrados para aliviar os sintomas, a dor e os problemas emocionais decorrentes da doença. Os profissionais responsáveis por estes cuidados visam facilitar a transição para o fim da vida.63

Nesta espécie de tratamento, “o principal cuidado é com o diálogo, que deve ser aberto e franco entre todos, equipe que assiste, família e paciente. Um diálogo feito com compaixão e atenção aos mínimos detalhes, para garantir a autonomia do paciente”.64

São várias as formas de tornar essa situação o mais confortável possível ao paciente e aos seus entes queridos. A humanização no tratamento está justamente na maneira como a equipe avalia e aplica o plano terapêutico nos campos emocional, físico, social e até mesmo espiritual, afinal, todas essas áreas devem estar em harmonia para que o paciente se sinta bem.65

Conforme o exposto, depreende-se que os cuidados paliativos vieram para transformar a visão estritamente técnica da medicina para com o enfermo em uma visão mais humanizada, tratando o paciente como um sujeito de sentimentos, medos e buscando não só curar a doença em si, mas possibilitar que este passe pelo tratamento da melhor forma possível.

3.2 INTERFERÊNCIA HUMANA NO FIM DA VIDA

Com o avanço da ciência e medicina, se descobriu a cura para diversas doenças, como também possibilitou uma morte indolor, da qual oportunizou bem-estar para muitas pessoas em todo o mundo. Em contrapartida, ocasionou um prolongamento demasiado do 62 INSTITUTO ONCOGUIA. Perguntas e Respostas sobre Cuidados Paliativos. São Paulo, 2015. Disponível em: http://www.oncoguia.org.br/conteudo/perguntas-e-respostas-sobre-cuidados-paliativos/4789/112/. Acesso em: 20 out. 2019.

63 INSTITUTO ONCOGUIA. Perguntas e Respostas sobre Cuidados Paliativos. São Paulo, 2015. Disponível em: http://www.oncoguia.org.br/conteudo/perguntas-e-respostas-sobre-cuidados-paliativos/4789/112/. Acesso em: 20 out. 2019.

64 HOSPITAL DE CÂNCER DE BARRETOS. Cuidados Paliativos. São Paulo, 2015. Disponível em: https://www.hcancerbarretos.com.br/cuidados-paliativos. Acesso em: 20 out. 2019.

65 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINFOMA E LEUCEMIA. Vamos falar de Cuidados Paliativos. São Paulo, 2016. Disponível em: http://abrale.org.br/qualidade-de-vida/cuidados-paliativos. Acesso em: 20 out. 2019.

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processo de morte, transformando o direito à vida em um dever de viver, submetendo o paciente a tratamentos médicos que não resultarão em vantagem alguma.66

Será que viver bem é viver muito? Será que vida digna é aquela segundo a qual o indivíduo, a despeito de todas as dores e sofrimentos que lhe tenham sido causados por determinada doença, ainda se mantenha ligado a aparelhos, ou sem eles, mas totalmente infeliz e dependente da boa vontade de outras pessoas?67

A possibilidade de adiar a morte por meio do uso das novas tecnologias e tratamentos, fez com que muitos médicos passassem a agir de modo a prolongar indefinidamente a hora da morte do paciente, ainda que inexistente uma chance de cura. Os profissionais da saúde começaram a adotar esta conduta como se fosse parte ou missão da medicina evitar a morte a qualquer custo.68

Tradicionalmente a conduta médica caracterizou-se por um acentuado “autoritarismo beneficente” em prol do paciente, havendo quase que uma total autonomia do profissional para decidir sobre a terapia a ser utilizada. Esta era uma conduta que vinha sendo mantida e aplicada em clínicas e hospitais, porém, o cenário médico está aos poucos se refazendo e mudando o seu foco. Hoje, para que a vontade do paciente seja atendida e respeitada, deve-se reconhecer a hora de cessar com os tratamentos desgastantes para que o doente descanse em paz.69

Neste sentido, percebe-se o início da tomada de consciência dos profissionais da saúde de que as tecnologias empregadas a certos doentes vêm sendo utilizadas de modo inapropriado e com excessos.

Buscando refletir sobre a situação do paciente terminal que deseja ter um final de vida mais sereno, sem padecer atrelado a aparelhos ou submetendo-se a tratamentos penosos e muitas vezes ainda tecnicamente ineficazes para o seu quadro clínico, podemos perceber que uma vida terminal feita de dor e sofrimento não pode ser imposta: ela poderá estar agredindo sobremaneira as convicções e crenças mais caras àquele que está morrendo, seus direitos a integridade, a dignidade e a autonomia. Nesse contexto, conforma-se um direito do doente terminal a morrer dignamente e com autonomia.70

Cecília Marreiro expõe o conceito de dignidade analisando os ensinamentos de Tomás de Aquino: o homem, como ser racional que é, é capaz de agir por si, por causalidade

66 DADALTO, Luciana. Declaração prévia de vontade do paciente terminal. Revista Bioética, Brasília, 17, n. 3, p. 523-543, 2009. Disponível em:

http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/515/516. Acesso em: 20 out. 2019. 67 SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de Morrer: eutanásia, suicídio. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 22. 68 MOLLER, Letícia Ludwig. Direito à morte com dignidade e autonomia. Curitiba: Juruá, 2012, p. 45-70. 69 MOLLER, Letícia Ludwig. Direito à morte com dignidade e autonomia. Curitiba: Juruá, 2012, p. 45-70. 70 MOLLER, Letícia Ludwig. Direito à morte com dignidade e autonomia. Curitiba: Juruá, 2008, p. 145.

Referências

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