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Em 12 de setembro de 2006, Papa Bento XVI proferiria sua polêmica palestra Fé, Razão

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A CRISE DE REGENSBURG:

Uma comédia em III Atos – José Maria Pulgas

A CRISE DE REGENSBURG: UMA COMÉDIA EM III ATOS

E

m 12 de setembro de 2006, Papa Bento XVI proferiria sua polêmica palestra Fé, Razão

e Universidade: Recordações e Reflexão na Universidade de Regensburg, Alemanha. Este

evento, que seria parte da agenda de sua viagem apostólica a sua terra natal, mais um dentre tantos discursos que faria, destacar-se-ia pelas suas repercussões na Comunidade Islâmica, Cristã e de Poder Secular. Condenações e demonstrações de apoio acompanharam o cenário de assassinatos, atentados e atritos diplomáticos que seguiram inflamando as relações já instáveis entre o Islã e o Ocidente Judaico-Cristão.

Em entrevista dada ao The Economist na edição desta revista publicada na semana do incidente e das primeiras repercussões, Tariq Ramadan, professor da Universidade de Oxford na Inglaterra sintetizou com uma crua clareza a situação que se apresentava. Em suas palavras:

“Most did not read the pope's speech; others had relied on a sketchy summary according to which the pope had linked Islam and violence.. certain groups or governments manipulate crises of this kind as a safety valve for both their restive populations and their own political agenda.. the mass protests... end up providing a living proof that Muslims cannot engage in reasonable debate and that verbal aggression and violence are more the rule than the exception”.1

Ouvindo o alerta contido nesta sentença de Tariq Ramadan apresentamos uma análise centrada em três documentos produzidos pela Santa Sé, Papa e pela Juventude Islâmica, vigilante ao apreciar as marcas enunciativas presentes nestes textos e deduzirmos uma análise comparativa do Discurso Papal (DP), da Carta Aberta ao Papa Bento XVI (CA) e a Declaração do Secretário de Estado do Vaticano, Cardeal Tarciso Bertone (DSV). A abordagem que adotaremos será

1 “A maioria não leu o Discurso Papal; outros confiaram em um esboço de sumário no qual o Papa teria ligado o Islã à Violência... Alguns grupos ou governos manipulam crises deste tipo como válvula de escape tanto para suas inquietas populações como para sua agenda política... os protestos em massa... acabam se tornando uma prova viva de que os Muçulmanos não podem se engajar em um debate razoável e que a agressão verbal e violência são mais regras que exceção”

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II baseada particularmente na intertextualidade entre estes três discursos e as remissões que fazem a outros tantos, muito dos quais considerados sagrados pelas duas Religiões.

A escolha destes três objetos se deve por alguns critérios de seleção que são: (I) oficialidade dos documentos. Todos eles foram assinados por autoridades legitimadas de ambas religiões, com lugar assegurado pelos seus fiéis para falar em nome da Fé que representam. Neste

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período, muitas cartas e manifestos foram subscritos por movimentos menores e de pouca ou nenhuma legitimidade de fala, podendo inclusive ser responsabilizados pela maior parte dos alvoroços. (II) A intertextualidade que apresentam. DP, obviamente, foi o incitador da crise, seguido da CA, como resposta de um importante movimento muçulmano, principalmente no Ocidente, a Juventude Islâmica, e por fim, a resposta oficial da Santa Sé na forma da DSV. (III) A publicidade destes enunciados, estando todos disponíveis para visualização e análise de qualquer interessado. E por fim (IV) todos se ampararem sobre um discurso acadêmico.

As práticas discursivas a partir destes critérios selecionadas formarão um quadro de análise da Crise de Regensburg a partir da ação de seus principais agentes institucionais, levando assim o nosso leitor a uma apreciação coerente do que aconteceu em setembro de 2006.

Como ensinado por Fairclough, “qualquer evento discursivo é considerado

simultaneamente um texto e um exemplo de prática social”2. Este pequeno fragmento da obra

deste, que por muitos, é considerado Pai da Análise do Discurso nos leva a pensar que todos os discursos são em si, não reprodutores de uma realidade, mas um tipo de representação, e mais importante, de significação do Mundo. Estando a Identidade Religiosa impregnada no Homem, seja ele Ocidental, seja ele Oriental – se ainda valerem estas categorias – se faz relevante a análise dos enunciados que constroem a identidade Religiosa na Contemporaneidade para, assim, entendermos a própria Construção Social da Realidade.

O estudo destes três discursos nos urge ainda pela peculiaridade do momento que nos encontramos, quando há diversos discursos anti-ocidentais no Mundo Árabe, sucessão no Trono de São Pedro e choques culturais na Europa entre as comunidades árabes e as demais. Ao estudarmos a crise com olhos atentos, percebemos que o maior dos seus agravantes estava na compreensão dos enunciados que foram criados pelas diversas situações que simultaneamente se

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III apresentavam. O Discurso Religioso, concebido de maneiras distintas pelos diferentes núcleos da crise, confundido com o Discurso Jornalístico resultou em uma visão manipulável dos próprios enunciados, redefinindo os sentidos deles mesmos. As diferentes recepções dos enunciados podem ser consideradas um dos motivos da crise ter tomado tais proporções, senão o maior deles.

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A arena de poder ideológica que campa nossa análise é o do poder da palavra. Como nos ensina Foucault3, a disputa pelo sentido domina a luta dos diferentes enunciadores, das diferentes formações discursivas. Neste caso, por se tratar das maiores religiões do mundo, esta disputa pelo poder sobre dizer o sentido de assuntos tão delicados e determinantes como fé e violência e fé e razão.

Para entendermos as regras desta disputa e as “armas” usadas pelas partes envolvidas, devemos compreender o contexto que se enquadra, responder as perguntas essenciais que dão forma ao discurso:”O que é isso? Como foi dito? O que foi feito ao se dizer isso? Para quem foi

dito? Por que foi dito isso? O que é que tornou possível dizer isso?”

A disputa pelo poder citada por Foucault será nosso principal argumento para efetivarmos as analises discursivas destes enunciados. Estes enunciados estarão conectados pela intertextualidade, visto que eles dialogam entre si e questionam os valores implícitos em seus

alters.

Ao analisarmos o DP, alguns detalhes do discurso nos são relevantes. Este discurso, curto para os padrões de Bento XVI, foi proferido para a comunidade científico-acadêmico da cidade universitária de Regensburg, parte do roteiro de uma visita oficial do Papa à Alemanha, a primeira visita deste Papa à sua terra natal. Ratzinger não só estava no lugar de fala do Papa recém-eleito e autoridade máxima infalível da maior religião do mundo em número de fiéis, que junto ao Islamismo, agrupam 55% da população mundial, mas também como primeiro Papa alemão da história, de um país que adotou o Luteranismo e foi palco da segunda grande Cisma católica, com a Reforma Protestante. Outros elementos que devemos considerar são (I) a Alemanha é um país tradicionalmente vinculado ao Nazismo, por razões históricas desnecessárias de ser debatidas neste artigo, e Ratzinger em sua juventude serviu ao Exército Nazista Alemão,

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IV fato veiculado pela imprensa semanas antes de sua viagem para Alemanha e que dividiu espaço na mídia com a própria viagem; (II) um documento revelado pela BBC durante esta viagem papal indiciava o então Cardeal Ratzinger por acobertar casos de pedofilia praticados por sacerdotes católicos, escândalo que até o momento da finalização deste artigo ainda pesava negativamente sobre a imagem da Igreja Católica; (III) semanas antes, o Papa Bento XVI fez referência a uma

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eurocentralização da Igreja Católica, o que causou instabilidade dentro da própria Santa Sé; (IV) a crise recente provocada pelas charges publicadas por um jornal dinamarquês que representava Mohammed, Profeta do Islã, com uma bomba, indicando, de acordo com a interpretação de vários movimentos islâmicos, a violência vinculada ao próprio Islã, causando vários episódios de violência no mundo árabe; e, por fim, (V) a desconfiança que envolveu a ascensão de Ratzinger ao Trono de São Pedro, sucedendo um Papa extremamente carismático e popular entre todas as religiões, Papa João Paulo II, que em seu longo papado promoveu as conversações entre os povos, mesmo mantendo firmemente a identidade católica. Desde a Conclave, era desconsiderado como possível Papa por ser extremamente conservador, sem carisma, um Papa de Livros contra o

Papa do Povo.

Para nossos propósitos de pesquisas, utilizaremos apenas os fragmentos do enunciado maior que permitirão uma análise comparativa com os outros demais. O discurso é endereçado principalmente aos agentes acadêmicos e eclesiásticos presentes na Conferência, e seu título já remete ao assunto que o DA se atende a suprir, a dicotomia da Fé e da Razão, tão presente nas outras obras teológicas católicas, no seio da Universidade. Ratzinger é considerado o maior teólogo do pós-guerra, sendo mais que referencial o lugar discursivo que ele assume ao discorrer sobre este tema.

Em sua palestra, o título Fé, Razão e Universidade: Recordações e Reflexões já chama o corpo acadêmico e ouvintes ao que seria o seu tema. Bento XVI sempre teve uma relação estreita com o corpo universitário, passando grande parte de sua vida dentro desta formação discursiva. O campo teológico, na qual Bento XVI se destacaria, preza pela aceitação racional da fé, proporcionando maior legitimidade ao seu discurso. A ênfase no subtítulo Recordações e

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V e pessoais refletir sobre os rumos da Universidade e qual papel que ela desempenha como mediadora entre a fé e a razão.

Contudo, deslocado no corpo do discurso, três parágrafos formam o enunciado que primeiro estudaremos. São reflexões do Papa a cerca de diálogos entre um paladino da Igreja, um

douto imperador Bizantino Manuel II Paleólogo e um persa erudito sobre Cristianismo e Islão.

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Neste diálogo, publicado por um professor de teologia alemão da Universidade de Regensburg, Professor Theodor Khoury, seria discutida sobre a verdade de ambos.

Bento XVI faz uma análise do texto em referência, afirmando ser de autoria possível deste Imperador Bizantino e adequa o objeto destes diálogo que serviria para justificar sua atenção dispensada ao texto e sua referência em um discurso que faria sobre fé e razão. O assunto por ele selecionado seria a Jihad, guerra santa. A atenção a este tema se faz extremamente complicada no período em que foi proferido na Alemanha pelo Papa. A eleição de Ângela Merkel retiraria as tropas alemãs do Iraque sob ameaça de ataques terroristas de entidades islâmicas que legitimavam suas ações a partir da Jihad, além da Europa ter sofrido inúmeros atentados que ameaçariam a própria viagem de Bento XVI à Alemanha.

Um cenário se apresenta na explicação do tema pelo Papa ao público. Neste momento, ele não usa de seu lugar de fala papal, mas de professor de teologia, como se conduzisse uma palestra a cerca do tema, diferente das suas homilias e outros pronunciamentos oficiais, atribuindo diferentes qualidades ao Islã e ao Cristianismo, no texto por ele referido no DP, a uma platéia que, em suas palavras, não transparecia ter conhecimento do mesmo.

Estas qualidades são sempre opostas, como nos mostra o quadro abaixo:

ISLÃ CRISTIANISMO (CATOLICISMO)

• A fé pode ser fruto do corpo, justificando a conversão por violência.

• A fé é fruto da alma, não legitimando a violência para conversão.

• D-us como absolutamente transcedente, sendo agir com a razão contrário à natureza de D-us.

• D-us traduzido pela tradução helênica, sendo NÃO agir com a razão contrário à natureza de D-us.

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VI

estar obrigado a nos revelar a verdade.

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O DP se baseia na heterogeneidade. Assim sendo, Bento XVI se refere a um texto de um grande teólogo que por sua vez se refere a outro texto, escrito possivelmente por um Imperador Bizantino Cristão a partir de um diálogo com um erudito muçulmano. As credenciais de Theodor Khoury são óbvias aos receptores do DP, mas a dos outros em que o texto deste autor se constrói, por razões óbvias de distanciamento temporal, perdeu-se e é por poucos conhecidos. Em resgate a estas credenciais que legitimariam este diálogo entre ambos como verdade, Bento XVI os apresenta como eruditos, sábios, entendores de suas religiões e capazes de discuti-las.

Os motivos de atrito entre este pronunciamento com a comunidade islâmica vem da identificação pelo DP proposta da Fé Islâmica com a violência justificada por motivos religiosos, explícita no termo Jihad, Guerra Santa. Desta identificação será publicada uma carta aberta na

Islamic Magazine dirigida ao Papa Bento XVI.

Islamic Magazine se identifica como sendo vitrine de diferentes perspectivas sobre o Islã

e como porta-voz para os muçulmanos articularem seus pontos de vista, ao mesmo tempo que estabelece relações culturais entre Muçulmanos e seus vizinhos e correligionários. É uma revista publicada nos Estados Unidos e distribuição internacional, reconhecida por várias outras comunidades além da Muçulmana.

Esta característica de universalidade da Islamic Magazine deu o contexto adequado para ser a porta-voz deste importante documento, primeira resposta oficial do Movimento Islâmico às declarações de Bento XVI na Alemanha.

A CA é subscrita por 38 autoridades islâmicas. Diferente do Catolicismo Romano que tem no Vaticano sua sede e capital, o Islamismo não é centralizado, nem institucionalizado uniformemente, o que impossibilita a afirmação do ponto de vista do Islã como unidade e

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VII promove disputa de poder de fala. Esta CA se constitui importante documento representativo por agregar vozes de diferentes representantes de grandes camadas da Comunidade Islâmica (CI).

Os responsáveis pela CA são Mufti (líderes muçulmanos de notório saber na Sharia – Lei Islâmica – e com grande poder legal em países que seguem constitucionalmente esta Lei), diretores de instituições de Ensino Islâmico, diretores de meios de comunicação da CI, professores e ministros.

A CRISE DE REGENSBURG: UMA COMÉDIA EM III ATOS

O CA mantém uma postura de reconhecimento da nobreza do tema discutido de relacionar a Fé e a Razão, aderindo à proposta argumentativa original do DP, contudo, reporta uma série de erros neste mesmo enunciado. O diálogo com DP não é feito de maneira a desautorizar o seu enunciador, Bento XVI, mas seus argumentos, principalmente aqueles baseados na teologia islâmica e nos autores pelo Papa mencionados para legitimar seu discurso.

DP assume um papel de elucidação dos equívocos cometidos pelo Papa, não indicando nenhuma má intenção, mas somente erros ao escolher os textos para basear sua argumentação, devido à pluralidade de textos relacionados à cultura islâmica. O Papa não é culpado, mas sim seu discernimento em escolher os seus “experts”. A culpa seria destes Experts, e não do Papa. Neste aspecto, CA faz um recorte em um discurso proferido pelo Papa em Colônia que demonstraria a boa-fé para as conversações entre as duas religiões, as maiores do mundo.

Esta postura de aconselhamento neutraliza qualquer expectativa de argumentos violentos contra o DP, apesar das hostilidades que a CI presenciou após o pronunciamento de Regensburg. Na CA, os autores se silenciam em relação a estes movimentos externos de violência que justificariam os argumentos papais.

CA demonstra sua clara nostalgia dos tempos do Papa João Paulo II, predecessor de Ratzinger, cujo apelo popular superava em muito a desse, como já referido neste artigo. Este jogo de referências ao antigo Papa também revela um apoio nos argumentos e validação das posturas adotadas no Concílio Vaticano II presidido pelo Papa João Paulo II e que foi bastante benéfico à CI e conversações entre os dois credos.

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VIII A CRISE DE REGENSBURG: UMA COMÉDIA EM III ATOS

Discurso Papal Carta Aberta

Identifica Theodor Khoury e Roger Arnaldez como especialistas no Islã.

O uso dos parênteses elucidando as funções hierárquicas e a pretensa especialização de ambos reduz seus papéis no estudo do Islã, que será desautorizado pela falta de reconhecimento da CI ao dito notório saber de ambos. Credencial Ibn Hazm como teólogo árabe que sustentaria

o argumento do enunciado.

Apesar de reconhecer o valor de Ibn Hazm, esclarece que ele ocupa uma posição hoje marginal e sem seguidores de uma combalida escola Jurisprudencial Islâmica.

A visão de D-us pelo Imperador Católico é uma visão helênica, portanto ocidental, de um D-us que não tolera o sangue e que é auto-evidente, em oposição ao D-us transcendente islâmico.

Corrige esta visão do DP, acusando-a de ser uma perigosa simplificação das Palavras do Quram. Cita passagens deste livro considerado inspirado e infalível para autenticar sua fala.

Silencia a conversão forçada promovida historicamente pela Igreja Católica e acusa somente o Islã de ter praticado este tipo de conversão a ferro e sangue.

Aceita a acusação de conversão por sangue, mas como prática em períodos de exceção da história muçulmana e não autorizada pelo Sharia. Acusa o uso deste tipo de prática também a Igreja Católica.

Conceitua Jihad como prova de intolerância dos Muçulmanos em relação a fiéis de outras religiões.

Defende-se citando as regras expostas no Quram para a Jihad, conceituando-a como uma guerra de defesa quando a fé do próprio muçulmano está ameaçado. Ainda argumenta que se o Islã fosse intolerante, não teria em seu vasto território tantas Igrejas e Sinagogas

Argui que o uso da Razão nos preceitos islâmicos não é recomendável por ir contra a vontade Divina.

Defende que a Razão é um dos vários Sinais que o homem deve apreciar para enxergar a Divindade.

Atribui ao Profeta Mohammed, através do texto do Imperador Bizantino versos desumanos e maus, incluindo o de espalhar a fé pela espada.

Além de condenar esta adjetivação dos versos do Profeta Fundador do Islamismo, esclarece que estas palavras de fé pela espada jamais foram por ele citadas.

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Silencia o uso de violência por Cristãos na defesa de sua fé.

Relembra o uso de violência de Jesus Cristo contra os mercadores do Templo em uma das cenas mais famosas do Novo Testamento.

Identifica nos cercos a várias cidades cristãs pelos muçulmanos na Baixa Idade Média como exemplo de violência religiosa.

Justifica-se dizendo que aquela foi uma decisão política e não religiosa, isentando assim o Islã de qualquer envolvimento com as guerras deste período.

A CRISE DE REGENSBURG: UMA COMÉDIA EM III ATOS

Ao citar as palavras do Concílio Vaticano II de defesa da fé Muçulmana como o inverso do exposto no DP, na formação canônica, estes argumentos se tornam indefensáveis pela Igreja Católica, visto o manto de infalibilidade papal que estes se envolvem. A partir daquele Concílio, os Cristãos teriam reconhecido os Muçulmanos como irmãos de fé e seu apreço pelos valores que os Cristãos com eles compartilham.

Esta técnica de confronto argumentativo que desautoriza as vozes subsidiárias ao discurso, comportamento extremamente eficaz quando estão imiscuídos ao texto elementos como estão no DP de heterogeneidade, dialogismo e polifonia, desmonta o enunciado, desautorizando-o e diminuindo ou anulando a autoridade do seu enunciador. Neste enunciado, o Papa, que perde seu status de certeza acadêmica, sendo por fim considerado como alguém mal guiado pelo Universo Islâmico e que se deixou enganar por falsos experts. Percebamos que a construção discursiva, principalmente os usos verbais do CA, são montados para inocentar o Papa e a Igreja Católica, evitando que se promovam mais atos de violência, e desta vez autorizados por célebres figuras da CI.

No enunciado CA, o Papa não é autor, mas vítima.

A resposta do DP em forma de carta aberta provocou resposta da Santa Sé dias depois. Em 16 de setembro de 2006, o Cardeal Tarcisio Bertone, secretário de Estado do Vaticano, assina a declaração oficial da Igreja Católica.

Diferente do formato de Carta Aberta adotado pela CA, publicada na Islamic Magazine e distribuída para os maiores veículos de comunicação internacional, a DSV somente foi divulgada pelos veículos oficiais do Vaticano e pela Agência Vaticana de Notícias. Enquanto Carta Aberta, CA chamava todos, não só a CI, a uma discussão racional do assunto, esclarecendo seus

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X argumentos e conduzindo didaticamente o leitor. Ao decidir adotar uma postura de declaração política, opta também por um veículo comunicação direcionada à sua própria comunidade Católica Apostólica Romana, apesar de disponível a todos os demais.

O cargo de Secretário de Estado do Vaticano atribuído a Tarcisio Bertone a ele concede o poder de ser o porta voz do Vaticano e, conseqüentemente, do Papa e da Santa Sé. Ao se lançar uma declaração à cerca de um pronunciamento papal como o DP, além de confrontar o

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ineditismo deste ato no Papado de Bento XVI, também quebra uma tradição de quase duas décadas desde a última declaração deste tipo.

Este tipo de declaração esbarra em um princípio dogmático da Igreja Católica instituído no Concílio Vaticano I no século XIX, o princípio da Infalibilidade Papal. Um Papa jamais erra. Para contornar este empecilho, a construção deste documento deve ser voltado apenas para uma maior clarificação das palavras papais e aprofundamento da Discussão. Já que o Papa não erra, quem erra são os que mal interpretaram suas palavras!

DSV é um complemento de documento lançado pela Sala de Imprensa da Santa Sé, como referido no parágrafo introdutório deste enunciado. Este documento foi criticado como sendo superficial e distante.

A Secretaria de Estado do Vaticano estrutura seu discurso a partir de outros documentos e declarações anteriores de Bento XVI e da Santa Sé, como (I) o documento conciliar Nostra

Aetate; (II) discurso em Colônia proferido pelo Papa Bento XVI à representantes da CI;e (III) a Mensagem comemorativa do XX aniversário do encontro inter-religioso de oração pela paz;

Ao se apoiar nestes textos, DSV legitima seu argumento que o Papa Bento XVI é (I) tolerante e defensor do diálogo inter-religioso e inter-cultural e (II) um defensor do Papado de João Paulo II; e que está amargurado por ter sido mal interpretado em suas palavras.

A principal crítica feita ao DP havia sido o uso do texto do Imperador Bizantino Manuel II Paleólogo, desautorizado pela CA como especialista em Islã. Neste ponto, a DSV questiona a própria CA ao propor que a leitura feita pelos críticos do DP é equivocada e não conseguiu alcançar o grau acadêmico proposto pelo Papa em seu pronunciamento. Sobre o questionamento da autoridade de Manuel II pela CA, DSV se silencia, desconsiderando este argumento como

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XI válido ao ponto de não precisar nem ser mencionado. Discutir Manuel II Paleólogo seria discutir a infalibilidade Papal, visto que suas palavras foram pelo Papa autenticadas.

Por fim, DSV recoloca o Papa em seu papel conciliatório, mediando as hostilidades entre Ocidente e Oriente ao reconhecer que o D-us Islâmico é o mesmo que o Católico.

O estudo conjunto destes três documentos permite contemplar de maneira abreviada como a instabilidade do sentido de um discurso pode afetar, como Delleuze e Guatari afirmariam em

Mil Platôs, a interação entre dois ou mais divíduos ou coletividades. A crise no dialogo de

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valores entre as culturas ocidental e oriental se tornaria uma constante no período pós-guerra do Golfo, ameaçando a instabilidade de ambas sociedades. Analisar os enunciados produzidos por estas comunidades discursivas é entender a construção da realidade que estas produzem entre si e, assim, compreender os versos da Sura 56 do Quram ﺎ ﱠﻟِإ ًﻼ ﻴِﻗ ًﺎﻣﺎَﻠ َﺳ ًﺎﻣﺎَﻠ َﺳ ﺎ َﻟ َنﻮُﻌَﻤ ْﺴَﻳ ﺎ َﻬﻴِﻓ ًاﻮ ْﻐَﻟ ﺎ َﻟَو ًﺎ ﻤﻴِﺛْﺄَﺗ4

BIBLIOGRAFIA:

BAYAH & outros, Abd Allah bin Mahfuz bin. Open Letter to His Holiness Pope Beneditc XVI. Publicado em Islamic Magazine, dia 14 de setembro de 2006

BERTONE, Tarcisio. Declaração do Senhor Cardeal Tarcisio Bertone, Secretário de Estado. Publicada em 16 de setembro de 2006. Libreria Editrice Vaticana

DELEUZE & GUATTARI, Gilles e Felix. Mil Platôs. Ed. 34. São Paulo

FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 7ª edição. Editora Forense Universitária. São Paulo:2004

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XII __________________ História da Sexualidade: a vontade de saber. Ed. Graal. São Paulo.

RATZINGER, Joseph. Fé, Razão e Universidade: Recordações e Reflexões. Discurso proferido em 12 de setembro de 2006. Libreria Editrice Vaticana

Referências

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