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O sistema de necessidades e o trabalho abstrato na sociedade civilburguesa

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Academic year: 2021

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The system of needs and the abstract work in the civil-bourgeois society according to Hegel

Marlon Henrique Aramor1

Resumo: Este artigo pretende apresentar o sistema de necessidades (Bedürfnis) desenvolvido por Hegel, tanto no Sistema da vida ética de 1803 que esboça a primeira forma sistemática da vida social quanto nas Linhas Fundamentais da filosofia do direito de 1821. Hegel compreende que a sociedade civil-burguesa se efetiva segundo o sistema de necessidades por meio da realização do trabalho concreto, sempre em vista da apropriação de uma parte do patrimônio

universal. Nesse sentido buscaremos demonstrar que a divisão social do trabalho se apresenta

como uma necessidade até a satisfação total das carências de todos os indivíduos, no seio da sociedade civil-burguesa. Encontrar a universalidade ou a reconciliação da vida entre o social e o político, entre o natural e o ético é o grande esforço da filosofia hegeliana. De modo que a passagem de “membros da família” para “filhos da sociedade civil-burguesa” se dá pelo trabalho espiritual abstrato, mas também do trabalho moderno em sua realidade social-econômica-política mais concreta de seu tempo.

Palavras Chave: Sociedade civil-burguesa. Sistema de necessidades. Trabalho.

Abstract: This article intends to present the system of needs (Bedürfnis) developed by Hegel, both in the System of Ethical Life of 1803 which outlines the first systematic form of social life and in the Fundamental Lines of the philosophy of law of 1821. Hegel understands that civil- bourgeois economy is effected according to the system of needs through the accomplishment of concrete work, always in view of the appropriation of a part of the universal patrimony. In this sense, we will try to demonstrate that the social division of labor presents itself as a necessity until the total satisfaction of the needs of all individuals within the bourgeois civil society. Finding the universality or reconciliation of life between social and political, between natural and ethical is the great effort of Hegelian philosophy. So the transition from "family members" to "sons of bourgeois-civil society" comes from abstract spiritual work, but also from modern work in its more concrete social-economic-political reality of its time.

Keywords: Civil-bourgeois society. System of needs. Work.

* * *

1 Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista

(UNESP), Campus de Marília. Orientador: Prof. Dr. Pedro Geraldo Aparecido Novelli. E-mail: marlon_ha@hotmail.com

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1. Introdução

Logo na introdução de suas Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito2 de

1821, Hegel caracteriza a filosofia como a conquista do conceito (Begriff) em sua efetivação (FD, §01, p. 47). De fato, o conceito é a palavra final do sistema hegeliano, expressão plenamente consciente da vida (KONDER, 1991). Desse modo, conceito e

efetivação, a um só tempo, são duas e uma coisa só, como afirma Hegel no adendo do

§01: são “dois lados, separados e unidos” de uma mesma coisa, tal qual corpo e alma. É nesse sentido especulativo, de uma consciência que evolui, que a própria realização da

sociedade civil-burguesa, como momento aparente do ético, se efetiva (FD, § 181, p.

188).

O termo em alemão bürgerliche Gesellschaft traduz precisamente o sentido para o qual se destina a sua compreensão filosófica do período histórico que se anunciava: significando tanto “sociedade civil” como “sociedade burguesa”, já que a única maneira de se pensar a sociedade de sua época era aquela que nascia com a burguesia (KONDER, 1991). De modo que tal expressão verte dois significados que aqui se encontram: o primeiro se aproxima do conceito mais corrente ao latim civitas, caracterizando-o como cidade ou espaço urbano/territorial centrado em leis e em instituições que realizam a determinação da justiça e da liberdade – o que mais tarde será o lugar da efetivação dos direitos civis habitado por aqueles que possuem a condição de cidadão ou povo. O segundo significado, na acepção mais próxima ao pensamento hegeliano, significa o burguês enquanto homem que se dedica ao comércio e, portanto, ao processo econômico baseado na relação de troca que se efetiva em uma

economia política. Desse ponto de vista subjaz o conceito hegeliano de sistema de necessidades o qual exprime a estrita relação de troca de mercadorias e cuja

exteriorização se desenvolve na noção abstrata de mercado, enquanto possível regulador no momento da sociedade civil-burguesa. A noção de mercado em Hegel se efetiva na medida em que as necessidades de cada um são satisfeitas pela realização do trabalho de todos, em trocas impessoais.

2 Utilizaremos, doravante, a abreviação FD para nos referirmos a obra Filosofia do Direito de 1821 de

Hegel, seguida do respectivo parágrafo. A tradução utilizada é: HEGEL, G.W.F. Linhas Fundamentais da

Filosofia do Direito ou Direito natural e Ciência do Estado em Compêndio. Trad. Paulo de Menezes,

Agemir Bavaresco, Alfredo Morais, Danilo Vaz-Curado R. M. Costa, Greice Barbieri e Paulo Roberto Konzen. São Paulo: Loyola; São Leopoldo: Unisinos, 2010.

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O trabalho como atividade meio que reconcilia o homem e seu outro, que mediatiza o sujeito e o objeto, produz a vida ética: enquanto vida ética propriamente dita, a do povo enquanto tal, ela é determinada, tanto social quanto politicamente, segundo as condições de trabalho. Ora, os primeiros manuscritos hegelianos como o

Sistema da Vida Ética de 1803 já delimitará o trabalho em seu aspecto técnico e

concreto. Mas é nas obras mais amadurecidas que a noção de trabalho em Hegel aparecerá mais especificamente. Em vista de pensar uma análise concreta do trabalho, as Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito apresentará o aspecto social do trabalho, nutrindo-se do conhecimento mais positivo da experiência de sua época (BOURGEOIS, 2004).

2. Sociedade civil como reflexão intelectual do sistema de necessidades

Os indivíduos existem concretamente e se apresentam como livres em sociedade. O processo ou movimento pelo qual eles expressam essa liberdade é o que Hegel chama de Eticidade ou vida ética (Sittlichkeit), segundo o entendimento de que a autogeração

do homem sempre se dá por um esforço ou superação através do trabalho (BOURGEOIS,

2004): o trabalho material/concreto subjugando a natureza à sua vontade e o trabalho do espírito que ao transformar a materialidade em seu objeto também se autotransforma, projetando na vida ética sua conduta. Nesse sentido, segundo Konder (1991, p. 62), a eticidade se desdobra em três momentos distintos para a autoefetivação do homem: a família, a sociedade civil-burguesa e o Estado:

Na família, o indivíduo toma consciência, sensivelmente, de modo natural, de sua unidade com outras pessoas; percebe que seu destino está entrelaçado ao delas. Na sociedade civil-burguesa, o indivíduo assume sua autonomia, persegue seus interesses privados, orienta-se de acordo com suas paixões e necessidades particulares, mas também é pressionado no sentido de reconhecer os vínculos objetivos que o ligam aos outros, num âmbito muito mais vasto que o da família. No Estado, por fim, o indivíduo supera o quadro constituído pelo egoísmo generalizado, ultrapassa o horizonte limitado das “corporações” [...], para se elevar à universalidade da cidadania.

A sociedade civil-burguesa está entre a família e o Estado, marcada como o instante da satisfação dos interesses privados, identificada por Hegel no §182 de sua

Filosofia do Direito como o momento da “pessoa concreta, que enquanto particular é a

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arbítrio, é um princípio da sociedade civil-burguesa”. Isto é, a pessoa concreta está presente no mundo das necessidades naturais (Bedürfnis) de ordem geral ou das necessidades básicas e imediatas da vida comum segundo a sua sobrevivência; mas também dotada de livre-arbítrio, isto é, do puro querer para si segundo as mesmas necessidades. De modo que Hegel reconhece que o ser humano não se determina pela natureza, mas através dela3.

Para compreender a sociedade civil-burguesa Hegel apresenta – e faz questão de enfatizar – apenas “um princípio”, isto é, apenas um momento lógico dentro do seu movimento filosófico: o primeiro e mais primitivo momento do espírito, do seu

ser-em-si, da pessoa concreta, particular, enquanto pura vontade. Hegel define a vontade como pura indeterminação não limitada por nada enquanto ato e potência de um querer algo

para si, pertencente ao espírito subjetivo “do puro pensar de si mesmo” (FD, §5, p. 57). Apesar de estar no âmbito do pensamento a vontade aparece e se determina quando se quer algo no mundo, pois ela também é mundana. A vontade tem que se manifestar no mundo e é por isso que ela determina para si o que se quer – é porque se quer algo, ou melhor, para se satisfazer segundo as necessidades mais imediatas e os desejos mais primitivos que tal pessoa se submete ao trabalho –. Logo, a sociedade civil-burguesa é produzida intelectualmente pelo sistema das necessidades, pois a vontade cria um mundo novo, reflexivo e abstrato em relação ao mundo da natureza transformado, agora, em seu objeto.

Nesse sentido, a pessoa concreta, continua Hegel no §182, percebe que não está sozinha com as suas necessidades, “mas, como pessoa particular se encontra essencialmente em vinculação com outra particularidade semelhante”. Isto é, o sujeito moral e concreto no mundo percebe que está essencialmente vinculado a um ser outro que é também uma particularidade, contudo, é um particular oposto negativo que é reconhecido pela sua semelhança – não é um total desconhecido – pois também possui

necessidades e livre-arbítrio. O indivíduo, logo percebe que não pode querer tudo do

mundo, limitado pelas necessidades e determinações do arbítrio de um ser outro, mas mesmo assim quer algo do patrimônio universal e, por isso, se determina. Pelo ato da escolha de se autodeterminar que se começa a perceber que se é livre. A vontade,

3 “Na exigência da purificação dos impulsos [instintos reside a representação universal de que eles sejam

libertados da forma de sua determinidade natural imediata e do que seu conteúdo tem de subjetivo e de contingente e seriam reconduzidos à sua essência substancial. O que essa exigência indeterminada tem de verdadeiro é que os impulsos [instintos] sejam o sistema racional da determinação da vontade; apreendê-lo assim a partir do conceito, tal é o conteúdo da ciência do direito” (FD, § 19, p. 66-67).

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portanto, é do puro querer. Igualmente é a liberdade, pura indeterminidade abstrata se não se efetivar ou se não se determinar na sociedade civil-burguesa.

Acrescenta Hegel que no bojo da sociedade civil, na inclinação que se inicia pela busca da satisfação de todos os desejos privados, aparece no horizonte egoístico imediato a inclinação quase contraditória para a universalidade da vida ética, “de modo que cada uma apenas [as pessoas concretas] se faz valer e se satisfaz mediante a outra e, ao mesmo tempo, simplesmente apenas enquanto mediada pela forma da

universalidade, que é o outro princípio da sociedade civil-burguesa” (FD, §182, p.

189). Assim, enquanto o primeiro princípio da sociedade civil é a mescla entre necessidade e arbítrio (§182), o outro princípio da sociedade civil-burguesa é a satisfação por meio da mediação ou reciprocidade de mercadorias entre os indivíduos. Tal relação ou identificação do sistema de necessidades não se constitui como movimento último no pensamento hegeliano, visto que a pessoa particular está sob a

forma da universalidade, isto é, pela aparência do universal, cujo germe se encontra na

família e que na vida em sociedade ainda não é a universalidade em sua essência, pois essa sempre precisa se particularizar para se efetivar enquanto universal. Mas antes é a manifestação da garantia dela, da própria universalidade, pela sua mediação ética presente na relação entre os indivíduos na sociedade civil-burguesa.

Desse modo, a sociedade civil-burguesa é segundo Hegel uma instituição ética que explicita a autonomia dos indivíduos através de suas paixões e desejos, mas que também os impelem ao reconhecimento necessário em seu ser-outro, na satisfação de suas carências, sempre no alcance possível da compreensão ética. Portanto, a sociedade civil-burguesa está ao lado de outras instituições éticas: a família e o Estado. Cada uma possui a sua devida importância em relação à outra e a sua existência, da sociedade civil-burguesa, faz-se em relação às outras, de modo que essas outras instituições éticas – a saber – a família e o Estado, existem por aquela também, a sociedade civil-burguesa.

3. O trabalho enquanto movimento de reciprocidade e dependência

A sociedade civil, pensa Hegel, visa regular diversas necessidades de diferentes indivíduos. É, pois, na família, antes do seu ser-aí no mundo que a criança desenvolve o sentimento da liberdade e do coletivo, desenvolve o nexo entre uma individualidade que se estabelece e um pertencimento a uma instância maior, a sociedade civil-burguesa. É justamente através do sistema de necessidades ou na consciência de que se é um sujeito

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de necessidades, diante de outros indivíduos com carências distintas, que o sujeito se afirma em sua essência, de modo que para satisfazer suas necessidades precisa pôr-se diante ou fazer-se frente às outras necessidades dos outros cidadãos. O que garante esse movimento de reciprocidade e dependência é o trabalho.

O trabalho entendido por Hegel é a negação da forma exterior da natureza, isto é, o homem quer dar uma nova forma à natureza para saciar suas necessidades e, para isso, precisa negá-la – aquilo que é dado pelo sujeito é negado por ele. O que a natureza fornece é destruído, modificado, ganha uma nova forma, dá-se um rosto humano à materialidade constituindo como um processo de subjetivação da natureza. De modo que a primeira categoria é a necessidade, a segunda, o trabalho. Ora, a atividade humana se inicia pelo desejo natural (necessidade) de modo que o objeto consumido é destruído na fruição que o sujeito experimenta. Essa unidade entre sujeito e objeto é ainda simplesmente formal, já que o objeto em sua materialidade não apresenta de imediato a marca do homem. Mas é no momento seguinte, do espírito objetivo, na realização do trabalho (positivo) que se engendra a modificação do ser material do objeto obtendo-se uma segunda natureza, de modo que essa unidade entre sujeito e objeto produzida pelo trabalho é, por assim dizer, anterior ao próprio trabalho (positivo), é a unidade

puramente subjetiva do sentimento de si fugaz (BOURGEOIS, 2004).

Contudo, acrescenta Bourgeois (2004), para Hegel quase tudo o que o homem consome é materialmente transformado e, que, em vista disso, a atividade humana modifica o ser material do objeto em um trabalho real, e não mais apenas formal. Essa relação ativa e prática marca o processo concreto do trabalho humano, na medida em que o sujeito se afirma e se reconhece na negação do objeto trabalhado. Eis aí, o trabalho como vínculo e elemento unificador entre sujeito e objeto. “O trabalho deve, portanto, necessariamente objetivar-se como tal no próprio objeto, a negatividade que o constitui deve inscrever-se neste como uma qualidade positiva dele mesmo, que se dá então como um produto” (BOURGEOIS, 2004, p. 78).

Porém, na exigência laboriosa do satisfazer-se consigo mesmo no objeto, objetivamente, diante dessa relação dinâmica entre necessidades e o trabalho a desempenhar em um produto final, que Hegel reconhece que um único homem não é por si mesmo capaz de satisfazer todas as suas necessidades. Esse reconhecimento se dá pela impossibilidade de um único cidadão moderno realizar toda a negação da natureza pelo seu trabalho individual segundo as suas necessidades, já assentia Hegel em O

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O sistema da necessidade compreendeu-se acima formalmente como sistema da universal dependência física reciproca de uns em relação aos outros. Ninguém é por si mesmo para a totalidade da sua necessidade. O seu trabalho seja qual for o modo da faculdade de satisfazer a sua necessidade não lhe assegura esta satisfação.

O homem diante dessa instância maior das carências, mesmo antes do horizonte pré-industrial, não era capaz de satisfazer sozinho todas as suas necessidades. Inclusive, para além da universal dependência física recíproca, o ócio também se constituía como uma necessidade humana.

De modo que já nos encontramos nesse sistema de bens e necessidades do qual não podemos mais retroceder, pois é o mundo que se impõem ao sujeito e este que o modifica para sua satisfação – é o mundo que nós perdemos – através da sua negação em prol de suas próprias exigências. A sociedade civil-burguesa nasce pelo trabalho e esse supre as suas necessidades. Nessa dupla negação, do mundo que se impõem ao sujeito e desse que o nega transformando-o para suas necessidades, gera-se a divisão dos trabalhos para justamente atender a demanda de tantas necessidades distintas de indivíduos que se fazem presentes uns diante dos outros. Entretanto, convém notar que há uma formação correlativa do sujeito e do objeto no trabalho, segundo o entendimento de que a suprassunção ou a elevação do desejo natural não se dá naturalmente, mas por meio da coerção e da atividade laboriosa do trabalho imposto ou determinado pelo próprio sujeito (BOURGEOIS, 2004, p. 79). Uma vez que o trabalhar é a conservação da negação do objeto pelo sujeito trava-se uma luta pelo reconhecimento entre o sujeito e o objeto. Esse sujeito enquanto tal só se dá se não mediante um esforço ao objetivar-se tanto no objeto em que modifica, quanto é por si mesmo modificado, ao ser trabalhado.

Toda objetivação tem o risco de alienação. Portanto, na medida em que há a elevação

do trabalho pela técnica e a satisfação das necessidades humanas, em um mundo cada vez mais complexo, onera-se o próprio homem na abstração da atividade do próprio trabalhar, que se conflagra ao negar ou subjugar ele próprio, humanidade objetificada, tal como uma ferramenta que se completará na máquina (FD, §198, p. 197), de gesto simplesmente humano que era, podendo tornar-se um trabalho completamente inumano (BOURGEOIS, 2004, p. 81).

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4. A divisão social do trabalho e suas consequências: juízos reflexivos abstratos

No início do §198 de suas Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, Hegel estabelece uma relação entre o universal e o trabalho como ambos residindo na abstração, em suas palavras: “o universal e o objetivo no trabalho residem na abstração, a qual efetiva a especificação dos meios e carecimentos e com isso igualmente especifica a produção e produz a divisão dos trabalhos”. A partir da divisão dos trabalhos e na medida em que se especificam os meios pelos quais se produz especificam-se as necessidades em graus de complexificação, exigindo cada vez mais a especialização das habilidades. Da mesma forma que se afirma e efetiva a divisão dos trabalhos através da multiplicação das necessidades individuais, se torna cada vez mais abstrata a noção de trabalho e de sociedade civil-burguesa ao seu movimento original. No entanto, a divisão do trabalho apresenta suas vantagens, pois se constitui como um sistema de dependências recíprocas das necessidades totais universais que está imediatamente em relação com o trabalho de cada indivíduo e sua divisão, como corrobora o autor no mesmo §198:

O trabalho do singular torna-se mais simples pela divisão e, através disso, torna maior sua habilidade no seu trabalho abstrato, assim como a quantidade de sua produção. Ao mesmo tempo, essa abstração da habilidade e do meio completam a dependência e a vinculação

recíproca dos homens para a satisfação dos demais carecimentos até a

necessidade total (HEGEL, 2010, p. 197).

A sociedade civil como sistema de reciprocidade, diante da abstração das habilidades e do trabalho, carece de uma representação, também abstrata, do trabalho realizado por um indivíduo em relação ao trabalho de todos. Pois para manter e sustentar a satisfação das necessidades de todos através da dependência e vinculação

recíproca entre os homens até a satisfação das necessidades no universal, pressupõe-se,

através da prática da troca, uma identidade e um mecanismo que reconheça e regule produtores e consumidores – esse mecanismo regulador é o mercado, um juízo reflexivo abstrato produzido na sociedade civil-burguesa.

O juízo reflexivo e abstrato da divisão do trabalho ganha outro juízo reflexivo, o mercado. A relação de corrigir ou equilibrar aquilo que se produz com aquilo que se consome subjaz a busca do nexo entre o trabalho, a produção e a sua relação moral, em última análise poderíamos perguntar: quanto vale o trabalho realizado? Do ponto de

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vista moral o trabalho de um indivíduo é incomparável e incomensurável diante de sua dignidade humana: “o homem vale porque é homem [...] tal conscientização do valor do pensamento universal tem uma importância infinita” (FD, §209, p. 203). Todavia, em relação ao mercado os valores das pessoas são comparados com suas posses e mercadorias. Segundo Hegel o simples produto transformado é correlato de uma vontade determinada pelo desejo, e, portanto, singular, desviado de sua natureza a serviço dos fins do homem. Assim, a vontade se liberta do trabalho e deixa-se consumir no produto objetificado. Eis aí a contradição alienante posta no momento da sociedade civil: negação da vontade inicial do espírito segundo seus próprios objetivos e metas que se deixa entregue à fruição sensível e positiva das mercadorias, geradas pela negação do trabalho. A razão humana ataca a natureza em sua exterioridade para permanecer nela mesma, satisfazendo em si os desejos mais primitivos em um todo artificial, negligenciando a finalidade última do espírito: do homem não como trabalhador ou ferramenta (mercadoria), mas do homem como espírito, espírito que se sabe enquanto espírito, que pensa enquanto tal. Mas se o espírito é o fim último absoluto do sistema hegeliano, então, logo, abarca todos os momentos, incluindo o trabalho como negação da negação e que este não pode ter a última palavra (BOURGEOIS, 2004, p. 83).

O momento do trabalho é a constituição da inteligência naturalizada, isto é, fragmentada do espírito em seu ser-aí na sua abstração incompleta, mas participante do mesmo enquanto mundo do fenômeno do ético (FD, §181, p. 188). Tal abstração destotalizadora pode levar a um otimismo na equidade das relações de reciprocidade e dependência entre necessidades e trabalho, uma espécie de relação interna e necessária na geração do patrimônio universal (FD, §199, p. 197-8). No entanto, o que percebe Hegel é que a quantidade de trabalho não está necessariamente associada às necessidades da sociedade – nunca se produz exatamente o que se precisa – de modo que a partir da abstração da habilidade e do trabalho do indivíduo não se segue daí uma produção perfeita e equilibrada, pois não há uma relação interna e necessária entre aquilo que se produz e aquilo que se precisa, só há uma relação em grau e externa pela

abstração do trabalho.

Por conseguinte, o trabalho abstrato opera na perda do nexo daquilo que é a constituição lógica do plano das particularidades nas divisões dos trabalhos: “a abstração do produzir torna o trabalho, além disso, sempre mais mecânico e, com isso, torna-se no fim apto para que o homem possa dele se retirar e deixar a máquina entrar

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em seu lugar” (FD, §198, p. 197). É, pois, na modernidade, precisamente pós-industrial, que o processo de produzir adquire um mecanismo cego onde não há uma inteligência interna, mas a sua completa abstração do plano universal. “O trabalho não realiza ainda o seu sentido: ser a reconciliação do sujeito e do objeto. [...] Mas o trabalho que produz objetivamente a sistematização do trabalho atualiza-se na máquina e no maquinismo” (BOURGEOIS, 2004, p. 83). O trabalhador em uma linha de montagem, por exemplo, não reconhece sua universalidade, não sabe da sua produção como um todo, se aquilo que a abstração da sua atividade produz possui uma relação com as necessidades da sociedade ou ainda com suas próprias necessidades. De maneira que se aproxima do plano da contingência, pois não há um reconhecimento mediato do bem comum – mas só no momento seguinte – após o trabalho realizado e o produto acabado que se saberá de seu consumo e da sua real necessidade. Em última análise, há uma cegueira, uma

abstração do equilíbrio pela ruptura do trabalhador com o produto trabalhado por ele,

como já estava claro para Hegel em seus escritos iniciais:

Neste sistema, o que aparece, pois, como o todo não consciente, cego, das necessidades e das espécies das suas satisfações. [...] A abstração do equilíbrio é, sem dúvida, que uma espécie de excedente, a qual já não possui a conformidade à totalidade das necessidades (HEGEL, 1991, p.77-8).

Além da abstração do equilíbrio mercantil entre aquilo que se produz e aquilo que se consome se segue, como outra consequência da divisão do trabalho, a relação abstrata entre trabalho, quantidade e valor, e a relação que essa estrutura assenta no horizonte social enquanto sistema da vida ética que avança não só sobre os campos com a agricultura, mas, sobretudo, na produção industrial em massa. De modo que a abstração do trabalho no campo ou no ambiente fabril causou profundas transformações na ordem social.

A relação entre trabalho e valor encontrada em John Locke e a divisão técnica do trabalho em Adam Smith, no qual se detêm mais sobre o aperfeiçoamento do trabalho técnico em vista do beneficiamento do produto final, ganha em Hegel o horizonte social (BOURGEOIS, 2004). As divisões dos trabalhos no pensamento hegeliano não se constituem enquanto simples processo de extração e transformação da natureza, mas envolve também uma consciência que evolui, o qual subsiste uma organicidade e uma eticidade. Assim, a divisão do trabalho ganha uma dimensão social

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e, enquanto divisão social do trabalho, adquire aspectos manuais e intelectuais em uma

economia política.

[...] A naturalização da inteligência laboriosa impõe, portanto, a

divisão, ao mesmo tempo técnica e social, do trabalho. O todo das

necessidades de cada um, o qual não satisfaz então diretamente senão uma necessidade ou um momento de uma necessidade, requer assim o trabalho, os trabalhos, de todos. Cada um produz a si mesmo ao produzir para os outros o que imediatamente, para ele, é somente um supérfluo. Este supérfluo só tem razão de ser na medida em que é

intercambiável; ora, a troca supõe a leitura de uma identidade, não

material ou real, mas ideal, entre os produtos intercambiáveis, e tal é o valor, identidade universal dos produtos cuja tradução aderida a esses em sua singularidade é o preço. Surge assim a economia, cuja ciência também se realiza na época moderna. O que não quer dizer que, para Hegel, o preço e o valor exprimem o trabalho, refletem-no ou, de maneira mais geral, que a vida econômica e social é o puro reflexo da técnica (BOURGEOIS, 2004, p. 84).

Em certa medida a divisão social do trabalho em Hegel aproxima da noção de habilidade técnica em Smith, mas é acrescida da noção de educação e formação do ser humano. A noção de Bildung na filosofia hegeliana está ligada à forma de um processo de amadurecimento pessoal e cultural, tal processo é descrito como uma harmonização do indivíduo em uma unificação de individualidade e identidade dentro da sociedade mais ampla4, alargando a mera relação da divisão técnica do trabalho com o horizonte

da divisão social da atividade humana.

No entanto, quando há um grau de especialização na produção técnica e social do trabalho processa-se um distanciamento e um desconhecimento de ambos, há um processo invisível

,

cego e incalculável

,

pois não se sabe o que e como o outro realiza o seu trabalho. Abrem-se assim precedentes à dúvida em relação à quantidade que se deve produzir e o valor atribuído à mercadoria, partindo do pressuposto de que não se sabe o que e como os outros indivíduos produzem nem o que de fato necessitam, precisa-se, nesse sentido, encontrar o nexo entre as satisfações das necessidades e o excesso produzido.

4 “Cultura e educação: O alemão tem duas palavras comuns para ‘educar’ e ‘educação’: bilden e erziehen,

e Bildung e Erziehung. Bilden também significa ‘formar, moldar, modelar, cultivar’ e, antigamente,

Bildung denotava apenas a formação física uma entidade; no século XVIII, J. Moser deu-lhe o sentido de

‘educação, cultivação, cultura’, como processo e como resultado. Mas bilden e Bildung enfatizam o resultado da educação, erziehen e Erziehung o processo. Assim, Erziehung, ao contrário de Bildung, não significa ‘cultura’” (HEGEL, 1997, p.85).

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Também este valor depende do todo das necessidades e do todo do excedente; e este todo é um poder menos cognoscível, invisível, incalculável porque está em relação com a quantidade, é uma soma de singularidades infinitamente múltiplas e, na relação à quantidade, compõem-se de qualidades infinitamente múltiplas (HEGEL, 1991, p. 76).

A sociedade civil-burguesa consiste num universal abstrato (FD, §198, p. 197), e este é um todo incognoscível. A necessidade que forja a sociedade civil faz com que ela se apresente como um todo incalculável, porque sempre precisa lidar com o desafio de encontrar a equação exata da soma de todas as singularidades infinitamente múltiplas de cada indivíduo em relação à quantidade dos objetos de fruição empírica que, por pertencer ao mundo das coisas, também, possuí qualidades infinitamente múltiplas e

estados de fruição diversos.

Hegel, em o Sistema da vida ética (1991), já apresentava a necessidade como o primeiro sistema de governo. É uma espécie de governo, pois as necessidades possuem certo poder, um poder estranho, que efetiva a sociedade civil-burguesa em relação ao indivíduo “sobre o qual ele não tem domínio algum [...], isto é, aquilo que exprime a relação do excedente à necessidade, é independente dele e variável” (HEGEL, 1991, p. 76). Esse mecanismo invisível de poder, dentro da economia política, cujos indivíduos não tem nenhum domínio ou controle opera na alienação do trabalho humano – esse é o máximo do juízo reflexivo abstrato, pois essa má infinidade da não-totalidade (universalidade concreta da existência), deixa-se na universalidade simplesmente empírica da vida ética e social como puro reflexo e reprodução da técnica –. O mercado ganha autonomia e dinamismo próprio e perde o nexo da necessidade total abstraindo o universal e produzindo riquezas e desigualdades sociais.

De fato, no bojo da realização industrial o trabalho é fundamentalmente socializante. “Contudo, a objetivação acabada da subjetividade laboriosa, em seu êxito mesmo, põe esta a perder, [...] em sua própria atividade, o trabalho mecanicamente simplificado, isto é, abstrato, só pode embrutecer cada vez mais o trabalhador, que não mais intervém como um homem total, mas como uma parte dele mesmo” (BOURGEOIS. 2004, p. 85). Os manuscritos de Iena denunciam esses aspectos

negativos da civilização e do trabalho na modernidade. Nesse sentido, a pessoa concreta

na sociedade civil-burguesa se limita através da abstração na particularização das classes que deve se ocupar na sociedade civil: na classe substancial (agrícola) ou na classe formal (industrial) que se subdivide em outras classes como aquele que emprega

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(o burguês) e aquele que é empregado (o proletário). Resulta, assim, não em uma sociedade em que cada indivíduo é, ao mesmo tempo, produtor e consumidor, que se reconhecem na reciprocidade das necessidades, mas em uma sociedade que produz

estados de riquezas e patrimônios distintos, na qual alguns organizam o trabalho e

outros, apenas, trabalham.

4.1 A divisão social do trabalho e suas consequências: a posse e a miséria

Hegel reconhece os germens da desigualdade pela necessidade em dividir a sociedade civil em classes segundo a divisão dos trabalhos até a superação dessa

desigualdade necessária na satisfação total de todos os indivíduos. A desigualdade das

aptidões e os desejos distintos de cada indivíduo empele o homem a reconhecer o seu limite na divisão das atividades laboriosas e a compreender, também, os impulsos e limites que conduzem e encerra o momento da sociedade civil-burguesa. Contudo, ressalta o filósofo em O sistema da vida ética (1991, p. 79): “A desigualdade da riqueza é necessária em si e por si; [...] e o impulso para o aumento da riqueza nada mais é do que a necessidade de inserir no infinito o singular determinado, que é a posse”.

A posse ou a riqueza são derivadas da divisão do trabalho de maneira a determinar e efetivar empiricamente a “idealidade da fruição”, que segundo Hegel, é infinita. Compreende Hegel que a satisfação das necessidades empíricas, a ação ou o ato/efeito de fruir, de aproveitar, usufruir do gozo e do prazer são infinitos e ilimitados para o homem concreto: “de frente a esta infinidade encontra-se a particularidade da fruição e da posse, [...] e o trabalho tem o seu limite” (HEGEL. 1991, p.79). Em última análise a verdade do trabalho no momento do espírito objetivo é a posse. A objetivação do gozo de fruir efetivado na posse leva-nos naturalmente a cessar de trabalhar – após adquirir a posse e a riqueza desejamos cessar o trabalho e isso suscita uma relação de desequilíbrio e dominação, por parte de quem detém a riqueza e a posse sobre quem só tem a sua mão-de-obra para oferecer.

Esta desigualdade necessária, que se particulariza no seio do estado mercantil e, de novo, em muitos estados particulares da indústria, e estes em estados de riqueza e de fruição diversas, porém, graças à sua constituição quantitativa que se refere a graus e não é suscetível de nenhuma outra determinação a não ser a de grau, suscita uma relação de dominação (HEGEL, 1991, p. 79).

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Em especial, o estado mercantil que se amplia mediante o comércio com os povos mais distantes, principalmente com as mercadorias exóticas do século XVIII, mercadorias essas que indicam o luxo e o supérfluo resultam na comercialização e troca de produtos que não servem para satisfazer as necessidades primárias dos cidadãos, mas antes estabelecem os estados de riqueza e de fruição diversas. Além de atribuir as essas mercadorias um valor muito auto a uma determinada classe que não poderá usufruir, gera um enriquecimento exponencial e a usura, em outra, a classe dos comerciantes marítimos, por exemplo. Os grandes comerciantes preferem, agora, trabalhar com mercadorias supérfluas e exóticas, muito mais lucrativas, distanciando das necessidades básicas de qualquer indivíduo. Desse mesmo modo, compreendia Hegel em seus manuscritos mais amadurecidos sobre o assunto, a sociedade civil se eleva desenvolvendo a eficácia dos meios de produção e distribuição e assim se efetiva:

Quando a sociedade civil-burguesa encontra-se na eficácia desimpedida, assim ela é concebida em seu próprio interior como

povoação e indústria progressivas. – Pela universalização da conexão

dos homens mediante seus carecimentos e os modos de preparar e distribuir os meios de satisfazê-los aumenta-se a acumulação das

riquezas, de uma parte, – pois dessa dupla universalidade resulta o

maior ganho –, enquanto que, de outra parte, aumenta também o

isolamento e a delimitação do trabalho particular e, com isso, a dependência e a miséria da classe ligada a esse trabalho (HEGEL,

2010, p. 222).

A sociedade civil-burguesa produz crises. O domínio dos meios de produção e

distribuição das necessidades básicas universais gera, além da acumulação de riquezas,

uma classe de poder por parte de alguns. Enquanto que, de outra parte, através da

dependência e reciprocidade das necessidades universais entre os homens, gera, cada

vez mais, a abstração do trabalho particular, isolando e delimitando o trabalhador apenas a trabalhar. E, com isso, a sociedade civil-burguesa produz uma inalterável

dependência da miséria e necessita sempre gerar a plebe: “a grande riqueza”, afirma

Hegel (1991, p.79), “está de igual modo ligada à mais profunda pobreza”.

Ainda em sua obra O sistema da vida ética, Hegel (1991, p. 79) afirma que: “o indivíduo imensamente rico torna-se um poder; supera a forma da dependência física corrente que consiste em depender de um universal, e não de um particular”. A dependência física das necessidades dos indivíduos passa de uma dependência particular de reciprocidade corrente para uma abstração total do universal: o indivíduo

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imensamente rico se vê em-si isolado da mutua satisfação, desprovido de sabedoria, e dependente, agora, da pura universalidade abstrata dos mecanismos do mercado.

[...] este elemento inorgânico, o puro quantitativo, singularizado até ao conceito do trabalho é extremamente a extrema rudeza. O primeiro caráter do estado da indústria de ser capaz de uma intuição orgânica absoluta e da reverência por um divino, posto no entanto fora dele, esvai-se, e irrompe a bestialidade do desprezo por tudo o que é elevado. O em-si é o desprovido de sabedoria, o puro universal, a massa da riqueza; e o vínculo absoluto do povo, o ético, desapareceu, e o povo dissolveu-se (HEGEL, 1991, p.79).

As condições pelas quais o livre mercado se desenvolve produz desigualdades. A abstração do trabalho e do mercado se constitui elemento inorgânico, desprovido de vida ou espírito, pois perdeu a sua justaposição na organicidade com o todo. A indústria

capaz de uma intuição orgânica absoluta, capaz de gerar, distribuir e satisfazer todas as

necessidades humana por reverência a um divino universal, o bem comum, esvaiu-se. A

massa da riqueza atinge no momento da sociedade civil a falta de humanidade e o

excesso de crueldade, pois, enquanto o mercado é um mecanismo de distribuição de riquezas aspira à intuição orgânica absoluta, mas também gera uma distribuição não equitativa das riquezas, em última análise, o mercado é cego e desprovido de qualquer noção de justiça interna: “Aqui aparece que a sociedade civil-burguesa, apesar do seu

excesso de riqueza, não é suficientemente rica, isto é, não possui, em seu patrimônio

próprio, o suficiente para governar o excesso de miséria e a produção da população.” (FD, § 245, p.223).

5. Considerações finais

Tanto no Sistema da vida ética de 1803 que esboça a primeira forma sistemática da vida social, quanto na Enciclopédia das Ciências Filosóficas de 1830 ou nos

Princípios da filosofia do direito de 1821, Hegel, apresenta a noção de trabalho em sua

realidade concreta no momento do espírito objetivo como manifestação da posse ou da apropriação. E na esfera ética, mais especificamente, na sociedade civil, em seu primeiro momento: o sistema das necessidades.

Desse modo, a sociedade civil-burguesa é o espírito objetificado na posse através do trabalho. É, portanto, uma reflexão intelectual ou um juízo reflexivo abstrato, espelhamento da realidade concreta que inevitavelmente perde o seu nexo gerando a

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posse e a miséria. A sociedade civil é constituída de juízos reflexivos abstratos porque a relação entre produtores e consumidores não é coerente nem exata – uma determinada sociedade pode produzir mais do que o necessário ou de menos do que se precisa –. Entre bens e necessidades não há uma relação intrínseca, mas só externa e reflexiva; o mercado, em última análise, é um ato reflexivo: “essa relação de reflexão apresenta, por isso, inicialmente, a perda da eticidade, ou aí ela é enquanto a essência necessária

aparente, [...] constitui o mundo do fenômeno do ético, a sociedade civil-burguesa”

(FD, §181, p. 188).

Todavia, o complexo desenvolvimento do conceito de bürgerliche Gesellschaft em Hegel e todas as consequências que decorrem dele, aqui, apenas, apresentadas as da divisão do trabalho, segundo o princípio do sistema de necessidades, não passam de um momento lógico dentro da organicidade do seu sistema filosófico. Isto significa, que do ponto de vista do estado do entendimento, a sociedade civil-burguesa constitui o momento da essência, portanto da negação da família.

O movimento orgânico da família, incialmente, é um todo substancial (FD, §238, p. 220), pois ela garante o particular necessário para os indivíduos que a compõem, garante o desenvolvimento das habilidades e das capacidades dos mesmos através da educação (Bildung). Portanto, a família é, segundo Hegel, uma instituição ética e autônoma em relação à sociedade civil e ao Estado, germinadora dos princípios éticos da coletividade, da liberdade e do amor.

Mas a sociedade civil-burguesa arranca o individuo desse laço, torna-se torna-seus membros estranhos uns aos outros e os reconhece como pessoas autônomas; além do mais, ela substitui a natureza inorgânica externa e o solo paterno, no qual o singular tinha a sua subsistência, e ela submete o subsistir de toda a família à dependência da sociedade civil-burguesa, à contingência. Assim, o indivíduo é tornado filho da

sociedade civil-burguesa, a qual tem tanto reivindicações para com ele

quanto ele tem direitos sobre ela (HEGEL, 2010, p. 220).

A sociedade civil-burguesa “arranca” o membro da família para que diante das necessidades afirme-se como indivíduo. É, pois, no momento da negação da família que o indivíduo é reconhecido como pessoa autônoma, concreta e jurídica. O conceito de jurisdição e a existência da lei e dos tribunais efetiva o reconhecimento da pessoa concreta como pessoa jurídica, pois a família não é reconhecida como uma pessoa jurídica, apesar dessa ser autônoma em relação à sociedade civil e ao Estado. Não cabe,

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nesse sentido, ao Estado e a sociedade legislar sobre a família, pois tal deliberação acabaria por delimitar ou sufocar a liberdade que lá germina.

Esse movimento de negação transforma os membros da família em membros

estranhos uns aos outros, pois apresentam-se como seres volitivos e carentes no seio da

sociedade civil-burguesa. Abandonam o solo paterno, a casa patriarcal e a família, no qual o singular se emancipa e entra na sociedade civil onde já não tem a mesma segurança de dentro da família e tudo é destinado à contingência e às circunstâncias.

Desse modo, o indivíduo que sai da família tem, por ele próprio, que prover suas necessidades mediante suas habilidades. É, pois, no momento seguinte, que suas aptidões e habilidades se constituirão em profissões na divisão dos trabalhos e, nesse sentido, pode na sociedade civil se sustentar e “adquirir para si [algo] do patrimônio universal” (FD, §238, p. 220).

A divisão do trabalho encontra no trabalho industrial sua eficácia desimpedida, não tem mais nada haver com a agricultura, com o cultivo e a segurança que o solo

paterno garantia – tudo isso, faz parte do mundo que nós perdemos –. Assim, a pessoa

concreta e autônoma deixa de ser membro da família e passa a ser filho da sociedade

civil-burguesa em sentido metafórico, pois essa não se constitui como sua segunda

família. Mas é no momento do Estado, suprassumido no conceito, que se tem a legalização e a garantia da segurança e da liberdade aos membros da família, que não encontraram a mesma segurança nem na sociedade civil-burguesa nem na sua abstração pela noção de mercado:

O governo deve contrariar supremamente esta desigualdade e a sua universal destruição. Pode fazê-lo imediatamente de um modo exterior mediante a dificultação dos grandes lucros e, se sacrificar uma parte deste estado ao trabalho mecânico e de fábrica e o abandona à rudeza, deve pura e simplesmente conservar o todo na vitalidade que lhe é possível. Mas isso acontece do modo mais necessário ou, antes, imediatamente por meio da constituição do Estado em si (HEGEL, 1991, p. 79 e 80).

Assim, a noção hegeliana de sociedade civil-burguesa apresenta-se como essência e a partir da reflexão intelectual de suas necessidades em relação com a noção abstrata de trabalho e de mercado se tem o seu fenômeno ou o aparecimento do mundo ético. Constitui-se como momento do ético porque tem em si a intuição orgânica do

absoluto, mas que só se realiza e se efetiva no Estado, mediado pela noção das

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que a passagem da família ao Estado, mediada necessariamente pela sociedade civil-burguesa, se dá pelo seu reconhecimento que se constitui enquanto tal, em um processo em movimento.

Referências

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Referências

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