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Renato Russo e Arnaldo Antunes no cinema literário brasileiro: a música e a poesia na tradução coletiva dos infernos urbanos / Renato Russo and Arnaldo Antunes in Brazilian literary cinema: music and poetry in the collective translation of urban hells

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Academic year: 2020

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 10, p.80825-80838, oct. 2020. ISSN 2525-8761

Renato Russo e Arnaldo Antunes no cinema literário brasileiro: a música e a

poesia na tradução coletiva dos infernos urbanos

Renato Russo and Arnaldo Antunes in Brazilian literary cinema: music and

poetry in the collective translation of urban hells

DOI:10.34117/bjdv6n10-488

Recebimento dos originais: 13/09/2020 Aceitação para publicação: 23/10/2020

Lemuel da Cruz Gandara

Doutor em Literatura

Instituto Federal de Goiás, campus Formosa

Endereço: QI 31, lote 10, Ed. Uruguaiana, 103-A, Guará II, Brasília, DF E-mail: gandara21@hotmail.com

Naiara Pereira de Andrade

Instituto Federal de Goiás, campus Formosa Licencianda em Ciências Biológicas

Endereço: Rua José Jacinto, quadra 30, Lote 26, Número 177, Bairro Jardim Califórnia, Formosa, GO

E-mail: naiaraandradefsa@hotmail.com

Jéniffer Francisco dos Santos

Faculdades Integradas IESGO Licencianda em Administração

Endereço: Rua pintassilgo, quadra 16, casa 27, Parque Lago, Formosa, GO E-mail: jeniffer1998aps@hotmail.com

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RESUMO

Nossa pesquisa propõe um encontro dialógico entre música, poesia e filme no âmbito do cinema literário brasileiro com especial atenção à tradução coletiva da violência urbana. Dessa maneira, investigamos a letra da música Faroeste Caboclo (1987), de Renato Russo, e o filme de mesmo nome dirigido por René Sampaio (2013), bem como os poemas escritos por Arnaldo Antunes traduzidos na trilha sonora do filme Bicho de sete cabeças (2001) dirigido por Laís Bodanzky. Entre os resultados mais relevantes, destacamos a metáfora catabática da descida ao inferno urbano abordada em ambas as obras. Nossa matriz teórica conjuga perspectivas de Mikhail Bakhtin, Michel Foucault, Silva Jr. e Gandara, entre outros.

Palavras-chave: Faroeste Caboclo, Arnaldo Antunes, Bicho de sete cabeças, cinema literário

brasileiro, tradução coletiva.

ABSTRACT

Our research proposes a dialogic meeting between music, poetry and film in the scope of Brazilian literary cinema with special attention to the collective translation of urban violence. Thus, we investigated the lyrics of the song Faroeste Caboclo (1987), by Renato Russo, and the film of the same name directed by René Sampaio (2013), as well as the poems written by Arnaldo Antunes translated into the soundtrack of the film Bicho de sete cabeças (2001) directed by Laís Bodanzky. Among the most relevant results, we highlight the catabatic metaphor of the descent into urban hell addressed in both works. Our theoretical background combines perspectives of Mikhail Bakhtin, Michel Foucault, Silva Jr. and Gandara.

Keywords: Faroeste Caboclo, Arnaldo Antunes, Bicho de sete cabeças, Brazilian literary cinema,

collective translation.

o buraco do espelho está fechado agora eu tenho que ficar aqui com um olho aberto, outro acordado no lado de lá onde eu caí Arnaldo Antunes (O buraco do espelho)

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1 INTRODUÇÃO

Nosso trabalho surgiu com base nos filmes Faroeste Caboclo (2013), dirigido por René Sampaio, e Bicho de sete cabeças (2001), de Laís Bodanszky, mais especificamente no encontro entre canção, poesia e cinema que conecta essas obras. A partir disso, trazemos os textos de Arnaldo Antunes e Renato Russo para problematizarmos como a cidade e suas dimensões violentas são trabalhadas esteticamente pelos artistas.

Notamos que há uma convergência no que tange aos espaços considerados metaforicamente como infernos. Na canção de Russo, João de Santo Cristo “vai para o inferno” duas vezes (reformatório e prisão, respectivamente). Por sua vez, o filme de Bodanszky acompanha as passagens do protagonista Neto (Rodrigo Santoro) em dois hospitais psiquiátricos – ressaltamos que este longa-metragem foi inspirado no livro Canto dos malditos, relato das experiências vividas por Austregésilo Carrano Bueno em instituições psiquiátricas do sul do país. Com isso em vista, delimitamos nosso recorte a esses espaços de punição e reclusão emoldurados artisticamente em diálogo com a cultura clássica (ao lembrarmos de passagens de Odisseia e Ilíada, ambos de Homero) e a idade média, com seus demônios, infernos e purgatórios forjados pela Igreja Católica.

Para além disso, esse movimento catabático faz uma reflexão de como os indivíduos urbanos considerados sãos e pertencentes à classe média estabelecem as margens da loucura e da exclusão. Isso nos faz perceber que, enquanto Neto (rapaz branco de família classe média baixa) consegue “subir” para o céu social, Santo Cristo é assassinado em duelo divulgado pela “mídia abutre” que resume a efemeridade dos nossos tempos e a falta de compreensão que leva à “discriminação por causa da sua classe e sua cor” (RUSSO, 1987).

Para expormos da melhor forma possível nossos resultados, estruturamos este artigo em tópicos. O primeiro versa sobre o cinema literário brasileiro e a tradução coletiva de textos literários para o cinema. O segundo se preocupa com os espaços de reclusão (ou infernos) às margens da cidade. Por sua vez, o terceiro se concentra em como as obras estudadas por nós discutem tais questões.

2 CINEMA LITERÁRIO BRASILEIRO E TRADUÇÃO COLETIVA

No livro Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, Gadamer afirma que “toda tradução já é, por isso, uma interpretação, e inclusive pode-se dizer que é a consumação da interpretação, a qual o tradutor deixa amadurecer na palavra o que se lhe oferece” (1999, p. 560). No cinema, seja por via dos figurinos ou da direção, o tradutor somará sua leitura ao todo acabado do filme. Na tradução coletiva, o grupo de artistas tem que dar forma

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cinematográfica ao literário – que, por sua vez, também se transforma ao entrar em contato com a reverberação fílmica. Assim, a noção benjaminiana de que “o filme é uma criação da coletividade” (2010, p. 172) e o ativismo do leitor, dos personagens e até mesmo do autor que se torna leitor de si mesmo, no âmbito da língua viva (BAKHTIN, 2003), são fundamentais para entendermos o processo dialógico da tradução coletiva.

Nessa perspectiva, consideramos como tradutores Sampaio e Bodanszky, além de outros membros das equipes dos dois filmes em estudo. Essa coletividade leva a música de Russo e os poemas de Antunes para o cinema e acrescenta mais uma gama de interpretação aos textos, que se complementarão junto ao público. Assim, os tradutores das obras elaboram suas co-criações segundo seu lugar no processo e sua recepção dos textos (SILVA JR. & GANDARA, 2015). Mesmo que o livro, muitas vezes, seja o pilar da relação dialógica, nada impede que esses processos se deem mutuamente e/ou que a produção literária nasça do filme. A tradução coletiva, neste caso, sai de uma fonte (discurso) para outro, de uma língua para outra, torna-se uma via de mão dupla em que uma arte constrói a outra em língua viva, em processo interartes vivo.

Nesse encontro interartes, editores, produtores e tradutores fazem parte de um grande ciclo comercial (ou autoral) da arte no âmbito da indústria cultural na era da reprodutibilidade técnica – para ficarmos com Walter Benjamin (2010) –, em que o intercurso entre as artes torna o próprio mercado duplicado, visto que elas se amalgamam e fazem do produto final mais uma extensão publicística – o filme vende o livro, o livro é difundido pelo filme. Concordando com esse raciocínio, acrescentamos o pensamento de Pierre Bourdieu: “a lógica ‘econômica’ das indústrias literárias e artísticas que, fazendo do comércio de bens culturais em comércio como os outros, conferem prioridade à difusão, ao sucesso imediato e temporário” (1996: 163).

Os filmes Faroeste Caboclo e Bicho de sete cabeças, bem como seus tradutores conforme a posição que ocupam no processo, corroboram o cinema literário brasileiro, território dialógico e colaborativo onde se conectam às várias formas de diálogo entre as duas artes (SILVA JR.; GANDARA 2015). Ao antevermos que o cinema literário presume o diálogo interartes, intuímos que essa peculiaridade se tornou fundamental para compreendermos o processo de urbanização ocorrido no Brasil e que, nos últimos anos, passa por um colapso que abarca desde a vida em apartamentos pequenos, a poluição sonora e visual, a política corrosiva e, o que mais nos chama a atenção, a exclusão daqueles que não cabem nesse espaço. Nesse âmbito, João de Santo Cristo (em

Faroeste Caboclo) tem uma criação traumática que se inicia no Nordeste e finda nos arredores de

Brasília; por sua vez, o pai de Neto (em Bicho de sete cabeças) encontra um cigarro de maconha nos guardados do filho e intui que ele é um “viciado” que deve ser tratado psiquiatricamente longe

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da civilização dita “normal”. Assim, nos concentramos, agora, nos espaços e nas normas que vigiam e punem marginais a partir do pensamento do filósofo Michel Foucault.

3 VIGIAR É PUNIR: ESPAÇOS URBANOS PARA O BOM “ADESTRAMENTO” DE MARGINAIS

Em certo momento do livro Canto dos Malditos, Carrano faz a seguinte explanação sobre o médico que atendia a ala psiquiátrica:

– Esse médico é um verdadeiro psicopata. Chama-se Dr. Alaor Guimont, catedrático em Psiquiatria, professor em universidades, um dos diretores desse “laboratório” chamado Sanatório Bom Recanto. Tem setenta e dois anos e se você cair na mão dele, xará, ele com certeza irá te queimar todos os chifres.... É o maior sádico que tive o desprazer de conhecer (2004, p. 59).

Os termos como queimar, chifres e sádicos remetem à imagem infernal em que o médico pode ser comparado à figura demoníaca. O viés rememorado pelo autor dialoga com o espaço retratado pelo eu poético em Faroeste Caboclo:

Já no primeiro roubo ele dançou E pro inferno ele foi pela primeira vez Violência e estupro do seu corpo “Vocês vão ver, eu vou pegar vocês” (RUSSO, 1987)

No verso, temos a configuração da violência em proporção física e psicológica. O inferno que Santo Cristo conhece pela primeira vez é resultante de seu ato de roubar para se parecer com o “boyzinho” da cidade. A consequência vem com as punições moral (ser preso) física (violentado) e psicológica (traumas). Os desdobramentos são os piores possíveis nesse cenário, pois ele vira um “bandido destemido” (RUSSO, 1987). Diante dos dois exemplos, chegamos a dois espaços de exclusão, ou infernos, que circundam a formação das cidades: clínicas psiquiátricas e prisões. Para aprofundarmos essas vertentes, voltamos nossas atenções com maior profundidade a Foucault.

3.1 EDUCAR E ADESTRAR: DESCER AOS INFERNOS

No capítulo 2 da terceira parte de Vigiar e Punir, Michel Foucault (1987) inicia sua ideia conceituando o adestramento e seus efeitos. O poder disciplinar é retratado como um meio de retirada, em seguida, apropriação e a imposição para evitar excessos que não estão de acordo com os padrões impostos. Em uma multidão, um disciplinador faz a separação, analisa, e diferencia para adestrar de acordo com aquilo que deseja impor.

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Por sua vez, a realização disciplinar supõe-se jogo do olhar para obrigar a algo, uma indução, do que se pode ver para efeito de poder. Em consequência disso, as formas de coibir ficam evidentes sobre o disciplinado; sendo assim, criam-se os chamados mirantes da variedade humanal. Ao lado de várias tecnologias, como criação de óculos, as pequenas técnicas de vigilância e sujeição, de olhares, às escondidas, adquirem conhecimento sobre o homem para subordiná-lo. Nos modelos perfeitos imaginários, tudo seria feito através da vigilância e o olhar seria como uma peça funcional.

Nessas construções, encontramos um princípio de sustentação de acampamento, que é de se encaixar nos espaços da hierarquia. Logo, surge uma adversidade, a de uma arquitetura que não é mais para ser vista ou vigiada exteriormente, mas para se controlar o interior com articulação e detalhamento. O modo antigo de clausurar e trancar muda pelo aparente não controle total, para que assim se conheça e cuide melhor de quem nele habita, sejam pacientes de um hospital terapêutico ou uma prisão. Nesse sentido, um aparelho disciplinar eficaz seria aquele que capacitaria um olhar para tudo, como uma construção circular que se abria para o interior. A vigilância é, ao mesmo tempo, uma peça interna e um mecanismo específico do poder disciplinar. Em uma instituição de educação, tem-se o ensino, recebimento de conhecimentos, e, enfim, uma observação hierarquizada, sendo essa vigilância estendida pelas mecânicas de poder que o trouxe, conseguindo no poder disciplinar que o integrou como poder múltiplo, autônomo e anônimo.

Todos os sistemas disciplinares têm regras e essas regras possuem suas especificações de acordo com cada sistema, sanções e privilégios nas leis é o que garante o seu funcionamento adequado. Assim, a disciplina ocupa espaços vazios da lei e garante que ela funcione corretamente. As instituições possuem um conjunto de regras, nelas estão incluídas a maneira de se portar, a pontualidade, a personalidade, o corpo e a sexualidade. Em decorrência, é utilizada formas de punição que vão desde os castigos leves, pequenas agressões à humilhação. Elas servem como uma maneira de “corrigir” esses comportamentos, utilizando a punição para causar amedrontamento no indivíduo e impedir que ele repita os mesmos erros. Essa ideia nos faz retornar aos acontecimentos que fizeram com que Santo Cristo e Neto se aprofundassem no universo da bandidagem e das instituições psiquiátricas.

A ordem que os castigos devem fazer respeitar é uma ordem artificial, colocada por leis, programas e regulamentos, e também por eventos naturais, a duração do aprendizado, o tempo de exercício e o nível de aptidão que tem por referência uma irregularidade. A punição disciplinar é uma parte similar à obrigação e é obtida pela mecânica de um castigo. Nesse sentido, a punição, na disciplina, possui um sistema duplo: gratificação-sanção, e é esse sistema que faz fluir o processo de treinamento e correção.

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De acordo com esses pesos dados a cada indivíduo, houve a hierarquização e a separação entre as “boas” e as “más” pessoas. Através desses dados houve um discernimento que não são os atos, mas sim o indivíduo de sua natureza, sua comunidade, sua religião, seu nível e valor. A disciplina avalia os fatos e coloca as penalidades em execução, onde as mesmas se integram no ciclo de conhecimento dos indivíduos.

Na obra de Foucault em estudo, as divisões realizadas segundo as classificações possuem um duplo papel: marcar desvios, categorizar as qualidades, as competências e aptidões; mas também castigar e recompensar. A disciplina recompensa utilizando uma “promoção” onde os indivíduos são encaixados em uma pirâmide de hierarquia e lugar, usando a punição para degradar e rebaixar. Dessa forma, o normal é a homogeneidade, onde todos tendem a ser comparados como um todo, as regras criadas na sociedade garantem que os mesmos permaneçam no padrão, assim são feitas as leis e sanções para que todos se encaixem no mesmo grupo.

3.2 EXAMINAR PARA A “SUBIDA” À CIDADE

Ainda segundo Foucault (1987), o exame é uma forma de combinação entre vigilância e regularização, que, através disso, os indivíduos são diferenciados e admitidos como aceitável. Nos processos de disciplina, percebem-se os sujeitos que são vistos como objetos e os objetos que são vistos pelos sujeitos, a imposição do poder e a do saber incube-se o centro visível, pois na técnica delicada estão juntos todo um domínio de saber e de poder.

A escrita foi muito importante durante o processo disciplinar para a criação de regras, um bom exemplo seria nos hospitais, onde é feita uma descrição por parte dos profissionais da equipe sobre o passo a passo dos eventos, tanto para manter a ordem quanto para evitar situações indesejáveis. Graças a esse aparelho de escrita é possível caracterizar as particularidades de um indivíduo, por outro lado também é possível descrever um grupo através desse método.

É possível, através de técnicas e processos, saber como funciona cada indivíduo. No fim do século XVIII, nas clínicas, foi possível localizar o problema da entrada do indivíduo no campo do saber; problema da entrada de descrição singular, do interrogatório, da anamnese, do “processo” no funcionamento geral do discurso científico. Através desses processos, as anotações realizadas foram estudadas e com isso entendeu-se melhor o paciente e manteve um controle sobre seus atos.

O exame transforma cada indivíduo em um caso, tanto para conhecimento como a tomada para o poder. O caso não se torna mais uma medida dos atos, mas sim características que o exame feito apresenta, a descrição daquela pessoa, o comportamento e sua individualidade. E é também o indivíduo que deve ser excluído, retirado e isolado por esses atos.

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Do que vimos até aqui, conseguimos definir qual o papel das instituições que “receberam” Santo Cristo e Neto. Para nós, é relevante como a estrutura observada pelo filósofo vai ao encontro das práticas contemporâneas retratadas por Carrano. As clínicas e as prisões visam punir, vigiar, examinar e possibilitar o retorno para a cidade, ou seja, para o coletivo. Nesse meandro, o sujeito fraturado vive dois universos, reflexão que nos lembra as poesias de Arnaldo Antunes para Bicho

de sete cabeças, mas especificamente O buraco do espelho, epígrafe deste artigo: o buraco do espelho está fechado

agora eu tenho que ficar aqui com um olho aberto, outro acordado no lado de lá onde eu caí

pro lado de cá não tem acesso mesmo que me chamem pelo nome mesmo que admitam meu regresso toda vez que eu vou a porta some a janela some na parede

a palavra de água se dissolve na palavra sede, a boca cede antes de falar, e não se ouve já tentei dormir a noite inteira quatro, cinco, seis da madrugada vou ficar ali nessa cadeira uma orelha alerta, outra ligada (ANTUNES, 2001)

O sujeito inquieto que deve se manter alerta nos revela traços de fragmentação e falta de paz e aceitação. É um indivíduo que não consegue ver o reflexo de si ou daquilo que é esperado dele, pois o buraco no espelho está fechado. A questão do retorno aparece e é problematizada, já que a sociedade efetivamente não aceita seu regresso. Como podemos ler, não há tranquilidade, não há estrutura e muito menos reintegração. O sujeito poético está dissolvendo como á palavra e a água. Essas nuances revelam os resultados poéticos dos efeitos de adestramento, disciplina, punição e exame elencados pelo filósofo francês. Nesse sentido, a “subida”, ou saída dos infernos, para a cidade se torna quase impossível depois da travessia demoníaca pelas clínicas e prisões. A reintegração ao corpo social finda por ser uma utopia e a violência se espalha tanto do lado de fora dos espaços quanto dentro deles.

4 POESIA, CANÇÃO E CINEMA: TRADUÇÕES COLETIVAS EM MOVIMENTO

Depois de desenvolvermos a questão dos espaços de reclusão e das implicações do diálogo entre literatura, cinema e canção, nosso último tópico se atentará a como essas duas nuances são contempladas nas obras que aqui estudamos. De forma breve, retomamos as obras para discutirmos como foi o processo de transposição e a representação dos espaços que recortamos.

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Em Faroeste Caboclo e o Bicho de sete cabeças, os personagens João de Santo Cristo e Neto são coagidos e retirados de seus ambientes habituais para os “infernos” da sociedade. No primeiro, o jovem negro e órfão tem passagens por dois infernos que estudamos aqui: um reformatório e depois a cadeia. O reformatório foi uma passagem rápida e que não é muito retratada no filme e na canção, mas que causou uma mudança de comportamento maior ao personagem por ter vivido naquele ambiente hostil. Já a cadeia foi o ponto chave para o descontrole do personagem, o tratamento que recebeu e as regras o deixaram ainda mais revoltado e descontrolado. Ao “subir” para a cidade, seus atos eram piores do que quando chegou. Seus sentimentos se resumem nesta frase: “só ódio por dentro” (RUSSO, 1987).

Na obra fílmica Bicho de sete cabeças, o protagonista Neto, considerado pelos pais um dependente químico, é conduzido pelo pai em sua primeira clínica psiquiátrica, onde não aceitava a situação, mas em razão das circunstâncias a assimilou até retornar à família para continuar o tratamento. Ele é encaminhado, novamente, ao hospital psiquiátrico em que fingia seguir o tratamento e causava desordens junto com os outros internos. Em razão disso, foi castigado e deixado dias na solitária, sendo esse seu desfecho como uma pessoa considerada com problemas psiquiátricos.

No livro que inspirou o filme, temos uma indagação que resume a revolta do personagem: “Eu, dentro de um lugar desses... e meus estudos? Se tivéssemos conversado, pai, eu lhe provaria que não sou um viciado... não sou, pai! Não precisava me trazer pra cá. Por que não conversamos, pai?” (CARRANO, 2004, p. 57). As perguntas e a questão do diálogo que nunca houve entre pai e filho sintetizam o confronto entre a sanidade e a loucura que culmina em excluir, internar e eliminar aquilo que não compreendemos e não se busca compreender.

As duas análises nos trazem mais uma vez Vigiar e Punir, em que temos a disciplina como foco das características presentes nas obras. A exclusão do indivíduo para adestrar é retratada pelas passagens dos personagens por instituições que promovem a disciplina e a padronização daqueles que não estão de acordo com a sociedade. A vigilância hierárquica, o primeiro dos recursos, é utilizado para auxiliar nas diversas formas de vigilância e engrandecimento do poder, como, também a questão do olhar utilizado como modo de coerção e que seria uma peça funcional dessa ferramenta. Logo, a sanção normalizadora, o segundo recurso, serve para adestrar de forma mais instantânea os infratores, a punição é descrita como “corretivo” e também serve para sancionar os delitos cometidos, as regras são o principal fundamento deste artifício. O exame, o último recurso, é retratado como uma ferramenta para dominar o indivíduo através do estudo de suas características, seus comportamentos e de sua maneira de pensar.

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Os acontecimentos relatados nas obras Faroeste Caboclo e Bicho de sete cabeças possuem similaridades com a discussão levada a cabo por Michel Foucault, em que as ferramentas da vigilância hierárquica e a sanção normalizadora. João de Santo Cristo, um negro e desfavorecido, sofre em uma sociedade onde os padrões são opostos e o que sobra para ele é a periferia de Brasília, onde mora nas cidades que agregaram “candangos” nordestinos e não os funcionários públicos moradores do Plano Piloto. Isso fica evidente no momento em que o personagem chega à cidade:

“Meu Deus, mas que cidade linda, No Ano-Novo eu começo a trabalhar” Cortar madeira, aprendiz de carpinteiro Ganhava cem mil por mês em Taguatinga (RUSSO, 1987)

A primeira impressão de Brasília é positiva, no entanto, no último verso, podemos perceber uma marginalização do espaço habitado por João, ou seja, ele trabalha em um dos bairros-cidades que circundam a capital federal Brasília e serviram de abrigo para aqueles que vieram de outros estados brasileiros e não conseguiram fazer parte do centro do poder, ideia que podemos notar na cena do filme dirigido por Sampaio, na qual é traduzida cinematograficamente tal passagem:

Figura 01: chegada de João de Santo Cristo a Brasília

Fonte: Filme Faroeste Caboclo (metragem 00:09:20)

O reflexo do Palácio da Alvorada na janela do ônibus já nos remete ao raciocínio de separação (figura 01). O Jovem negro que dorme não tem acesso aos poderes ou mesmo ao centro que, de forma oculta, governa seu destino no mundo. Nesse sentido, Brasília está perto dos olhos, mas inalcançável às mãos do aprendiz de carpinteiro. A cidade espelhada é um reflexo onírico. No que tange a esse processo refletivo, o fragmento do texto de Russo e a cena do filme dialogam com o poema O buraco do espelho que trouxemos nas páginas anteriores. Por não seguir as regras, Santo

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Cristo foi levado a duas instituições ao longo de sua vida para se adequar às normas que a sociedade impôs. Ao adentrar nesses locais, ele sofreu punições como o estupro e ao mesmo tempo separação hierárquica dos demais presidiários.

Os fatos ocorridos com o personagem Neto nas clínicas psiquiátricas se correlacionam com vários tópicos de Vigiar e Punir. Ele sofreu alguns processos disciplinares descritos no texto, como a questão da separação, hierarquização, coerções e de forma mais severa as punições, pois ele passa pela chamada “maneira de correção” para impedir repetição dos fatos ocorridos. As mais intensas são a solitária e os eletrochoques (figura 02):

Figura 02: Neto passa por eletrochoque

Fonte: Filme Bicho de sete cabeças (metragem 00:49:53)

A imagem retrata, no filme, a primeira sessão integral de eletrochoque de Neto. Nós, como espectadores, acompanhamos o sofrimento do jovem durante minutos e somos colocados em um lugar desconfortável e reflexivo. No livro, Carrano discute sobre o choque várias vezes, uma dessas passagens consegue nos mostrar os limites entre a dor, a incompreensão e a desumanidade:

Preso, esperando o choque! Um lugar que jamais sonhara conhecer. Preso! esperando o choque. Passando por pesadelos que fariam qualquer machão adulto ficar temeroso. Preso. Esperando o choque. Dizem que há trinta anos não usam mais eletrochoque na psiquiatria intitulada moderna. Preso. Esperando. O Choque. O que é que eu estou fazendo aqui dentro, então? Preso, esperando o eletrochoque! Esse eletrochoque é um terror, meu Deus! por que fazem isso? Preso, esperando o choque. Sua aplicação é a seco, à unha nos agarram e aplicam essa porra. Por que permitem que façam isso comigo? Preso, esperando o eletrochoque (2004, p. 102).

O teor de espanto diante da tomada de consciência de ser ele um jovem sem experiências passando por situações inimagináveis traduz a crueldade que ocorre nos domínios sádicos dos

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infernos urbanos. As prisões onde ocorrem estupros e traumas juntamente com as clínicas psiquiátricas (até mesmo as humanizadas) em que são tratados aqueles que estão fora do escopo social aceitável, nas obras que estudamos, refletem um sistema de punição vinculado com a idade média em que o poder hierárquico se iguala a Deus e perpetua a exclusão. Santo Cristo é negro, pobre e analfabeto; morre no final diante de um público letárgico. Neto é branco, alfabetizado e jovem; fica vivo e enfrenta o pai. Ou seja, no final, a exclusão plena demonstra que o buraco do espelho está fechado, principalmente, para os párias sócias de uma herança escravocrata e colonial.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dado o exposto, observa-se que essas obras possuem semelhanças, pois ressaltam características encontradas na sociedade e no indivíduo, como a disciplina, que é o ponto central de ambas. A porta que leva para o outro lado do espelho desaparece sempre que o sujeito lírico a busca. Ao pensarmos que o poema está inserido em um filme protagonizado por pacientes de hospitais psiquiátricos, podemos compreender que o indivíduo considerado louco está do outro lado do buraco do espelho, onde não tem acesso à sociedade civil, aquela que nomeia e assimila o sujeito normal em seu corpo urbano. A imagem refletida no espelho, como no filme de Sampaio, não é alcançada pelo eu poético, ela fica no plano dos sonhos. O poema foi traduzido para o filme Bicho de sete

cabeças pela voz de Arnaldo Antunes e pela inscrição talhada na parede de um dos hospitais. Abaixo,

como uma síntese imagética, trazemos um desenho que reflete essa questão:

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A esfera ao centro simboliza os padrões impostos pela sociedade. As esferas laterais são os grupos diversos entre os indivíduos e as setas simbolizam os indivíduos. De modo geral, é uma representação do que ocorre na sociedade, em que os sujeitos, distintos entre si, são levados a estarem num mesmo padrão, numa homogeneidade. Isso representa as setas de formatos iguais e brancas, sendo elas brancas simbolizando a falta de cor, a falta de distinção, a falta de características próprias.

Além de revelar fissuras de marginalização e traços de violências implícitas, os dois textos e as imagens que trouxemos têm em comum o fato de terem sido traduzidos para o cinema literário brasileiro. Dessa forma, podemos, além de pensar nas questões sociais e éticas, considerar as obras em uma concepção estética. Assim, entendemos os filmes como tradução coletiva dos textos, noção preconizada por Silva Jr. e Gandara (2015).

Diante desse contexto, a literatura e o cinema são espaços nos quais a representação do mundo e do outro são trabalhadas esteticamente. A representação da violência está, muitas vezes, diretamente conectada com obras que buscam uma posição mais próxima ao “real” (GANDARA, 2019). A predominância da violência no interior da obra tem a ver com o espaço e a genealogia (e convivência) social de seus habitantes. No meio dessa miríade de possibilidades humanas, a música de Russo, o poema de Antunes e os filmes dão atenção às distorções éticas que levaram à violência em plano micro e macroscópico, também trabalhados por Foucault.

Buscamos captar, neste trabalho que se conclui, um entendimento sobre os problemas sociais brasileiros envolvidos na trama de Faroeste Caboclo e maior percepção do tema das poesias - canções com enfoque no cotidiano e a questão de internos em hospitais psiquiátricos relatada no filme Bicho de sete cabeças. A violência, o abandono e os padrões sociais deram a esses protagonistas os problemas relatados nos filmes, e mesmo sendo de filmes e classe sociais diferentes os dois protagonistas principais do filme de René Sampaio e Laís Bodanzky têm grande semelhança ao serem lançados aos infernos sociais sem a possibilidade plena do retorno ao “céu” e seio da coletividade sã e aceitável. São duas faces da mesma via e da mesma vida dos excluídos que caminham entre prisões, hospitais, ruas e becos esquecidos do país e trabalhados esteticamente pela literatura, cinema e canção.

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Braz. J. of Develop.,Curitiba, v. 6, n. 10, p.80825-80838, oct. 2020. ISSN 2525-8761

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Arnaldo. Trilha sonora do filme Bicho de sete cabeças. BMG: São Paulo, 2001. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2010.

BICHO DE SETE CABEÇAS. Direção: Laís Bodanzky. BRASIL, 2001. 74 minutos.

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: Gênese e Estrutura do Campo Literário. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

CARRANO, Austregésilo. Canto dos malditos. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.

FAROESTE CABOCLO. Direção: René Sampaio. BRASIL, 2013. 148 minutos.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.

GANDARA, Lemuel da Cruz. Cinema literário brasileiro e violência: intercâmbios estéticos e traduções coletivas no grande tempo. 2019. 215 f., il. Tese (Doutorado em Literatura). Universidade de Brasília, Brasília, 2019.

RUSSO, Renato. Faroeste Caboclo. Que país é este 1978/1987. EMI: São Paulo, 1987.

SILVA JUNIOR, Augusto Rodrigues; GANDARA, Lemuel da Cruz. O encontro dialógico e

colaborativo entre a literatura brasileira e o cinema no limiar da Pós-Retomada: traduções

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Figura 01: chegada de João de Santo Cristo a Brasília
Figura 02: Neto passa por eletrochoque
Figura 03: Esferas, autoria de Naiara Pereira de Andrade

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