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«Corepiscopus»: um arcaísmo não compreendido na «Vita Tellonis»

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Academic year: 2021

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Um arcaísmo não compreendido

na «Vita Tellonis»

Nas edições da Vita Tellonis1, deparamos c o m u m passo cujo

entendimento nos suscita algumas dúvidas. Os editores têm-se limitado a transcrever o a p ó g r a f o2, sem preocupação de emendado 3.

Porque j u l g a m o s que tal passo documenta o e m p r e g o de u m vocábulo caído e m desuso na designação de funções eclesiásticas e que p o r isso m e s m o foi mal interpretado e incorrectamente transcrito pelo copista, cremos que valerá a pena analisá-lo.

Gramaticalmente o texto é transparente: «Colimbrie vero subli-matur bone m e m o r i e Gundisalvus p r o episcopo et efficitur cor episcopi Tello, qui licet opibus potentiaque opitulantibus desideratum nequit uel incipere v o t u m , consociis locoque ubi statueretur defi-cientibus» (foi. 2r).

Se é verdade que as relações sintagmáticas não suscitam dificul-dades, n e m por isso parece líquido que, na frase coordenada et

1 A l e m da edição inserida nos Portugaliae Monumenta Histórica, Scriptores, I, p. 6 2 - 7 5 ,

existe a de A n t ó n i o Cruz publicada era Anais, Crónicas Breves, Memórias avulsas de Santa

Cruz de Coimbra, Porto, 1968, p. 31-42. O leitor que não tenha acesso ao apógrafo da Vita Tellonis incluída n o Livro Santo, guardado n o A r q u i v o Nacional da Torre d o

T o m b o , terá boas razões (que nos dispensamos de enumerar aqui) para recorrer à edição dos PMH.

2 C o m tal designação estamos a adiantar-nos c o m uma interpretação que se tornará

clara n o decorrer da nossa exposição. Aceite-se aqui c o m o hipótese de trabalho e não c o m o juízo preconcebido.

3 N ã o foram só os editores a ficarem adstritos ao texto dado. O dominicano

Alvaro da M o t a , que e m 1454 verteu a Vita para português, g l o s o u o t e x t o à sua maneira, a fim de guardar fidelidade ao apógrafo: «E e m Coimbra f o y enleito por bispo D o m Gonçalo. E este D o m Gonçalo amava m u i t o a D o m T e l l o e o chamava seu coraçom»

(PMH., Scriptores, I, p. 76). A transparência gramatical d o texto obrigou, c o m o se

pode verificar, a adaptar a expressão.

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efjicitur cor episcopi Tello, todos os m e m b r o s , tal c o m o se encontram, possam considerar-se adequados ao contexto.

C h a m a desde logo a atenção que o n o m e de Telo não apareça aqui acompanhado d o designativo de f u n ç ã o (archidiaconus), ausência que n o texto apenas se verifica após a sua morte.

P o r o u t r o lado, a expressão metafórica (cor episcopi) não está e m consonância n e m c o m o estilo geral do texto n e m c o m u m passo anterior que se poderia considerar paralelo deste. Algumas linhas atrás, para descrever a estima tida p o r todos, e particular-m e n t e pelo bispo Maurício, para c o particular-m Telo, o hagiógrafo serve-se de u m t e r m o c o m u m , familiaritas.

Mas, ainda que aceitássemos tal expressão metafórica para traduzir a amizade dispensada pelo n o v o bispo, Gonçalo, a sequência começada logo depois pela oração relativa não encontra justificação plena. N a verdade, e m que é que o c u m p r i m e n t o do v o t o emitido p o r T e l o de se consagrar à vida monástica impediria a manifestação de estima p o r parte do n o v o bispo?

Parece-nos que a solução terá de ser encontrada de outra maneira, entendendo o passo n o contexto que realmente tem do provimento dos cargos da diocese de C o i m b r a , n o seguimento da transferência de Maurício para B r a g a4.

C o m e c e m o s p o r registar u m dado que nos parece óbvio relati-vamente a este texto. E u m facto que T e l o é identificado c o m a função de arcediago, de tal m o d o q u e este designativo aparece por vezes sem o n o m e p r ó p r i o5. D e n t r o da natureza biográfica e

lauda-tória da Vita seria estranho que não se assinalasse a nomeação de T e l o para tal cargo. T a n t o mais estranho quanto n o passo referente ao a c o m p a n h a m e n t o que Telo faz a Maurício na viagem para Jerusalém se lhe assinalam tarefas que n o r m a l m e n t e incumbiam ao arcediago:6 «per t r i e n n i u m tocius curie et episcopi curam apud se

4 C o m o se sabe, Maurício é uma das figuras mais controversas da história da

Igreja e m Portugal deste período. Veja-se Pierre D a v i d , «L'énigme de Maurice Bourdin», i n Etudes Historiques sur la Galice et le Portugal, du VI.e au XII. siècle, Lisboa/Paris, 1947, p. 441-501; Carl E r d m a n n , Mauricio Burdino (Gregário VIII), trad. A . P i n t o de Carvalho, C o i m b r a , 1940.

5 Esta m e s m a observação p o d e m o s 1er e m E. Austin O ' M a l l e y , Tello and Theotonio,

the twelfthcentury Founders of the Monastery of Santa Cruz iit Coimbra, W a s h i n g t o n , 1954,

p. 38. A í se sublinha i g u a l m e n t e que o próprio T e l o assinava utilizando o título da sua função, r e m e t e n d o para Documentos Medievais Portugueses, vol. III ( D o c . Part.), p. 3 7 3 , n . ° 4 3 2 (23 de M a r ç o de 113); Livro Santo, fol. 36 (Julho de 1135). U m outro d o c u m e n t o d o m e s m o tipo encontramos na Vita Martini Sauriensis. Cfr. PMH., Script., p. 61 (10 O u t . , 1123).

6 Sobre a o r i g e m e história desta função, veja-se A . A m a n i e u , in Dictionnaire de

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gerens et cuncta p r o suo n u t u disponens». Narrativamente, tanto este passo c o m o o designativo de archidiaconus que representa o p r ó p r i o biografado pressupõem u m c o m p l e m e n t o dentro do texto.

D o c u m e n t a l m e n t e , não há elementos que p e r m i t a m fixar a data e m que T e l o terá sido investido nas funções de arcediago, e não é t a m b é m possível preencher todos os hiatos existentes na sequência dos factos ocorridos ao t e m p o7. P o r é m , se Maurício alguma vez

pensara e m prover Telo naquela dignidade, j á que lhe confiara tarefas que a ela incumbiam, terá obstado a isso o atraso de Telo n o regresso a Portugal depois da peregrinação a Jerusalém, ou a transferência de Maurício para a sede de Braga ? Pelo contrário, se Telo estava j á p r o v i d o n o cargo de arcediago ao t e m p o de tal transferência, c o m o explicar que o autor do texto não manifeste qualquer estranheza pelo facto de ele ser preterido n o p r o v i m e n t o da sé de C o i m b r a q u a n d o não deixa de a manifestar mais abaixo, e m situação semelhante, ou seja, a propósito da sucessão de Gonçalo que recai e m B e r n a r d o ? A n ã o ter que se admitir u m a falha narrativa p o r parte do autor, esperar-se-ia t a m b é m aqui u m a expli-cação. A ausência poderá parecer tanto mais anormal quanto se tornara prática frequente a nomeação do arcediago para suceder ao b i s p o8 e T e l o gozava de estima e prestígio indesmentidos.

A verdade é q u e não só não se faz qualquer comentário em defesa de T e l o nesta ocasião, c o m o ainda se acentua que ele se

t e m p o a que nos reporta o nosso t e x t o convirá reter a síntese aí formulada: « N o séc. x m a f u n ç ã o de arcediago atinge o p o n t o mais alto d o poder. Mas o direito escrito está atrasado sobre a realidade d o c u m e n t a d a pelos textos históricos. Baseando-se ainda n o s termos d e Isidoro de Sevilha, aliás refundidos e ampliados, I n o c ê n c i o III responde a certo bispo — e o facto d e o consultar d i z m u i t o — que o arcediago manda sobre o clero inferior, t e m a seu cuidado o p r o v i m e n t o das paróquias, j u l g a as causas menores». Efectivamente, desde o séc. x , e m b o r a d o t a d o s ainda de jurisdição ordinária sobre u m território determinado e embora se lhes reconheçam f u n ç õ e s d e vigário d o bispo, os poderes e f e c t i v o s dos arcediagos v ã o d i m i n u i n d o , por reacção d o s próprios bispos. Simultaneamente multiplica-se o seu n ú m e r o e, nalguns casos, estamos perante u m simples t í t u l o h o n o r í f i c o . E. 0 ' M a l l e y , op. cit., p. 38-39, atribui a T e l o tal condição. «Se é verdade que n o caso d e T e l o ele se encarregou da administração da c o m i t i v a episcopal durante a peregrinação é essa a única ocasião referida na Vita d o d e s e m p e n h o das f u n ç õ e s cometidas n o r m a l m e n t e a o arcediago. Parece que T e l o recebeu o título h o n o r í f i c o d e arcediago e que tinha e m grande apreço tal d i g n i -dade».

7 Cfr. E. A . 0 ' M a l l e y , op. cit., p. 38.

8 É ainda E. A . 0 ' M a l l e y , op. cit., p. 4 6 , q u e m recorda, a p r o p ó s i t o d o p r o v i m e n t o da Sé de Coimbra, p o r m o r t e de D . G o n ç a l o , e m 1128, que era c o m u m p r o m o v e r os arcediagos ao episcopado. Tais h a v i a m sido os casos de H u g o , bispo d o Porto, Maurício e Bernardo, bispos de C o i m b r a , Paio de Braga, entre outros. Era, aliás, n o r m a l n u m t e m p o e m que o arcediago d o t a d o de jurisdição ordinária assumia o g o v e r n o da diocese p o r ausência, incapacidade o u morte d o bispo. S e g u n d o interpretação da própria Vita Tellonis, a p r o m o ç ã o d o arcediago T e l o ao episcopado ter-se-ia v e r i f i c a d o e m 1128, q u a n d o da m o r t e de G o n ç a l o , se a rainha D . Teresa e o c o n d e Fernão Peres n ã o tivessem sido expulsos d o reino.

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encontrava disponível p o r não terem ainda surgido condições favo-ráveis para dar execução ao seu v o t o de vida monástica.

Perante tais dificuldades, somos levados a p r o p o r uma correcção textual, trocando cor episcopi p o r corepiscopus.

E conhecida a equivalência sinonímica entre archidiaconus e c(h)orepiscopus9. A Vita Tellonis repete mais de uma dúzia de vezes o primeiro. Q u e probabilidades haveria de aparecer o seu sinónimo, ainda que menos frequente ?

Se consultarmos o contexto p r ó x i m o da sua ocorrência verifi-camos que o e m p r e g o de tal t e r m o podia t e r sido sugerido ao autor pela situação que descreve, mas sobretudo e particularmente p o r u m a correlação natural c o m episcopus: «sublimatur bone memorie Gundisalvus p r o episcopo et efficitur corepiscopus Tello».

A admissão da possibilidade de erro (cor episcopi p o r corepiscopus) introduz-nos na problemática da redacção material do texto e consequentemente na análise d o estado paleográfico que ele atesta.

S e g u n d o testemunho da Vita Theotonii, a Vita Tellonis deve ser considerada c o m o «dictatum d o m n i Petri Alfarde magistri», o que é efectivamente reconhecer-lhe u m a autoria incontestável. O próprio p r ó l o g o d o Liber Inventarius que, n o Livro Santo, imediatamente se segue à Vita Tellonis r e m e t e para esta e m moldes que não pode deixar dúvidas q u a n t o à responsabilidade de ambos os t e x t o s1 0.

Mas reconhecer a autoria d o t e x t o e a iniciativa do livro significará i g u a l m e n t e e ao m e s m o t e m p o admitir a qualidade de a u t ó g r a f o d o registo?

E u m dado aceite que o primeiro assento do Livro Santo, n o qual se encontra compreendida a Vita Tellonis, é da m ã o de Pedro A l f a r d e1 1. C o n c o r d e m o s , n o entanto, que o p o n t o de partida não

9 A possibilidade de equivalência assenta n u m l o n g o processo histórico e m que a

f u n ç ã o de corebispo foi sendo esvaziada das suas prerrogativas episcopais, enquanto o arcediago a elas foi aspirando. Cfr., além d o artigo d e A . A m a n i e u , atrás citado, o outro de D o m Jacques Leclef, sobre esta f u n ç ã o eclesiástica, t a m b é m n o Dictionnaire de Droit

Canonique, v o l . III, col. 686-694, b e m c o m o K. B i h l m e y e r — H . Tuechle, História da Igreja,

São Paulo, 1964, § 62, 1, e § 95, 1.

1 0 Assim c o m e ç a o p r ó l o g o : « M a g n u m q u i d e m et nimis utile b o n u m fore uidetur

ut sicut in precedenti opere ostendimus qualiter m o n a s t e r i u m Sancte Crucis in suburbio C o l i m b r i e a T e l l o n e e i u s d e m prudentíssimo et uenerabili archidiacono sit fundatum et in Sancte R o m a n e ecclesie protectione susceptum...»

1 1 Bastará lembrar aqui a autoridade que reveste a o p i n i ã o de R u i de A z e v e d o

sobre a questão, o p i n i ã o essa manifestada e m mais que u m a ocasião. Tenha-se e m conta n o m e a d a m e n t e o seu estudo sobre Documentos falsos de Santa Cruz de Coimbra (sécs. XII e XIII), Lisboa, 1932, particularmente pp. 51 ss., o n d e se refere mais directamente ao problema: « C o m e ç o u este livro a escrever-se e m 1155, c o n f o r m e se diz n o p r ó l o g o , e é atestado

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é plenamente explícito e pode ser contestado pela fragilidade da sua base.

N o vasto cartório de Santa C r u z apenas u m d o c u m e n t o aparece subscrito p o r P e d r o Alfarde. Trata-se de u m diploma datado de M a r ç o de 1139, o qual, repetidamente discutido, p o r razões de vária o r d e m , t e m que ser t o m a d o c o m o falso. Nele, «impossível se nos torna definir c o m segurança o que está errado ou falsificado: se a data, o texto, as subscrições, ou sé t u d o e m conjunto»1 2.

Teria sido executado, c o m o outros, n u m a data p r ó x i m a da elaboração do primitivo assento d o cartulário conhecido p o r Livro Santo, ou seja, p o r 1155.

Mas, considerado c o m o apócrifo, ou ao menos parcialmente adulterado, haverá que manter-lhe a qualidade de autógrafo? Reconheça-se que n ã o deixa de ser algo estranho que, nas circuns-tâncias e m que terá sido redigido, e independentemente da inten-cionalidade que lhe esteja subjacente (nada manifesta, reconheça-se), seja o único a receber a subscrição de Pedro Alfarde. Tal carácter deveria naturalmente acarretar-lhe suspeitas, a que possivelmente o seu próprio autor, se o fosse, não quereria certamente expor-se n o imediato. Porque, aliás, deixaria outros documentos sem subscri-ç ã o1 3 e a aporia ele nesta? A base parece-nos demasiado frágil

para assentarmos a prova de autografia de Mestre Pedro Alfarde. Será legítimo, nestas condições, intentar u m o u t r o processo metodológico que esclareça o que importa ao nosso caso.

pela análise interna. Trata-se assim de u m original. Foi seu principal calígrafo o c ó n e g o d o mosteiro Pedro Alfarde que v e i o a ser o quarto prior, n o s anos 1184-1190. Alfarde escreveu e m letra francesa pura desde o s e g u n d o quartel d o séc. XII, t e m p o e m que a maioria dós escribas d o mosteiro e fora dele ainda usavam letra de transição, o u seja, carolíngia, eivada de e l e m e n t o s moçarábicos o u visigóticos. É n o s ú l t i m o s anos da primeira metade deste século que aparecem d o c u m e n t o s d o arquivo e m letra francesa sem mescla de visigótico; e apenas n o terceiro quartel d o m e s m o século desaparece d e t o d o a escrita nacional». A s observações de carácter paleográfico p o d e m explicar alguns dos erros d o t e x t o que nós c o m e n t a m o s . N a p. 53, o m e s m o autor, referindo-se a u m a possível intervenção de Pedro Alfarde, entre 1163-1167, c o m o s e g u n d o escriba d o primeiro aditamento ao assento p r i m i t i v o , . assinala «a distracção d o s e g u n d o escriba que a foi. 10v fez n o v o traslado d o d i p l o m a de Adriano IV, já c o p i a d o a foi. 9». Interessará chamar a atenção para esta obser-vação que v e m ao e n c o n t r o da análise que f a z e m o s adiante.

1 2 R u i de A z e v e d o , «Ainda sobre a data e m que A f o n s o Henriques t o m o u o

título de rei», Revista Portuguesa de História, 1, 1941, pp. 177-183. A citação é da p. 182, mas o c o n t e ú d o d o período anterior pertence-lhe igualmente. Sobre o d o c u m e n t o e m questão, veja-se t a m b é m a síntese dos problemas e a respectiva conclusão tirada por R . A . na nota X X X I V de Documentos Medievais Portugueses (Documentos Régios), v o l . I ( t o m o II), Lisboa, 1962, pp. 663-5.

1 3 C o m o são os d o c u m e n t o s 1 e 2 apontados por R u i de A z e v e d o , art. cit., p. 178,

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E x a m i n e m o s a questão, atendo-nos ao estado paleográfico do manuscrito conservado da Vita Tellonis.

Reconheça-se, antes de mais, a boa qualidade do registo, patenteada n o escasso n ú m e r o de correcções, o que terá de significar que não havia distanciamento apreciável do escriba relativamente ao texto. P o r é m , analisando essas mesmas correcções não será difícil apontar, pelo menos, u m a certa displicência e excessiva rapidez e m ultrapassar dificuldades, ou até simples desatenção. Será possível descobrir nelas a intervenção de u m escriba distinto do autor do t e x t o ?

Se a troca do n o m e Johannes p o r Jacobus (foi. l v ) , na atribuição de u m passo da Sagrada Escritura, e o espaço vazio para o n o m e d o i m p e r a d o r Henrico V (2r) se aceitam c o m o indecisão de autor, j á a mesma interpretação n ã o convirá ao engano, e subsequente correcção p o r rasura, d o n o m e de Odorio (3r) na transcrição da bula de Inocêncio II, u m a vez que se tratava de u m companheiro de P e d r o Alfarde.

Algumas correcções individuais a partir de letras anteriormente grafadas deixam perceber confusão de grafias e leitura incorrecta de u m suporte gráfico: deuotus: douotus; satis: sutis; hanc: hant; superuacaneum: superuaceneum; Mathie: Mathee; procliuis: procliuus. A expontuação ou supressão de letras e m inicial o u final de palavra leva a supor t a m b é m deficiência de interpretação de tal suporte gráfico e não hesitação de autor: uidendum: iuidendum; nostri: nostris. O caso de angore a partir de langore (por languore) sugere que u m a f o r m a mais conhecida (basta reparar nas suas ocor-rências bíblicas e m aproveitamentos litúrgicos frequentes) se terá sobreposto à m e n t e do copista.

Correcções c o m o habitu: ahabitu; uale: ualens manifestam talvez hesitação que tanto se p o d e atribuir ao escriba c o m o ao autor. N o entanto, alguns erros não corrigidos p o d e m corroborar t a m b é m a dependência de u m m o d e l o escrito, mal interpretado ou transcrito sem cuidado: supereminens: superemines; intra: intro; munera: munia; Inocentii: Inocentie; ausi: ausu; Colimbriensi: Colimbriesi; pugne: pugnei. O u t r o t a n t o não diríamos, todavia, de u m erro c o m o

intolebabilis p o r intolerabilis, pela possibilidade de ocorrência em qualquer situação.

O aparecimento de certas iniciais aberrantes parece, p o r seu lado, significativo de precipitação e m transcrever u m a imagem m e n t a l incorrecta: portitgalensium:gportugalensium; ipsos: fipsos.

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Expli-cável dentro d o c o m p o r t a m e n t o de u m copista, tal f e n ó m e n o mais dificilmente se acomoda à situação de autor que t e m consciência do seu texto.

Se não é possível extrair conclusões incontestáveis, u m a vez que nos encontramos frente à explicação de u m f e n ó m e n o h u m a n o complexo, c o m o é o d o m í n i o da escrita, parece pelo menos que tais indícios nos consentem u m a larga m a r g e m de probabilidade de nos encontrarmos perante uma cópia e não diante de u m original de autor.

Esses mesmos indícios criam, p o r outro lado, u m a base suficiente de apoio à proposta de correcção de cor episcopi para corepiscopus. Isto é, u m t e r m o menos usual (corepiscopus) existente n o original é transformado em expressão banal e inadequada (cor episcopi) na operação de cópia.

Reconheça-se, todavia, que os mecanismos de influência nessa alteração são menos gráficos que linguísticos. Efectivamente, e m hipótese, poderia conjecturar-se que u m a i m a g e m gráfica incorrecta, obtida porventura apressadamente, teria estado n o p o n t o de partida. N o entanto, n ã o parece que u m a eventualidade de sinal braqui-gráfico para a desinência -us possa ter qualquer relevância, j á que nunca poderia ser interpretado c o m o -i.

O f e n ó m e n o é de natureza sintáctica e lexical (simultaneamente uma coisa e outra, já que a rejeição do t e r m o primitivo obriga a refazer o sintagma) e só é explicável pela interpretação errónea de u m conteúdo não imediatamente acessível. A negligência ou precipitação do copista, se bem que comprovadas pelos dados acima apresentados, não bastam para explicar inteiramente a falta, embora possam estar na sua origem.

O erro, p o r é m , e j á que escapa à vigilância do corrector e dos leitores subsequentes, envolve u m a dimensão cultural, que n ã o pode ser esquecida, embora não deva ser sobrevalorizada. O u seja, entre o autor d o texto e os produtores /utentes do apógrafo que nos foi conservado há u m a distância cultural (pelo menos deste nível, j á que não é possível estabelecer o afastamento cronoló-gico) que se traduz pelo conhecimento/ignorância de u m t e r m o para designar u m cargo determinado, justamente aquele e m que Telo é investido. N ã o se trata efectivamente de rejeição, mas de incompreensão, e, correlativamente, da transposição desta para o texto.

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N ã o p o d e m o s , concomitantemente, e por isso mesmo, deixar de nos interrogar sobre o valor de singularidade que o termo apresenta n o c o n j u n t o d o texto. Tal singularidade chama tanto mais a atenção quanto, p o r u m lado, o cargo específico de corepíscopo praticamente desaparecera, perante a ofensiva tenazmente desen-cadeada pelos reformadores isidorianos a partir do século i x1 4, e, por

o u t r o lado, o cargo de arcediago usufruía, por toda a parte, de grande prestígio1 5.

Estas circunstâncias levam-nos a supor que a interposição do t e r m o se terá dado n o espírito do autor do texto não através da via jurídico-canónica dominante (que o rejeitava), mas através de qualquer outra associação f o r m a d a n o convívio c o m textos onde ele figurasse, independentemente, aliás, da adequação plena à situação em causa.

N e m R á b a n o M a u r o1 6 n e m Isidoro de Sevilha1 7 figuravam

entre os autores trazidos pelo cónego Pedro do mosteiro de S. R u f o1 8 n e m é possível reconhecer se acaso eles estavam incluídos

n o núcleo primitivo da livraria de Santa C r u z1 9. T e m de admitir-se,

todavia, que o t e r m o provinha de u m a fonte c o m o estas. D e resto, afigura-se fácil entrever c o m o ele tenha sido aproveitado. Efectiva-mente, pode descobrir-se u m a intenção neste uso singular, dentro de u m contexto determinado, onde o p r ó p r i o j o g o de oposições contribui para u m maior efeito: realçar a dignidade quase episcopal

1 4 O Papa Estêvão V só a título de excepção c o n c e d e u m corepíscopo a M o g ú n c i a

e m 8 8 8 . Se esta dignidade se m a n t c m e m C o l ó n i a e Tréveris, o u na longínqua Irlanda (na parte alemã, aliás, corno título honorífico), n ã o parece que tal facto pudesse de a l g u m m o d o ter e x e r c i d o qualquer influência n o redactor d o nosso texto.

1 5 R e c o r d e - s e que, e m 1174, data m u i t o p r ó x i m a d o nosso texto, o Papa Alexandre III

procura reagir (Decr. 1.1, tit. X X I I I , c. 4) contra a interpretação de que o arcediago tinha jurisdição pessoal e n ã o vicarial (Cfr. A m a n i e u , loc. cit., § IV), o que o b v i a m e n t e confirma, pela negativa, o que acima dizemos.

1 6 C o m p ô s efectivamente este autor u m tratado, De chorepiscopis ( M G H , Epist. V ,

pp. 431-39) a defender o carácter episcopal dos corepíscopos.

1 7 N o De Eccles. off., 2, 6, 1, lê-se: «chorepiscopi id est vicarii episcoporum, iuxta

q u o d cânones ipsi testantur, instituti sunt ad e x e m p l u m septuaginta seniorum tanquam consacerdotes propter sollicitudinem pauperum» ( P L 83, 786-7).

1 8 Cfr. Vita Tellonis, P M H , § 13: «Itaque ipse o m n i ecclesiastico ordine perfectus

adduxit nobis Capitularium i n t e g r u m , Antifonarii m o r e m , A u g u s t i n u m super l o h a n n e m , i t e m super G e n e s i m ad litteram, item super quasdam questiones Mathei et Luce, E x a m e r o n Ambrosii, item D e Penitentia, i t e m Pastoralem, et B e d a m super Lucam». Supõe-se que o C o d . 836 da B P M P constitui u m dos exemplares trazidos de S. R u f o p e l o c ó n e g o Pedro.

1 9 N o F u n d o de Santa Cruz actualmente na B P M P n ã o figura o De Ecclesiasticis

Officiis de Isidoro. N o Catálogo, encontramos registadas algumas das obras deste autor,

c o m o sejam Liber Ethimologiarum, De summo bono, Synonyma. Consulte-se Catálogo àos

Mattuscriptos da Biblioteca Pública Municipal do Porto, Porto, 1880, b e m c o m o A . G. R .

Madail, «Os C ó d i c e s de Santa Cruz de Coimbra», Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra, 8, 1927, 379-420; 9, 1928, 192-229 e 352-383; 10, 1932, 55-105; 11, 1933, 50-96.

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do cargo a que D . T e l o ascendia e pelo qual passaria a ser designado 2 0.

Q u e o conteúdo do t e r m o não estivesse j á de acordo c o m a evolução que a instituição tomara, isso pouco importava, n e m provavelmente o próprio autor ou o seu público disso se apercebia, dado que a instituição, c o m o tal, na sua prática histórica2 1 e na discussão teórica

a que tinha dado ocasião, estava fora do seu sistema de referência2 2.

Para u m objectivo servia, n o entanto: exaltar a figura do biografado.

Enfim, de quanto deixamos dito, parece lícito extrair algumas conclusões: a) o sintagma cor episcopi da Vita Tellonis não se adequa ao texto; deve ser atribuído a erro de copista e há que reintroduzir a f o r m a que o contexto postula: corepiscopus; b) embora singular n o texto, e fora de uso p o r desaparecimento da instituição que lhe está subjacente, esta forma corepiscopus pode e deve integrar-se n u m a intencionalidade engrandecedora da parte do hagiógrafo, ao mesmo t e m p o que revela, de algum m o d o , o âmbito da sua formação cultural (não jurídica, pelo menos, pois ignora as conota-ções que o t e r m o apresenta desde séculos anteriores nesse domínio); c) u m dado c o m o este, entre outros, prova-nos que o exemplar da Vita Tellonis que hoje possuímos não constitui seguramente u m autógrafo de Pedro Alfarde, autor do texto, mas foi certa-mente copiado fora do seu alcance, e m data que importará precisar p o r meios adequados, a começar obviamente pela análise do próprio Livro Santo.

AIRES AUGUSTO NASCIMENTO

2 0 Haverá certamente que ter e m conta ainda o u t r o dado. Se na narrativa da

insti-tuição da c o m u n i d a d e de Santa Cruz se insiste n o n ú m e r o de d o z e ( c o m o valor ó b v i o que na circunstância ele representa), n ã o será fora de propósito advertir n o n ú m e r o de setenta e dois (o dos discípulos e m missão evangélica, c o m o se depreende) i n v o c a d o pelo passo de Isidoro atrás referido. A nobilitação de T e l o passa t a m b é m por esta reminiscência bíblica, ainda que só acessível para q u e m conhecesse o t e x t o isidoriano d e o n d e , p r e s u m i v e l -mente, saía o t e r m o «corepiscopus».

2 1 Geograficamente, aliás, o corepiscopado limitou-se à A l e m a n h a e às regiões

francas, e só e m pequena escala à Inglaterra e Irlanda; parece ter ficado c o m p l e t a m e n t e desconhecido da Itália, Espanha e África. Cfr. A c á c i o Coussa, in Enciclopédia Cattolica, Vaticano, 1950, s.v. «Corepiscopo»; P. Linden, in Lexikon für Theologie und Kirche, Friburgo, 1958, s. v. «Chorbischof».

2 2 Graciano, que escreve a sua Concordia discordan tiumcanonum (mais tarde conhecida

por Decretum, c o m o é sabido), p o r 1140, n ã o esquece os corepíscopos, acentuando a diferença d o cargo relativamente aos bispos e sublinhando que «propter insolentiam suam qua o f f i c i o episcoporum sibi usurpabant ab ecclesia h o d i e prohibiti sunt» (Dec. pars I, dist. L X V I , cap. III, pars III). O s glosadores repetem o comentário de referência bíblica que e n c o n t r a m o s e m Isidoro (Cfr. PL 187, 352).

Referências

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