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“Chuva de Bala No País de Mossoró”: a construção da memória coletiva e suas expressões culturais como parte da identidade histórica municipal

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

“CHUVA DE BALA NO PAÍS DE MOSSORÓ”: A CONSTRUÇÃO DA

MEMÓRIA COLETIVA E SUAS EXPRESSÕES CULTURAIS COMO

PARTE DA IDENTIDADE HISTÓRICA MUNICIPAL.

Zélia Letícia Dantas Bezerra

Natal - RN 2014

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“CHUVA DE BALA NO PAÍS DE MOSSORÓ”: A CONSTRUÇÃO DA

MEMÓRIA COLETIVA E SUAS EXPRESSÕES CULTURAIS COMO

PARTE DA IDENTIDADE HISTÓRICA.

ZÉLIA LETICIA DANTAS BEZERRA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito para a obtenção do título de Bacharel em História.

Orientador(a): Profº. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Jr.

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“CHUVA DE BALA NO PAÍS DE MOSSORÓ”: A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA COLETIVA E SUAS EXPRESSÕES CULTURAIS COMO PARTE DA IDENTIDADE

HISTÓRICA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em História.

Aprovado em _______ de ______________ de 2016.

BANCA EXAMINADORA

______________________________

Profº. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Junior (Orientador)

______________________________ (Membro interno) ______________________________ (Membro externo) ______________________________ (Suplente)

(4)

Para minha Pequena ​Força, que me inflamou o espírito nos invernos de motivação

(5)

AGRADECIMENTOS

● Ao meu pai, que me ensinou a amar a História, e a minha mãe, que me ensinou a amar causas perdidas.

● Aos mestres que contribuíram para a formação que tornou possível a concepção deste trabalho.

● Às minhas outras mães, que tão incondicionalmente me amaram e apoiaram toda minha vida.

● À minha irmã, que me emprestou sua coragem, mesmo sem perceber.

● Ao meu avô, pelo exemplo de determinação, coragem e força, o pilar que ele sempre foi para mim.

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RESUMO

O presente trabalho analisa a construção da memória coletiva do município de Mossoró, Rio Grande do Norte, em torno dos acontecimentos de 12 de junho de 1927, e a perpetuação dessa memória coletiva através de manifestações culturais como o espetáculo teatral Chuva de Balas no País de Mossoró, escrita por Tarcísio Gurgel. Tendo como base a pesquisa e o trabalho biográfico de Marcílio Lima Falcão sobre o cangaceiro Jararaca, e confrontando a tradição oral e as manifestações artísticas com a literatura jornalista, o trabalho não propõe um questionamento direto da narrativa sobre os eventos de 1927, mas a compreensão de que tal narrativa é baseado em construções individuais que se tornaram coletivas e que passaram a embasar ações políticas e culturais na cidade até os dias de hoje. Enxergar essas construção e problematizar os atores dessas narrativas é indispensável para uma leitura não só do passado, mas também do presente.

Palavras chave: Mossoró, Memória, Produção Cultural, Resistência, Chuva de Bala no País de Mossoró

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO​ ………...08

1. A CONSTRUÇÃO NARRATIVA DA RESISTÊNCIA MOSSOROENSE​...12 2. A ELABORAÇÃO DA MEMÓRIA COLETIVA SOBRE A RESISTÊNCIA​...22 3. O ESPETÁCULO “CHUVA DE BALA NO PAÍS DE MOSSORÓ”​...………. 37

REFERÊNCIAS . ​………...…… 47

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INTRODUÇÃO

O “Chuva de Bala no País de Mossoró” é um espetáculo teatral apresentado todos os anos aos pés da igreja de São Vicente na cidade de Mossoró, Rio Grande do Norte. A peça conta a versão oficial da resistência mossoroense ao ataque do bando de cangaceiros liderados por Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Como uma expressão cultural da memória, o espetáculo, embora não sozinho, cumpre um importante papel de manutenção de uma memória coletiva da cidade, e visa o fortalecimento da identidade cultural de seus habitantes. Em uma cidade palco de tantos acontecimentos dignos de nota, tais como o primeiro voto feminino e o pioneirismo na libertação dos escravos, é curioso perceber que apenas um mereceu a significância de ser enaltecido com, não apenas um espetáculo próprio, mas toda uma estrutura de museu ao ar livre para preservar a memória dessa resistência.

Embora a memória individual possua uma seletividade relativamente aleatória, a memória coletiva pode ser mais facilmente direcionada, e compreender esse direcionamento é uma das principais questões a serem levantadas aqui. Não proponho uma busca por uma versão definitiva para o pretenso confronto entre a população da cidade de Mossoró e o bando de Lampião em si, mas sim uma análise da manutenção de uma dada narrativa através do espetáculo Chuva de Bala junto a outras produções culturais locais, e os incentivos particulares em cima das quais essa narrativa foi construída. Explicar a memória pode ser uma tarefa mais difícil do que aparenta, para começar é preciso refletir sobre uma pergunta, “O que existe sem a memória?” Como eu saberia minha história, meu passado, os valores que me foram ensinados, as tradições, a cultura na qual fui criada? Como eu saberia falar sem a memória? Borradas, bem definidas, reprimidas, esquecidas, nossas memórias fazem parte da nossa própria constituição como indivíduos. Uma cabeça sem memória é como uma folha em branco, vazia. Não se pode pensar na memória apenas como um conjunto de lembranças, experiências das mais corriqueiras até as mais peculiares. Memórias são emoções, são ideias, elas são políticas, interferem na maneira como aprendemos a viver. Imagine a si mesmo como um indivíduo inserido em qualquer parte do mundo. A educação, as tradições, a criação oferecida pelos pais, ou ausência dela, as ligações formadas durante o amadurecimento do indivíduo, toda contribuição oferecida para o quebra-cabeça da consciência, seria uma colagem de lembranças, absorvidas consciente ou inconscientemente pela memória.

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Em grande medida, o argumento que justifica a relevância deste trabalho é a carência bibliográfica em torno do tema notadamente numa abordagem da história cultural. Não buscaremos a origem da narrativa da Resistência, como o evento foi nomeado, mas sim o processo de sua incorporação a identidade cultural da cidade e as diferentes trocas de influência com a memória coletiva local. Diante da necessidade de se desenvolver também um discurso historiográfico em conjunto com o debate acerca da memória e da identidade cultural, é preciso primeiramente recorrer a quem melhor entende os caminhos para transformar palavras inexperientes em historiografia.

Se recapitularmos esses dados, a situação da historiografia faz surgir a interrogação sobre o real em duas posições bem diferentes do procedimento científico: o real enquanto é o conhecido (aquilo que o historiador estuda, compreende ou "ressuscita" de uma sociedade passada) e o real enquanto implicado pela operação científica (a sociedade presente a qual se refere a problemática do historiador, seus procedimentos, seus modos de compreensão e, finalmente, uma prática do sentido). De um lado o real é o resultado da análise e, de outro, é o seu postulado. Estas duas formas da realidade não podem ser nem eliminadas nem reduzidas uma a outra. A ciência histórica existe, precisamente, na sua relação. Ela tem como objetivo próprio desenvolvê-la em um discurso. Certamente, segundo os períodos ou os grupos, ela se mobiliza, de preferência, em um de seus dois pólos. Com efeito, existem dois tipos de história, conforme prevaleça a atenção a uma destas posições do real. Mesmo que as imbricações dessas duas espécies predominem nos casos puros, elas são facilmente reconhecíveis. Um primeiro tipo de história se interroga sobre o que é pensável e sobre as condições de compreensão; a outra pretende encontrar o vivido, exumado graças a um conhecimento do passado.” (CERTEAU, M. ​A escrita da história. Rio de Janeiro, RJ. Editora Forense Universitária, 1982.)

Seguindo Michel de Certeau no “Fazer História”, a leitura desse trabalho será determinada pela “localização” desse exercício de escrita historiográfica. Temporalmente localizado em uma história contemporânea próxima, e fisicamente no município norte-rio-grandense de Mossoró. A decisão de sugerir o debate da memória junto ao debate historiográfico não foi em vão. A história como conservação da memória, em grande medida, vem sofrendo uma desvalorização sistemática diante de um mundo contemporâneo que exalta a objetividade e a exatidão em detrimento da subjetividade dos indivíduos. Será possível perceber durante a análise, narrativas pessoais de célebres figuras mossoroenses da época

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aceitas como historiografia nas produções culturais analisadas, sem qualquer problematização.

Para melhor ilustrar minha compreensão sobre a construção da narrativa da Resistência nas expressões culturais locais, vou conceber a memória como um bloco de cera, onde podem ser marcados momentos, experiências ou pessoas, mas também, emoções e sensações. Em seguida, é preciso pensar também nos marcadores, eventos vivenciados ou transmitidos através do lembrar e contar, como “carimbos”. Quando pressionados contra a cera da memória deixarão suas marcas para criar as lembranças. O desenho formado pela marca individual e pelo conjunto de marcas é o registro da lembrança no “quadro da memória”, é para essa marca que se corre na hora do recontar, transmitindo informação. Eu descrevo e passo adiante da maneira como a marca se guardou, como ainda consigo vê-la dentro da minha consciência. Duas pessoas não possuem duas lembranças exatamente iguais porque não existem duas pessoas com ​vivências ou experiências idênticas​. Assim, espero poder demonstrar como a narrativa expressa nas produções culturais são fruto de uma construção coletiva direcionada por perspectivas pessoais da elite local. Para isso, não podendo fugir da subjetividade de minha própria construção, recorrerei em parte a História Comparada como ferramenta para destacar as diferentes perspectivas em torno dessa memória.

Seguindo os conceitos apresentados por José D’Assunção Barros em ​História

Comparada

​ , é preciso começar dizendo que se trata de uma modalidade complexa da

historiografia, que propõe, não apenas um modo específico de observação, mas um “duplo campo de observação”. Respondendo às duas perguntas propostas em seu trabalho, “O que observar?” e “Como observar?”, Barros resume como podemos tornar possível uma história comparada.

Em suma, a História Comparada tanto impõe a escolha de um recorte geminado de espaço e tempo que obrigará o historiador a atravessar duas ou mais realidades socioeconômicas, políticas ou culturais distintas, como de outro lado esta mesma História Comparada parece imprimir, através do seu próprio modo de observar a realidade histórica, a necessidade a cada instante atualizada de conciliar uma reflexão simultaneamente atenta às semelhanças e às diferenças.

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(BARROS, José D’Assunção. ​História Comparada. Petrópolis, RJ. Editora Vozes. 2014.)

Este conceito de História Comparada, porém, será aplicado não em realidades distintas, mas em expressões culturais que representarão as memórias, tanto individuais como coletivas, de realidades socioeconomicas distintas. Essas expressões culturais possuem um ponto em comum entre si, a memória da Resistência Mossoroense. Essencialmente, proponho uma Memória Comparada, na qual vou atrelar os conceitos da História-problema Comparada, como desenvolvida por Barros. Comparar as memórias pode ser uma última alternativa na pesquisa de um objeto com pouca bibliografia ou registros escassos, mas desde o começo a minha ambição se voltava para a vontade de desenvolver algo relevante acerca da memória, e mais do que isso, de sua incorporação a identidade cultural da cidade de Mossoró.

Antes de começar a dialogar a memória com a História Comparada, é preciso compreender que as linhas que iniciaram e compuseram a História Comparada são também responsáveis pela oferta de alternativas nesse campo, lhe é devido essa flexibilidade que nos permitirá admitir a análise sobre a ​Memória Comparada

​ . A dinâmica pode ser adaptada de

tantas maneiras quanto forem necessárias para se analisar o objeto pretendido, o recorte espacial pode passar para o lugar do recorte temporal ou do problema como ponto de ligação entre os objetos.

No primeiro capítulo tentarei demonstrar como se deu a construção da narrativa sobre a Resistência. Iniciando com uma comparação das narrativas jornalísticas publicadas na época, falando sobre o confronto e também das consequências para o cotidiano da cidade nos momentos posteriores. Como “tela sobre tela”, analisarei as mudanças dessa narrativa realizadas pelas publicações feitas nas comemorações do cinquentenário da Resistência, como marcadores dessa memória para uma nova geração de mossoroenses. Ao lado disso, analisarei detalhes confrontantes de memórias ou narrativas negligenciadas na construção dessa versão oficial da memória da Resistência, reunidas a partir de obras bibliográficas sobre personagens presentes em Mossoró durante o período do confronto com o bando de Lampião.

O segundo capítulo tratará da preservação da memória da Resistência e como ela se deu de forma diversificada. As diferentes narrativas sobre o que se sucedeu naquele 13 de junho de 1927 se deu de forma igualmente diversificada. Enquanto a preservação institucional tem um foco mais artístico para exaltar os heróis da cidade, a cultura popular

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guardou outros detalhes daquele momento em suas práticas religiosas. Apresentarei exemplos de como essas manifestações culturais da memória coletiva foram se dando, e como se preservam até hoje.

Após compreender a construção da narrativa, e as diferentes formas de preservação para a memória oficial e outras memórias, veremos no terceiro capítulo como o espetáculo Chuva de Bala se apresenta como resultado, não apenas da narrativa oficial, mas também da identificação proposta por ela, e fortalecida culturalmente e artisticamente com o passar dos anos.

As ligações desenvolvidas com os espaços em que vivemos são mais significativas em nossa vida, do que podemos perceber nesse mundo atualmente tão globalizado. A cultura é uma grande definidora na maneira como absorvemos nossas experiências, e a memória é um dos principais responsáveis pela identificação cultural, mesmo a memória repassada pelas instituições oficiais. É pela memória da criação, dos interesses em comum, que você pode se identificar como parte de um grupo, as semelhanças, e as vezes, até as diferenças em suas experiências. Mossoroenses, Potiguares, Brasileiros, Latinos. Memória são partes da identidade, e é com essa memória que se escreve a história.

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1. A construção da narrativa

da Resistência Mossoroense.

Existem alguns fatores que aproximam pessoas, famílias, tribos, grupos, em uma sociedade complexa, uma cidade, uma nação. Para além de linguagem, etnia, cultura, sistema político, religião, eles tem história. A história identifica até mesmo as pessoas mais distintas, eventos que ocorreram décadas antes da existência do indivíduo, mas que faz parte de sua memória “desde sempre”. A identificação coletiva, em figuras ou acontecimentos, é um “legitimador de poder” comum dentro da história. A ascendência heroica ou divina já foi reivindicada na Grécia e seus heróis mitológicos, usada como fator de identificação e superioridade. Em Roma com o herói Enéias, a “linhagem abençoada por Deus” de Jacó de quem descende as doze tribos de Israel, e em Mossoró “A Resistência ao Bando de Lampião”. Esses exemplos, embora em espaços geográficos e temporais completamente diferentes, possuem muitas semelhanças entre si. Embora a narrativa da Resistência seja amplamente reafirmada inclusive institucionalmente em uma versão aparentemente popular, foram narrativas construídas por memórias de poucos, e acabaram incorporadas como memórias da cidade inteira, passando a ser usada não apenas para exaltar seus atores, mas também o grupo mais amplo que de alguma forma consegue se associar a estes atores. Em sociedade, os indivíduos são criados com memórias de outros, muitas vezes sem questionar, ou mesmo perceber que essas memórias foram dadas e não vividas.

A narrativa da Resistência passou por uma cuidadosa modelagem desde os primeiros momentos de consciência da ameaça, até chegar a versão relativamente detalhada representada em espetáculos. A primeira descrição do que se iniciou naquele 12 de junho de 1927 veio no dia seguinte a fuga dos cangaceiros, impresso em primeira mão no jornal local,

O Mossoroense.

“A nossa pena de jornalista treme, ao fazermos divulgar na presente notícia, os dias de horror, infortúnio e apreensões de que foi teatro Mossoró, por ocasião da incursão do famigerado grupo sinistro capitaneado pelo mais audaz e miserável de todos os bandidos que tem infestado o Nordeste brasileiro e o pacato território do Rio Grande do Norte Virgulino Lampião, esta majestade do crime e do terror, alma diabólica de pervertido tarado cujo rastilho de misérias vem desassombradamente espalhando em todos os recantos onde passa com o seu cortejo macabro e facinoroso. Assim, logo às primeiras horas de domingo último, 12 de junho, correu célere por

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toda a nossa cidade, a notícia alarmante de que o grupo famanaz desses hunos da nova espécie tentara atacar e saquear a vizinha cidade do Apodi, tendo sido obrigado a recuar em vista da resistência heroica que encontraram por parte dos habitantes da pequena cidade, e que desesperado por este fracasso, rumara o mesmo para a povoação de São Sebastião, deste município, e dali viria a Mossoró com o intento de locupletar as algibeiras do sinistro chefe - Lampião, em seguida incendiado a cidade, prosseguindo, então, vitorioso, a trajetória infame do seu traçado hediondo de toda a sorte de crimes. (...)O famigerado bando não nos encontrou desprevenidos... Sabendo dos nossos hábitos pacíficos, desse vagarosamente e ao meio dia de 13 começa a ser avistado. A uma légua desta cidade, manda uma intimativa ao Cel. Rodolfo Fernandes, para que lhe envie 400 contos de réis, sob pena de nos invadir. A tal ultimátum, respondido negativamente, segue-se outro que não teve melhor sorte, e o celerado e seus adeptos entram em contato conosco, pouco antes das 16h. Divididos, aparecem em diversos pontos. O sino da Matriz repica, alertando o posto da torre que se prepara para a luta. Ao troar dos fuzis, casa-se ribombo do trovão, pois que pouco antes começara a chover. Se o céu nos mandava lágrimas, também saudava, abafando o som dos disparos. Era comovente o espetáculo. Investem os bandidos as primeiras trincheiras, ladeiam, cortam caminho, surgem ao lado da estação da Estrada de Ferro, onde entram no prédio da União de Artistas e se entrincheiram; aparecem à margem direita do rio, defendida pela trincheira da barragem; o Telégrafo Nacional, ao lado da Matriz, acha-se também defendido. Onde chegam, ai está o fogo... As torres da Matriz e da capela de São Vicente, as trincheiras atacadas diretamente, as de retaguarda, mantém nutrido tiroteio. Os bandidos recuam, voltam à carga e repelidos novamente se retiram para o seu acampamento, deixando morto o bandido Colchete e vários feridos. De nossa parte, nenhuma morte nem ferimento se verificou." (

​ O Mossoroense. 14 out. 2012

Especial 140 anos)​.

As palavras repletas de emoção dividem enfaticamente os diferentes sentimentos que devem ser atrelados às figuras apresentadas, e esses sentimentos se perpetuarão de diferentes maneiras na memória dos indivíduos. Longe de uma imparcialidade informativa, o texto do jornal ​O Mossoroense na manhã após o confronto dos “Heróis da Resistência” contra o bando de Lampião, contempla a maior parte de uma versão muito bem direcionada, e atualmente mais repetida, tanto pela tradição oral quanto pelas expressões culturais locais. Se pensarmos, por exemplo, que a história tem um papel importante e definidor na identificação dos indivíduos de hoje com a sociedade construída corriqueiramente desde o “ontem” mais

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distante no qual não existíamos até o presente, não é possível negar o poder da imprensa na identificação da comunidade construída diariamente e de forma mais direta, o “ontem” imediato. Nesse caso específico, em Mossoró, no meio do século XX, a imprensa tem um poder ainda mais decisivo, não apenas pelo resultado de uma narrativa não problematizada, mas pelo seu monopólio no registro e na narrativa da informação.

Uma imprensa parcial e seletiva não chega a ser uma novidade. Desde sua criação, a imprensa é utilizada para vender ideias e opiniões específicas em massa, mas dizer isso não é pedir pelo fim desse meio de comunicação, e sim alertar para a leitura não problematizada das informações transmitidas, e para a maneira como são transmitidas. Em Mossoró de 1927 a imprensa se restringia a três jornais impressos, “O Mossoroense”, “Correio do Povo” e “O Nordeste”. As publicações desses jornais seguiram a mesma linha dicotômica, exaltando a crueldade dos vilões cangaceiros e a nobreza dos heróis cidadãos, fosse no relato de atos praticados durante o confronto ou no relato de detalhes pessoais dos indivíduos que participaram dos eventos daquele dia. Não se tratava apenas da construção de uma narrativa do ocorrido, mas também de uma versão de caráter dos envolvidos.

Marcílio Lima Falcão, que é professor da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte, mestre em história pela Universidade Federal do Ceará (UFC), e doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP), em sua obra “Jararaca”, sobre o cangaceiro José Leite de Santana, reúne um número significativo de registros sobre a passagem de Jararaca por Mossoró, sendo este parte do confronto que eventualmente levaria a sua captura e morte. Seu trabalho gira em torno da construção da narrativa sobre o cangaceiro, não apoiado apenas nos relatos da imprensa, mas também na tradição oral e na cultura popular, e suas compreensões da construção social dessas versões da Resistência serão indispensáveis nas análises deste trabalho.

A imprensa mossoroense divulgou as ações dos bandos no Oeste do Estado, informou sobre os saques e tratamento dado às vítimas dos cangaceiros, comentou a respeito dos discursos sobre presença do grupo no Estado, debateu sobre as relações mantidas entre os bandidos e os políticos cearenses e distinguiu as autoridades do Rio Grande do Norte como os políticos que não participavam da política do clientelismo e do banditismo. Por outro lado, essa mesma imprensa não teve a mesma postura ao silenciar a respeito das condições que levaram a morte de Jararaca. Tomava essa postura

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porque a morte de Jararaca comprometeria a exaltação da vitória sobre os cangaceiros? (FALCÃO, 2013 p. 29)

A questão levantada por Falcão responde a uma pergunta quanto aos interesses por trás da construção da narrativa, que embora não sejam a questão principal deste trabalho é indispensável para a compreensão da análise proposta. O ganho político com a exaltação do heroísmo servia como legitimador de poder de uma elite local, e estender essa exaltação para além dos atores, acolhendo a cidade como um todo embaixo dos louros da batalha passava uma sensação de comunidade unificada muito poderosa. A vitória contra os cangaceiros, sob o comando das principais lideranças da cidade era usada para seduzir a população a reproduzir a mesma sensação de vitória e o comando dessas lideranças. Posteriormente, os registros da imprensa seriam ressuscitados para também ressuscitar a memória da resistência em outros períodos históricos da cidade.

As condições da morte do cangaceiro Jararaca foram sumariamente abafadas pela imprensa local na década de 20, o que coloca ainda mais em dúvida a narrativa dos episódios, inclusive do confronto em si. A imprensa informou em 19 de junho que Jararaca havia morrido quando escoltado para Natal, em decorrência dos ferimentos adquiridos durante a batalha. Em outra versão Jararaca havia sido morto por membros da própria força policial, executado após cavar a própria cova no cemitério da cidade. Outra versão diz que ele teria sido enterrado vivo. Em sua pesquisa, Marcílio Lima Falcão reúne depoimentos de personagens presentes na escolta do cangaceiro, e até publicações nos jornais locais divulgando essas hipóteses com algumas décadas de atraso.

Escrita na década de 1930, essa forma de narrar à morte de Jararaca não teve qualquer divulgação por parte da imprensa em Mossoró. Jararaca representava o cangaceiro, o facínora. Essa imagem do cangaceiro se mantém, porém a noção de injustiçado não caiu no esquecimento por encontrar na memória e oralidade (mesmo sofrendo ressignificações) uma forma de circular. (FALCÃO, 2013, p.48)

Neste ponto precisamos compreender que, ao falar sobre a narrativa da resistência, não me refiro ao que está explícito ou o que efetivamente ocorreu. Não são os marcadores principais, como uma tentativa frustrada de saque a uma cidade o que destaco aqui, mas como essa narrativa direciona nosso olhar sobre esse ocorrido, e os mecanismos utilizados para fazê-lo. O Correio do Povo

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jornal de circulação diária de Mossoró. Até sua suspensão em 1928, grandes personalidades locais como o Dr. Abel Coelho, Pe. Paulo Herôncio, e os professores Amâncio Leite e Raimundo Nonato, este último sendo o primeiro a escrever material bibliográfico sobre Lampião em Mossoró, tiveram suas palavras publicadas semanalmente neste veículo. Junto com ​O Mossoroense

, este pertencente à família Escóssia na maior parte de sua existência, o

Correio do Povo

​ cumpriu papel importante na construção da narrativa sobre a Resistência.

A versão “oficial” da batalha é a mais comumente cultuada na cidade nos dias de hoje e usada nas representações culturais - muito embora os textos jornalísticos e narrativas artísticas se foquem nos momentos que antecederam e sucederam o confronto -, ressalta uma coragem inabalável por parte dos moradores da cidade, e em especial de quatro figuras “heróicas”: o prefeito de Mossoró cel. Rodolfo Fernandes, o ten. Laurentino Gomes, o padre Motta e o cel. Antônio Gurgel. Há, porém, um monopólio nas fontes que são admitidas a ilustrar as narrativas locais daquele junho de 1927. Uma das mais completas e repetidas narrativas do acontecimento foi elaborada pelo jornal Mossoroense, na época sob a direção de Rafael Fernandes, que viria a ser prefeito da cidade dois anos depois, após a gestão do “heróis da Resistência” Rodolfo Fernandes. Essa narrativa foi construída, principalmente, pelo jornalista Lauro da Escóssia (o mesmo que viria a reabrir o jornal posteriormente em 1946),

a quem o cangaceiro Jararaca teria concedido uma entrevista antes de vir a falecer nos

dias subsequentes a batalha. A entrevista de Jararaca a Lauro da Escóssia foi o maior furo jornalístico da época, tendo ele conseguido falar com o cangaceiro antes mesmo da polícia.

Tanto os jornais como a literatura disponível sobre a temática na década de 1970 são importantes para a massificação dessas memórias, uma vez que os jornalistas e escritores recorriam às lembranças sobre os acontecimentos de junho de 1927 como forma de escrever sobre o acontecimento.

Lauro da Escóssia seleciona lembranças da resistência. Essas lembranças circularam na cidade e influenciaram leituras, apropriações e interpretações sobre os acontecimentos que afligiram os cidadãos por conta da presença dos cangaceiros nas terras potiguares e se tornaram o padrão para a uniformização de uma memória que se propõe oficial.(FALCÃO, 2013, p.67)

Em 1977, o cinquentenário do confronto com Lampião, o jornal ​O Mossoroense lançou a coluna “Lampião em Mossoró”, assinada por Lauro da Escóssia, já responsável pelo jornal, sendo dezesseis matérias narrando a passagem do bando de cangaceiros por Mossoró, novamente trazendo à baila uma narrativa já apresentada em 27. As reportagens faziam parte

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da proposta de autoridades locais – o prefeito João Newton da Escóssia, o professor Lauro Monte Filho, Júlio Rosado, o professor Manuel Leonardo Nogueira, o jornalista Dorian Jorge Freire, o padre Sátiro Cavalcante Dantas, e o reitor da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte, Elder Heronildes da Silva - em torno das comemorações do aniversário de cinquenta anos. Em sua análise, Falcão expressa com clareza que se desejava “consolidar a imagem de Mossoró como “cidade da resistência” no cenário regional. A preparação das comemorações foi marcada pelas parcerias feitas entre Prefeitura Municipal de Mossoró com a Igreja Católica e o Colégio Diocesano Santa Luzia” (FALCÃO, Marcílio L. 2013).

Quanto à circulação das narrativas a partir do Jornal ​O Mossoroense (na década de 1970), era necessário que as novas gerações conhecessem os acontecimentos que culminaram na resistência e absorvessem as narrativas do jornal como verdadeiras.

(FALCÃO, 2013, p.66)

Para além do reconhecimento, a memória precisa ser reafirmada para não ser perdida. O reconhecimento precisa existir através da lembrança, ainda que essa lembrança não pertença diretamente ao indivíduo. É nesse ponto que a os periódicos se manifestam como catalisadores indispensáveis para a incorporação desse reconhecimento da “Resistência Mossoroense” na memória coletiva, e sua expressão como identidade cultural a partir de uma narrativa construída e introduzida pela própria imprensa. As comemorações do cinquentenário da resistência foram exatamente a ilustração disso, não apenas com a publicação da coletânea de matérias que pudessem ser relacionadas ao assunto na coluna assinada por Lauro da Escóssia, mas também pela “disposição institucional”, na figura do prefeito João Newton da Escóssia, em dividir essa comemoração em sete dias. É feita então a apresentação da memória a um público em sua maioria de pessoas que não a viveram, mas que possui proximidade temporal o bastante para ser aceita como uma memória “segura”, que supostamente não precisa ser problematizada por estar “fresca”.

Chama atenção como se ignorou por tantos anos as relações entre os atores, ou se ignora os próprios atores. Não se estranha que as elites políticas ajudem a fortalecer institucionalmente as narrativas adotadas pela imprensa da cidade, da mesma forma como “não se nota” os sobrenomes repetidos entre esses perpetuadores e incentivadores dessa memória. Esses atores são também os narradores da resistência, e suas próprias percepções e

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interesses pessoais direcionaram o registro e a perpetuação dessa narrativa como memória coletiva por quase cem anos após o ocorrido. E não por acaso os mesmos atores estão ligados direta ou indiretamente às elites políticas e econômicas de Mossoró.

Seguindo claramente o enredo do evento urdido pelas narrativas jornalísticas, os roteiros das produções artísticas alimentam de forma sorrateira o culto aos atos “heróicos” contra a figura do “malfeitor”, enfatizando em cada oportunidade a determinação dos líderes e os homens que tinham disponíveis para enfrentar o bando de cangaceiros, cujo estereótipo cruel e criminoso também é duramente repetido. A narrativa feita dessa perspectiva foi reforçada e preservada tanto na Coleção Mossoroense, organizada por Vinght-Un Rosado, como no próprio imaginário popular, culminando em expressões culturais de uma memória partilhada pelo coletivo, como as exposições no museu da Estação das Artes Eliseu Ventania, o Memorial da Resistência Mossoroense, o Auto da Liberdade, e claro, no espetáculo Chuva de Bala no País de Mossoró.

A narrativa oferecida pela imprensa, porém, não foi o único registro daquele fatídico dia, nem do que veio a suceder depois. Em seu trabalho, Falcão apresenta uma pesquisa rigorosa sobre a preservação da memória de Jararaca nas práticas religiosas da cidade. Embora não divulgado pela mídia local, os boatos sobre a morte de Jararaca correram a cidade, possivelmente através de observadores anônimos que podem ter acompanhado o trajeto feito pelos policiais até o cemitério. Em uma sociedade com raízes culturais cristãs tão fortes, uma morte brutal não passaria despercebida, mesmo tratando-se de um cangaceiro, tão enfaticamente demonizado nos meios de comunicação.

Enfatizando os detalhes e construindo a ideia de que o cangaceiro foi sepultado vivo, as narrativas sobre a morte de Jararaca passam a ter um significado peculiar: a sensibilidade da morte trágica foi acompanhada pelo perdão na construção de uma teia de relações simbólicas que levaram à redenção do cangaceiro.

(FALCÃO, 2013, p. 18)

A sensação de injustiça é algo muito poderoso, especialmente em uma comunidade com uma cultura tão fortemente atrelada a crença em um poder superior bom e justo. Este poder superior é dotado de uma “perfeição”, e tal perfeição não pode aceitar injustiças como uma morte violenta de um prisioneiro que ainda seria julgado. Mesmo dominando a narrativa da Resistência, a imprensa e as elites locais não conseguiram abafar as manifestações dessas

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outras versões do confronto e para a morte de Jararaca. Mais do que isso, o cangaceiro começou a ser cultuado pela população como alguém que, depois de morto, passou a realizar milagres. Em sua pesquisa, Falcão reuniu um significativo número de entrevistas realizadas por ele mesmo com devotos de Jararaca, e outras pessoas que passavam para visitar o túmulo do cangaceiro, hoje lugar popular de visitação no cemitério São Sebastião, em Mossoró.

Ele não é santo, mas obra milagre. Aquele milagre que a gente pede, ele obra, mas santo ele não é não. Eu acho que ele ta num canto bom, porque, se a gente ta aperreada e se apega a uma pessoa e é valida, essa pessoa tá num canto bom. Só pode dizer que ta num canto bom, mas santo ele não é. (FALCÃO, 2013, 162)

O trecho é de uma das entrevistas realizadas pelo autor em sua pesquisa. Pode parecer estranho que a mesma sociedade que tão veemente condenava a própria condição de existência daquele cangaceiro, viesse eventualmente a cultuá-lo não oficialmente. A cultura cristã predominante, embora condene a idolatria em seu próprio livro sagrado, foi também a chave para essa transformação de Jararaca em objeto de culto nos meios populares. A esperança de uma redenção na hora da morte é um dos maiores impulsionadores da fé, e como o mito da crucificação de Cristo mostra, até ladrões e assassinos podem ser perdoados. Porém, o que vem “redimir” os crimes de Jararaca não é seu próprio arrependimento, e sim a barbárie cometida por seus executores.

Em uma das entrevistas feitas por Falcão, é mencionado uma lenda urbana, fortemente difundida na tradição oral regional, em que Jararaca teria aparecido para um casal e indicado o local em que escondera coisas de valor. A história deriva de um mito popular, em que o morto pode continuar apegado a objetos de quando estava em vida, apego que impediria sua alma partisse do mundo ao qual não pertence, até que o objeto seja encontrado. É possível fazer um paralelo entre esse tipo de culto e antigas práticas fúnebres egípcias, em que as famílias faziam oferendas, pediam proteção e faziam perguntas para parentes mortos. No caso de Jararaca, essas pequenas manifestações deram força para a crença no misterioso, mesmo que essas manifestações não pudessem ser comprovadas. A possibilidade de contato com esse misterioso parece bastar. Como não é uma divindade, não se exige de Jararaca que realize atos de bondade e altruísmo para que venha a merecer ser digno de culto, basta ter realizado coisas misteriosas:

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Os santos oficiais são vistos como seres transcendentais que estão a serviço dos necessitados. No entanto, recorre-se a Jararaca não por essas particularidades que os santos católicos possuem, nem por estar salvo, mas pela possibilidade de estar em trânsito: entre as condições em que morreu (a noção do mártir), fato que o torna especial nesse simbolismo construído no catolicismo popular. (FALCÃO, 2013, p. 168)

As entrevistas analisadas por Falcão em sua grande maioria se referem a devotos que se voltaram para Jararaca em situações de desespero, de urgências, “aperreadas” ou que ouvira falar de algum milagre feito por ele. Os relatos em geral envolvem alguma oferenda, como uma vela acesa no dia de finados. É interessante observar que, apesar de recorrerem a Jararaca para fazer pedidos e graças, as pessoas não tem total certeza da salvação do mesmo. Parece totalmente contraditório, mas consciente ou inconscientemente, a cultura popular, e mais do que isso, a crença popular pode confiar em ser guiada pelo mesmo motivador das elites políticas: o interesse. É deixado de lado a natureza socialmente condenável de Jararaca, além dos ensinamentos religiosos sobre a adoração, diante da possibilidade de uma graça alcançada. Da mesma forma, deixa-se de lado a brutalidade e o ataque a direitos humanos básicos, diante da construção de uma história heroica e orgulhosa. Por medo, ignorância ou conivência, a piedade pelo cangaceiro diante da sua morte violenta em nada ajudou para a censura da truculência policial na época. E talvez a própria identificação com Jararaca venha da noção inconsciente da vulnerabilidade que a população foi, e ainda é mantida por figuras de autoridade.

Não sugiro um comparativo em termos de legitimidade para a maneira como essas lembranças, seja por vivência ou pela construção e transmissão de vivência de outros, se grava na cera da memória. Mas tanto a imprensa com seu monopólio da narrativa oficial, quanto o culto a Jararaca, são exemplos de incorporação de memórias não vividas, mas perpetuadas a partir de manifestações culturais. Institucionalizada ou não, legitimada pelas elites políticas ou tidas como folclore popular, essas manifestações se incorporaram ao dia-a-dia do mossoroense no decorrer desse quase um século transcorrido após o confronto.

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2. A elaboração da Memória Coletiva sobre a Resistência Dependente do ​fazer lembrar

​ , a memória se encontra mais segura e preservada

quando marcada no maior número de pessoas possíveis, indivíduos que possam fazer lembrar através do contar, quando não pelo registro. Esse é um ciclo comum a qualquer sociedade, através do qual as identificações como grupo são fortalecidas, e ganham uma continuidade cronológica através das gerações. Mas nesse ciclo em que o lembrar depende do contar e vice versa, é preciso haver um diferencial, uma lógica na seleção das lembranças feita pelas memórias, mesmo as que duram segundos.

A ​consistência dessas memórias dependem de como elas chegam e são reproduzidas pelos indivíduos que darão a elas suas peculiaridades. Estamos propensos a melhor guardar lembranças que já nos remetam a um referente conhecido, o suporte da associação faz a marca mais consistente, durável. Dessa forma, não é difícil compreender porque um engenheiro ou físico mais facilmente se recordará de coisas relacionadas ao seu próprio campo mais do que as de outros, ainda que as lembranças em questão seja oferecida simultaneamente. Mas formação acadêmica não é o único e nem o principal ingrediente da consistência de uma memória, se este engenheiro fosse um químico e no mesmo ano em que seu país se tornou tetra campeão da Copa do Mundo FIFA, ele ganhou o prêmio Nobel em sua área de atuação, qual lembrança ficaria mais ou menos resistente em sua memória? Não acho que eu vá conseguir falar com Stefan W. Hell (alemão contemplado com o prêmio Nobel de Química em 2014, mesmo ano em que a Alemanha foi tetra campeã na Copa do Mundo sediada no Brasil) para lhe fazer esta pergunta, mas vamos imaginar que seu interesse pelo esporte seja tão intenso quanto o daqueles que seguiram suas respectivas seleções. Além de 2014 ter sido um ano muito bom para o Sr. Hell, as duas lembranças marcadas na cera de sua memória terão anos a fio de resistência ao tempo, um pelo suporte da sua área de atuação e realização profissional, outro pelo suporte do interesse e identificação como membro de uma nação esportivamente vitoriosa. No caso da memória mossoroense não é diferente. Em 1875 uma marcha foi realizada por trezentas mulheres nas ruas de Mossoró, em protesto contra o alistamento militar obrigatório. As mulheres fizeram o escrivão de refém em praça pública e rasgaram o livro de registro que recrutaria os homens mossoroenses para a Guerra do Paraguai. Mossoró também se diz a primeira cidade a libertar os escravos, cinco anos antes da lei Áurea. Embora o Motim das Mulheres e a libertação antecipada dos escravos

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sejam memórias preservadas que hoje identificam culturalmente a sociedade mossoroense, esse processo não se deu tão rápido nem tão intenso quanto a resistência ao bando de Lampião por uma questão principalmente identitária. A associação que cada membro de uma comunidade consegue fazer quando essa comunidade como um todo e seu cotidiano está sendo ameaçado, é maior do que quando algum grupo específico em seu interior (no caso as mulheres e os negros escravos) alcança algum objetivo que para eles é prioridade. Além disso, para o fazer lembrar é fundamental como a marca é refrescada na memória da população. Os veículos para tal, jornais e periódicos entre 1875 a 1977 (quando a primeira comemoração oficial em memória da Resistência foi realizada) eram territórios de homens da alta sociedade mossoroense que muito mais facilmente se identificavam com os heróis armados que teriam enfrentado o cangaceiro do que com as mulheres rebeladas contra ditames do governo ou com negros finalmente livres da escravidão. Lauro da Escóssia, autor da coluna “Lampião em Mossoró” no jornal ​O Mossoroense, João Newton da Escóssia, prefeito de Mossoró no ano do cinquentenário, membros de uma das tradicionais famílias mossoroenses, facilmente podem invocar uma memória que não é apenas regional, mas também familiar. Nesse ponto vou voltar para a composição da memória mais uma vez. Esse caráter pessoal e familiar das memórias, que parece ser uma marca muito mais sutil do que os suportes públicos da memória, vão se fazer presentes diretamente no momento em que a lembrança for buscada possuindo interferência direta na própria verdade da lembrança. Para a posteridade, o que parece ir ficando cada vez mais difícil de se ver em profundidade, é que os suportes dessa memória oficial e coletiva não deixam de ser perspectivas pessoais e familiares expressas de forma artísticas e culturais surgidas com o tempo através das lembranças construídas publicamente e atualizadas através dos anos.

Quando se procura uma verdade matemática, é preciso aceitar as lacunas como se aceita os números imaginários. No caso da história, a cultura é uma recorrente associação para o que se aceita socialmente, possuindo ou não uma comprovação científica. Podemos ver isso na mitologia de diversas religiões, inclusive a predominante no espaço em questão, a cristã, e também em lendas locais espalhadas por todo o mundo. Em Mossoró, as representações culturais vão alcançar três diferentes espaços de três diferentes formas, para guardar viva a memória da Resistência sob aspectos distintos. Primeiro, a tradição oral, perpetuada e continuamente popularizada na publicação de cordéis e folhetins em versos, exaltando a vitória da cidade, a periculosidade dos malfeitores, e também o destino de

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Jararaca nas mãos da polícia. O segundo é a preservação institucional, representado pelas narrativas e iniciativas nascidas de incentivos estatais e, por último, o culto em torno da figura de Jararaca, após a sua morte violenta.

Joaquim Crispiniano Neto é um poeta e cordelista mossoroense, nascido em 1956. É formado em agronomia e bacharel em direito com especialização em língua portuguesa. Autor do texto teatral “O Auto da Liberdade”, e também da sua versão em livro de poesias publicado no ano de 2000. Consistindo em quatro atos, o espetáculo “Auto da Liberdade” conta os grandes acontecimentos ocorridos em Mossoró, passando pelo Motim das Mulheres, a Libertação dos Escravos, o Primeiro Voto Feminino e finalizando com a Resistência Mossoroense ao bando de Lampião. O Auto da Liberdade foi o primeiro evento oficial utilizando atores profissionais para representar o desenrolar do confronto, e a segunda apresentação teatral a fazer o mesmo, sendo a primeira realizada por estudantes do colégio Diocesano, em 1977, nas comemorações do cinquentenário da batalha com o bando de cangaceiros. A última cena, que retrata a Resistência, se inicia com o seguinte verso:

Vivendo da carnaúba, Do boi, do algodão, do sal, Mais de vinte mil pessoas Moravam nesse local; Uma cidade viril, Pois apenas trinta mil Moravam na capital.

Só se pensava em três coisas: Trabalho, estudo e dinheiro. Não se via violência,

Seu povo honesto e ordeiro, Que só pensava em brilhar, Jamais pensou em enfrentar As balas de um cangaceiro. (NETO, 2015, p.74)

A Resistência foi e ainda é fonte de inspiração para versos, amplamente expresso na cultura cordelista que possui fortes nomes na cidade. Assim como nas publicações de 1927, e nas narrativas publicadas nos jornais em 1973 e 1977, o povo mossoroense aparece como um todo indiviso onde não existe divisão de classes, raças, sexos ou posições políticas. Ele é descrito apenas com adjetivos virtuosos, como “honesto”, “ordeiro”. A menção ao povo e a cidade sempre repletos de qualidades, não se dá por acaso, a memória dos artistas foi

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construída sob a influência dessas narrativas e dos costumes atrelados a cultura popular. A exaltação dos heróis da Resistência se estendeu para toda a população ao se fazer da cidade o personagem principal de sua narrativa, e ao se estabelecer uma sinonímia entre cidade e povo. Exaltar a resistência da cidade e de seu povo, encarnados, no entanto, em dados personagens das elites locais é a estratégia principal desse discurso que se perpetua inconscientemente, através das produções culturais e artísticas locais. Como a memória da cidade e de seu povo é na verdade a memória dos feitos de suas elites essas produções culturais, como o espetáculo Chuva de Balas no País de Mossoró, onde a cidade é elevada a condição de país, repõe permanentemente a centralidade de dadas famílias e de dados sobrenomes na história da cidade. Mas embora essa linha narrativa tenha sido transmitida pelos jornais, a participação dos habitantes na resistência é colocada em xeque pela própria imprensa em 1977.

A vida social da cidade não vinha sofrendo solução de continuidade. Tanto que, dia 12 daquele mês, realizava o Humaitá Futebol Cluble uma de suas elegantes festas dançantes na residência do Sr. Humberto de Aragão Mendes, prédio em que hoje reside a viúva do Dr. Lavoisier Maia à Rua Souza Machado, festa esta em que era exigida indumentária branca a rigor para os cavaleiros, enquanto as senhorinhas e senhoras se apresentavam com elegantes vestidos azul e branco. E quando melhor se encontrava a festa em seu auge de animação, começaram a circular boatos alarmantes: Lampião atacou a vila de São Sebastião (hoje Governador Dix-Sept Rosado), incendiando um vagão da Estrada de Ferro com algodão e depredando a estação ferroviária. O povo fugiu de suas residências, diziam os boatos, em sítios e matos distantes.

Estas e outras notícias haviam sido transmitidas pelo chefe da estação ferroviária daquela vila, Sr. Aristides de Freitas, que conseguiu fugir em um “troley” nos instantes em que o bando sinistro penetrava na vila. Alguns participantes da imponente festa, inclusive os diretores daquele clube esportivo procuraram dissuadir os alarmes, enquanto pais de família já se mobilizavam em busca de suas filhas para a retirada da cidade. O apito da locomotiva da ferrovia suplantava o pânico dos mossoroenses. Os trens começavam a se movimentar conduzindo famílias e quantos quisessem fugir de Mossoró para Areia Branca. (​O Mossoroense

​ , 15 de maio de 1977 - FALCÃO, 2013, p.

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Humaitá Futebol Clube foi o primeiro grêmio esportivo da cidade, a ideia de sua criação teria surgido em um encontro no sítio de propriedade de Jerônimo Rosado, que reuniu Lauro da Escóssia e José Hemetério Leite. Falcão aponta a referência a festa do Humaitá como uma tentativa de Lauro da Escóssia de aproximar os leitores da década de 70 do impacto causado pela chegada dos cangaceiros na década de 20. E embora sua perspectiva seja consistente, também serve para mostrar o envolvimento dos verdadeiros atores da narrativa oficial em diversos aspectos da vida da cidade, seja social, político ou cultural, além de ressaltar, enfim, a fuga em massa da população nas vésperas da chegada dos cangaceiros, abrindo espaço para questionamentos sobre a participação popular na resistência. É possível observar que tanto em 1927 quanto nas décadas seguintes, sempre que o tema gira em torno da resistência, os jornais sustentaram uma versão de participação popular sumariamente baseada apenas em insinuações, na “maneira de dizer” ou “escrever” textos informativos. Essa noção de que a resistência aos cangaceiros foi feita pelo povo da cidade só vai ser questionada muito recentemente, e mesmo assim perdura culturalmente em Mossoró, de forma que atualmente qualquer mossoroense pode reivindicar uma bravura idealizada a partir de uma pretensa ascendência, não diretamente dos heróis, mas das memórias recebidas, seja pela tradição oral, práticas culturais ou produção de seus artistas da terra.

Mossoró, terra querida, Berço da abolição, Orgulho do Rio Grande, Centro de Educação, Libertadora de escravos, Ex-combatente dos bravos Bandidos de Lampião!

Eu, que sou mossoroense, Trago-lhe em minha memória, Que cada vitória sua

É para mim uma glória; Cada canto é um encanto Que eu, encantado, canto Um poco da sua história! (NETO, 2015, p.74)

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Em seu folheto “A Vitória de Mossoró no Ano de 27”, reproduzido por Crispiniano Neto no Auto da Liberdade, Luiz Campos expressa sem inibições o sentimento de orgulho mossoroense. Publicado nos entornos do cinquentenário, assim como a já citada coluna de Lauro da Escóssia no jornal O Mossoroense, retrata um sentimento de identificação amadurecido em 50 anos de “lendas” e estórias contadas e sussurradas pela tradição oral, nascidas da popularização da memória oficial do evento construída pelos jornais de propriedade da elite local, além de despertar o interesse de estudo de alguns mossoroenses intelectualizados. Assim nascem novas versões daquele dia em 1927, construídos em conjunto com a própria identidade cultural de cada indivíduo, a partir de pontos de vista particulares. Como diz Maurice Halbwachs a Memória Pessoal é um ponto de vista a partir da Memória Coletiva. Não é difícil compreender a análise de Paul Riccoeur sobre o fato da consciência individual ser formada coletivamente e ter como base de apoio as experiências partilhadas com vários indivíduos, como membros de um grupo. Quando analiso os versos dos dois poetas locais, vejo que eles se aproximam das narrativas amplamente divulgadas pelos jornais em 27 e 77. Os pontos convergentes vão representar o suporte das memórias individuais que com o passar dos anos serão reforçadas pelos discursos dos indivíduos (mossoroenses) marcados como membros do grupo, e o que deveriam ser pontos divergentes são lacunas omitidas ou desconhecidas. Os versos de Crispiniano Neto, Luiz Campos, e o espetáculo Auto da Liberdade passam de simples expressões culturais institucionais da cidade e/ou expressões artísticas individuais claramente influenciada pela memória coletiva, para agentes/marcadores que vão ajudar a perpetuar bem como reconstruir essa memória coletiva diariamente.

Eram quatrocentos contos De réis, a máxima quantia E, se o prefeito mandasse O que o bandido exigia, De lá mesmo ele voltava, Então Mossoró ficava Na mesma paz que vivia.

Assim chegou o bilhete Até as mãos do prefeito, Que, quando leu, não gostou Do que dizia o sujeito. Não aceitando a proposta, Enviou-lhe a resposta

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Mas menos desse jeito:

“Seu Virgulino Ferreira, Se está a precisar

Destes quatrocentos contos Eu posso até arranjar, Mas não mande portador, Que só entrego ao senhor Se acaso vier buscar”. (NETO, 2015, p. 85)

A licença poética usada para representar as palavras de Rodolfo Fernandes, é um bom exemplo de como essas manifestações culturais vão preenchendo lacunas presentes na narrativa oficial, contribuindo para sua reprodução e sustentação. As palavras exatas não importam para a intenção do texto, nem mesmo a maneira como o prefeito recusou o pedido de Lampião; o imaginário popular, cativado pelo artístico, vem a ser condicionado a guardar o núcleo central dessa memória: os cangaceiros foram recusados e afrontados pela valentia/ousaria da cidade encarnada na figura do prefeito Rodolfo Fernandes, que no ato de valentia representava todo o povo da cidade. Como​agentes de recordação

, essas expressões

culturais tem o papel de reforçar a memória já existente, mas também o de introduzi-la onde ainda não existe. Longe de ser guiada apenas por narrativas pré-construídas, cada autor, cordelista, poeta adiciona suas próprias perspectivas, formando um quadro variado de “opções” para “substituir” os pontos nublados da memória, acabando por incentivar o reconhecimento popular da história oficial através de sua própria perspectiva. Novos detalhes vêm a ser somados à trama, que ganha assim mais colorido, ganha singularidade, ao mesmo tempo que repõe em linhas gerais o enredo urdido para o acontecimento pelas narrativas oficiais. Se décadas atrás os mossoroenses se viam como uma cidade laboriosa e pacífica, os mossoroenses de hoje contam que, mesmo naquela época, a cidade já tinha o sentimento bravo e guerreiro do qual são herdeiros até hoje. Falcão, comenta essa construção da memória e seus agentes de recordação em Mossoró nos encontros e desencontros das versões da morte de Jararaca.

Quanto à construção e circulação das narrativas, elas se inserem em um contexto específico para a consolidação das memórias sobre os acontecimentos de 1927, como é o caso das inúmeras impressões que

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a Fundação Vingt-un Rosado faz das obras sobre a invasão dos1 cangaceiros a Mossoró, constituindo-se em um lugar de produção e reprodução de discursos sobre a resistência.

(FALCÃO, M.L.. ​Jararaca​)

A pesquisa de Falcão sobre a vida de Jararaca, no que gira em torno da resistência, corrobora o primeiro parágrafo dos versos de Crispiniano Neto, apresentados no Auto da Liberdade, chamando o bando que teria invadido a cidade de “cinco bandos num só bando”. A cidade e seu povo seriam mais heróicos ainda pois não enfrentaram apenas o bando de Lampião mas a conjugação criminosa dos bandos chefiados pelos cangaceiros Massilon, Jararaca, Sabino e Lampião, já que Sabino e Massilon não seriam cangaceiros do bando de Lampião. Essa distinção presente nas versões eruditas do evento, porém, é pouco ou não mencionada na maior parte das narrativas populares. O apego ao mais conhecido nome do cangaço ajuda a enaltecer os heróis que resistiram a ele, dessa forma, nenhuma atenção é dada a esta particularidade, mesmo o “título”, A Resistência de Mossoró ao Bando de Lampião, já desencoraja questionamentos.

A narrativa poética em torno do combate propriamente dito também segue uma linha bastante coesa com a narrativa montadas entre 27 e 77, tanto pelo ​Mossoroense,

​ como

posteriormente preservadas na Coleção Mossoroense. As torres das igrejas de Mossoró, que na época possuía três templos somando quatro torres, foram um item decisivo na batalha, segundo as produções artísticas e jornalísticas, levando, inclusive, Lampião a quase desistir do confronto, e por fim preferindo não entrar pessoalmente na cidade. O posicionamento estratégico, porém, não é a única razão de receio apontada pela narrativa popular.

Lampião ficou cismado Porque três templos havia… Três igrejas, quatro torres; Outra que ele não sabia, A padroeira benquista Era a madrinha da vista, Senhora Santa Luzia!

A notícia era chocante

1 A Fundação Vinght-un Rosado tem como objetivo promover a produção historiográfica e cultural no Oeste

Potiguar. Sendo controlada por membros da família Rosado, parte da elite local, que controla a política de

Mossoró há décadas, a instituição muito contribuiu para a consolidação de uma memória sobre a invasão, e

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Pra quem tinha um olho só, Mexer com Santa Luzia Pra ele era um grande nó. Lampião estava triste, Com raiva… Quase desiste De invadir Mossoró. (NETO, 2015, p. 86.)

O forte culto a Santa Luzia, assim como a extensão da influência religiosa fica bastante clara, além, é claro, a exaltação da cidade mais uma vez, indiretamente, através do julgamento divino que os considera merecedores de proteção. Na verdade, a identificação religiosa acaba por ser mais forte do que a própria resistência, remetendo a fundação da cidade2​, e ao remeter ao receio do cangaceiro a poderes divinos, os versos revelam mais sobre

a população mossoroense que sobre o cangaceiro. A crença popular, seja ela em um figura política ou religiosa, é uma fonte de poder colossal. Nesse caso, mexer com Mossoró era “Mexer com Santa Luzia”. Da mesma forma, persiste o acordo das narrativas poéticas, em especial as que guiam os espetáculos, como os versos de Crispiniano Neto para o Auto da Liberdade, que servirão como agentes para constantemente pressionar o marcador dessa lembrança na cera das gerações por vir, no que se refere ao desenrolar do confronto e os regozijo pela vitória justa alcançada.

Frente à casa de Rodolfo, Na Alberto Maranhão, Tinham montado trincheira Com fardo de algodão. Se jogasse gasolina Com sua fúria assassina Estava feita a ruína Da nossa população! (...)

Nisso, a cobra, o Jararaca, Deslizou no chão com jeito Para pegar de Colchete Arma, grana e guarda-peito. Lá da torre alguém notou, Manuel Alves gritou, Manuel Duarte atirou Vazando o pulmão direito.

2 Mossoró começou com a concentração de moradores nos arredores de uma capela de Santa Luzia,

construída por Antônio de Souza Machado na fazenda com o nome da santa. O povoado eventualmente se

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Quatro tiros de pistola Sabino deu para o ar. Era o sinal de comando Pra o bando se retirar. (...)

Dali Lampião correu Em busca do Ceará, Onde os poderes covardes Tratavam-lhe a bolo e chá. Covarde, o governador, Padre “Ciço”, um protetor, E o povo lá do setor Não era como o de cá. (NETO, 2015, Pp. 88 a 91)

O prefeito Rodolfo Fernandes, dono do jornal que elaborou a narrativa oficial sobre o evento, foi transformado no herói lendário, no ator principal da resistência. Tanto nas narrativas jornalísticas, como nas representações culturais artísticas, como a peça amadora de 1977 e depois a apresentação profissional institucionalizada a partir do Auto da Liberdade em 1999, a figura do prefeito, do qual descendem ainda nomes centrais na estrutura política do município, é alçado à condição de grande mentor e líder da resistência. A casa de Rodolfo Fernandes, uma das trincheiras no confronto, ficou conhecida como “Palácio da Resistência”, e eventualmente veio a se tornar a sede do poder executivo da cidade, enquanto o poder legislativo homenageia o ex-prefeito mossoroense através do nome da Câmara Municipal, “Palácio Rodolfo Fernandes”. Nessas narrativas o prefeito encarna e se torna a metonímia de todo o povo da cidade. Sua coragem, bravura, valentia, heroísmo representam qualidades partilhadas pela cidade e seu povo. Essa identificação entre prefeito e povo, prefeito e cidade facilita a aceitação popular dessa memória, incentiva o reconhecimento como sendo sua uma memória que é das elites locais. A memória que se torna não apenas local, mas estadual ao se contrapor a atitude das autoridades do Rio Grande do Norte em relação ao cangaço, representadas nas figuras do prefeito, do padre, do militar e aquela adotada pelas autoridades do estado vizinho, o Ceará que teriam recepcionado e acoitado o cangaceiro em fuga da derrota em Mossoró. “E o povo lá do setor, não era como de cá”, “guerreiro”, “resistente”. O final crítico a aclamação do cangaceiro no Ceará, contradiz com o resultado dos eventos

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posteriores a Resistência, às circunstâncias da morte de Jararaca, que vieram a lhe dar um status de importância na cultura religiosa popular.

Ferido e capturado, Jararaca veio a dar uma entrevista exclusiva a Lauro da Escóssia, que foi novamente publicada no Estado de São Paulo em 1973, e revivida mais uma vez às vésperas das comemorações do cinquentenário. ​O cangaceiro veio a óbito em circunstâncias irregulares. Em 1970, Raul Fernandes publicou “A Marcha de Lampião: Assalto a Mossoró”, reunindo informações a partir de policiais e funcionários da delegacia que estavam presentes na escolta de Jararaca, da prisão para o cemitério São Sebastião. A premeditação do assassinato do cangaceiro fica clara nas entrevistas cedidas a Fernandes, e citadas por Falcão. As circunstâncias violentas da morte de Jararaca se mantiveram preservadas na tradição oral, com pouca ou nenhum suporte de recordação além da oralidade por um tempo considerável, e com uma diversidade de perspectivas apresentadas a respeito de sua morte, até ser incorporada pela própria narrativa oficial e, curiosamente, por um descendente do prefeito heroico. .

No dia 19 à madrugada,

A noite estava escura e tenebrosa, O tenente em condução em preparada, Transportou a fera vil e asquerosa; Na estrada Jararaca quis correr,

Foi pior, que mais tarde veio a morrer!

Pesada luta a fera então travou E quase que fugia dessa vez

Se não fora um soldado que o agarrou Com força destemida e altivez

Jararaca foi morto de punhal E enterrado num podre lamaçal.

CASCUDO, Coleção Mossoroense - FALCÃO, 2013, p.49)

Se a postura quanto a figura do cangaceiro não ficasse clara com o “vil” e “asquerosa”, nomear os soldados que mataram o prisioneiro como portadores de força e “destemida altivez” demonstra a dualidade de vilão e mocinho que os versos pretendiam sugerir. Mais do que isso, se propõe uma outra perspectiva para a morte de Jararaca, e ao dizer isso ressalto novamente que não me refiro ao decorrer dos fatos, e sim as narrativas que foram urdidas a partir do evento. Cascudo não se intimida em isentar os soldados de qualquer

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julgamento em relação a morte de Jararaca, lhes dando legitimidade para o assassinato. Ao mesmo tempo, sugere que a razão da execução seria a tentativa de fuga “na estrada”. Depoimentos reunidos no livro de Falcão, também retirado das pesquisas de Raul Fernandes indicam a sugestão em falas dos policiais para Jararaca acreditar que estava sendo levado para Natal, percebendo depois que o cemitério não fazia parte da “estrada” para a capital. Não é surpreendente a perspectiva adotada tanto por Raul Fernandes, um descendente do prefeito heroico tentando lidar com o evento que permanecendo na memória popular ameaçava de mácula a memória de seu próprio ascendente, como por Câmara Cascudo, que sempre escreveu a história adotando o ponto de vista dos vencedores e/ou poderosos. Mas a memória coletiva, mesmo quando direcionada por ​agentes de lembranças previamente moldados, pode tomar direções surpreendentes quando em contato com a cultura de massa. Embora os versos sugiram que Jararaca teria morrido em decorrência de uma tentativa de fuga, a compreensão popular teve sua própria leitura fortalecida na superstição local.

No terceiro capítulo do livro biográfico sobre Jararaca, Falcão foca sua análise na construção do culto ao cangaceiro, e como parte da metodologia, entrevista devotos e curiosos que visitam o túmulo de Jararaca no dia de finados para pedir graças, ou apenas para conhecer. Alguns contam histórias pessoais a respeito de milagres alcançados, ou de histórias de pessoas próximas com quem tiveram contato direto ou indireto.

Diante desses conflitos que existem nesse espaço, as pessoas que vão agradecer ou pedir algo a Jararaca escutam as falas dos que veem Jararaca como bandido sanguinário, que, por conta de sua condição de criminoso, não merece a salvação. Esses devotos não precisam rebater essas acusações, pois suas diferentes formas de narrar a trajetória de Jararaca que fazem com que a memória sobre suas façanhas no cangaço ou depois de morto não sejam esquecidas.

Ressignificadas, essas narrativas ganharam espaços públicos, quer no Cemitério, no Museu Lauro da Escóssia ou nos escondidos recantos dos painéis do Memorial da Resistência, estão presentes na busca de manter a memória oficial.

(FALCÃO, 2013, p. 176)

A morte violenta deu vazão ao surgimento de lendas urbanas, em uma sociedade com grande influência de superstições. Relatos da aparição do morto, ou mesmo de sonhos

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relacionados a sua morte, com certeza ajudaram a cimentar a base da crença que até hoje enche o túmulo do cangaceiro de flores, velas e outras oferendas. Mas nem todos os devotos se encaminham até o túmulo de Jararaca a procura de auxílio, como mostram as entrevistas feitas por Falcão. Uma em especial, trata-se de uma senhora que rezava no túmulo do cangaceiro, mas não para pedir graça para si, e sim para pedir perdão pela alma dele.

Essa inversão é peculiar, pois ninguém se relaciona com um santo, como São Francisco, na intenção de ajudá-lo, uma vez que a salvação oficial dos santos não é questionada.

(FALCÃO, 2013, p. 168)

Não se pode ter um santo sem a certeza de sua salvação, e esse tratamento peculiar com Jararaca apenas atesta a informalidade de seu culto. Para além disso, a narrativa oficial já havia comprometido a igreja com “o lado” da resistência, na figura do monsenhor Luiz Ferreira Cunha da Mota, figura de grande destaque na cidade que teria tido papel central na resistência ao bando de Lampião, e que posteriormente viria a ser prefeito de Mossoró, e depois deputado estadual. Mesmo sem os incentivos da narrativa do confronto, se manifestando essencialmente no imaginário popular, o culto a Jararaca sobrevive até os dias de hoje, atraindo devotos como os espetáculos e exposições atraem visitantes.

Em grande medida, a História Comparada possui uma aplicação flexível a necessidade historiográfica. Comparar estabelece a possibilidade de uma comunicação entre histórias antes afastadas. Dois aspectos irredutíveis se mostraram imprescindíveis para essa modalidade historiográfica: certa similaridade entre os fatos, e certas dessemelhanças no ambiente em que a similaridade ocorre. Como seu campo mais amplo, a História Comparada estabelece uma dinâmica entre a semelhança e a diferença, concebendo a análise através da analogia, sem a qual não é possível construir uma comparação autêntica dessa modalidade. Para fazer o comparativo, segundo a lógica dos conceitos adaptados de Barros, é preciso uma memória que de alguma forma possa ser ligada a sua.

Jararaca, para o povo virou “santo”, Mas é fácil entender esse mistério, Porque quem o matou covardemente Indefeso, não foi meu povo sério; Foi a própria polícia nas caladas

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