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Maracatu Atômico síntese da transformação contemporânea expressa no Mangue

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Academic year: 2021

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31.º Encontro Anual da ANPOCS

Seminário Temático 15 – Economia-política da cultura

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Título do trabalho:

“Maracatu Atômico” – síntese da transformação contemporânea

expressa no “Mangue”

Glaucia Peres da Silva

Mestranda do Depto de Sociologia/USP

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A gravação da canção “Maracatu Atômico”, de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, pelo grupo Chico Science e Nação Zumbi em seu segundo disco, “Afrociberdelia” (1996), lançado pelo selo Chaos ligado a Sony Music, é um momento chave para se compreender as articulações entre o que ficou conhecido como “Movimento Mangue” e a indústria fonográfica, cuja análise possibilita discutir as transformações do mundo contemporâneo nos termos da música popular. Cabe ressaltar que essa canção não fazia parte do repertório da banda e só foi gravada após um acordo com a gravadora, visto por alguns membros do grupo como uma exigência. Para entender as razões desse fato, é preciso conhecer um pouco melhor como se iniciou essa relação.

O “Mangue” foi criado em Recife, cidade que contou com a experiência de criação de uma gravadora local ainda nos anos 70, chamada Rozenblit, que durou alguns anos, e também de um selo independente, comandado pelo músico Lula Côrtes em parceria com sua esposa, que tentou empreender projetos alternativos na cidade. Nesse sentido, a idéia de desenvolver o “Mangue” como um movimento cultural que permitisse a profissionalização de várias bandas locais, mesmo que em um mercado dito “independente” ou “alternativo”, não era estranha a seus articuladores. Considerando também que os três referentes identitários desses articuladores eram os movimentos punk e hip-hop, além do movimento negro baiano expresso no samba-reggae, a aproximação do “Mangue” à idéia de uma atuação em um mercado “independente” se torna ainda mais clara.

O primeiro empreendimento do grupo nessa direção foi a tentativa de lançamento de uma coletânea chamada “Caranguejos com cérebro” pelo selo “Rock Express”, ligado a uma loja de discos homônima administrada por Paulo André (futuro produtor do grupo Chico Science e Nação Zumbi), no início dos anos 90, que reuniria trabalhos das bandas mundo livre s/a (formada em 1984), Loustal (formada em 1989), Bloco Afro Lamento Negro (formado no final dos anos 80) e Chico Science e Nação Zumbi (recém-formada a partir de experimentos musicais conjuntos das bandas Loustal e Bloco Afro Lamento Negro). Embora a coletânea não tenha sido lançada por problemas administrativos do selo, que nunca se firmou no mercado fonográfico, as

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canções gravadas foram reunidas em uma fita demo, enviada para a imprensa e para as principais gravadoras atuantes no Brasil, junto com um press-release.

Nessa época, os articuladores do “Mangue” organizavam festas na cidade do Recife, que freqüentemente contavam com divulgação na imprensa local. Ao enviarem o press-release e a fita demo da coletânea “Caranguejos com cérebro” à imprensa local, esta transformou o texto em manifesto. Isso ajudou a torná-los conhecidos, porém, ainda não tinham tido efetivamente seus trabalhos divulgados o suficiente para se profissionalizarem no mercado fonográfico. Foi, então, que criaram uma espécie de “book do Mangue” em 1992, com recortes de jornais, cartazes e panfletos das festas que organizavam, e uma segunda versão do press-release já transformado em manifesto. Com este novo impacto na imprensa, em janeiro de 1993, a MTV levou ao ar um programa que tinha a intenção de “mapear” a música que estava sendo feita no Brasil, e entrevistou Chico Science (do grupo Chico Science e Nação Zumbi) e Fred 04 (do grupo mundo livre s/a), divulgando o “Mangue” em rede nacional. Dois meses depois, José Teles, jornalista pernambucano, escreveu uma matéria para a revista Bizz, sob o título “Da lama para a fama - Recife inventa o mangue-beat”, em que afirma que o grupo formado pelas bandas “Mangue” “já apareceu na MTV e agora ameaça sair de vez da lama com seu som, sendo ouvido Brasil afora através da gravadora independente Tinitus. Pena Schmidt quer o pessoal do mangue na sua próxima coletânea”.1 Um mês após essa divulgação, aconteceu em Recife a primeira edição do festival “Abril Pro Rock”, organizado por Paulo André, em que as bandas Chico Science e Nação Zumbi e mundo livre s/a se apresentaram. Após o festival, a equipe da filial da gravadora Sony em Recife enviou uma fita demo das bandas para a matriz no Rio de Janeiro, que se interessou pelo material e foi assistir uma apresentação dos grupos em Recife. Depois, teriam dito que gostariam de poder vê-los tocando no sul do país. Foi quando se organizaram para fazer apresentações em São Paulo, onde participaram também do programa “Fanzine”, da TV Cultura, e foram matéria do jornal Folha de São Paulo, e Belo Horizonte, o que rendeu a contratação do grupo Chico Science e Nação Zumbi pela gravadora. Alguns meses depois, o grupo mundo livre

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s/a teria sido contratado pelo selo “Banguela”, ligado a Warner. Assim, percebe-se a importância da intermediação da mídia como acesso ao mercado fonográfico.

Entendo que a divulgação na mídia local ajudou a formatar o “Mangue” como um produto comercial ao transformar o press-release em manifesto, e permitiu que as mídias especializadas entrassem em contato com esse movimento cultural. Como esses veículos segmentados de comunicação servem como um parâmetro para os mercados específicos, ter o trabalho divulgado nesses veículos significa, para as bandas, existir no mercado fonográfico. Se as mídias local e segmentada mostraram interesse pelo novo produto musical, restava à gravadora testar seu potencial comercial nas mídias nacionais não segmentadas, o que os forçou a ir a São Paulo e Belo Horizonte. Somente após essa aceitação da mídia em três diferentes âmbitos é que as bandas foram contratadas. Cabe aqui chamar a atenção para o que me parece ser uma mudança na atuação da mídia. A partir dos anos 90, parece que a segmentação da mídia forma uma espécie de “escada” que permite, por um lado, testar a abrangência de um produto musical, e por outro, mostrar um caminho possível de acesso ao mercado fonográfico.

A contratação das bandas “Mangue” por grandes gravadoras foi parte de uma “renovação” do casting das gravadoras ou da ampliação do mercado para novas bandas pois, no início dos anos 90, outros novos artistas brasileiros que tocavam pop foram contratados. Por exemplo, a gravadora Sony, por meio do selo Chaos, contratou os grupos Skank (MG), Gabriel, o Pensador (RJ), Chico Science e Nação Zumbi (PE), e Jorge Cabeleira e o dia em que seremos todos inúteis (PE), e o selo Banguela, ligado a Warner, contratou os grupos Raimundos (DF), e mundo livre s/a (PE).

Com relação a esse cenário, é possível pensar que o tipo de música apresentado pelas bandas “Mangue” não era exatamente exclusivo, entendendo que outras bandas recém-contratadas pelas gravadoras também apresentavam uma música que podemos chamar de rock com sotaque nordestino, caso dos grupos Raimundos, que toca “forrócore” (forró com hardcore), e Jorge Cabeleira e o dia em que seremos todos inúteis, cujo primeiro sucesso foi a canção “Carolina

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(pout-pourri)”, que incluía trechos da canção “Xote das Meninas” (1953), de Luiz Gonzaga. Desta perspectiva, podemos pensar que o “Mangue” como movimento cultural era menos importante do que o tipo de música que as bandas “Mangue” faziam, que estava em sintonia com o que as gravadoras procuravam.

Após a contratação das bandas e lançamento dos primeiros discos em 1994, os resultados em vendas foram bem desiguais quando se compara o desempenho das bandas “Mangue” e as outras contratadas na mesma época, citadas acima. Embora eu não tenha ainda os números de vendas de cada disco, depoimentos das duas bandas afirmam que as expectativas das gravadoras foram frustradas. Apesar do grupo Chico Science e Nação Zumbi ter participado de diversos programas da mídia nacional não segmentada, depoimentos do produtor Paulo André, que também passou a produzir a banda após sua contratação pela gravadora, afirmam que eles não conseguiram tocar nas rádios. Diferente das outras novas bandas daquela época, que tinham músicas mais facilmente identificadas ao rock ou ao pop, o que permitiu uma rápida aceitação por parte das rádios segmentadas, as bandas “Mangue” eram tidas como “muito regionais” para as rádios rock, e “muito rock” para as rádios de música regional. Nesse sentido, as bandas não conseguiram vender seus discos localmente, pois não havia nenhum outro meio de divulgação de suas músicas a não ser as notícias nos jornais locais, e também não venderam em outros lugares do país, mesmo contando com uma canção na trilha sonora de uma novela da Rede Globo. Os discos tinham sido distribuídos para as lojas e devolvidos para as gravadoras, e o caminho percorrido pelos discos não seguiu a trilha aberta pela imprensa, o que parece ter sido o oposto do acontecido com os outros grupos recém-contratados.

Se este não foi o caminho seguido pelo “Mangue”, como esperado, de que maneira as bandas “Mangue” conseguiram lançar mais discos e permanecer ativas no mercado fonográfico? Entendo que esse resultado foi conseguido por duas razões. A primeira se refere à forma de trabalho entre a banda e a gravadora.. Se a década de 90 foi marcada pela dinamização do mercado brasileiro de discos, em que se deu a fragmentação da produção na indústria do disco e a

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autonomização da esfera da produção artística, isso se nota no fato da banda Chico Science e Nação Zumbi ser contratada da Sony mas ter Paulo André como produtor, que era responsável pelo festival “Abril Pro Rock”, e da banda mundo livre s/a também trabalhar com um produtor autônomo, Guti, mesmo depois de contratados pela Banguela. Assim, me parece claro que a existência de um produtor autônomo que gozasse da liberdade de ação que eles tiveram só poderia existir em tempos de fragmentação do processo produtivo da indústria fonográfica. No caso específico do grupo Chico Science e Nação Zumbi, após um ano do lançamento do primeiro disco “Da lama ao caos” (1994) e ainda com poucas vendas, Paulo André organizou a primeira turnê internacional para a banda, que passou pelos Estados Unidos e quatro países da Europa (Bélgica, Alemanha, Suíça e Holanda), fazendo vinte e um shows em cinqüenta e quatro dias, incluindo uma apresentação ao lado de Gilberto Gil no Summer Stage, do Central Park (Nova Iorque). Para esta excursão, o produtor conseguiu que o governo pagasse as passagens aéreas, e não contou com o apoio da gravadora, que achava muito cedo a banda fazer uma turnê internacional, uma vez que ainda não tinha conseguido conquistar o mercado nacional. Os contatos com a produção dos festivais internacionais onde eles tocaram foram feitos diretamente por Paulo André, que dizia trabalhar em seu quarto com um aparelho de fax, porque ele conheceu um jornalista que trabalhava para revista “Afro-pop worldwide”, em um dos shows que a banda fez na Bahia no final de 94, e ganhou dele o “Afro-pop worldwide listeners guide”, um guia para amantes da chamada world music, com endereço de festivais, rádios e casas noturnas nos Estados Unidos e Europa. Assim, segundo Paulo André, ele percebeu que o diferencial da banda em relação às outras que haviam sido contratadas na mesma época pelas grandes gravadoras estava no fato das bandas “Mangue” terem potencial internacional.

Assim, chegamos a segunda razão da permanência das bandas “Mangue” no mercado fonográfico. Porque já existia um mercado formado para as músicas que se enquadravam no rótulo “world music” é que Paulo André pode entrar em contato com festivais, rádios, gravadoras e casas noturnas da Europa e Estados Unidos que se interessavam por esse tipo de música e tentar

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inserir a banda nesse mercado. Sem a existência da world music, não seria possível pensar em uma turnê internacional para uma banda não consagrada no mercado interno. Devemos notar que esse mercado para a world music não está referido a qualquer lugar, mas especificamente ao centro do sistema mundial, ou ao Ocidente. Mas por que as bandas “Mangue” teriam potencial internacional como world music? Para tentar sugerir uma resposta, farei uma seqüência de hipóteses que me parecem plausíveis.

Podemos considerar que, nas últimas décadas, com o início de um período chamado por alguns autores de pós-colonial, houve um processo migratório no sentido inverso ao que acontecia durante o período de colonização, qual seja, da periferia para o centro. Esses grupos de migrantes nos territórios de suas antigas metrópoles formaram comunidades “estrangeiras” que não cessaram seus contatos com seus países de origem, o que permitiu que as novas gerações nascidas já em terras “estrangeiras” adotassem a música de seu alegado país de origem como forma de auto-afirmação identitária e cultural. A existência desses grupos de imigrantes nos países centrais é encarada pelos governos desses países como um problema político e cultural para o qual eles ainda não encontraram uma solução. Nesse sentido, a visibilidade da música do outro no mercado local ocidental criou a necessidade de se organizar um espaço dentro da indústria cultural para abrigar essas diferenças, sem que elas colocassem em risco as próprias culturas nacionais dos países do centro, o que poderia aparecer como uma solução paliativa, porém necessária para manutenção de uma certa organização social que se aproximasse do que existia durante o período colonial. Assim, se o Ocidente formou sua identidade sempre em relação ao outro colonizado, não-ocidental, do ponto de vista do Ocidente, a possibilidade de mistura entre este outro e o sujeito ocidental colocaria em risco a própria identidade ocidental, que precisaria ser preservada. Se as trocas culturais entre os grupos imigrantes e seus alegados países de origem não se dão apenas de maneira pontual e controlável, mas contam com suportes materiais com alto poder de difusão como as ondas de rádio, transmissões de TV via satélite, além dos discos que podem ser tocadas em festas, etc., então, a criação de um espaço dentro da indústria cultural que restringisse

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a difusão desses produtos culturais seria uma alternativa que minimizaria os riscos para a identidade ocidental, pois restringiria as possibilidades de mistura entre o que é e não é ocidental ao abrigar qualquer tipo de “hibridização” sob o rótulo da world music, ao mesmo tempo em que este enquadramento garantiria a permanência dos elementos característicos do “outro” em relação ao ocidental, qual sejam, o exótico, não racional, primitivo, que estariam marcados na música pelo uso de instrumentos percussivos, outras harmonias, etc.

Isto teria acontecido durante um período em que as trocas econômicas internacionais se intensificaram, o que gerou um crescimento no mercado internacional de música, assim como em outros mercados também, que impulsionou, por sua vez, a criação e/ou ampliação de mercados locais, que passaram a comercializar mais artistas e mais tipos de música diferentes, transformando suas canções em mercadorias musicais. Do ponto de vista de quem está no centro, esse processo é entendido como um aumento na diversidade cultural, pois novos produtos são entregues ao mercado internacional de música, e do ponto de vista de quem está na periferia, existiria um perigo de homogeneização cultural porque as músicas teriam de se adaptar às regras do mercado internacionalizado para poderem existir como mercadoria. Nesse sentido, não se trataria de discutir “homogeneização cultural” ou preservação da diversidade cultural, mas apenas de compreender que se trata da ampliação de um mercado internacional, que intensifica a troca entre aqueles que pertencem a esse mercado.

Se a interpretação desse panorama internacional estiver correta, podemos entender que as bandas “Mangue” foram vistas como passíveis de terem seus trabalhos enquadrados como world music porque, do ponto de vista do centro, do Ocidente, suas músicas apresentavam uma certa mistura do que é tido como exótico, primitivo, como a percussão do maracatu, por exemplo, com o que é entendido como moderno, como as guitarras. Com isso, não quero afirmar que as músicas “Mangue” são marcadas pela mistura ou fusão de ritmos, apenas indicar que esta é uma leitura possível da música que fazem e que sem ela, não teria sido possível seu enquadramento como world music e, portanto, as turnês internacionais para as bandas. A importância desse

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enquadramento internacional como world music para as bandas “Mangue”, principalmente para o grupo Chico Science e Nação Zumbi, está no fato de que, por possibilitar uma inserção no mercado internacional, permitiu que a banda tivesse uma nova fonte de renda que não dependesse exclusivamente dos mercados nacional e local.

Temos de considerar também que a busca de inserção internacional tinha um outro interesse complementar que era o de diferenciar as bandas “Mangue” no mercado nacional. Fazer uma rápida passagem pelo mercado internacional, no espaço da world music, conferiu uma legitimidade às bandas “Mangue” frente às gravadoras, pois não é qualquer artista brasileiro que consegue ter seu trabalho ouvido no centro do sistema mundial, mesmo que seja sob o rótulo de world music, o que reforçou o discurso “Mangue” de distinção no mercado nacional. Embora esse rótulo tenha permitido um acesso facilitado dos artistas brasileiros ao mercado internacional, ainda assim, era preciso fazer uma música que pudesse ser vista como brasileira antes de ser pop ou rock, ou ainda eletrônica, o que não era o caso das outras bandas recém contratadas pelas gravadoras. Se o apoio da mídia local e nacional não foi suficiente para aumentar as vendas dos discos, nem mesmo os diversos shows que fizeram, era preciso que a gravadora mudasse a estratégia de atuação junto à banda para conseguir efetivamente aumentar suas vendas no mercado brasileiro, para a gravadora cobrir, de fato, os investimentos feitos. Se até então se trabalhava para que o produto musical tivesse seus custos cobertos pelas vendas em território nacional, caracterizando sua exportação como uma garantia de lucro, esse não foi o caso das bandas “Mangue”. Agora, foi o investimento direto da banda e de seu produtor em um mercado internacional que, embora possa não ter trazido lucro imediato para eles, possibilitou que a gravadora vislumbrasse maior lucratividade no trabalho com a banda em território nacional e, conseqüentemente, uma profissionalização para a banda e seu produtor, que teriam maior garantia de renda ao lado da gravadora.

Nessa nova etapa do trabalho conjunto da gravadora, da banda e seu produtor, foi pensado um novo disco para o grupo Chico Science e Nação Zumbi, que seria lançado em 1996. Nesse

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novo projeto, era necessário que a banda gravasse alguma canção que tocasse no rádio, que criasse um hit que gerasse a venda dos discos. Foi quando a gravadora sugeriu à banda que gravasse a canção “Maracatu Atômico”, de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, que ainda não tinha entrado no repertório, mas que era facilmente associável ao trabalho que vinham desenvolvendo por reforçar a presença do maracatu em sua musicalidade, por ter sido gravada pela primeira vez por Gilberto Gil, que já faria uma participação em uma outra faixa do novo disco da banda, e por ser uma canção que já tinha alcançado certo sucesso e que teria maior acesso às rádios. Segundo Paulo André, a gravação dessa canção foi uma decisão conjunta das três partes envolvidas, banda, gravadora e produtor, mas para alguns integrantes da banda, isso apareceu como uma imposição da gravadora que teria dificultado ainda mais o relacionamento entre as partes.

De qualquer forma, a canção fez parte do segundo disco da banda, “Afrociberdelia” (1996), o que permitiu que a gravadora aproveitasse a proximidade de Gilberto Gil para aumentar as associações possíveis entre uma banda em amadurecimento e um artista consagrado, e também assim, entre o “Mangue” e a “Tropicália”, e conseguir espaço nas rádios com uma música que já era sucesso. Além disso, dos três videoclipes feitos para o segundo disco, um contou com a participação de Gilberto Gil (da canção “Macô”) e outro foi da canção “Maracatu Atômico”, o que garantia que tudo isso fosse acessível também pela TV. Do ponto de vista de alguns membros da banda, a gravadora queria transformá-los em um grupo de “maracatu pop” para o “Mangue” ser o Axé Music de Pernambuco. Mas eles não queriam ser um grupo de maracatu, nem ser tratados como seguidores da Tropicália. Por isso, reafirmam constantemente que nem a imprensa, nem as gravadoras entenderam o que faziam e o que era o “Mangue”. Entretanto, foi esse aparente qüiproquó que ajudou a projetar mais a banda, a associá-la ainda mais ao maracatu, a estimular mais o interesse dos jovens pernambucanos pela cultural local e a transformar o maracatu em uma “moda”.

É importante ressaltar que esse mesmo percurso no mercado fonográfico foi feito pelo grupo Mestre Ambrósio, considerado a terceira banda “Mangue” pela imprensa nacional. Esse

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grupo conseguiu se projetar localmente, na cidade de Recife, ao fazer uma temporada de quatro meses seguidos no Bar Soparia, a casa noturna que estava na moda na cidade na primeira metade dos anos 90. Em 1995, gravaram seu primeiro disco pelo selo “Rec-Beat”, administrado pelo produtor Guti, que também trabalhava com a banda mundo livre s/a, sem se ligar a nenhuma grande gravadora para fazer sua distribuição. Nessa época, Paulo André tinha acabado de voltar da turnê na Europa e Estados Unidos com o grupo Chico Science e Nação Zumbi, e embora não pudesse trabalhar como produtor para o grupo Mestre Ambrósio, passou a eles todos os contatos dos festivais com quem tinha trabalhado no exterior. Sem produtor, a banda fez diretamente o contato com os festivais e realizou sua primeira turnê internacional em 1996. Quando voltaram, passaram uma temporada em São Paulo, onde fizeram algumas apresentações e para onde decidiram se mudar definitivamente no ano seguinte. Somente no primeiro semestre de 1998 é que a banda foi contratada também pelo selo Chaos da Sony e lançou o seu segundo disco, “Fuá na casa de Cabral”. Portanto, mais uma vez, a passagem pelo espaço da world music no centro do sistema mundial não só se deu independentemente da atuação de uma grande gravadora, como também antes de sua contratação por ela e da conquista de um mercado nacional. De maneira geral, esse mesmo percurso tem sido percorrido por diversas bandas novas surgidas em Pernambuco.

Entendo que esse tipo de estratégia mercadológica, de acessar primeiro o mercado internacional para poder se legitimar e, então, alcançar o mercado nacional, seria uma marca distintiva de nosso tempo presente. Não quero afirmar que não existiam possibilidades de transitar no mercado internacional anteriormente, mas apenas frisar que essa movimentação simultânea nos três âmbitos – local, nacional e internacional – também segue esta dinâmica atualmente. Assim, o “Mangue” existe como movimento cultural porque esse trânsito foi possível não para um ou outro artista em particular, mas para uma série de artistas e bandas que surgiram em Recife a partir da década de 90, e porque são desse e não de outro lugar, puderam criar uma música que coubesse no rótulo world music, que é o espaço da música da periferia produtora de mercadorias musicais no

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centro do sistema mundial, e assim, se legitimar no mercado nacional de seu país de origem. Cabe ressaltar que o processo de legitimação no mercado nacional se deu, em grande medida, porque o grupo Mestre Ambrósio se mudou definitivamente para São Paulo, que eles justificam por um desejo de “expandir” seus trabalhos. Todos os integrantes da banda afirmam que já tinham se apresentado em todos os lugares de Recife e alcançado todo o sucesso possível na cidade, e decidiram se mudar porque São Paulo seria mais “central” quando se pensa na facilidade de deslocamento dentro do Brasil, porque teriam o contato de um produtor que poderia ajudá-los na cidade e que eles acreditavam que os projetaria no mercado nacional, porque havia o incentivo de pessoas mais experientes que reconheceram seus talentos, mas de forma nenhuma se tratava de resolver problemas financeiros. Segundo afirmam, eles teriam contribuído para uma mudança no olhar sobre Recife por quem está fora da cidade, o que teria ajudado a aumentar a confiança e a auto-estima dos pernambucanos.

Assim, só podemos entender a permanência das bandas “Mangue” no mercado fonográfico se pensarmos na existência dessa espécie de tripé, apoiado (1) na movimentação cultural de Recife – criação de festivais, uma casa para temporadas de shows e o apoio da imprensa local –, (2) na possibilidade de se enquadrar no rótulo world music e fazer excursões internacionais, e (3) na mudança para São Paulo e conseqüente legitimação no mercado nacional. No caso do grupo Chico Science e Nação Zumbi, a gravação da canção “Maracatu Atômico” sintetiza bem esse tripé, porque porta um dado local forte – o maracatu – que possibilita o trânsito no espaço da world music ao mesmo tempo em que permite a legitimação no mercado nacional.

Referências bibliográficas

DIAS, Marica R. Tosta. Os donos da voz. SP: Boitempo, 2000.

FRITH, Simon. World Music, politics and social change. Papers from the International Association for the Study of Popular Music. Manchester/NewYork: Manchester University Press, 1989.

ROBINSON, Buck & Cuthbert. Music at the margins. Popular Musica and Global Cultural Diversity (Communication and human values). California: Sage, 1991.

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