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Liberdades. revista. Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais nº 17 setembro/dezembro de 2014 ISSN

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| Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais | nº 17 – setembro/dezembro de 2014 | ISSN 2175-5280 |

Expediente | Apresentação | Entrevista | Spencer Toth Sydow entrevista Ramon Ragués | Artigos | Audiência de custódia e a imediata apresentação do preso ao juiz: rumo à evolução civilizatória do processo penal | Aury Lopes Jr. | Caio Paiva | Reflexões acerca do Direito de Execução Penal | Felipe Lima de Almeida | Existe outro caminho? Uma leitura sobre discurso, feminismo e punição da Lei 11.340/2006 | Mayara de Souza Gomes | A ampliação do conceito de autoria por meio da teoria do domínio por organização | Joyce Keli do Nascimento Silva | Quis, ubii, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando? | Tânia Konvalina-Simas | Os problemas do Direito Penal simbólico em face dos princípios da intervenção mínima e da lesividade | André Lozano Andrade | História | Ressonâncias do Discurso de Dorado Montero no Direito Penal Brasileiro | Renato Watanabe de Morais | Resenha de Livro | Jó, vítima de seu povo: o mecanismo vitimário em “A rota antiga dos homens perversos”, de René Girard | Wilson Franck Junior | Milton Gustavo Vasconcelos Barbosa | Resenhas de Filmes | A vida é notícia de jornal. Análises do contemporâneo a partir do filme “O outro lado da rua” | Laila Maria Domith Vicente | Match Point: sorte na vida ou vencer a qualquer preço? | Yuri Felix | David Leal da Silva

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INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Diretoria da Gestão 2013/2014

Publicação do

Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Diretoria Executiva

Presidente:

Mariângela Gama de Magalhães Gomes 1ª Vice-Presidente:

Helena Lobo da Costa 2º Vice-Presidente: Cristiano Avila Maronna 1ª Secretária:

Heloisa Estellita 2º Secretário:

Pedro Luiz Bueno de Andrade Suplente:

Fernando da Nobrega Cunha 1º Tesoureiro:

Fábio Tofic Simantob 2º Tesoureiro:

Andre Pires de Andrade Kehdi

Diretora Nacional das Coordenadorias Regionais e Estaduais:

Eleonora Rangel Nacif

Conselho Consultivo

Ana Lúcia Menezes Vieira Ana Sofia Schmidt de Oliveira Diogo Malan

Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró Marta Saad

Ouvidor

Paulo Sérgio de Oliveira

Suplentes da Diretoria Executiva

Átila Pimenta Coelho Machado Cecília de Souza Santos

Danyelle da Silva Galvão Fernando da Nobrega Cunha Leopoldo Stefanno G. L. Louveira Matheus Silveira Pupo

Renato Stanziola Vieira

Assessor da Presidência

Rafael Lira

Colégio de Antigos Presidentes e Diretores

Presidente:Marta Saad Membros:

Alberto Silva Franco Alberto Zacharias Toron Carlos Vico Mañas Luiz Flávio Gomes Marco Antonio R. Nahum Maurício Zanoide de Moraes Roberto Podval

Sérgio Mazina Martins Sérgio Salomão Shecaira

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Coordenadores-Chefes dos Departamentos

Biblioteca: Ana Elisa Liberatore S. Bechara

Boletim: Rogério FernandoTaffarello

Comunicação e Marketing: Cristiano Avila Maronna

Convênios: José Carlos Abissamra Filho

Cursos: Paula Lima Hyppolito Oliveira

Estudos e Projetos Legislativos: Leandro Sarcedo

Iniciação Científica: Bruno Salles Pereira Ribeiro

Mesas de Estudos e Debates: Andrea Cristina D’Angelo

Monografias: Fernanda Regina Vilares

Núcleo de Pesquisas: Bruna Angotti

Relações Internacionais: Marina Pinhão Coelho Araújo

Revista Brasileira de Ciências Criminais: Heloisa Estellita

Revista Liberdades: Alexis Couto de Brito

Presidentes dos Grupos de Trabalho

Amicus Curiae: Thiago Bottino

Código Penal: Renato de Mello Jorge Silveira Cooperação

Jurídica Internacional: Antenor Madruga Direito Penal

Econômico: Pierpaolo Cruz Bottini

Estudo sobre o Habeas Corpus: Pedro Luiz Bueno de Andrade

Justiça e Segurança: Alessandra Teixeira

Política Nacional de Drogas: Sérgio Salomão Shecaira

Sistema Prisional: Fernanda Emy Matsuda

Presidentes das Comissões Organizadoras

18º Concurso de Monografias de Ciências Criminais: Fernanda Regina Vilares

20º Seminário Internacional: Sérgio Salomão Shecaira

Comissão Especial IBCCRIM – Coimbra

Presidente:

Ana Lúcia Menezes Vieira

Secretário-geral:

Rafael Lira

Coordenador-chefe da Revista Liberdades

Alexis Couto de Brito

Coordenadores-adjuntos:

Bruno Salles Pereira Ribeiro Fábio Lobosco

Humberto Barrionuevo Fabretti João Paulo Orsini Martinelli Roberto Luiz Corcioli Filho

Conselho Editorial:

Alexis Couto de Brito

Cleunice Valentim Bastos Pitombo Daniel Pacheco Pontes

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Fábio Lobosco

Giovani Agostini Saavedra Humberto Barrionuevo Fabretti José Danilo Tavares Lobato João Paulo Orsini Martinelli João Paulo Sangion

Luciano Anderson de Souza Paulo César Busato

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Apresentação

...6

Entrevista

Spencer Toth Sydow entrevista Ramon Ragués ...8

Artigos

Audiência de custódia e a imediata apresentação do preso ao juiz:

rumo à evolução civilizatória do processo penal ...11

Aury Lopes Jr. e Caio Paiva

Reflexões acerca do Direito de Execução Penal ...24

Felipe Lima de Almeida

Existe outro caminho? Uma leitura sobre discurso, feminismo e punição da Lei 11.340/2006 ...50

Mayara de Souza Gomes

A ampliação do conceito de autoria por meio da teoria do domínio por organização ...69

Joyce Keli do Nascimento Silva

Quis, ubii, quibus auxiliis, cur, quomodo, quando? ...85

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Os problemas do Direito Penal simbólico em face dos princípios da

intervenção mínima e da lesividade ...99

André Lozano Andrade

História

Ressonâncias do discurso de Dorado Montero no direito penal brasileiro ...118

Renato Watanabe de Morais

Resenha de Livro

Jó, vítima de seu povo: o mecanismo vitimário em “A rota antiga dos

homens perversos”, de René Girard ...141

Wilson Franck Junior e Milton Gustavo Vasconcelos Barbosa

Resenhas de Filmes

A vida é notícia de jornal. Análises do contemporâneo a partir do filme “O outro lado da rua” ...149

Laila Maria Domith Vicente

Match Point: sorte na vida ou vencer a qualquer preço? ...158

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Apresentação

Mais uma edição da Liberdades, e mais uma vez, trabalhos notáveis.

Iniciamos com a entrevista do professor Ramón Ragués realizada pelo professor Spencer Toth Sydow, e faz considerações sobre a teoria da cegueira deliberada.

Nos artigos científicos, variadas reflexões.

No campo processual, Aury Lopes Jr. e Caio Paiva abordam o projeto de lei 554/11 e as vantagens da implementação, no Brasil, da audiência de custódia e imediata apresentação do preso ao juiz.

Em uma abordagem histórica da execução penal na legislação brasileira, Felipe Lima de Almeida disserta sobre a natureza jurídica da execução penal e as finalidades que pretende alcançar.

Passando ao direito material, sobre a tensão que existe entre a violência domestica contra a mulher e a política criminal de ultima ratio, Mayara de Souza Gomes analisa a dicotomia sugerindo uma solução que possa atender aos anseios sociais e sistêmico-penais.

Joyce Keli do Nascimento Silva parte da ação comunicativa de Habermas para analisar autoria mediata e o domínio do fato em aparatos organizados de poder.

Mudando da dogmática para a criminologia, a abordagem de Tânia Konvalina-Simas sobre a importância da profissão de criminologista no cenário jurídico-penal português oferece um entendimento acerca de uma melhor operacionalização da criminologia e sua capacidade de rendimento para os procedimentos penais

André Lozano Andrade também navega pela criminologia e pela política criminal ao discorrer sobre o direito penal simbólico e a intervenção mínima e como tais conceitos podem ser sentidos e absorvidos pelo contexto social.

A abordagem histórica nos é trazida por Renato Watanabe de Morais. O sempre atual e discutido Dorado Montero e seu correcionalismo são revisitados em busca de uma aplicação prática no campo da política de drogas.

Wilson Franck Junior e Milton Gustavo Vasconcelos Barbosa nos trazem a resenha do livro “A rota antiga dos homens

perversos”, do sempre crítico René Girard, que apesar de sua formação essencialmente religiosa nos traz observações muito interessantes sobre o ser humano e seus desejo de vingança.

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Por fim, Laila Maria Domith Vicente, Yuri Felix e David Leal da Silva nos trazem duas resenhas de filmes absolutamente recomendáveis. “O outro lado da Rua” interpreta a forma de ser e estar no mundo, e “Match Point” tem como tema de reflexão a competitividade, aceleração e a busca do sucesso no mundo moderno.

Como se vê, mais uma interessante edição, elaborada com a ajuda dos colaboradores, que continuam apostando e prestigiando a nossa publicação.

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Spencer Toth Sydow entrevista

Ramon Ragués

Spencer Toth Sydow:

Como surgiu seu interesse pela teoria da cegueira deliberada?

Ramon Ragués: Hacia el año 2000 el Tribunal Supremo español empezó a aplicar esta teoría, de origen

angloamericano, en España. Se trataba de una decisión sorprendente, por cuanto el modelo de imputación

subjetiva continental no contempla tal categoría como una modalidad de dolo. Una de mis principales líneas de

investigación es la imputación subjetiva, de ahí el interés.

STS:

O que é o instituto em si?

RR: La teoría resumidamente sostiene que conocer y no conocer deliberadamente deben ser tratados igual

a la hora de atribuir responsabilidad. Trasladado al sistema continental, que puede haber casos de dolo sin

conocimiento, concretamente, los supuestos de quien evita deliberadamente conocer que está realizando una

determinada conducta prohibida.

STS:

Quais os requisitos para que consideremos que alguém agiu em tal situação?

RR: El sujeto debe estar en condiciones de conocer un determinado hecho abarcado objetivamente por un

tipo y ante la posibilidad de obtener tales conocimientos prefiere quedar al margen de ellos. Normalmente se

trata de casos en los que el sujeto cuenta con una sospecha genérica de que puede estar interviniendo en algo

ilícito pero prefiere no asegurarse procurando saber exactamente qué interés está contribuyendo a lesionar. A

mi juicio, cuando tal negativa a profundizar en los conocimientos se debe a que el sujeto busca construirse una

causa de exoneración merecen ser tratados como el dolo.

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RR: No necesariamente. El sujeto que da instrucciones por ejemplo a sus empleados de que no recojan ningún

requerimiento judicial -o que no abre el email si los requerimientos llegan por esta vía- puede estar cometiendo

un delito de desobediencia por ignoraria deliberada.

STS:

É possível dizer que a teoria apenas se aplica aos denominados “delitos materiais”?

RR: No tengo clara la pregunta ni a qué categoría se alude con “delitos materiales”.

STS:

A presunção de um “dever de conhecimento” não gera inseguranças jurídica, posto que tais deveres não são positivados? Seria normativa?

RR: Evidentemente hay deberes de conocer en la interacción humana y la infracción de dichos deberes son

fuente de responsabilidad: quien dispara contra un árbol tiene el deber de asegurarse de que no hay nadie

detrás. La existencia de tales deberes no es algo propio de la doctrina de la ignorancia deliberada, sino que es

desde siempre una de las bases de la dogmática de los delitos imprudentes.

STS:

Pode se dizer que a teoria quer gerar “deveres de comportamento” aos cidadãos? Isso não faria com que o “desvalor da ação” ganhasse mais força do que o “desvalor do resultado” na teoria do delito?

RR: Existe efectivamente un deber según el cual cuando una persona sospecha que puede estar interviniendo

en algo ilícito debe asegurarse de la naturaleza de su comportamiento o abstenerse de realizarlo. Pero ello no

significa que, por ejemplo, en el caso de los delitos imprudentes sea necesario para sancionar el incumplimiento

de tal deber que además se produzca el desvalor de resultado. Luego ambos desvalores son necesarios.

STS:

Pode-se dizer que a teoria alarga a tipicidade objetiva acrescentando deveres gerais de cuidado ou tais deveres serão verificados caso a caso?

RR: Tales deberes ya existen, como he respondido en 6. En unos casos son deberes establecidos por el derecho

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deberes que no existan ya: lo que en todo caso sucede en algunos delitos es que su infracción deliberada en

la medida en que se equiparase al dolo llevaría a una sanción que podría no producirse si no se rebasaran los

límites de la culpa.

STS:

A criação de deveres de cuidado não seria, em verdade, a construção da exigibilidades de condutas diversas e, portanto, não seria um debate dentro da culpabilidade?

RR: No a mi juicio: la existencia de un deber de cuidado -que considera como prohibidos determinados riesgos-

es más bien una cuestión del tipo objetivo o, en todo caso, del subjetivo, no de la culpabilidad. Cierto es, sin

embargo, que en algunos planteamientos se divide el deber de cuidado entre uno objetivo y genérico (en el

tipo) y otro referido al concreto autor con sus circunstancias particulares (en la culpabilidad)

STS:

A dificuldade de debater-se a existência do dever de cuidado a partir da presunção não geraria uma verdadeira responsabilidade objetiva? A imputação subjetiva não violaria o garantismo?

RR: No, porque una exigencia básica del principio de culpabilidad es que el sujeto pueda cumplir dicho deber.

Si cumpliendo el deber el sujeto podía evitar la conducta prohibida reprocharle no haberlo hecho no vulnera

principio alguno ni supone atribuir una mera responsabilidad objetiva.

STS:

Como eliminar a insegurança de uma interpretação arbitrária do juiz, que pode presumir deveres de cuidado com base em sua própria experiência?

RR: Exigiendo que los jueces razonen adecuadamente en sus sentencias cuál es la fuente -jurídica o cultural-

de la que extraen dichos deberes y estableciendo un control en segunda instancia que revoque las decisiones

en las que tales juicios no se fundamenten de manera adecuada.

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Audiência de custódia e a imediata apresentação do preso ao

juiz: rumo à evolução civilizatória do processo penal

Aury Lopes Jr.

Doutor em Direito Processual Penal.

Professor do Programa de Pós-Graduação – Mestrado e Doutorado – em Ciências Criminais da PUC-RS. Advogado.

Caio Paiva

Especialista em Ciências Criminais.

Fundador do Curso CEI – Círculo de Estudos pela Internet e editor do site www.oprocesso.com. Defensor Público Federal.

Sumário: 1. A prisão no (con)texto legislativo e judicial brasileiro; 2. Processo penal e direitos humanos; 2. Audiência de custódia:

previsão normativa, vantagens, definição de suas características, insuficiência do regramento jurídico interno, implementação no Brasil e breves considerações sobre o PLS 554/2011; 4. Conclusão.

Resumo: O encarceramento em massa no Brasil tem crescido assustadoramente nos últimos anos. A Lei 12403/2011 não produziu o

seu efeito esperado, qual seja, o de fazer da prisão preventiva a ultima ratio das medidas cautelares pessoais. A denominada audiência de custódia, que possibilita o encontro imediato do preso com o juiz, pode significar um passo decisivo rumo à evolução civilizatória do processo penal, resgatando-se o caráter humanitário e até antropológico da jurisdição. No presente artigo são analisados todos os aspectos deste direito previsto em diversos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, concluindo-se, ao final, pela insuficiência do regramento jurídico interno e pela necessidade de se viabilizar, judicialmente e no plano legislativo, a implementação da audiência de custódia no Brasil.

Palavras-chave: Prisão. Audiência de Custódia. Convenção Americana de Direitos Humanos. Processo Penal.

1. A prisão no (con)texto legislativo e judicial brasileiro

No teatro penal brasileiro, a prisão desponta, indiscutivelmente, como a protagonista, a atriz principal, que estreia um monólogo sem fim. Não divide o palco; no máximo, permite que algumas cautelares diversas dela façam uma figuração,

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um jogo de cena, e isso apenas para manter tudo como sempre esteve... Dados da última contabilidade do Conselho Nacional de Justiça, de junho/2014: 711.463 presos, a terceira maior população carcerária do mundo.1

Se por um lado, Foucault tem razão quando admite que Conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se

que é perigosa, quando não inútil. E, entretanto não ‘vemos’ o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão,2 por outro, é preocupante o diagnóstico feito por Ferrajoli de que a prisão tem se convertido no

sinal mais evidente da crise da jurisdicionalidade, da tendência de administrativização do processo penal e, sobretudo, da sua degeneração num mecanismo diretamente punitivo.3

Perdemos o pudor. Chegamos, conforme anota Carnelutti, a um círculo vicioso, “já que é necessário julgar para

castigar, mas também castigar para julgar”.4 Entre mortos e feridos, vamos nos assumindo como o país que transita –

artificialmente – entre rebeliões e mutirões, numa autofagia que faz, então, que o sistema alimente-se de si mesmo. Eis-nos, portanto, adverte Vera Regina P. de Andrade,

“na periferia da modernidade, contando as vítimas do campo de (des)concentração difuso e perpétuo em que nos tornamos; campo que, apesar de emitir sintomas mórbidos do próprio carrasco (policiais que matam, prisões que matam, denúncias que matam, sentenças que matam direta ou indiretamente), aprendeu a trivializar a vida e a morte, ambas descartáveis sob a produção em série do ‘capitalismo de barbárie’, ao amparo diuturno do irresponsável espetáculo midiático, da omissão do Estado e das instituições de controle”.5

O (con)texto da prisão, no Brasil, é tão preocupante que sequer se registrou uma mudança efetiva na prática judicial após o advento da Lei 12.403/2011, (dita) responsável por colocar, no plano legislativo, a prisão como a ultima ratio das medidas cautelares. O art. 310 do CPP, alterado pelo diploma normativo citado, dispõe que o juiz, ao receber o auto de prisão em flagrante, deverá fundamentadamente (i) relaxar a prisão, (ii) convertê-la em preventiva quando presentes os requisitos do art. 312 e se revelarem inadequadas ou insuficientes as demais medidas cautelares não constritivas de liberdade, ou (iii) conceder liberdade provisória. E o que verificamos na prática? Simples: que a lógica judicial permanece vinculada ao protagonismo da prisão, que a homologação do flagrante, longe de ser a exceção, figura como regra no

1 Disponível em: <www.cnj.jus.br/images/imprensa/diagnostico_de_pessoas_presas_correcao.pdf>.

2 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 39. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 218.

3 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón – Teoría del garantismo penal. Traducción de Perfecto Andrés Ibáñez, Alfonso Ruiz Miguel, Juan Carlos Boyón Mahino, Juan Terradillos Bosoca e Rocio Cantarero Bondrés. Madrid: Trotta, 2001. p. 770.

4 CARNELUTTI, Francesco. Cuestiones sobre el proceso penal. Traducción de Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: Librería el Foro, 1994. p. 36.

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sistema processual penal brasileiro. Prova disso é que não houve a tão esperada redução do número de presos cautelares após a reforma de 2011.

A preocupação se agrava quando, além da banalização da prisão cautelar, ainda assistimos a uma redução da potencialidade do principal instrumento apto a questioná-la, qual seja, o habeas corpus, que de “remédio constitucional” passou, recentemente, a causar uma alergia nos Tribunais Superiores, notadamente após a jurisprudência defensiva de não se admitir o seu uso quando substitutivo de espécies recursais cujo procedimento vagaroso e burocrático se distancia da urgência que reclama o pleito de liberdade. Ou seja, como se já não bastasse prender em excesso, ainda se retira da defesa a sua melhor tática de participar do jogo processual.6

Se o cenário não favorece o otimismo, que se confundiria, talvez, com certa ingenuidade, não podemos, jamais, nos desincumbir da necessidade de – sempre – resistir. Zaffaroni nos lembra de que “O estado de polícia não está morto

num estado de direito real, senão encapsulado em seu interior e na medida em que este se debilita o perfura e pode fazê-lo estalar”.7 O expediente do qual nos propomos a tratar adiante, a audiência de custódia, cumpre, entre outras, essa

finalidade: a de conter o Estado de Polícia, de limitar o poder punitivo.

2. Processo penal e direitos humanos

O processo penal certamente é o ramo do Direito que mais sofre (ou melhor, que mais se beneficia) da normativa dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, não sendo exagero se falar, atualmente, que para se alcançar um devido

processo, esse deve ser, não apenas legal e constitucional, mas também convencional. Nesse sentido, Nereu Giacomolli

tem absoluta razão quando afirma que: “Uma leitura convencional e constitucional do processo penal, a partir da

constitucionalização dos direitos humanos, é um dos pilares a sustentar o processo penal humanitário. A partir daí, faz-se

6 Sobre processo penal e teoria dos jogos, cf. ROSA, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 157: “A partir da teoria dos jogos as medidas cautelares podem se configurar como mecanismos de pressão cooperativa e/ou táticas de aniquilamento (simbólico e real, dadas as condições em que são executadas). A mais violenta é a prisão cautelar. A prisão do indiciado/acusado é modalidade de guerra com tática de aniquilação, uma vez que os movimentos da defesa estarão vinculados à soltura”.

7 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Estructura básica del derecho penal. Buenos Aires: Ediar, 2009. p. 30-31. No mesmo sentido, Karam: “Embora mantidas as estruturas formais do Estado de direito, vai se reforçando o Estado policial sobrevivente em seu interior, não sendo instituídos espaços de suspensão de direitos fundamentais e de suas garantias, vai sendo afastada sua universalidade, acabando por fazer com que, no campo do controle social exercido através do sistema penal, a diferença entre democracias e Estados totalitários se torne sempre mais tênue” (KARAM, Maria Lúcia. O Direito à Defesa e a Paridade de Armas. In: PRADO, Geraldo; MALAN, Diogo. Processo penal e democracia: estudos em homenagem aos 20 anos da Constitucional da República de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 398-399).

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mister uma nova metodologia hermenêutica (também analítica e linguística), valorativa, comprometida de forma ético-política, dos sujeitos do processo e voltada ao plano internacional de proteção dos direitos humanos. Por isso, há que se falar em processo penal constitucional, convencional e humanitário, ou seja, o do devido processo”.8

Parece-nos possível identificar, na superação deste enclausuramento normativo que somente tem olhar para o ordenamento jurídico interno, o surgimento, talvez, de uma nova política-criminal, orientada a reduzir os danos provocados pelo poder punitivo a partir do diálogo (inclusivo) dos direitos humanos. É imprescindível que exista uma mudança cultural, não só para que a Constituição efetivamente constitua-a-ação, mas também para que se ordinarize o controle judicial de convencionalidade.

Esse controle pode se dar pela via difusa ou concentrada, merecendo especial atenção a via difusa, pois exigível de qualquer juiz ou tribunal. No RE 466.343/SP e no HC 87.585/TO, o STF firmou posição (por maioria apertada, registre-se) de que a CADH tem valor supralegal, ou seja, está situada acima das leis ordinárias, mas abaixo da Constituição. Valerio Mazzuoli9 (e o Min. Celso de Mello no STF) faz uma verdadeira tese para sustentar que todos os Tratados Internacionais

de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil têm índole e nível constitucional (por força do art. 5º, § 2º da CF). Inobstante a divergência, ambas as posições coincidem em um ponto crucial: a CADH é um paradigma de controle da produção e aplicação normativa doméstica.

Incumbe aos juízes e tribunais hoje, ao aplicar o Código de Processo Penal, mais do que buscar a conformidade constitucional, observar também a convencionalidade da lei aplicada, ou seja, se ela está em conformidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos. A Constituição não é mais o único referencial de controle das leis ordinárias.

No que tange à audiência de custódia, o controle da convencionalidade é da maior relevância, na medida em que o art. 7.5 determina: “Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra

autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo”.

Diante disso, é inafastável o controle de convencionalidade, para que o sistema jurídico interno se adeque e cumpra com a garantia nos limites definido na CADH, como veremos a continuação.

8 GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal – Abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014. p. 12.

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3. Audiência de custódia: previsão normativa, vantagens, definição de suas

características, insuficiência do regramento jurídico interno, implementação

no Brasil e breves considerações sobre o PLS 554/2011

3.1. Previsão Normativa

Como visto, dispõe o art. 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos (também denominada de Pacto de São José da Costa Rica), que “Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um

juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais (...)”. No mesmo sentido, assegura o art. 9.3 do

Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que “Qualquer pessoa presa ou encerrada em virtude de infração

penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais (...)”.10

O Brasil aderiu à Convenção Americana em 1992, tendo-a promulgada, aqui, pelo Dec. 678, em 6 de novembro daquele ano. Igualmente, nosso país, após ter aderido aos termos do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) naquele mesmo ano, o promulgou pelo Dec. 592. Passados, então, mais de vinte anos da incorporação ao ordenamento jurídico interno dos citados diplomas internacionais de direitos humanos, que gozam de caráter supralegal, por que a relutância em cumpri-los?

3.2. Vantagens

A denominada audiência de custódia consiste, basicamente, no direito de (todo) cidadão preso ser conduzido, sem

demora, à presença de um juiz para que, nesta ocasião, (i) se faça cessar eventuais atos de maus tratos ou de tortura e,

também, (ii) para que se promova um espaço democrático de discussão acerca da legalidade e da necessidade da prisão. O

10 Além de contar com previsão normativa nos sistemas global e interamericano de direitos humanos, a audiência de custódia também está assegurada na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, cujo art. 5.º, 3, dispõe que “Qualquer pessoa presa ou detida nas condições previstas no § 1, alínea c), do presente artigo deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais (...)”.

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expediente, anota Carlos Weis, “aumenta o poder e a responsabilidade dos juízes, promotores e defensores de exigir que os demais elos do sistema de justiça criminal passem a trabalhar em padrões de legalidade e eficiência”.11

A mudança cultural é necessária para atender às exigências dos arts. 7.5 e 8.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, mas também para atender, por via reflexa, a garantia do direito de ser julgado em um prazo razoável (art. 5.º, LXXVIII da CF), a garantia da defesa pessoal e técnica (art. 5.º, LV da CF) e também do próprio contraditório recentemente inserido no âmbito das medidas cautelares pessoais pelo art. 282, § 3.º, do CPP. Em relação a essa última garantia – contraditório – é de extrema utilidade no momento em que o juiz, tendo contato direto com o detido, poderá decidir qual a medida cautelar diversa mais adequada (art. 319) para atender a necessidade processual.

São inúmeras as vantagens da implementação da audiência de custódia no Brasil, a começar pela mais básica: ajustar o processo penal brasileiro aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos.12 Confia-se, também, à audiência

de custódia a importante missão de reduzir o encarceramento em massa no país, porquanto através dela se promove um

encontro do juiz com o preso, superando-se, desta forma, a “fronteira do papel” estabelecida no art. 306, § 1º, do CPP, que

se satisfaz com o mero envio do auto de prisão em flagrante para o magistrado.

Em diversos precedentes, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem ressaltado que o controle judicial imediato assegurado pela audiência de custódia consiste num meio idôneo para evitar prisões arbitrárias e ilegais, já que no Estado de Direito corresponde ao julgador “garantir os direitos do detido, autorizar a adoção de medidas cautelares ou

de coerção quando seja estritamente necessário, e procurar, em geral, que se trate o cidadão da maneira coerente com a presunção de inocência”.13 Já decidiu a Corte IDH, também, que a audiência de custódia é – igualmente – essencial “para

a proteção do direito à liberdade pessoal e para outorgar proteção a outros direitos, como a vida e a integridade física”,14

advertindo estar em jogo, ainda, “tanto a liberdade física dos indivíduos como a segurança pessoal, num contexto em que

11 WEIS, Carlos. Trazendo a realidade para o mundo do direito. Informativo Rede Justiça Criminal, Edição 05, ano 03/2013. Disponível em: <www.iddd.org. br/Boletim_AudienciaCustodia_RedeJusticaCriminal.pdf>.

12 Cf., sobre esse ponto, CHOUKR, Fauzi Hassan. PL 554/2011 e a necessária (e lenta) adaptação do processo penal brasileiro à convenção americana de direitos do homem. IBCCrim, Boletim n. 254 – jan. 2014.

13 Corte IDH. Caso Acosta Calderón Vs. Equador. Sentença de 24.06.2005. No mesmo sentido, cf. também Caso Bayarri Vs. Argentina. Sentença de 30.10.2008; Caso Bulacio Vs. Argentina. Sentença de 18.09.2003; Caso Cabrera Garcia e Montiel Flores Vs. México. Sentença de 26.11.2010; Caso Chaparro Álvarez e Lapo Íñiguez Vs. Equador. Sentença de 21.11.2007; Caso Fleury e outros Vs. Haiti. Sentença de 23.11.2011; Caso García Asto e Ramírez Rojas Vs. Perú. Sentença de 25.11.2005.

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a ausência de garantias pode resultar na subverção da regra de direito e na privação aos detidos das formas mínimas de proteção legal”.15

3.3. Definição de suas características

Ao menos duas expressões constantes na redação dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos que asseguram a audiência de custódia despertam alguma margem para interpretação.

Referimo-nos, primeiro e rapidamente, à expressão “juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais”, encontrada na CADH, no PIDCP e também na CEDH. A esse respeito, importa dizer que a Corte IDH interpreta aquela expressão em conjunto com a noção de juiz ou Tribunal prevista no art. 8.1 da CADH, que estabelece que “Toda

pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”.

Desta forma, a Corte IDH já recusou considerar como “juiz ou outra autoridade por lei a exercer funções judicias” (a) a jurisdição militar,16 (b) o Agente Fiscal do Ministério Público,17 e (c) o Fiscal Naval.18 Fácil perceber, portanto, a

partir da jurisprudência da Corte IDH, que juiz ou autoridade habilitada a exercer função judicial somente pode ser o funcionário público incumbido da jurisdição, que, na grande maioria dos países (a exemplo do Brasil), é o magistrado.19

A segunda expressão a que nos referimos, agora, é sem demora, encontrada tanto na CADH quanto no PIDCP. No sistema regional europeu, a garantia ainda é mais ampla, já que a CEDH exige que o cidadão preso seja apresentado

imediatamente ao juiz. Pois bem. O que deve significar a expressão “sem demora”? Falemos, primeiro, do que não

corresponde a tal garantia. A Corte IDH já reconheceu a violação do direito à audiência de custódia pela ofensa à celeridade

15 Corte IDH. Caso de Los “Niños de la Calle” (Villagrán Morales e outros) Vs. Guatemala. Sentença de 19.11.1999.

16 Corte IDH. Caso Cantoral Benavides Vs. Perú. Sentença de 18.08.2000.

17 Corte IDH. Caso Acosta Calderón Vs. Equador. Sentença de 24.06.2005.

18 Corte IDH. Caso Palamara Iribarne Vs. Chile. Sentença de 22.11.2005.

19 Registra-se, aqui, uma curiosidade: em pleitos individuais ajuizados na Justiça Federal de Manaus/AM, nos quais se requereu a efetivação do direito à audiência de custódia, um dos motivos que têm ensejado o indeferimento é o de que o Defensor Público (assim como a autoridade policial – Delegado) exerceria, no Brasil, “função judicial”. De tão descabido, o argumento sequer merece considerações. Tivesse o Defensor (ou o Advogado) “função judicial”, poderia ele próprio, então, cessar a ilegalidade/desnecessidade da prisão, colocando o cidadão em liberdade?

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exigida pela CADH em casos de condução do preso à presença do juiz (a) quase uma semana após a prisão,20 (b) quase

cinco dias após a prisão,21 (c) aproximadamente trinta e seis dias após a prisão,22 (d) quatro dias após a prisão,23 entre

outros precedentes nos quais restou potencializada a expressão “sem demora” para garantir um controle judicial imediato acerca da prisão. No que se refere ao Brasil, conforme se verá adiante, tramita no Congresso Nacional um Projeto de Lei que, dando cumpridomento à CADH, estabelece o prazo máximo de vinte e quatro horas para ser feita a condução do preso ao juiz.

3.4. Insuficiência do regramento jurídico interno

O Código de Processo Penal brasileiro (art. 306, caput e parágrafo único, do CPP), ao prever que o juiz deverá ser imediatamente comunicado da prisão de qualquer pessoa, assim como a ele deverá ser remetido, no prazo de vinte e quatro horas, o auto da prisão em flagrante, satisfaz a contento a exigência da audiência de custódia? A resposta é evidentemente negativa, sendo bastante clara a insuficiência do regramento jurídico interno. A esse propósito, a Corte IDH tem decidido reiteradamente que “o simples conhecimento por parte de um juiz de que uma pessoa está detida não satisfaz essa garantia,

já que o detido deve comparecer pessoalmente e render sua declaração ante ao juiz ou autoridade competente”,24 e ainda,

que “o juiz deve ouvir pessoalmente o detido e valorar todas as explicações que este lhe proporcione, para decidir se

procede a liberação ou a manutenção da privação da liberdade”, concluindo que “o contrário equivaleria a despojar de toda efetividade o controle judicial disposto no art. 7.5 da Convenção”.25 Logo, conclui-se que a norma contida no Código

de Processo Penal não passa por um controle de convencionalidade quando comparada com os Tratados Internacionais de Direitos Humanos a que o Brasil voluntariamente aderiu, especialmente a CADH, cujos preceitos, se violados, podem ensejar a responsabilização do país perante a Corte IDH.

20 Corte IDH. Caso Bayarri Vs. Argentina. Sentença de 30.10.2008.

21 Corte IDH. Caso Cabrera Garcia e Montiel Flores Vs. México. Sentença de 26.11.2010.

22 Corte IDH. Caso Castillo Petruzi e outros Vs. Perú. Sentença de 30.05.1999.

23 Corte IDH. Caso Chaparro Álvarez e Lapo Íniguez Vs. Equador. Sentença de 21.11.2007.

24 Corte IDH. Caso Acosta Calderón Vs. Equador. Sentença de 24.06.2005.

25 Corte IDH. Caso Bayarri Vs. Argentina. Sentença de 30.10.2008. No mesmo sentido, cf. Caso Chaparro Álvarez e Lapo Íñiguez Vs. Equador. Sentença de 21.11.2007; Caso Garcia Asto e Ramírez Rojas Vs. Perú. Sentença de 25.11.2005; Caso Palamara Iribarne Vs. Chile. Sentença de 22.11.2005.

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3.5. Implementação no Brasil

Outro argumento recorrente para não se viabilizar, na prática, o direito à audiência de custódia é o de que tal expediente requer uma alteração/inovação legislativa, não sendo franqueado ao Poder Judiciário substituir o legislador para a implementação daquele direito no Brasil. Este argumento, no entanto, é claramente equivocado, seja porque as normas de Tratados de Direitos Humanos são de eficácia plena e imediata, seja porque, igualmente, leciona Mazzuoli,

“Não somente por disposições legislativas podem os direitos previstos na Convenção Americana restar protegidos, senão também por medidas ‘de outra natureza’. Tal significa que o propósito da Convenção é a proteção da pessoa, não importando se por lei ou por outra medida estatal qualquer (v.g., um ato do Poder Executivo ou do Judiciário etc.). Os Estados têm o dever de tomar todas as medidas necessárias a fim de evitar que um direito não seja eficazmente protegido”.26

Assim, é de se ter por improcedente tal argumento, possuindo a CADH densidade (e potencialidade) normativa o bastante para influir na prática judicial do ordenamento jurídico interno, afastando-nos, com essa orientação, do positivismo

nacionalista que predominou do século XIX até meados do século XX, quando se exigia que os direitos previstos em

Tratados Internacionais (também) fossem prescritos em normas internas para serem pleiteados em face do Estado ou de particulares.27

3.6. Breves considerações sobre o PLS 554/2011

Embora os Tratados Internacionais de Direitos Humanos que asseguram o direito à audiência de custódia não necessitem, conforme visto no tópico anterior, de implemento normativo interno algum, não se pode olvidar que a edição de lei exerce um papel fundamental na promoção do direito, principalmente no caso da audiência de custódia, cuja previsão normativa naqueles Tratados deixa em aberto (cf. o tópico 3.3) a definição de algumas características do instituto. Justamente por isso, aliás, que vemos como uma medida absolutamente salutar o PLS 554/2011, de autoria do Senador

Antonio Carlos Valadares, com o seguinte teor: “Art. 306. (...)

26 GOMES, Luiz Flávio; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentários à Convenção Americana de Direitos Humanos. 4. ed. São Paulo: RT, 2013, p. 33.

27 Cf. RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 83: “O risco aos direitos humanos gerado pela adoção do positivismo nacionalista é visível, no caso de as normas locais (inclusive as constitucionais) não protegerem ou reconhecerem determinado direito ou categoria de direitos humanos. O exemplo nazista mostra a insuficiência da fundamentação positivista nacionalista dos direitos humanos”.

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§ 1.º No prazo máximo de vinte e quatro horas depois da prisão, o preso deverá ser conduzido à presença do juiz competente, ocasião em que deverá ser apresentado o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública”.

O referido PLS veio a receber, depois, quando em trâmite na Comissão de Direitos Humanos e Participação Legislativa (CDH), uma emenda substitutiva apresentada pelo Senador João Capiberibe, a qual, devidamente aprovada – por unanimidade – naquela Comissão, alterou o projeto originário, conferindo-lhe a seguinte redação:

“Art. 306. (...)

§ 1.º No prazo máximo de vinte e quatro horas após a prisão em flagrante, o preso será conduzido à presença do juiz para ser ouvido, com vistas às medidas previstas no art. 310 e para que se verifique se estão sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a autoridade judicial tomar as medidas cabíveis para preservá-los e para apurar eventual violação.

§ 2.º A oitiva a que se refere o § 1.º não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso e ao acusado.

§ 3.º A apresentação do preso em juízo deverá ser acompanhada do auto de prisão em flagrante e da nota de culpa que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada pela autoridade policial, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os nomes das testemunhas.

§ 4.º A oitiva do preso em juízo sempre se dará na presença de seu advogado, ou, se não o tiver ou não o indicar, na de Defensor Público, e na do membro do Ministério Público, que poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no § 2.º, bem como se manifestar previamente à decisão judicial de que trata o art. 310 deste Código”.

Perceba-se que o referido Projeto de Lei do Senado, na redação que lhe foi dada pelo substitutivo do Senador João Capiberibe, contém uma normativa praticamente completa sobre a audiência de custódia, sequer abrindo margem para interpretações sobre a autoridade a quem o preso deve ser conduzido (o juiz) ou a respeito do prazo em que tal medida deve ser viabilizada (em até vinte e quatro horas da prisão), além de cercar a realização da audiência de custódia das garantias do contraditório e da ampla defesa quando prevê a imprescindibilidade da defesa técnica no ato.

O PLS 554/2011 passou e foi aprovado pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) em 26.11.2013, chegando, depois, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), onde foi distribuído para o Senador Humberto Costa

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basicamente a alterar a versão original do PLS para nele estabelecer que a audiência de custódia também poderá ser feita mediante o sistema de videoconferência. Eis a redação deste substitutivo:

“Art. 306. (...)

§ 1.º No prazo máximo de vinte e quatro horas depois da prisão, o preso deverá ser conduzido à presença do juiz competente, pessoalmente ou pelo sistema de videoconferência, ocasião em que deverá ser apresentado o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública”.

O Senador Francisco Dornelles apresenta como justificativa principal para esta alteração o fato de que “A

diminuição da circulação de presos pelas ruas da cidade e nas dependências do Poder Judiciário representa uma vitória das autoridades responsáveis pela segurança pública”, e conclui afirmando que “O deslocamento de presos coloca em risco a segurança pública, a segurança institucional e, inclusive, a segurança do preso”.

O maior inconveninente desse substitutivo é que ele mata o caráter antropológico, humanitário até, da audiência de custódia. O contato pessoal do preso com o juiz é um ato da maior importância para ambos, especialmente para quem está sofrendo a mais grave das manifestações de poder do Estado. Não se desconhece que vivemos numa sociedade em que a velocidade, inegavelmente, é um valor. O ritmo social cada vez mais acelerado impõe uma nova dinâmica na vida de todos nós. Que dizer então da velocidade da informação? Agora passada em tempo real, via internet, sepultando o espaço temporal entre o fato e a notícia. O fato, ocorrido no outro lado do mundo, pode ser presenciado virtualmente em tempo real. A aceleração do tempo nos leva próximo ao instantâneo, com profundas consequências na questão tempo/ velocidade. Também encurta ou mesmo elimina distâncias. Por isso, Virilio28 – teórico da Dromologia (do grego dromos

= velocidade) – afirma que “a velocidade é a alavanca do mundo moderno”. Nesse cenário, surge o interrogatório on-line ou videoconferência, que, além de agregar velocidade e imagem, reduz custo e permite um (ainda) maior afastamento dos atores envolvidos no ritual judiciário, especialmente do juiz. Mas, sem dúvida, os principais argumentos são de natureza econômica e de “assepsia”.

A redução de custos é fruto de uma prevalência da ideologia economicista, em que o Estado vai se afastando de suas funções a ponto de sequer o juiz estar na audiência. Sob o pretexto dos altos custos e riscos (como se não vivêssemos numa sociedade de risco...) gerados pelo deslocamento de presos perigosos, o que estão fazendo é retirar a garantia da jurisdição, a garantia de ter um juiz, contribuindo ainda mais para que eles assumam uma postura burocrática e de assepsia da jurisdição. Matam o caráter antropológico do próprio ritual judiciário, assegurando que o juiz sequer olhe para

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o réu, sequer sinta o cheiro daquele que está prendendo. É elementar que a distância da virtualidade contribui para uma absurda desumanização do processo penal. É inegável que os níveis de indiferença (e até crueldade) em relação ao outro aumentam muito quando existe uma distância física (virtualidade) entre os atores do ritual judiciário. É muito mais fácil produzir sofrimento sem qualquer culpa quando estamos numa dimensão virtual (até porque, se é virtual, não é real...).

Acrescentando-se a distância e a “assepsia” geradas pela virtualidade, corremos o risco de ver a indiferença e a insensibilidade do julgador elevadas a níveis insuportáveis. Estaremos potencializando o refúgio na generalidade da função e o completo afastamento do eu, impedindo o avanço e evolução que se deseja com a mudança legislativa. A Convenção Americana de Direitos Humanos assegura, em seu art. 7.5, que toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz. Por mais esforço que se faça, existe um limite semântico que não permite uma interpretação tal que equipare presença com ausência...

O direito de defesa e do contraditório (incluindo o direito a audiência) são direitos fundamentais, cujo nível de observância reflete o avanço de um povo. Isso se mede não pelo arsenal tecnológico utilizado, mas sim pelo nível de respeito ao valor dignidade humana. E o nível de civilidade alcançado exige que o processo penal seja um instrumento legitimante do poder, dotado de garantias mínimas, necessário para chegar-se à pena. Nessa linha, é um equívoco suprimir-se o direito de suprimir-ser ouvido por um juiz, substituindo-o por um monitor de computador. Novamente iremos mudar para que tudo continue como sempre esteve...

4. Conclusão

Finalizamos esse ensaio registrando a importante atuação da Defensoria Pública da União em prol da implementação da audiência de custódia no Brasil, tendo a instituição já obtido precedentes favoráveis na Justiça Federal de Cascavel/ PR29 e na 2.ª Turma Especializada do TRF-2.ª Reg.,30 merecendo destaque, ainda, a ação civil pública ajuizada pela DPU/

Manaus já noticiada no Conjur.31 Que os precedentes se multipliquem, que o Judiciário perca – de vez – o receio de se

29 Cf. Justiça determina que preso deve ser levado sem demora à presença de juiz: Disponível em: <www.dpu.gov.br/index.php?option=com_content&view= article&id=22248:justica-determina-que-preso-deve-ser-levado-sem-demora-a-presenca-de-juiz&catid=79&Itemid=220>.

30 Cf. Audiência de custódia contribui para revogação de prisão preventiva: Disponível em: <www.dpu.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id =21714:audiencia-de-custodia-contribui-para-revogacao-de-prisao-preventiva&catid=79&Itemid=220>.

31 Cf. DPU ajuíza ação cobrando implantação da audiência de custódia no Brasil: Disponível em: <www.conjur.com.br/2014-jun-13/dpu-ajuiza-acao-cobrando-implantacao-audiencia-custodia>. A íntegra da ACP foi disponibilizada no blog do juiz Marcelo Semer: Disponível em: <http://blog-sem-juizo.blogspot.com. br/2014/06/dpu-pede-audiencia-de-custodia-para.html>.

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encontrar com o jurisdicionado preso e, principalmente, que a audiência de custódia seja enfim, implementada no Brasil

com a aprovação do PLS 554/2011 (sem a faculdade da realização por videoconferência) e também com a mudança de

mentalidade judicial rumo à humanização do processo penal.

Além da importância de alinharmos o sistema jurídico interno à Convenção Americana de Direitos Humanos, é crucial uma mudança de cultura, um resgate do caráter humanitário e antropológico do processo penal e da própria jurisdição.

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Reflexões acerca do Direito de Execução Penal

Felipe Lima de Almeida

Mestre em Direito pela UCAM/RJ.

Membro do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro. Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro

Sumário: 1. Evolução histórica da Execução Penal no Brasil; 1.1 Período Colonial; 1.2 Período Imperial; 1.3 Primeira República;

1.4 Projetos e Anteprojetos; 1.5 A Lei de Execução Penal; 1.6 A Constituição da República de 1988; 2. Os Sistemas de Execução Penal; 2.1 Os sistemas de execução penal no ordenamento jurídico brasileiro; 2.2 A Lei de Execução Penal e a jurisdicionalização da execução da pena; 2.3 A natureza jurídica da Execução Penal; 3. Direito de Execução Penal: autonomia e conceito; 3.1 Autonomia; 3.2 Conceito; 4. Considerações finais; 5. Referências bibliográficas.

Resumo: Esse artigo analisa a evolução da execução penal no ordenamento jurídico brasileiro, desde os primórdios até o atual

estágio, com a vigente Lei de Execução Penal e a consolidação do Direito de Execução Penal. O trabalho analisa a jurisdicionalização promovida pela Lei de Execução Penal, os sistemas e a natureza jurídica da execução da pena, assim como examina a autonomia e o conceito conferidos ao Direito de Execução Penal, com os consequentes questionamentos e diferenciações que necessitam ser feitos

Palavras-chave: Lei de Execução Penal – Jurisdicionalização da execução da pena – Direito de Execução Penal – Autonomia.

1. Evolução histórica da Execução Penal no Brasil

1.1 Período Colonial

O período colonial do Brasil (1500-1822), que ultrapassou o fim da Idade Média e o início da Modernidade, contabilizando mais de três séculos de história, com influências do Iluminismo e da Revolução Francesa, não demonstrou muito interesse com a execução das penas e o sistema penitenciário. O Brasil, na condição de colônia de Portugal, submetia-se ao ordenamento jurídico português (Ordenações do Reino).

As Ordenações Afonsinas, em cuja vigência (1447-1521) se deu a descoberta do Brasil, não tiveram qualquer influência na nova colônia. As Ordenações Manuelinas (1521-1603), igualmente, não conheceram aplicação prática, não

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passando de referência burocrática, casual e distante das práticas penais concretas em terras brasileiras. Ao contrário disso, as Ordenações Filipinas, que sucederam as Ordenações Manuelinas, afirma a doutrina, “constituíram o eixo da

programação criminalizante de nossa etapa colonial tardia, sem embargo da subsistência paralela do direito penal doméstico que o escravismo necessariamente implica”.1

Nas Ordenações Filipinas as penas principais eram: de morte, corporais (em várias modalidades) e de degredo, restando a prisão como instrumento de constrangimento ao pagamento de dívidas ou de custódia do condenado que aguarda o cumprimento de sua pena.2

A vigência das Ordenações Filipinas em matéria penal, inclusive, avançou alguns anos sobre o próprio estado nacional brasileiro, até a promulgação do Código Criminal do Império em 1830, com os limites e alterações decorrentes da nova ordem constitucional e de algumas leis penais editadas naquele período.3

1.2 Período Imperial

Após a independência do Brasil (1822), o Imperador D. Pedro I, em 25.03.1824, promulgou a primeira constituição brasileira. A Constituição Imperial de 1824 não previa nenhum dispositivo específico sobre execução penal, contudo, reconhecia princípios importantes como o juiz natural, a personalidade da pena; abolição das penas cruéis e a pioneira previsão da individualização da pena.4 Como afirmava Roberto Lyra, “mal se libertou do espírito medieval das Ordenações,

1 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro – Teoria geral do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006. v. 1, p. 413-417.

2 PAVARINI, Massimo; GIAMBERARDINO, André. Teoria da pena e execução penal. Uma introdução crítica. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2011. p. 218.

3 No âmbito do direito privado, inúmeras disposições das Ordenações Filipinas vigeram até 1.º de janeiro de 1917, quando entrou em vigou o Código Civil. Cf. ZAFFARONI et al. Op. cit., 2006, p. 417.

4 Art. 179. “A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte. (...)”

XI. “Ninguem será sentenciado, senão pela Autoridade competente, por virtude de Lei anterior, e na fórma por ella prescripta.(...)” XIX. “Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas crueis.”

XX. “Nenhuma pena passará da pessoa do delinquente. Por tanto não haverá em caso algum confiscação de bens, nem a infamia do Réo se transmittirá aos parentes em qualquer gráo, que seja.”

XXI. “As Cadêas serão seguras, limpas, o bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos Réos, conforme suas circumstancias, e natureza dos seus crimes”. (sic passim).

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o Brasil antecipou-se na revelação de sua sensibilidade aos então recentes clamores da consciência humana contra a ignomínia do cárcere”.5

Com o Código Criminal do Império, sancionado em 16.12.1830, em seu Título II – Das Penas (arts. 33 a 64) foram regulados alguns institutos. O referido Código trouxe, enfim, a previsão expressa da privação de liberdade como pena, ainda que envolta a uma gama de onze penas possíveis (pena de morte,6 de galés,7 prisão com trabalho,8 prisão simples,9

banimento,10 degredo,11 desterro,12 multa,13 suspensão do emprego, perda do emprego e açoites14), sem a previsão de

qualquer sistema penitenciário.15

Com o passar dos anos, a pena de prisão (simples ou com trabalho) foi ganhando cada vez mais espaço como modalidade principal de punição. Por conseguinte, os estabelecimentos destinados a consecução de seus fins declarados, foram se tornando cada vez mais escassos.

5 LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1942, v. 2, p. 94.

6 A pena capital era executada na forca (art. 38), depois de irrevogável a sentença, no dia seguinte ao da intimação do condenado (art. 39). Após a execução, os corpos dos enforcados poderiam ser entregues aos seus parentes ou amigos, que não podiam enterrá-los com pompa, sob pena de prisão de um mês a um ano (art. 42).

7 A pena de galés sujeitava os réus a andarem de calceta nos pés e corrente de ferro, juntos ou separados, e a se empregarem em trabalhos públicos nas Províncias onde se perpetrou o delito (art. 44). Tal sanção era vedada às mulheres, aos menores de 21 anos e aos maiores de 60 anos, conforme art. 45 do Código Criminal.

8 A pena de prisão com trabalho obrigava ao preso trabalhar na atividade que lhe for destinada, no interior da prisão, na conformidade da decisão judicial e do regulamento da prisão (art. 46). Na hipótese de não haver prisões com as comodidades e arranjos necessários para o trabalho dos condenados, as penas de prisão com trabalho eram substituídas pela prisão simples (art. 49).

9 A pena de prisão simples implicava no recolhimento do condenado às prisões públicas, pelo tempo determinado na sentença (art. 47).

10 A pena de banimento privava os condenados para sempre dos direitos de cidadão brasileiro, impedindo-os perpetuamente de habitar o território do Império (art. 50).

11 A pena de degredo obrigava o condenado a residir no exato lugar determinado pela sentença criminal, não podendo dele sair durante o tempo fixado por esta, segundo o art. 51 do Código Criminal.

12 A pena de desterro impelia o condenado a deixar o lugar do delito, não podendo entrar em sua residência ou na residência do ofendido durante o tempo marcado na sentença, segundo o art. 52 do Código Criminal.

13 “Art. 56. As multas serão recolhidas aos cofres das Camaras Municipaes; e os condemnados que, podendo, as não pagarem dentro em oito dias, sejam recolhidos á prisão, de que não sahirão, sem que paguem.”

“Art. 57. Não tendo os condemnados meios para pagar as multas, serão condemnados em tanto tempo de prisão com trabalho, quanto fôr necessario para ganharem a importancia dellas. (sic passim).”

14 Muito embora a Constituição Imperial tivesse expressamente vedado tal modalidade de pena, o Código Criminal cominava os açoites, limitados a 50 por dia, aos escravos (art. 60).

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INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

Revista Liberdades - nº 17 – setembro/dezembro de 2014 I Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais 27

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Nesse panorama punitivo, na primeira metade do século XIX, era comum a utilização como prisões, de instalações precariamente adaptadas, tais como fortalezas, ilhas, quartéis e até mesmo navios, subsistindo ainda as prisões eclesiásticas, estabelecidas especialmente em conventos.16 Neste sentido eram as críticas de Lyra: “Deve ser salientado o expressivo

pronúncio da individualização que se registra no preceito da Constituição de 1824. Na realidade, porém, a promiscuidade entre os processados e condenados, maiores e menores, civis e militares, criminosos primários e habituais, políticos e comuns; a ausência de regras de disciplina, educação, higiene, trabalho e moralidade caracterizavam a Cadeia Velha, que, sob a República, serviu de sede à Câmara dos Deputados, o Aljube, antiga prisão eclesiástica, a da Ilha das Cobras, a de Santa Bárbara no morro do Castelo (o chamado ‘calabouço’), a do Arsenal de Marinha, e as das fortalezas de Santa Cruz e São João”.17

Como se pode perceber, os problemas que assolavam o sistema prisional brasileiro na primeira metade do século XIX, infelizmente, não mudaram muito em praticamente duzentos anos de história. Apesar de novos tempos, constatamos os mesmos velhos problemas.

O Código Criminal de 1830, não regulamentou nenhum outro aspecto da execução das penas, cabia a leis esparsas a regulamentação de alguns poucos institutos como o cumprimento das penas de galés, que era obrigatória, juntamente, com a pena de trabalhos forçados para os escravos, e facultativa para o condenado não escravo (neste caso aplicada de forma temporária e onde não houvesse penitenciária, como na ilha de Fernando de Noronha).18

Somente alguns anos depois, com a inauguração da Casa de Correção da Corte, em 01.08.1850 (primeira prisão propriamente “penitenciária” aberta no Brasil), foi editado o Dec. 678 de 06.07.1850 (Regulamento para a Casa de

Correção do Rio de Janeiro). Este regulamento, segundo Roig, “pode ser considerado a matriz de nosso regramento

carcerário, não apenas em razão de sua magnitude e extensão a outras unidades prisionais em território nacional, mas, sobretudo, por erigir um arcabouço penitenciário cujas permanências são sentidas até hoje”.19

16 Neste sentido, vale a pena conferir o estudo histórico sobre as prisões e legislações no Rio de Janeiro Colonial, Imperial e Primeira República elaborado por ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Direito e prática histórica da execução penal no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2005. p. 28-101. Ver também: PAVARINI e GIAMBERARDINO. Op. cit., 2011, p. 218.

17 LYRA. Op. cit., 1942, p. 94.

18 A Ilha de Fernando de Noronha não possui data precisa quanto ao início de sua utilização como Presídio, estima-se que teria sido entre o final do século XVIII e o início do século XIX. O Regime Civil do Presídio de Fernando de Noronha teve início com a Lei de 03.10.1833, Lei Complementar à Constituição, ao Código Criminal e ao Código de Processo Criminal. Sobre a história do Presídio da Ilha de Fernando de Noronha e a Reforma Prisional no Império: Cf. COSTA, Marcos Paulo Pedrosa. “O Caos ressurgirá a ordem. Fernando de Noronha e a Reforma Prisional do Império.” São Paulo: IBCCRIM, 2009, p. 85-87. Ver também: BRITO, Alexis Couto de. Execução Penal. 2. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 55-56. PAVARINI e GIAMBERARDINO. Op. cit., 2011, p. 220.

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