de conhecimentos tradicionais
Este número da Revista de Antropologia aborda vários temas suscitados pelas políticas de patrimonialização cultural que se têm multiplicado nas recentes décadas. Resulta de um projeto coletivo, sediado no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e financiado pela Funda-ção Ford (dotaFunda-ção 1080-1188-0), que se propôs estudar os efeitos des-sas políticas em populações tradicionais.
Nossa ideia foi considerar tais efeitos mediante estudos detalhados de casos etnográficos. Participam dessa proposta antropólogos que, na sua grande maioria, têm uma longa experiência com as sociedades de que falam. Cada um deles viu nos estudos de caso aspectos particular-mente salientes suscitados pela etnografia. Por sua vez, essas sociedades entraram em processos patrimonializantes em momentos e sob modali-dades diferentes, de modo que as experiências apresentam profundida-de histórica variável. Não cabe ainda empreenprofundida-der a sua síntese e tirar conclusões: os efeitos das políticas de patrimonialização seguem seu cur-so e o trabalho de pesquisa e análise continua. Restrinjo-me nesta apre-sentação a considerações sobre uns poucos aspectos que já parecem pas-síveis de serem destacados.
A maioria dos exemplos trata da passagem de uma esfera interna, cultural, para uma esfera interétnica, “cultural”. A repatriação dos anti-gos enfeites recuperados, após setenta anos, por um movimento de revitalização da “cultura” é um caso de passagem em sentido inverso. A análise arguta e minuciosa de André Martini, que produz uma etno-grafia das mais interessantes, mostra a difícil, perigosa, mas afinal, exitosa
reinserção dos enfeites na vida dos Tukano, Tariana e Desana de Iarauetê, no alto Rio Negro. A vida de André foi muito curta, mas ele deixa aqui uma marca de seu trajeto.
A ideia de patrimônio, de algum tipo de ligação identitária e privi-legiada com coisas materiais e imateriais, de direitos específicos sobre elas, não foi introduzida pelas atuais políticas nacionais e internacionais de patrimonialização. No plano internacional, elas são sobretudo con-duzidas por órgãos da ONU e, mais especificamente, pela Unesco, sen-do instrumentalizadas pela OMPI. No Brasil, é sobretusen-do o Iphan que as protagoniza.
Mas, dizia, a coisa não é nova. Praticamente todas as múltiplas redes de trocas indígenas se assentaram – e, mais provavelmente, se produzi-ram – em especializações emblemáticas. Pois, como já muito se comen-tou, importa mais a troca em si do que a obtenção de objetos: o princi-pal valor é a troca, não o que é trocado. Nos dois conjuntos multiétnicos mais conhecidos no Brasil, o do alto Xingu e o do alto Rio Negro, onde as etnias são vizinhas umas das outras, a especialização por etnia é parti-cularmente exacerbada. Assim, neste volume (no artigo de Lucia van Velthem), vemos como no alto Rio Negro cada implemento dessa ativi-dade comum a todos os povos – o processamento da mandioca – é patrimônio de etnias específicas. Os bancos são Tukano; os raladores, Baniwa; os cestos cargueiros waturá são Baré.
Se a patrimonialização não é novidade, nesse sentido de atribuir di-reitos e especializações a etnias particulares, em que difere das novas políticas de patrimônio?
Uma diferença é evidente de saída: em um caso, trata-se de patrimô-nios que se situam em um mesmo regime compartilhado. Todos os par-ticipantes entendem como funciona: o Baré sabe que não lhe compete autoridade sobre o banco tukano e o Tukano sobre o waturá baré. Ao contrário, o regime não é compartilhado entre o que se entende dentro
do grupo indígena como patrimônio e o que é implementado pela socie-dade nacional ou internacional. Daí as múltiplas conexões e traduções que, como mostra Dominique Gallois para os Wajãpi, são elaboradas na tentativa de conciliar regimes de conhecimentos díspares. Daí tam-bém os ajustes e as contradições que surgem a cada passo, bem como o prazer de encontrar valorizado e reconhecido seu patrimônio confron-tando-se com o temor de vê-lo espoliado, usado sem os devidos cuida-dos, sem a devida autoridade.
O que está embutido em um conhecimento: autoridade versus autoria
Muitas sociedades indígenas têm manifestado uma reserva ciumenta na transmissão de alguns domínios de seus conhecimentos. Chegou-se a confundir essa atitude com uma concepção de propriedade monopolista do conhecimento. Enquanto advogamos por um creative commons e nos alinhamos com Thomas Jefferson, para quem meu conhecimento não infringe nem diminui o de outrem, eles estariam erigindo uma cerca de proteção e criando um creative enclosure. Na realidade, como diz Domi-nique Gallois, “o valor do conhecimento [entre os Wajãpi] está funda-do na sua capacidade de circulação”, mas esta será uma circulação corre-ta, legítima.
O que parece estar em jogo é que o valor não reside somente (ou privilegiadamente) nas coisas e no conhecimento, mas também na ca-deia legítima de transmissão entre detentores com autoridade (mas não necessariamente autoria) e seus aprendizes autorizados. Deve-se manter sob um manto de discrição tanto o conhecimento quanto seu modo de aquisição. Mas, por mais que não seja ostentada essa origem, o conheci-mento é uma cadeia de transmissão e, ao mesmo tempo, o potencial de
produzir algo no mundo. Sua passagem do virtual ao atual, sua instan-ciação, não deveria apagar essa origem e essa cadeia. Esse apagamento é o risco em que se incorre quando se passa de um regime de transmissão interno à sociedade Wajãpi a uma disseminação externa: “a pintura que
foi passada para outra pessoa não vai querer mais saber de quem ela veio”.
A ênfase na autoridade não exclui a inovação, mas a inovação en-quanto produto é subsumida pela sua produção: o processo de aquisição de conhecimento é muito mais enfatizado do que o conhecimento pro-priamente dito.1 Assim, a autoridade deriva de disposições adequadas,
do habitus xamânico por exemplo ou, outro exemplo, da relação mes-tre-aprendiz.2 Nos Marubo, o habitus xamânico do romeya consiste,
se-gundo Cesarino, na comunicação com os espíritos, os yovevo, o que é obtido quando os corpos do xamã e de seus três duplos se tornaram desenhados e belos. Nos Yanomami, as disposições, ou seja, o habitus do xamã, são igualmente enfatizadas e correspondem à fonte de sua au-toridade: consistem em uma série de prescrições e proibições em que se sobressai o consumo intensivo de yekuana. As virtudes epistêmicas do xamã, para usar os termos de historiadores e filósofos da ciência, se for-mam através de duros exercícios. É possivelmente essa ênfase no habitus que explica a teoria katukina de que “para que se conheça algo é preciso tê-lo como uma experiência continuamente vivida. Reza melhor, quem mais reza; caça melhor, quem mais vai à floresta; conhece mais da roça, quem mais planta e assim indeterminadamente. Isso porque se está in-timamente familiarizado com cada uma dessas coisas” (artigo de Edilene Coffaci de Lima). De forma correlata, não se pode transmitir conheci-mentos sem que estes tenham já se inscrito no habitus do detentor: “não há como ensinar aquilo que não está bem estabelecido, amadurecido, ou que não é longevo [...] Ao transmitir precocemente qualquer canto de cura ou reza, corre-se o risco de perdê-lo ou, dito de outra forma, de ter sua potência anulada” (idem). Ou seja, só se adquire realmente um
conhecimento quando ele se torna, por assim dizer, inscrito no corpo, automático. Há muitas analogias pertinentes, por exemplo, a da bici-cleta e da memória de uma poesia: sabe-se andar de bicibici-cleta quando se
anda de bicicleta sem ter consciência da coordenação de cada
movimen-to; sabe-se uma poesia não quando se a leu ou a ouviu, mas quando se a sabe recitar de cor (etimologicamente, com o coração). Em ambos os casos, é um saber que foi automatizado, inscrito no corpo, ou seja, um
habitus. E só havendo adquirido esse habitus, ou ainda, corporificado
esse conhecimento, é que se pode, dizem os Katukina, transmiti-lo. Até porque, sem corporificação, ele não se atualiza. Saber e saber fazer, para o conhecimento tradicional, se confundem.
Vista sob este ângulo, a escrita apresenta sérias deficiências nesse que-sito. Não apenas é uma memória externa ao corpo, mas ela se arroga o poder de transmitir dados e conteúdos sem as disposições adequadas, sem estabelecer o habitus. O conteúdo, porém, não basta. É como se se pretendesse aprender a dirigir um carro guiando-se por um manual, len-do e aprendenlen-do todas as regras mas sem jamais as executar corporal-mente. Ou tornar-se um cirurgião “teórico”. Ou aprender a nadar por meio de um livro. Assim, todas as compilações escritas de saberes nunca poderão realmente transmitir os saberes tradicionais. No máximo, po-derão ser índices de sua existência e fornecer pistas.
Pode-se talvez entender assim o mal-estar, a ambiguidade de senti-mentos que qualquer registro de saberes – pela imagem, pelo som, pela escrita e, sobretudo, pela palavra impressa – parece provocar em socie-dades tradicionais. Não importa se quem os transmitiu tinha autorida-de para tanto, nem se houve consentimento informado e generosa retri-buição individual ou coletiva. Falta-lhes alguma coisa para serem veículos de conhecimentos. Ouvidos com interesse e até sofreguidão pelos índios, os cantos alheios e até os do próprio grupo são muitas vezes tidos por pirateados, pois pecam no quesito da transmissão adequada e, portanto,
da aquisição autorizada. Essa falta ou carência poderá ser parcialmente remediada com uma xamanização a posteriori, como parece ser o caso entre os Marubo.
A diferença entre um regime externo de tipo Unesco e os regimes de conhecimentos e prerrogativas locais, sejam eles intra ou interétnicos, levam as sociedades tradicionais a políticas e acomodações diversas. Vários exemplos constam neste dossiê. Os Tariano e os Tukano, estes representando todos os não-Tariano que moram em Iauaretê, por exem-plo, segundo Geraldo Andrello, passaram a operar em paralelo nos dois regimes. De certa forma, o regime Unesco impulsionou uma revitaliza-ção do regime agonístico mais tradicional em que os Tariano e Tukano exibem uns aos outros, em momentos diferentes, seus ornamentos e flau-tas, tentando estabelecer, a cada dabucuri, sua versão das origens. Que a preeminência de cada versão seja por natureza efêmera, sujeita a desafio e inversão a cada dabucuri, que sua única constância seja a de ser imper-manente, isso não parece perturbar ou contaminar o regime Unesco coletivizador, que tenta pacificar a disputa acolhendo sem hierarquizar todas as versões.3
Manuela Carneiro da Cunha Universidade de Chicago
Notas
1 Como escreve Edilene Coffaci de Lima: “os produtos e os processos estão
imbrica-dos, são tidos como inseparáveis”
2 Por isso, a pessoa não qualificada, sem a autoridade necessária, que manipula
obje-tos ou conhecimenobje-tos, arrisca-se seriamente (Wajãpi).
3 A febre editorial que tomou conta de várias etnias do alto Rio Negro e que resultou
na grande coleção de mitos e histórias “Narradores do rio Negro” da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) adotou a mesma equanimidade em relação a versões eventualmente conflitantes. Não consta, porém, que essa política tenha eliminado as disputas tradicionais.