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32º Encontro Anual da Anpocs GT 9: Cultura brasileira: modos e estilos de vida

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32º Encontro Anual da Anpocs

GT 9: Cultura brasileira: modos e estilos de vida

“Comida de santo” e “comida típica”: um estudo do Ofício das Baianas de

Acarajé

Nina Pinheiro Bitar

Mestranda PPGSA / UFRJ

Resumo: Ao pensarmos a comida como uma categoria social e culturalmente construída, a proposta deste trabalho é de procurar refletir em que medida a noção de “patrimônio cultural” assume um significado de maior amplitude, se aliada às possíveis leituras sociais e simbólicas que as categorias culinárias podem oferecer. Pretendo discutir o registro do “ofício das baianas de acarajé”, tal qual “patrimônio cultural brasileiro”, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Pode-se dizer que a alimentação assume o valor de ser um elemento que constitui subjetividades individuais e coletivas e, por conseqüência, aparece como uma importante fonte de interpretação antropológica.

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Introdução

Embora o ato de comer seja usualmente compreendido como uma simples satisfação de necessidades fisiológicas, a comida pode ser pensada como uma categoria social e culturalmente construída. Assim, podemos problematizar os seus usos e significados ao abordar a comida enquanto uma categoria de pensamento1.

A proposta deste trabalho2 é refletir sobre como a noção de “patrimônio cultural” assume um significado de maior amplitude, quando aliada às possíveis leituras sociais e simbólicas que a comida pode suscitar. Seguindo este caminho, pretendo pensar a articulação entre “comida” e “patrimônio cultural”, mais especificamente a configuração desse trânsito no caso específico do processo de registro do “ofício das baianas de acarajé” como “patrimônio cultural brasileiro” pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).

Podemos ler a conceituação de “patrimônio imaterial” no site da Unesco:

É amplamente reconhecida a importância de promover e proteger a memória e as manifestações culturais representadas, em todo o mundo, por monumentos, sítios históricos e paisagens culturais. Mas não só de aspectos físicos se constitui a cultura de um povo. Há muito mais, contido nas tradições, no folclore, nos saberes, nas línguas, nas festas e em diversos outros aspectos e manifestações, transmitidos oral ou gestualmente, recriados coletivamente e modificados ao longo do tempo. A essa porção intangível da herança cultural dos povos, dá-se o nome de patrimônio cultural imaterial.3

E no site do Iphan:

A Unesco define como Patrimônio Cultural Imaterial as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas e também os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes são associados e as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos que se reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. O Patrimônio Imaterial é transmitido de geração em geração e constantemente recriado










1 Portanto, sempre ao me referir a “comida” ou “patrimônio”, será enquanto categoria de pensamento, ou seja,

conceitos cujos contornos semânticos não são dados, são construídos social e culturalmente.

2 Pesquisa de mestrado em desenvolvimento (bolsa CNPq), orientada pelo Professor Dr. José Reginaldo Santos

Gonçalves, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. 4

Este estudo propõe salientar a importância de se compreender a atual política do Iphan e de discutir as concepções de patrimônio adotadas por essa instituição, aliando a isso a análise da repercussão dessa política junto àqueles diretamente envolvidos com o registro. A partir do estudo do “oficio das baianas do acarajé”, podemos apontar um trânsito entre as categorias “comida” e “patrimônio imaterial”, ou seja, como se processou uma valorização da comida tal qual elemento delineador de identidade “regional” e “nacional”.

Uma questão interessante abordada em Algumas formas primitivas de classificação de Durkheim e Mauss ([1903] 2001), é que devemos buscar o caráter sistemático das classificações. Argumentam que a classificação não é um dado e deve-se perguntar por que certa coisa é classificada de uma determinada maneira em detrimento de outra e por que suas idéias são ordenadas sob determinada forma. Sob essa perspectiva, a comida, no caso o acarajé, pode ser apreendida enquanto mediadora de classificações, tanto internamente, envolvendo a complexidade cosmológica em que está inserida cotidianamente e ritualmente, como a partir de representações acerca do “patrimônio imaterial”, envolvendo esferas políticas de representações sociais e culturais através do registro do “ofício das baianas de acarajé”.

É comum pensarmos a comida classificada “típica” como emblema de identidade, ou religiosa, nacional, regional, étnica, histórica, entre outras. Pierre Bourdieu (2007) formula que a alimentação é um demarcador de classes e indivíduos e artifício de distinção, pois as classes altas – através do habitus – sempre buscariam se distanciar das classes baixas, através do mecanismo de distinção e dominação. Uma visão diferente propõe que devemos pensar nas formas de classificação e como é construída. Destarte, o objetivo desse estudo é buscar compreender alguns caminhos percorridos pela simbolização e relações sociais mediadas pelo acarajé. Ou seja, entender como é significado e ressignificado histórica e culturalmente. Nessa perspectiva, o “patrimônio imaterial” é visto não somente como um demarcador de identidades, mas como produtor de sujeitos e subjetividades individuais e coletivas.










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O conceito “patrimônio imaterial”

Podemos dizer que há uma recente política do Iphan de valorização de elementos de cultura popular, classificados como “bens culturais”, e não apenas aqueles de “pedra e cal”, como os que constituiriam e distinguiriam a “nação” brasileira. Trata-se de modalidades de discurso acerca da “nação” que podem ser interpretadas como “produtos e efeitos de estratégias de objetificação cultural”, como nos aponta Gonçalves (2003). No seu trabalho pode-se apreender a complexidade das propostas do Iphan através dos discursos de Rodrigo Melo Franco de Andrade e Aloísio Magalhães. É com Aloísio que a noção de “bens culturais” aparece positivamente, uma valorização da cultura popular como elemento formador da nacionalidade, a qual estaria em risco de eminente perda frente a modernidade, industrialização e globalização.

É importante ressaltar que Mário de Andrade elaborou por encomenda de Gustavo Capanema o anteprojeto para a criação do Sphan (Instituição anterior ao Iphan) em 1936 e que este foi criado em 1937. Mas a influência das idéias modernistas aparece mais significativamente a partir dos anos 70, com Aloísio Magalhães. Nesse sentido, penso que é possível dizer que concepções modernistas e folcloristas para a formulação de concepções de “identidade nacional” influenciaram diretrizes do Iphan, na medida em que, como aponta Eduardo Moraes, houve um intenso diálogo entre o movimento folclórico e o movimento modernista. O folclore tornou-se um instrumento que garantiria o delineamento do “ser nacional”.

Vilhena (1997) nos mostra que o movimento folclórico buscava a institucionalização do folclore nas universidades, especificamente da disciplina nas Ciências Sociais. Porém esses folcloristas foram de certa forma "marginalizados" pela disciplina, acusados de tratarem o material etnográfico a partir de um colecionismo descontrolado, sem terem uma preocupação com o rigor acadêmico científico que as ciências sociais buscava. A escola de sociologia paulista, cujos representantes principais eram Florestan Fernandes e Roger Bastide, é apontada como a principal oposição. Enfatizava a modernidade, luta de classes, as mudanças sociais, e já o movimento folclórico buscava, através da Comissão Nacional de Folclore, a valorização do folclore como identidade nacional, a partir do que Vilhena chama de estratégia de "rumor", que atingiam a partir de congressos e pesquisas de folclore espalhadas por todo o Brasil. Pensavam o folclore como uma cultuação a "aura" de um passado arcaico,

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"espontâneo" e de “pureza” de criação coletiva, a qual cabia a eles proteger de sua eminente "perda" com a modernidade.

Entretanto, é interessante observar a especificidade desses autores e suas diferentes formulações teóricas sobre cultura popular e a sua importância no âmbito das pesquisas na área. Podemos citar, dentre eles, Luis da Câmara Cascudo, cujos trabalhos História da

Alimentação no Brasil e Dicionário do Folclore Brasileiro podem ser destacados5. Tais folcloristas não conseguiram formalizar a disciplina folclore nas universidades, como pretendiam, mas atingiram através das instituições governamentais os estudos nessa área, ou seja, as pesquisas de folclore acabaram por se formalizar ligadas à política cultural, com o objetivo de caracterização da originalidade brasileira.

Uma das questões importantes é de pensar até que ponto esses pressupostos propostos pelos folcloristas e movimento modernista formam uma base para a criação da categoria “patrimônio imaterial” e como permeiam as políticas de registro do Iphan. Também vale ser analisado o papel de teorias antropológicas para a formulação de tais políticas públicas atualmente. É interessante observar que neste processo de valorização do “patrimônio imaterial” há um diálogo com conceitos antropológicos de cultura para o tratamento de seus objetos, o registro do “ofício das baianas de acarajé” é um exemplo disto, pois não é propriamente um registro do acarajé, mas de um “sistema cultural” que envolve a sua totalidade (Vianna, 2004).

Comida e patrimônio: Ofício das Baianas de Acarajé

Maciel, ao argumentar com Claude Fischler, formula:

O homem nutre-se também de imaginário e de significados, partilhando representações coletivas. Se é possível avaliar o valor nutritivo do alimento (um combustível a ser liberado como energia e sustentar o corpo) o ato alimentar implica também em um valor simbólico, o que complexifica a questão, pois requer um outro tipo de abordagem. (2001:01)










5 Sem esquecer a importante contribuição de Gilberto Freyre, o qual não participava formalmente do movimento

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Lévi-Strauss (2004), aponta para o caráter universal da comida e a seu papel mediador entre a natureza e cultura, já que todos os mitos por ele estudado referem-se “direta ou indiretamente à invenção do fogo e, portanto, a da cozinha, enquanto símbolo no pensamento indígena.” (Laraia, 2006: 03). Um outro ponto de vista importante para a discussão entre natureza e cultura, é Clifford Geertz, o qual argumenta sobre o caráter relacional entre essas duas noções, afirmando a importância do simbólico como também estruturador do homem. Geertz aponta que, por exemplo, não basta que o homem tenha a capacidade de falar, mas “emitir as palavras e frases apropriadas, no tom de voz apropriado e com a indireção evasiva apropriada. Não é apenas comer: é preferir certos alimentos, cozidos de certas maneiras, e seguir uma etiqueta rígida à mesa ao consumi-los” (1978:65). Tais autores apontam para uma visão que não separa em pólos dicotômicos a natureza e cultura, trata-se de pensar o caráter relacional, em que uma categoria influencia a outra, e não como estágios de desenvolvimento do ser.

Pude observar que as pessoas que trabalharam no inventário do “oficio das baianas de acarajé” procuraram entender a comida enquanto “sistema culinário”. Podemos dizer que tal concepção apreende que a comida faz parte de um conjunto social e cultural, enfatizando as relações sociais e simbólicas em que ela está inserida e nas quais age. Tal proposição, formulada, principalmente por Mahias concebe:

Tous lês éléments de l’activité culinaire – aliments (aromates inclus), modes de préparation et de cuisson (utensiles, savoir-fare), mets (couleurs, saveurs, textures), rythme et composition des repas, convivres et manières de manger – font l’objet de choix. Ils sont eux-mêmes ordonnés, situés dans des rapports d’appropriation ou d’exclusion, et constitués en codes. Par la place qui lui ainsi attribuée, chaque élément pertinent de la cuisine et du repas est chargé de sens et prend valeur de signe (1991: 187).

A perspectiva de sistema insiste sobre a interdependência e pluralidade de seus elementos constituintes, os quais vão desde a classificação e obtenção do alimento à disposição de seus restos. São conjuntos de práticas e representações intimamente integrados a determinadas cosmologias, que unem pessoa, sociedade e universo. Já Verdier nos fornece uma interessante concepção da comida como moldura de um campo semântico:

Uma etnografia da cozinha para dar conta de todos os aspectos da refeição – escolha de alimentos pela relação da flora e fauna local, modos de cozer, sabores, texturas,

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cores combinadas ou associadas aos pratos, comportamento do indivíduo, etiqueta, protocolo, serviço e etc – fornecerá as molduras de um campo semântico.

(1969: 52 - minha tradução)

O registro do “ofício das baianas de acarajé” é um exemplo disto, pois não é propriamente o acarajé, mas os saberes que envolvem a sua totalidade que são valorizados. O pedido de registro foi proposto pela Associação das Baianas de Acarajé e Mingau do Estado da Bahia (Abam), pelo Terreiro Ilé Axé Opô Afonjá e Centro de Estudos Afro Orientais da Universidade Federal da Bahia. Foi inscrito no Livro dos Saberes do Patrimônio Imaterial como patrimônio cultural brasileiro em 2004. A principal argumentação para o registro era pela relação conflituosa com os evangélicos com o seu “acarajé de Jesus”. Pois com a abertura do mercado, esse ofício exercido por mulheres pertencentes ao candomblé passa, a partir dos anos setenta, a ser exercido por homens e pessoas desvinculadas dessa esfera religiosa e evangélicos. Neste contexto, o acarajé é re-significado, objeto de rivalidade entre as baianas do candomblé e as da igreja evangélica. Disputa essa que envolve o universo simbólico e comercial. E sobre este ponto de vista, um universo fortalece o outro (Nogueira; Mendonça, 2004).

O inventário inicialmente, em 2001, era voltado ao acarajé especificamente, a sua técnica de feitura e o acarajé seriam registrados, destacando-se assim de um conjunto culinário de fundo religioso. Passaram em 2003 ao inventário do tabuleiro, focando-o como espaço de produção dos seus vários itens e significados envolvidos, porém, em 2004 resolveram que seria mais interessante o inventário do “ofício da baiana de acarajé”, resultando no seu registro, o qual não privilegiaria o acarajé e sua materialidade, mas a baiana, ressaltando a valorização do legado histórico afro-descendente e seu universo religioso.

Com base no material do inventário, pode-se apreender que é ressaltada a complexidade em que o acarajé está inserido. Resumidamente, no inventário, o acarajé é apresentado como um bolinho de feijão-fradinho, cebola e sal, que é frito em azeite de dendê. Segundo algumas fontes, o seu nome, em ioruba significa “comer fogo” (acará + ajeum). Explicam que o seu comércio teve início ainda no período colonial, mas o seu universo fortemente demarcado foi o do candomblé, comida sagrada, utilizada em rituais, nos quais é ofertada aos Orixás, principalmente a Xangô e à sua mulher, Iansã. Hoje, podemos dizer que ele transita entre “comida de santo” e “comida típica”, mobilizado por seu comércio. Neste

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sentido, este elemento é oferecido tanto aos humanos quanto aos Orixás, representando um mediador fundamental entre estas esferas através do princípio da dádiva.

A sua venda também é marcada por regras, no caso do registro é apresentado como sendo tradicionalmente uma atividade feminina quase sempre filiada à Associação das Baianas de Acarajé e Mingau do Estado da Bahia, cujos modos de fazer, assim como as vestes, são extremamente demarcadas. Atualmente também é um ofício exercido por homens (caso do Bairro de Brotas) e por pessoas que não são ligadas ao candomblé, principalmente os evangélicos com o “acarajé de Jesus”.

Assim, retomando a discussão inicial, podemos pensar em que medida o “ofício das baianas de acarajé” nos aponta para apreender, de certa forma, um diálogo no campo do pensamento social brasileiro entre as perspectivas folcloristas, modernistas, antropológicas e nativas, concebendo a comida, no caso o acarajé, enquanto um mediador entre conceitos e agentes. Marisa Peirano (1996) nos fornece um interessante ponto de vista, propondo que a história ao invés de ser circular, caracteriza-se de forma “espiralada”, apresentando sempre uma nova faceta ou solução, ao contrário da repetição. Cabe esclarecer em que medida esses pontos de vista se aproximam ou se distanciam e de que maneira interagem.

A política patrimonial evidencia a importância de pensar os significados sociais e simbólicos que a comida pode assumir. A alimentação, nesta assume o valor de ser um elemento que constitui subjetividades individuais e coletivas e, por conseqüência, aparece como uma fonte de interpretação da sociedade. Assim como formulou Roberto DaMatta: “comida não é apenas uma substância alimentar mas é também um modo, um estilo e um jeito de alimentar-se. E o jeito de comer define não só aquilo que é ingerido, como também aquele que o ingere” (Maciel, 1998). Neste caso, a comida pode apontar ainda para possíveis definições de quem a produz e também de quem a classifica como “patrimônio imaterial”. E mais, quem come o patrimônio?

Mercado, religião e nutrição: baianas, “barraqueiros” e evangélicos

No caso específico da patrimonialização de “bens imateriais”, essa relação conflituosa com o mercado é bem acentuada. O registro do “ofício das baianas de acarajé” é um exemplo

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disto, pois foi em vista de regulamentar e demarcar fronteiras, que o registro foi feito. Com a abertura do mercado, esse ofício exercido por mulheres pertencentes ao candomblé passa, a partir dos anos setenta, a ser exercido por homens e por evangélicos – pessoas desvinculadas dessa esfera religiosa. A difusão desse também modo de sobrevivência, aparece de forma delicada, no caso do comércio do acarajé, pois é reinvindicada a sua ligação com o universo mágico-religioso do candomblé. Nesse sentido há uma recontextualização deste saber por pessoas que não participam dessa esfera religiosa e uma ressignificação do acarajé.

Porém, vale ressaltar que o número de evangélicos que vendem acarajé, após o registro, diminuiu. Além desse conflito, foi ressaltado por Rita dos Santos (presidenta da Abam)6 que o maior problema enfrentado pelas baianas de acarajé é o embate com “barraqueiros” das praias. Segundo Rita, as baianas que trabalham próximas aos “barraqueiros” têm que repassar de vinte a trinta por cento do seu lucro a eles por venderem produtos similares aos vendidos por eles e, assim, concorrerem pela clientela das praias. Ou seja, uma disputa de mercado que explicita que a questão não é tão fortemente marcada pelo religioso estritamente, são várias esferas envolvidas e diferentes relações conflituosas, sempre envolvendo a eminente “perda” das baianas.

Elizabete Mendonça7 aponta a importância de compreendermos a questão entre os padrões “científicos” da nutrição em embate aos produtos “tradicionais”, uma relação problemática. A Rede Globo exibiu no Fantástico (fevereiro de 2002) uma reportagem denunciando as condições de higiene – elevado grau de coliformes fecais – dos acarajés de Salvador. Em conseqüência, cria-se o Acarajé 10, programa de parceria com o Senac Bahia, cujo objetivo era capacitar através de “seminários de sensibilização das vendedoras ambulantes, de cursos de noções básicas de segurança alimentar, de análises microbiológicas de amostras dos alimentos vendidos nas ruas e da certificação profissional, propriamente dita”8. Após realizarem o curso, receberiam o certificado e o selo Acarajé 10. Porém, com o elevado índice de analfabetismo entre as baianas e a metodologia de ensino era com base em provas escritas, a maioria foi reprovada. Esses cursos, pautados em categorias científicas, características da gastronomia, aparecem de forma a não dialogar com as demandas nativas. Um dado interessante é o da exigência da utilização de termômetros pelas baianas para 








6 Vídeo do Seminário de Avaliação do Projeto Celebrações e Saberes da Cultura (26/01/2007); E entrevista

concedida 06 de junho na Abam, 2008.

7 Comida é a palavra, Palestra Museu Livre de Cultura Popular e Folclore (julho, 2008). Mendonça é

pesquisadora do Inventário.

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monitorar o aquecimento do alimento, a qual deveria, de tempo em tempo fazer essa verificação.

O curso consistiu em quatro módulos de aulas de segurança alimentar e manipulação de alimentos. Além da prova escrita, fiscais da vigilância sanitária visitavam as casas e os tabuleiros das baianas para inspecionar as condições de higiene. Muitas baianas, aponta Rita, endividaram-se para passar no que denominou “vestibular das baianas”, reformando suas cozinhas, mas na prova escrita não conseguiram atingir os pontos necessários e foram reprovadas. Rita dos Santos levantou a questão que a Tramontina passou a fazer o tabuleiro completo, de madeira e três panelas (em substituição às panelas de barro, condenada pela vigilância sanitária) e que Coca-Cola e Banco do Brasil negociam financiá-las, o que para elas parece interessante, apesar de romper com as expectativas de autenticidade patrimonial. Sob essa perspectiva, o “bem imaterial”, a nutrição e o mercado se conjugam de forma particular.

A construção de uma estética

A estimativa é de que existam cinco mil baianas de acarajé, sendo duas mil filiadas a Abam (Associação das Baianas de Acarajé e Mingau). Tais baianas já se apropriaram do “discurso da cultura”, sempre frisando a importância das vestes e do modo de fazer regulamentado pelas leis do mercado de produtos “tradicionais,” um discurso cujo objetivo é criar particularidades através da estética. Porém, é importante apreender qual é a noção de patrimônio e estética nativa e como se relacionam com a esfera religiosa, por mais que apareçam desligados dessa esfera comercial. Já o mercado também se relaciona ao turismo gastronômico, revelando uma relação conflituosa também entre baianas de acarajé, restaurantes e a sua industrialização.

Rita dos Santos9 coloca a seguinte frase: “agora que as baianas são patrimônio, vamos melhorar”, argumentando a falta de apoio do Município e do Estado. Nesse sentido, podemos perceber que a percepção nativa de patrimônio é focada nas pessoas que fazem parte desse universo simbólico de ser baiana de acarajé. É interessante buscar compreender como essa noção de pessoa é construída através do discurso do patrimônio e pela concepção nativa do 








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mesmo. A roupa aparece na fala de Rita como uma característica marcante da baiana e que garante o seu status. Não questiona a religiosidade, mas a apresentação das pessoas que vendem. Mas qual a divisão entre roupas e o significado a elas atribuído? Será natural usar um colar de contas de um orixá? Ou seja, é um campo em disputa, envolvendo os significados e poderes que esses “bens” são investidos. Rita, em alguns momentos fala bem dos evangélicos – que eles respeitam as regras de higiene, as vezes mais do que as baianas –, porém, eles também têm que usar as vestes. Segundo ela, os homens também respeitam, usam as suas vestes específicas, e acha que cada Regional deve cobrar essa questão estética, além cobrar também o modo de fazer. O traje da baiana consiste basicamente em: camisu, nágua, saia, bata, otá (torso) e pano da costa, já os homens usam batas. Tais vestes fazem parte de circuitos de trocas, envolvendo também divindades.

É interessante observar que há um discurso bem marcado do tipo de estética que deve ser “respeitado”, com as regras específicas baseadas na “história afro-descendente”. Uma reivindicação de autenticidade como forma de marcar uma identidade. Porém, não basta dizer que tal bem é um demarcador de identidades, mas tentar entender que construção de identidade é essa (ao menos em relação ao discurso “oficial” da Abam). Quais são essas escolhas e como são marcadas? Uma das questões levantadas por Rita10 foi em relação a identidade profissional das baianas. Relatou que ao tirar passaporte não queria preencher o campo profissão como “cozinheira”, mas sim como “baiana de acarajé”, pois, segundo Rita: “cozinheiro, cozinha em casa”. Tal concepção nos leva a pensar a oposição entre casa e rua, entre comida para ser feita e comida em casa e comida de rua. Na casa, não aparece a identidade “baiana de acarajé”, mas de cozinheira. Enfim, há um tipo de identidade reivindicada, que aliada ao apontamento feito por Rita, “agora, que somos patrimônio...”, é buscada.

Assim sendo, ao articularmos as noções alimentação e patrimônio, podemos dizer que surgem questões que escapam de concepções difundidas dos mesmos. Torna-se complicado naturalizar tais pressupostos, de forma a ampliar o leque de debate. Portanto, deve-se ser analisado em que medida essas noções aparecem nas concepções nativas, ou seja, quais os significados sociais e simbólicos atribuídos e configurados pelos agentes.










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Referências

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