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OS FUNDAMENTOS ONTOLÓGICOS DO DIREITO: NOTAS INTRODUTÓRIAS RESUMO

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OS FUNDAMENTOS ONTOLÓGICOS DO DIREITO: NOTAS INTRODUTÓRIAS

Márcia Pereira da Silva Cassin1

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo fornecer subsídios para uma breve aproximação acerca dos fundamentos históricos, teóricos e ídeo-politicos dos direitos, como forma de desvelar o fetiche que encobre a forma de sujeito de direito e a desigualdade oculta nas relações sociais que estão na base da forma jurídica. Para tanto, recorre-se a um estudo preliminar das obras de Marx e Engels na perspectiva de identificar como o direito estabelece uma relação simbiótica com a produção e reprodução das relações sociais, assumindo um caráter de classe na reprodução da sociabilidade burguesa.

Palavras-chave: Direito. Mercadoria. Fetichismo. Desigualdade.

Assistente Social do Centro de Referência de Assistência Social do município de Pedra Dourada – MG e Mestre em Serviço Social pelo PPGSS da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

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1 - INTRODUÇÃO

A questão do direito está intrinsecamente atrelada ao exercício profissional dos assistentes sociais, tendo em vista que estes são chamados a intervir nas diversas manifestações da “questão social” 1

através da operacionalização das políticas sociais, na preservação e controle da força de trabalho. As políticas sociais no capitalismo são mediadas pela dinâmica concessão/conquista, fundada em determinações econômicas e políticas que envolvem os diferentes interesses em disputa na arena da luta de classes. Por constituírem uma unidade contraditória, respondem tanto aos interesses da burguesia – empenhada em aumentar suas taxas de lucro e acumulação e legitimar sua dominação garantindo os mínimos necessários à reprodução da classe trabalhadora –, como aos do proletariado, que almeja obter melhorias (ainda que mínimas) em suas condições materiais de vida. Essa correlação de forças conjugada aos diferentes ciclos econômicos do capitalismo determina os limites e possibilidades da política social.

Sua institucionalização depende tanto do nível de socialização da política conquistado pelos trabalhadores como das estratégias do capital na incorporação das necessidades do trabalho, configurando-se historicamente como um campo de disputas e negociações na ordem burguesa. As responsabilidades assumidas pelo Estado no campo das políticas sociais estão relacionadas à noção de cidadania, que comporta um conjunto de direitos na maioria das vezes conquistados pela luta dos trabalhadores, o que não impede, contudo, que tais direitos assumam uma funcionalidade na reprodução da sociabilidade burguesa.

Na atual conjuntura, há um profundo hiato entre o legal e o real, ou seja, entre os direitos tais como se apresentam inscritos na Constituição e na forma como são, de fato, materializados, especialmente em países de formação periférica como o Brasil. Desse modo, o simples reconhecimento do direito alijado das condições para sua efetivação, implica em que este se “constitua em mero discurso de claro conteúdo ideológico” (GUERRA, 2009, p. 9). Cabe-nos, portanto, compreender os fundamentos históricos, teóricos e ídeo-politicos dos direitos, como forma de desvelar o fetiche que encobre a forma de sujeito de direito.

2 - A QUESTÃO DO DIREITO EM MARX

A compreensão dos fundamentos ontológicos do direito nos remete a uma breve aproximação à concepção marxista do direito e à crítica de Marx (e Engels) à ilusão jurídica.

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3 De acordo com Naves (2014), toda a obra destes dois autores se constitui em um combate, ainda que tácito, contra o direito e a ideologia jurídica, cuja maior expressão reside no chamado “socialismo jurídico”. Desse modo, a crítica das representações ideológicas do direito e a compreensão da natureza dessas representações e de seu decisivo papel no processo do capital e da luta de classe perpassam toda a teoria marxista. As categorias de sujeito de direito, propriedade, liberdade e igualdade ocupam um lugar de importância crucial na reprodução das relações sociais no capitalismo, de modo que “o domínio do capital estaria interditado sem esses laços invisíveis que o direito pacientemente tece, incapacitando-nos de ver, nesse labor sutil de constituição do homem livre, a terrível realidade da exploração” (NAVES, 2014, p. 9).

Naves (2014) destaca que os textos produzidos na fase da juventude de Marx são os que mais explicitam a temática jurídica, ao passo que são também as obras mais afastadas de uma compreensão materialista do direito. Em Sobre a questão judaica, Marx nos fornece uma rica análise sobre a conexão intrínseca dos direitos à propriedade privada e é onde apresenta de forma mais consistente a questão da emancipação. Nesta época, a Alemanha era um país cristão que excluía os judeus da participação política e do exercício de funções públicas. Os judeus almejavam a emancipação cidadã, mas Bruno Bauer os repreendia afirmando que na Alemanha ninguém seria, de fato, politicamente emancipado. Logo, a luta pela emancipação dos judeus deveria se expressar na luta pela emancipação política de todos os alemães. Marx critica o posicionamento de Bauer, conduzindo a discussão para um patamar mais elevado: “De modo algum bastava analisar as questões: quem deve emancipar? Quem deve ser emancipado? A crítica tinha uma terceira coisa a fazer. Ela devia perguntar: de que tipo de

emancipação se trata?” (MARX, 2010, p. 36, grifos do autor).

Dessa forma, segundo Marx, Bauer estaria dirigindo um tratamento superficial à questão, não atingindo os fundamentos da emancipação política, por ignorar uma investigação mais profunda da relação entre emancipação política e emancipação humana. A emancipação política do judeu ou do cristão consiste na libertação do Estado em relação ao judaísmo ou ao cristianismo. Para Marx, o limite da emancipação política reside no fato de o Estado ser capaz de “se libertar de uma limitação sem que o homem realmente fique livre dela, no fato de o

Estado ser capaz de ser um Estado livre [Freistaat, república] sem que o homem seja um homem livre” (Ibid., p. 38-37, grifos do autor).

Assim, Marx evidencia a insuficiência de uma emancipação que se restringe ao campo da política, onde os homens se tornam livres e iguais apenas no aspecto formal; ou seja, apenas na dimensão jurídico-política, mas, em nenhuma hipótese, na dimensão social.

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O Estado político pleno constitui, por sua essência, a vida do gênero humano em oposição à sua vida material. Todos os pressupostos dessa vida egoísta continuam subsistindo fora da esfera estatal na sociedade burguesa, só que como qualidades da sociedade burguesa. Onde o Estado político atingiu a sua verdadeira forma definitiva, o homem leva uma vida dupla não só mentalmente, na consciência, mas também na realidade, na vida concreta; ele leva uma vida celestial e uma vida terrena, a vida na comunidade política, na qual ele se considera um ente comunitário, e a vida na sociedade burguesa, na qual ele atua como pessoa particular, encara as demais pessoas como meios, degrada a si próprio à condição de meio e se torna um joguete na mão de poderes estranhos a ele (Ibid., p. 40).

Nesta passagem, Marx problematiza a representação do Estado como esfera separada da sociedade civil, em decorrência da cisão entre esfera pública e privada, ou seja, do homem “genérico” no Estado e “egoísta” na sociedade burguesa. O indivíduo se torna “membro imaginário de uma soberania fictícia, tendo sido privado de sua vida individual real e preenchido com uma universalidade irreal” (p. 41). Cria-se uma dualidade dos indivíduos como burgeois (membro da sociedade civil) e citoyen (cidadão, sujeito de direito).

O pensador alemão examina a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1791 e 1793 e percebe que ambas são frutos de uma emancipação apenas política, que não se estende à esfera social. Observa Marx:

Por que o membro da sociedade burguesa é chamado de ‘homem’, pura e simplesmente, e por que os seus direitos são chamados de direitos humanos? [...] os assim chamados direitos humanos, os droits de l’homme, diferentemente dos droits du citoyen, nada mais são do que os direitos do membro da sociedade burguesa, isto é, do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade (p. 48, grifos do autor).

Esse conjunto de direitos cria uma aparência de igualdade expressa na “liberdade”, mas, na verdade, diz respeito à liberdade necessária à garantia da propriedade privada. É a liberdade de ser indivíduo “limitado a si mesmo”, autocentrado. Da mesma forma, o direito à segurança refere-se à “asseguração do egoísmo” de o indivíduo dispor de seu patrimônio de forma segura. Desse modo, “nenhum dos assim chamados direitos humanos transcende o homem egoísta, o homem como membro da sociedade burguesa, a saber, como indivíduo recolhido ao seu interesse privado e ao seu capricho privado e separado da comunidade” (p. 50). A emancipação pela mediação do Estado é essencialmente limitada, tendo em vista que o indivíduo torna-se livre apenas no aspecto jurídico, ao passo que na esfera privada permanece preso sob o jugo do trabalho alienado. Marx faz uma distinção entre a emancipação política e a emancipação humana, a qual seria, por sua vez, a efetiva libertação do homem.

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Mas a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o homem individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais, quando o homem tiver reconhecido e organizado suas “forces propres” [forças próprias] como forças sociais e, em consequência, não mais separar de si mesmo a força social na forma da força política (Ibid., p. 54, grifos do autor).

Naves (2014) ressalta que a crítica de Marx ao direito presente na Questão judaica é insuficiente, posto que o autor ainda não houvesse aprofundado seus estudos sobre o modo de produção capitalista. Assim, Marx teria descrito as formas aparentes da sociabilidade burguesa sem estabelecer um vínculo com as relações de produção e circulação que as tornam inteligíveis.

De acordo com o referido autor, somente n’A ideologia alemã o direito será colocado em seu devido lugar, qual seja, como uma expressão necessária das condições materiais da vida social e não como causa fundante das relações sociais2. Esta descoberta significou uma verdadeira “revolução epistemológica no domínio jurídico” (NAVES, 2014, p. 22), ao abrir a possibilidade para que o direito seja desvelado em seus fundamentos reais e ao mesmo tempo deslocar o objetivo estratégico da luta dos trabalhadores da ideologia jurídica para a supressão do trabalho alienado. No entanto, o autor ainda faz a ressalva de que apesar de os trabalhos produzidos por Marx entre 1845 e 1847 fornecerem um fundamento material ao fenômeno jurídico, ainda seria preciso esperar a produção d’O capital para que o mistério da forma jurídica fosse devidamente desvendado.

N’A ideologia alemã Marx e Engels também promovem uma crítica ao “socialismo jurídico” de Stirner, o qual possuía uma representação do socialismo enquanto um modo de organização social em que a propriedade privada fosse convertida em propriedade coletiva, comum a todos, mas não se desvinculando da categoria de propriedade, do usufruto individual de uma propriedade coletiva; portanto, da ideologia jurídica. Nesta concepção, o direito é relacionado ao uso da propriedade, que pressupõe, por seu turno, a existência da circulação mercantil. Nesse sentido, Marx e Engels atentam para o fato de que o comunismo e o direito são essencialmente antagônicos, dada a ligação intrínseca deste aos processos de troca de mercadorias e, portanto, à sociedade burguesa. É preciso, então, não perder de vista que

[...] o direito e a ideologia jurídica são elementos que funcionam para a reprodução das relações de produção capitalistas. Levantá-los como bandeiras na luta contra o capital ou erigi-las em princípios norteadores de uma sociedade comunista produz o efeito exatamente inverso: o reforço da dominação burguesa (NAVES, 2014, p. 32).

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6 Naves acredita que O capital tenha representado uma verdadeira revolução teórica, na medida em que ofereceu os meios para uma correção do economicismo presente nas análises de Marx até então, ao mesmo tempo que permitiu à classe trabalhadora conhecer as razões de seu subjugamento ao capital e, assim, lutar pela sua negação. A descoberta da categoria valor e do trabalho abstrato como traços particulares do modo de produção capitalista conferiu um novo sentido à interpretação do campo jurídico.

No capítulo II do livro I de O capital, há uma passagem em que Marx, descrevendo o processo das trocas mercantis, nos revela o nexo íntimo entre a forma jurídica e a forma mercantil:

As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para seus guardiões, os possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por isso, não podem impor resistência ao homem. Se não se mostram solícitas, ele pode recorrer à violência; em outras palavras, tomá-las à força. Para relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias, seus guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros como pessoas cuja vontade reside nas coisas e agir de modo tal que um só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria mercadoria em concordância com a vontade do outro, portanto, por meio de um ato de vontade comum a ambos. Eles têm, portanto, de se reconhecer mutuamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela desenvolvida legalmente ou não, é uma relação volitiva, na qual se reflete a relação econômica. Aqui, as pessoas existem umas para as outras apenas como representantes da mercadoria e, por conseguinte, como possuidores de mercadorias (MARX, 2013, p. 159-60).

Para que a troca aconteça é necessário que os possuidores de mercadoria se reconheçam como sujeito de direito, ou seja, para que as mercadorias se relacionem umas com as outras enquanto produtos do trabalho humano é preciso que os homens se relacionem enquanto indivíduos livres e iguais. Isto porque “a relação qualitativamente idêntica das mercadorias demanda uma relação qualitativamente idêntica entre os seus portadores” (KASHIURA JR., 2014, p. 165). Assim, a relação entre os indivíduos na troca de mercadorias assume uma forma de equivalência e reciprocidade, à imagem e semelhança das mercadorias, sob uma igualdade meramente formal e abstrata.

[...] a relação de troca entre mercadorias aparece, do ponto de vista dos sujeitos de direito, como relação inteiramente voluntária. Cada um cede sua mercadoria e obtém a mercadoria alheia apenas por meio do consentimento recíproco. Cada um dos sujeitos de direito manifesta livremente a sua vontade – e essa é uma condição sem a qual da troca – de alienar e de adquirir as mercadorias em circulação. Não há – não pode haver, ao menos no interior da relação de troca – entre ambos qualquer dependência, qualquer hierarquia, qualquer domínio direto. Os sujeitos de direito, iguais na forma, devem apresentar-se, portanto, também como livres em relação ao outro (Ibid., p. 169).

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7 A liberdade e a igualdade se tornam pressupostos fundamentais para a relação mercantil e se restringem a ela; os indivíduos são livres e iguais apenas no âmbito do mercado. Desse modo, as categorias de liberdade e igualdade modernas se distinguem daquelas empregadas na antiguidade por terem como fundamento o valor de troca e, por isso, pressupõem as relações de produção capitalistas fundadas no trabalho livre, assalariado (NAVES, 2014). Dito de outra forma:

Todo o mistério do direito e a liturgia sagrada que consagra os direitos do homem aparecem aqui em sua crua realidade: a liberdade e a igualdade são determinações do valor de troca, necessárias para que o homem possa ser “comercializado”, isto é, para que a sua força de trabalho possa circular como objeto de troca que ele, como seu proprietário, aliena por tempo certo, concedendo ao comprador o direito de consumir essa mesma força de trabalho no processo de produção (NAVES, 2001, p. 3-4).

Da relação mercantil emergem duas figuras jurídicas essenciais: a propriedade e o contrato3, uma vez que “os sujeitos de direito, ao conduzirem mercadorias para a troca, conduzem-nas como suas propriedades, e a relação mesma pela qual alienam e adquirem propriedades se passa como contrato” (KASHIURA JR., 2014, p. 173). É na condição de proprietários que os sujeitos de direito podem ceder as suas mercadorias voluntariamente aos outros e se reconhecerem mutuamente na troca com o mesmo direito de dispor de sua propriedade. O contrato, por sua vez, cumpre o papel de tornar manifesta a igualdade e a liberdade na relação entre os sujeitos; celebra o acordo e o consentimento recíproco de estabelecer as trocas mercantis de forma equivalente e, por isso, constitui “a célula central do tecido jurídico” (PACHUKANIS apud KASHIURA, 2014, p. 177).

Marx toma a mercadoria como o ponto de partida de suas investigações sobre a estrutura econômica da sociedade burguesa. Tal enfoque já se anuncia na célebre frase com que o autor inicia O capital: “A riqueza das sociedades onde reina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘enorme coleção de mercadorias’, e a mercadoria individual como sua forma elementar” (MARX, 2013, p. 113). Nas sociedades onde reina o modo de produção capitalista, os trabalhadores são expropriados dos meios de produção e constrangidos a vender sua força de trabalho para os detentores de tais meios. A condição para que a força de trabalho seja comprada é que os trabalhadores sejam livres4 numa sociedade que se divide entre os detentores da riqueza e dos meios de produção de um lado e os detentores apenas de sua força de trabalho do outro. O trabalhador é alçado à condição de proprietário formal de sua força de trabalho, livre para trocá-la por um salário que garanta a sua sobrevivência; livre para tornar-se mercadoria. O trabalhador só se tornou sujeito de

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8 direito porque tornou-se, antes, mercadoria. Nesse sentido, o sujeito de direito torna-se produto da circulação mercantil. Sua existência está intimamente vinculada à emersão das relações de produção capitalistas. Desse modo

A igualdade entre os sujeitos de direito que constitui uma determinação essencial da circulação mercantil se resolve em desigualdade econômica necessária à produção capitalista. A equivalência da esfera da circulação parece então chocar-se com a exploração do trabalho. A igualdade e a liberdade que caracterizam a forma jurídica parecem chocar-se com o domínio de classe. O choque, no entanto, não é mais do que meramente aparente. A equivalência mercantil e a igualdade e liberdade jurídicas não encontram na produção capitalista a sua antítese ou a sua anulação, mas a sua realização (KASHIURA JR., 2014, p. 188).

É assim que se resolve com O capital a dualidade antecipada por Marx em Sobre a

questão judaica, entre o burgeois e o citoyen: o indivíduo na sociedade burguesa é constituído

por um lado como mercadoria e por outro lado como sujeito de direito. Torna-se evidente, nesse sentido, que a igualdade e a liberdade da sociedade burguesa estão fundadas na mais profunda desigualdade.

No ato da compra e venda da força de trabalho, o capitalista e o trabalhador se relacionam como pessoas “juridicamente iguais” (MARX, 2013, p. 242), como possuidores de mercadorias equivalentes: a força de trabalho e o salário. Cada uma das partes se coloca frente à outra como sujeito de direito. Não há qualquer relação hierárquica ou de dependência que obrigue uma das partes a ceder ao acordo. O trabalhador não é forçado a trabalhar e entrega sua propriedade (força de trabalho) por sua própria vontade. Da mesma forma, o capitalista também não é constrangido a comprar a força de trabalho daquele trabalhador, podendo escolher sua mercadoria de forma voluntária. Ambos se relacionam como livres perante o outro e essa relação jurídica se coloca sob a forma de um contrato. Nessa perspectiva, “como sujeitos de direito, a relação entre ambos não pode aparecer como relação entre classes sociais que se opõem, não pode aparecer como relação de exploração, porque não pode aparecer como uma relação de desigualdade” (KASHIURA JR., 2014, p. 209-10).

Nesse sentido, a forma jurídica sob a qual se realiza o contrato de compra e venda da força de trabalho na circulação mercantil é extremamente necessária, pois constitui a mediação fundamental da produção capitalista. É através da circulação mercantil que o trabalhador pode ser livremente conduzido ao processo de produção para ser explorado. A exploração não se dá nos limites da circulação mercantil, portanto, da forma jurídica, mas no momento da produção onde ocorre a extração da mais-valia. A igualdade jurídica expressa no mercado é o ponto de partida para a exploração e desigualdade na produção. Desse modo,

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9 paradoxalmente, a igualdade jurídica é, ao mesmo tempo, uma expressão e um instrumento de reprodução da desigualdade vigente na esfera da produção.

A esfera da circulação mercantil, na qual os homens se defrontam sob a forma de sujeitos de direito, é, assim, de fato, a esfera da igualdade e da liberdade, a esfera da plena realização das determinações jurídicas. Mas a plena realização das determinações jurídicas não tem outro sentido senão mediar as determinações fundamentais da produção capitalista que desigualam e oprimem. A desigualdade e a opressão da produção só se realizam através da igualdade e da liberdade da circulação (Ibid., p. 212).

O direito, portanto, é a condição sine qua non da produção e exploração capitalista. A aparência de igualdade e liberdade contida no sujeito de direito esconde a essência de exploração e desigualdade, encobrindo a luta de classes. O antagonismo irreconciliável presente na relação capital/trabalho é apresentado na superfície sob a forma equivalente de um contrato jurídico entre iguais proprietários. Nisto reside o fetiche do direito: o subjugamento dos trabalhadores aparece como a plena realização da igualdade e da liberdade.

3 - CONCLUSÕES

Por tudo o que foi exposto até aqui, parece ficar claro que, embora os direitos expressos no conceito de cidadania tenham proporcionado inúmeros ganhos e vitórias para a economia política do trabalho, possuem limites intrínsecos à sua própria constituição e por mais que a cidadania seja desenvolvida e aprimorada, jamais poderá promover alguma mudança na estrutura de exploração do trabalho pelo capital; ao contrário, tende a perpetuá-la, aumentando o fosso que separa os polos riqueza e miséria, por meio da propagação de um fetiche que visa escamotear a real contradição capital/trabalho e a desigualdade daí derivada, sob a aparência da igualdade e liberdade.

A realidade é um complexo de contradições tecidas historicamente pela ação dos indivíduos sociais que dela são partícipes. Partindo da teoria social crítica que forneceu sustentação metodológica a este estudo – o materialismo dialético – entende-se que “o concreto é concreto, porque é a síntese de múltiplas determinações” (MARX, 2008, p. 258).

Tal compreensão dialética nos permite afirmar que, no exercício profissional dos assistentes sociais, há que se reconhecer o antagonismo estrutural entre equidade e acumulação, como forma de combater o fetiche do direito, uma vez que a verdadeira igualdade e liberdade só encontrarão os meios de sua realização numa sociedade de livres

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10 produtores associados, portanto, na sociedade socialista, onde o livre desenvolvimento de cada um é condição do livre desenvolvimento de todos. Entretanto, enquanto perdurarem as relações capitalistas de produção, se faz necessária a luta permanente por políticas sociais universais, por um redirecionamento do fundo público a favor dos trabalhadores, pela efetivação dos direitos sociais, por educação, saúde, moradia, alimentação e transporte públicos de qualidade e por uma vida digna, ainda que alienada.

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REFERÊNCIAS

KASHIURA JR. Celso Naoto. Sujeito do direito e capitalismo. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2014.

GUERRA, Yolanda. Direitos sociais e sociedade de classes: o discurso do direito a ter direitos. In: Ética e Direitos: ensaios críticos. Org. FORTI, V. e GUERRA, Y. Coleção Nova de Serviço Social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. Mimeo.

IAMAMOTO, Marilda; CARVALHO, Raul. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil. Esboço de uma interpretação histórico-sociológica. 15ª Ed. São Paulo: Cortez/ Celats, 2003.

MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Tradução Florestan Fernandes. 2ªed. São Paulo: Expressão Popular, 2008.

_________. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.

_________. O capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.

_________; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

NAVES, Márcio Bilharino. A ilusão da jurisprudência. In: Revista Lutas Sociais. Volume 7. PUC-SP, 2001.

_________. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2014.

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“A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção, mais além da caridade e repressão” (IAMAMOTO e CARVALHO, 2003, p. 77).

2 “A moral, a religião, a metafísica e toda outra [sonstige] ideologia, e as formas de consciência que lhes

correspondem, não conservam assim por mais tempo a aparência de autonomia [Selbständigkeit]. Não têm história, não têm desenvolvimento, são os homens que desenvolvem a sua produção material que, ao mudarem essa sua realidade, mudam também o seu pensamento e os produtos do seu pensamento. Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência” (MARX e ENGELS, 2009, p. 32, grifos nossos).

3 “A esfera da circulação ou do intercâmbio de mercadorias, dentro de cujos limites se movimentam compra e

venda de força de trabalho, era de fato um verdadeiro éden dos direitos naturais do homem. O que aqui reina é unicamente Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham. Liberdade! Pois comprador e vendedor de uma mercadoria, por exemplo a força de trabalho, são determinados apenas por sua livre-vontade. Contratam como pessoas livres, juridicamente iguais. o contrato é o resultado final, no qual suas vontades se dão uma expressão jurídica em comum. Igualdade! Pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade! Pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham! Pois cada um dos dois só cuida de si mesmo” (MARX apud NAVES, 2001, p. 4).

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4 “Para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro tem, portanto, de encontrar no mercado de

mercadorias o trabalhador livre, e livre em dois sentidos: de ser pessoa livre, que dispõe de sua força de trabalho como sua mercadoria, e de, por outro lado, ser alguém que não tem outra mercadoria para vender, livre e solto, carecendo absolutamente de todas as coisas necessárias à realização de sua força de trabalho” (MARX, 2013, p. 244).

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