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Martírio e identidade no advento da europa moderna: narrativa, memória colectiva e consciência europeia. URI:

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Academic year: 2021

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Martírio e identidade no advento da europa moderna: narrativa, memória colectiva e

consciência europeia

Autor(es):

Urbano, Carlota Miranda

Publicado por:

Imprensa da Universidade de Coimbra

URL

persistente:

URI:http://hdl.handle.net/10316.2/38968

DOI:

DOI:http://dx.doi.org/10.14195/978-989-26-0395-7_22

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MARTÍRIO E IDENTIDADE NO ADVENTO DA EUROPA MODERNA.

NARRATIVA, MEMÓRIA COLECTIVA E CONSCIÊNCIA EUROPEIA.

Ca r l o t a Mir a n d a Ur b a n o

( Universidade de Coimbra)

O advento da m odernidade na cultura europeia, etiquetado tantas vezes com o o advento do espírito crítico e com o afirm ação do antropocentrism o, constitui um período de cruzam ento de difíceis tensões no m undo ocidental, conflitos sangrentos, geradores de vítim as que são identificadas pelas suas com unidades com o m ártires. Estes conflitos surgem , grande parte das vezes, m arcados por requintes de violência que deixam no retrato dos pioneiros da m odernidade, de que hoje som os herdeiros, um a m arca de am bivalência difícil de integrar. Tanto m ais que, na origem dos principais conflitos que geraram inúm eras vítim as e m ártires estão, não só um a concepção do hom em e do m undo, com o tam bém um a forma de estar e de viver essencialm ente religiosa. O advento da m odernidade, com efeito, é um a fase da história tão ou mais religiosa que a dos séculos ditos m edievais. O que nela há de novo é um a outra interpretação do religioso, ou um a nova leitura das fontes e o início de um a globalização que ofereceria a via, quer da realização da vocação universal do cristianismo missionário, quer do desenvolvimento de um comparativismo religioso capaz de propor a desm istificação do cristianism o, reduzido a m ais um mito.

M arcado pelo indiferentism o e pelo relativism o religioso que herdou da m odernidade, o nosso tem po tem dificuldade de aceitar que o m om ento histó­ rico dessa prim eira globalização à escala planetária seja tão m arcado p o r um sentido tão forte do hom o religiosus com o o que podem os constatar nas fontes que nos transm item esses conflitos sangrentos, quer elas sejam transm itidas na perspectiva da vítim a quer na do perseguidor. A representação ocidental m oderna do indivíduo na sua plena liberdade de auto-determ inação julga(va)- se incom patível com o fenóm eno religioso, por isso o om ite facilm ente.

A cresce ainda que o nosso tem po é useiro em ju ízo s de valor sobre o p as­ sado e os seus actores, rápido a ju lg a r e condenar os seus ante(passados). T

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rata--se, na interessante observação de René G irard, de um a outra característica da m undi vidência do hom em m oderno do m undo ocidental: a capacidade de con­ tinuam ente se auto-criticar. Com o escreve este filósofo dos nossos dias, nós, ocidentais, som os sem pre nós m esm os e o nosso próprio inim igo, condenam os com veem ência o que som os ou o que julgam os ser. N o fundo tem os um a p ai­ xão pela ‘au to -crítica’, que não existe senão nos povos tocados pela civilização judaico-cristã (G irard, 2 0 0 1 :9).

A E uropa m oderna, desde o seu advento, foi palco de m ecanism os inter­ nos de perseguição, de guerras religiosas, de ideologias totalitárias e, no con­ texto da civilização ocidental à escala planetária, foi objecto de m ecanism os externos de perseguição étnica e religiosa. Inúm eras vítim as são apontadas com o m ártires da fé por recusarem renunciar ao seu credo. O tem po das refo r­ mas e da difusão universal do cristianism o ocidental tem sido visto e observado com o o tem po do regresso do m ártir, nas palavras de L estringant, o tem po do escândalo ou do paradoxo, do ‘eterno reto rn o ’ do m ártir que, contra todas as previsões, perm anece na actualidade de uma das épocas m ais brilhantes da civilização ocidental (L estringant, 2004: 9).

Por que razão houve lugar para novos m ártires neste tem po? C om o os entenderam os seus contem porâneos? Q ue efeito tiveram esses m artírios na construção de um a identidade europeia e ocidental m odernas? N a perspectiva de quem com o nós se dedica ao estudo dos textos desta fase tão conturbada da história da Europa, ao estudo das suas fontes literárias escritas na língua culta e internacional da época, o Latim , não podem os deixar de observar a estranha fortuna do tem a do m artírio, a renovada projecção heroica dos antigos e dos novos m ártires, retom ando os m odelos literários do paradigm a greco-rom ano num a síntese de m otivos clássicos e bíblicos. Sem a pretensão de alcançar respostas que esgotem o alcance da questão, tentam os com preender um pouco m ais o significado deste fenóm eno de perseguição e m artírio na aurora da m odernidade, e procuram os fazê-lo a partir da ‘escola da L iteratu ra’, para usar a expressão de G irard (G irard , 2001: 159).

MARTÍRIO, REPRESENTAÇÃO E IDENTIDADE

Esta aproxim ação da figura do m ártir a partir das suas representações lite­ rárias, longe de se pretender exclusiva, é, em nosso entender, fundam ental para a sua com preensão. Por si só, ela não explicará as razões da sublim ação da m orte e do sofrim ento em nom e de um credo, de um a fé, de um a religião, isto é, ela não explicará as origens do m artírio, mas terá algo a dizer sobretudo em

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relação ao acolhim ento da figura do m ártir e à sua projecção com o paradigm a hum ano.

Com efeito, com o observa pertinentem ente M arie-Françoise B asiez,1 a identificação do m ártir releva sem pre de um a definição subjectiva. O perse­ guido não é necessariam ente um m ártir e, para os perseguidores, acrescenta­ ríam os, não é de todo um m ártir. É a representação que um a com unidade faz da m orte de um dos seus m em bros, ou a representação que ele próprio faz da sua m orte que o identificam com o m ártir. Essa representação tem lugar na n arra­ tiva, seja ela literária seja iconogràfica, e é por interm édio dessa narrativa que o m ártir passa a integrar a m em ória da com unidade com o paradigm a, através de um processo de reconhecim ento colectivo que se traduz a m aior parte das vezes na transm issão de um a tradição e na instituição de um culto. Por isso faz todo o sentido a afirm ação de Basiez: “l ’étude du m artyre relève de l ’histoire des représentations” (B asiez, 2007:10).

Se tiverm os em conta o m artírio na A ntiguidade não duvidam os da sua função identitària do ponto de vista eclesial, quer da Igreja universal, quer das Igrejas locais. Para os cristãos, os m ártires são as pedras fundadoras das suas com unidades, das suas cidades, são os seus protectores. A posse das suas relí­ quias é garante dessa tutela. D esde as suas origens, o cristianism o associa perseguição e m artírio à difusão da sua fé, ideia que circula na literatura m arti- rológica cristã na expressão frequentem ente repetida: “ sangue de m ártires, sem ente de cristãos” (glosando Tertuliano no A p o lo g ético , 50 : “quoties m etti-

m ur a vobis, p lu res efficimur. Sem en est sanguis Christianorum .”

O sucesso da fórm ula com prova o lugar fundador da figura do m ártir e do seu valor para a com unidade. Em certa m edida podem os v er nele a herança da figura do herói celebrado pelo poeta antigo diante da cidade. N ão é ele tam bém alim ento de identidade através da renovação cíclica de determ inados rituais de cidadania, agora cidadania cristã? A leitura ritual da literatura edificante e celebrativa dos m ártires, quer em contexto litúrgico quer fora dele, tem seguram ente um papel activo na construção da ‘cid ad e’ eclesial. A ssim sendo, com preendem os que, em certa m edida e salvaguardando diferenças essenciais, os m ártires dão continuidade aos heróis e devem -lhes, em grande parte, a sua form ulação literária, herdeira da cultura greco-rom ana.

Seguram ente, a narrativa m artirológica, quer pela leitura dos A cta e das

P assiones, quer pela leitura e recitação de H inos com o os de Prudêncio, quer

ainda pelas hom ilias dos dias litúrgicos dedicados aos m ártires, contribuiu para

1 Basiez, M arie-Fram çoise, Les persécutions dans l ’antiquité. Victimes, héros, m arty­

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cristalizar o paradigm a heroico do m ártir que sobreviveria ao longo da Idade M édia, atravessando a m odernidade até aos nossos dias, m esm o noutras tipolo­ gias da santidade canonicam ente reconhecida. A representação deste para­ digm a de realização plena do hum ano no divino, congregou a nova ordem do cristianism o nascente, e com o seu poder identificador respondeu à necessidade de a igreja incipiente se afirm ar perante um a m aioria que lhe era adversa e, m ais tarde, perante o m undo m uçulm ano. Sobretudo quando se celebrava um m ártir da cidade ou da diocese, ou se esta tinha em seu poder as suas relíquias, este paradigma constituía um bem indiscutivelmente precioso para as com unidades no aprofundam ento das suas raízes espirituais, sociais e m esm o políticas. Os m ártires da cidade eram os seus protectores, a sua tutela, os seus lares, eram para elas um a autêntica fonte de soberania.

A representação literária do m artírio na antiguidade tinha, assim , m ais que a do herói, um a função celebrativa da com unidade, isto é, da ordem de valores com que esta se identificava. E, para que esta com unidade identificada se pudesse reproduzir socialm ente nas sucessivas gerações, era fundam ental a proposta do seu paradigm a hum ano, o mártir.

A ssim se com preende que St.° A gostinho, no D e C hútate D ei (X, 21) lam entasse o facto de os m ártires cristãos não terem sido designados ‘h e ró is’ à m aneira grega, pois, em seu entender, m ereciam -no. P rovavelm ente com preen­ dera já então o papel fundam ental do m ártir cristão definido, com o novo p ara­ digm a hum ano. D aí o profundo alcance da sua observação. N a verdade, sobretudo em am biente grego, o ten n o heros tinha ainda forte conotação reli­ giosa e revelava o respeito sagrado que despertavam grandes figuras hum anas que depois da m orte adquiriam um estatuto particular próxim o dos deuses. Por isso era evitado pelos autores cristãos. Os autores latinos, porém , porque o term o heros fora já relativam ente laicizado, sentiam -se m ais à vontade para usar o vocábulo, depurado de conotações estritam ente religiosas e, portanto, pagãs, aplicado aos m ártires. C om o observa Fredouille, Cícero em pregava já o term o ‘h e ro s’ com o sentido literário de ‘p ersonagem ’ e, por outro lado, em Rom a, o culto dos heróis não alcançara a dim ensão que teve no m undo grego (Fredouille, 1997: 15).

D esde os prim eiros tem pos do cristianism o, pois, a figura do m ártir foi-se apresentando com o um novo paradigm a hum ano de heros que se afirm ava no ‘espaço de um novo ag o n ism o ’ (M iranda, 2002: 184).

A força identitària do m artírio reside em parte tam bém no facto de, na antiguidade, ele surgir m uitas vezes com o consequência da recusa de identifi­ cação com a norm a da com unidade perseguidora. F orçados a sacrificar aos deuses, os cristãos que não o fizessem eram assim subm etidos a um verdadeiro

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teste identitàrio, na m edida em que esse gesto ritual assinalava a diferença entre a cidadania oficial e o cristianism o. O que constituía para o m ártir um processo de identificação pela negativa oferecia à sua com unidade pela sua publicitação um a ocasião de identificação pela positiva. N a expressão de A li­ son E llliot, o ethos do m ártir é sim ultaneam ente dissociativo e integrador (Elliot, 1987: 19). Ele integra-se na sua com unidade dissociando-se do seu passado pagão ou do poder perseguidor do ‘m undo v e lh o ’ para o qual ele m orre, integrando-se no ‘m undo n o v o ’ p o st reuelationem .

Proposto com o paradigm a, o m ártir, com o brilho paradoxal da sua der­ rota aos olhos do m undo representada como vitória aos seus próprios olhos e aos da sua com unidade, conferia especial eficácia à m ensagem m issionària.

Os A cta m artyrum , assim , são como que a ilustração hum ana e divina, a verificação ‘ex p erim en tal’ daquilo que o Evangelho de S. M ateus intuíra asso­ ciando infim am ente perseguição e missão.

MÁRTIR, FONTE DE IDENTIFICAÇÃO COMO VÍTIMA EXPIATÓRIA?

A questão surge com o um desafio lançado pela original e polém ica tese de René G irard: poderá o m ártir constituir um a vítim a expiatória no sentido pleno? N um estudo anterior (M iranda Urbano, 2004: 54-55) já tivem os oportu­ nidade de observar em relação ao fenóm eno do m artírio dos cristãos no m undo nipónico, quando estava em génese a unificação do Japão, que, do ponto de vista da com unidade perseguidora, se observa na perfeição o m ecanism o do bode expiatório. A plicando a esta realidade a tese girardiana,, o objecto estra­ nho (o cristão) odiado terá funcionado como elem ento agregador e unificador dos ‘riv ais’. C ontudo, poderem os considerar que esse m ecanism o expiatório pôs em evidência o efeito catártico da violência colectiva? Isto é, o m ecanism o persecutório gerador da vítim a cum priu cabalm ente o seu desígnio de a apre­ sentar com o culpada e de unificar nessa ilusão os rivais? C om efeito, essa per­ seguição não tinha origem na unanim idade da com unidade perseguidora, antes apenas na sua m aioria guiada pelas elites, por isso entendem os que não chega a verificar-se a reconciliação dos rivais contra a vítim a, po r isso ela não é divini­ zada, não chegando a cum prir-se a ilusão mítica.

Se tiverm os em conta as perseguições m odernas que o m undo cristão m oveu contra a feitiçaria, ou contra os judeus, que confissões religiosas m ove­ ram um as contra as outras, que ideologias recentes m overam contra o judaísm o, contra a igreja católica, contra as religiões em geral, etc...ta m b é m não logram os identificar um processo com pleto de funcionam ento do m

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eca-nism o de bode expiatorio. A ilusão m im ètica que, segundo G irard, nas socie­ dades m íticas garante a unificação da com unidade contra a vítim a, fundando a harm onia social na ‘m entira das unanim idades v io len tas’ (G irard, 2001: 71), no m undo m oderno já não tem lugar. As com unidades de m atriz ju d aica e cristã não resistem m ais que as outras ao contágio da violência m im ètica m as haverá nelas sem pre pequenas m inorias, restes trop infim es, na expressão de G irard, oferecendo resistência e im pedindo que se encerre o ciclo sobre a culpabiliza- ção da vítim a. C om efeito, para Girard, com o observa M iguel C osta, ‘o m undo m oderno já não consegue produzir verdadeiros m ito s’ (C osta, 2000: 120). A crescentaria G irard, julgam os, graças a essa revelação da inocência da vítim a que o ocidente m oderno herdou da tradição judaico-cristã.

M as, se do ponto de vista da com unidade perseguidora, a vítim a já não é fonte de coesão e de identidade, julgam os que, na perspectiva da com unidade perseguida, a que G irard não fez qualquer referência (tanto quanto ju lg am o s saber), a vítim a funciona com o elem ento de unificação na construção de uma identidade com unitária. A trevem o-nos m esm o a sugerir que a vítim a, no con­ texto ju daico-cristão, denunciador da sua inocência e da Culpabilização da com unidade persecutória, tem um carácter fundacional para a com unidade perseguida. Intrinsecam ente inocente, esta vítim a não é sacralizada (com o o era no m ecanism o arcaico do bode expiatório), perm anece hum ana, ainda que lugar de encontro entre o hum ano e o divino, e gera um efeito de identificação na com unidade. Um argum ento que poderíam os apontar para a defesa desta hipótese é que, com o observa Brad G regory, que nos apresenta um estudo com parativo dos m artirologios católico e protestantes, a existência de m artirios foi um factor determ inante na definição e radicalização dos confessionalism os em que a cristandade se viu dividida. Cada m orte de um m ártir dim inuía as possibilidades de reconciliação com os grupos rivais, reforçando a coesão interna de cada confissão (G regory, 1999: 345).

PERSEGUIÇÃO E MARTÍRIO NA EUROPA DAS REFORMAS

Tal com o nos prim eiros séculos do cristianism o, o m artírio e a p ersegui­ ção são vistos pelos cristãos desta época à luz de um a espécie de protom artírio, o do “m ártir” por excelência, Jesus, que veio “para dar testem unho da V er­ dade” (hína m artyrêsô t ê ' alêtheía - Jo 18, 37), nas suas próprias palavras a Pilatos. Esta atenção ao Cristo sofredor constitui um lastro com um às duas Europas, a das R efonnas, herdeira m ais directa do m ovim ento espiritual do fim da Idade M édia, a devotio moderna, que se identifica sobretudo com C risto

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corno servo sofredor, m as tam bém a da R eform a C atólica, quer na sua eferves­ cência m ística e espiritual, quer, sobretudo, na sua incom parável liberdade no âm bito da expressão plástica.

Com o observa Brad G regory (1999: 61), a intensa corporeidade de C risto patente na representação do crucifixo traduz a devoção tardo-m edieval pela paradoxal fragilidade do corpo de Deus-salvador. A sua morte e paixão, o “m artírio”- sacrifício redentor do hom em , são o protótipo fundam ental do fiel, o m odelo a imitar na capacidade de exercitar a virtude da Patientia, ou resistência ao sofrim ento. A larga representação da m orte e crucifixão do salvador, p o r vezes considerada um dos traços de um a obsessão m edieval pela m orte, é afinal um a outra face da devoção pela dim ensão hum ana de Jesus, com o a cham ada devoção do nom e

de Jesus - tam bém nascida no final da Idade M édia - de S. B ernardino de Sena

(1380-1444). Cabe aqui pertinentemente notar que a própria emergência do antes raríssim o antroponim o 4 Jesu s’ na teologia e na devoção particular, reflecte um a deslocação do acento sobre a divindade do V erbo Incarnado, própria, grosso

m odo, do I m ilénio cristão - que preferia o título m essiânico por excelência de

Ό Cristo’ - em favor da consideração, gradual mas constante, ao longo do II m ilénio, da sua hum anidade.2 Caso paradigm ático desse dinam ism o é tam bém o do respectivo anagram a grego IHS, difundido m aciçam ente pela O rdem de Santo Inácio de Loyola, (para a qual quis precisam ente o “nom e de Jesu s”), mas recuperado já nos alvores da m odernidade (usara-o S. B ernardino de Sena), a partir da devoção de Santo Inácio de Antioquia. De facto, a recuperação do N om e de Jesus e a sua conexão à contem plação da Paixão e respectivas devoções espirituais (pensem os nos Hinos luteranos ou no género m usical das Paixões e das C antatas, em âm bito protestante, ou em devoções com o a das C inco C hagas e do Bom Jesus, tão im portantes no contexto lusófono, ou do C oração de Jesus, unificador de todo orbe católico) são fenóm enos a 1er no contexto do geral m ovim ento europeu do retom o às fontes. N ão é de som enos im portância recordá-lo aqui, pois será através de consequências capilares com o estas que as ‘duas E uropas’ m ostrarão a sua unidade cultural de fundo.

E m bora depois da cristianização do im pério rom ano as possibilidades de concretizar o heroísm o suprem o dos cristãos, o m artírio, fossem grandem ente reduzidas, os m ártires e a narrativa dos m artírios continuaram a m erecer espe­ cial destaque no culto dos santos ao longo da Idade M édia. Eles eram , a um tem po, especialm ente favorecidos por Deus na capacidade de resistir aos to r­ m entos e, para os fiéis, intercessores especialm ente poderosos diante de Deus.

2 A síntese far-se-á discretamente através da geral supressão paulatina do artigo ou até da justaposição pura e simples - cfr. o italiano Gesucristo - entre os dois vocábulos.

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U m a piedade valorizadora da im itação da figura de C risto, da sua m orte e paixão, da sua capacidade de resistência no sofrim ento, a quem as circunstân­ cias históricas e religiosas dos séculos das reform as proporcionaram p ersp ecti­ vas reais de m artírio, transform aria facilm ente o desejo de o im itar no desejo explícito de o im itar m orrendo. As guerras religiosas que dilaceraram a Europa e as perseguições que as várias confissões cristãs m overam entre si foram oca­ sião de m uitas m ortes pela fé. Com o observa G regory, o facto de os vários grupos religiosos partilharem num erosas convicções religiosas e, por conse­ guinte, o facto de os grupos rivais enfrentarem , não um estranho com pieta- m ente ‘o u tro ’, m as, um europeu contem porâneo, por assim dizer, um ‘irm ão ’, tornava m uito m ais profundos os efeitos das divisões doutrinais. D igam os que a forte identificação das confissões religiosas com a natureza fundam ental de uma verdade de fé revelada no cristianism o, tom ava inconciliáveis as diferen­ tes doutrinas. N ão era sim plesm ente um a identidade cultural que estava em jo g o , m as, para estes hom ens, era a própria salvação do hom em que estava em jogo. Com o observa G regory (1999: 347), com o poderíam os esperar deste tem po pré-relativism o, que antepusesse a prioridade de um a convivência pací­ fica à verdade sobre Deus? Era o m esm o que im aginar que Lutero, C alvino, Zw inglio, Fisher, T hom as M oro, Loyola, e tantos outros, fossem , não com o foram realm ente, m as com o ‘h o je ’ esperaríam os que fossem . Q ue lugar haveria para a actual ‘to lerân cia’ religiosa num m undo em que os cristãos se dispu­ nham a m orrer pelas suas doutrinas? Havia realm ente, na E uropa de então, luteranos, anabaptistas, católicos, verdadeiros candidatos ao m artírio em cir­ cunstâncias de perseguição.

Com o acim a dissem os, estas m ortes, m as tam bém as suas celebrações com o m artírios, reforçariam a identidade de cada grupo confessional, tom ando progressivam ente m ais longínqua a possibilidade de um a reconciliação nas décadas seguintes. A m piam ente divulgadas em vários m artirologios, relatos e representações iconográficas, elas consolidam os laços identitários quer das com unidades reform istas em ergentes, quer as dos cristãos ligados a Roma. A par da controvérsia doutrinal, m ediam forças tam bém os panfletos com cartas de m ártires no cárcere, os relatos dos m artírios, os elogios e os hinos em louvor destes novos heróis com que cada confissão se identificava. T ratava-se, na expressão de Lestringant, de um a verdadeira ‘política do m artírio ’, um a guerra de m ártires e de m artirologios (Lestringant, 2004: 116), na qual as igrejas reform istas levavam algum as décadas de avanço, pois com eçaram prim eiro a divulgar as suas relações de m artírios. A ntes do grande m artirologio evangélico de John Foxe, A cts an d M onum ents (1563) já circulavam , desde cerca de 1530, centenas de panfletos sobre os m ártires protestantes. O prim eiro

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panfleto, editado em 1523 para divulgar a execução dos frades agostinhos desse m esm o ano, teve dezasseis edições, realizadas em sete cidades alem ãs. O Livre des M artyres de Jean Crespin já conhecera várias edições em francês e em Latim (desde a prim eira em 1554), e conheceria m ais tarde a tradução alem ã em 1590. Dos A nabaptistas, sobretudo os pacifistas, ciclicam ente m assacrados pelos filões reform istas vencedores, para além da colecção m artrirológica que conheceu onze edições entre 1562 e 1563, im porta considerar as cartas dos m ártires, as poesias e hinos, as narrativas m usicais e canções que circulavam em panfletos pelo m enos desde 1520 (G regory

1995:4).

A E uropa C atólica, algum as décadas m ais tarde, tam bém publicaria as suas recolhas de m artírios. O católico inglês Richard V erstegan publicou em 1583 em Latim e depois em Francês as D escriptiones quaedam illius inhum a­

nae et m ultiplicis persecutionis, quam in A nglia p ro p te r fid e m sustinent C atholici Christiani. Segundo G regory, a esta m esm a m atéria, os m ártires

católicos de Inglaterra, são dedicadas, em parte ou no todo, cerca de 50 p u b li­ cações diferentes entre 1566 e 1640, obras publicadas não só em Inglês m as tam bém em Latim , Francês, Espanhol, Italiano e A lem ão (G regory 1995: 4)

D epois da B riefve D escription, versão francesa daquela obra de V erste­ gan, o m esm o autor lançava-se num em preendim ento m ais vasto, o célebre

Theatrum crudelitatis haereticae, que conheceu várias edições em latim,

(1587, 1588, 1592 e 1604) e em francês (1587, 1588, e 1607). É um dos m ais conhecidos m artirologios desta época e um dos raros que integra m ártires de vários pontos da Europa nos seus 29 elogios de vítim as das perseguições religiosas em Inglaterra, França e Países Baixos (G regory 1995: 290). Esta obra foi objecto de edição crítica e anotada por Frank L estringant em 1995 (Paris, Éditions Chandeigne). No contexto de uma Europa em que a Espanha C atólica se afirm a vencedora nas várias frentes, esta obra, desenhando um verdadeiro ‘teatro de im agens’ (com o o título anuncia) e um cenário apocalíp­ tico que reúne a França, os Países Baixos e a Inglaterra, assum e um a dim ensão europeia.

E m bora a ‘parte cató lica’ tivesse entrado m ais tarde no afa editorial, rapi­ dam ente recuperou a diferença de décadas e, sobretudo em term os ‘concorren­ c iais’, ganhou em im pacto e dim ensão internacional. Para tal, ju lg am o s que contribuíram dois factores. Por um lado, os editores de m artirologios protes­ tantes, quando passam os ao período das guerras de R eligião, são confrontados com falta de m atéria. De testem unhos individuais e autênticos de defensores da causa, que na hora do suplício proclam am a sua fé, passam a dispor de um a m ultidão anónim a que sucum be nos conflitos arm ados, com m ortes de um lado

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e de outro. Os católicos, porém , em breve com eçam a dispor de num erosos m ártires das m issões. Por outro lado - e este factor terá tam bém pesado bastante - os m artirologios católicos venciam em im pacto propriam ente reli­ gioso e não m enos em eficácia retórica. Sem esquecer o alcance radicalm ente diferente que lhes em prestava a possibilidade de um contexto especificam ente cultual, em bora m origerado pelos novos procedim entos canónicos de beatifica­ ção e canonização, a narrativa católica aparece ainda enriquecida pela profusão da im agem que, m uito m ais que sim ples ilustração, era um veículo de em oções e de sentido, dotando o texto da possibilidade de descer da abstracção ao co n ­ creto e, seguram ente, de potenciar a sua eficácia ad deuotionem prom ouendam . Estes m artirologios, m uitas vezes verdadeiros livros de im agens onde a con­ tem plação apoia a leitura, m esm o quando não dispunham de tantas gravuras, tinham no texto a m arca da visibilidade. Este era, no seguim ento da tradição da literatura m artirológica antiga, suficientem ente descritivo para conseguir repre­ sentar e to m ar visíveis as realidades a que se reportava. Já os reform istas, com m aior ou m enor grau de iconoclastia recusavam a im agem sem pre associada ao risco de idolatria. Os seus m artirologios têm, quando m uito, uma ilustração no frontispício e, se representam alguns m ártires no torm ento, é para concluírem do inquestionável triunfo da Palavra.3 C respin, conform e o cita L estringant (L estringant, 2004: 119), na sua H istoire des M artyres, adverte ο leitor do risco de idolatria e afirm a que a sua obra não é um ‘relicário destinado a suscitar devoção nos fiéis’, m as um a ‘palavra v iv a ’.

As gravuras do Theatrum C rudelitatis ...(para, evocar o exem plo m ais sig­ nificativo) im pressas em A ntuérpia e espalhadas por toda a Europa, tinham eco nos frescos das igrejas, nos retábulos e nas telas e, graças à im prensa, ultrapas­ savam fronteiras, contribuindo para consolidar e perpetuar a construção de um a m em ória colectiva na continuidade de uma tradição que prezava a im agem , por um lado, e por outro não podia dissociar-se da teatralidade que herdara da con­ dição espectacular dos prim eiros m artírios cristãos ocorridos no contexto do circo. Q uanto aos protestantes, sem recusar com pletam ente esta teatralidade, insistem sobretudo na palavra viva do martyrion, o ' ‘testem unho” . N o fundo, tanto uns com o os outros, através da divulgação editorial de relatos de m artí­ rios e de testem unhos de m ártires (perdoe-se o pleonasm o), pretendem fazer do seu leitor um a outra testem unha, m ais que um espectador. No plano ideal, a eficácia pretendida é a de que o leitor/espectador, tocado pelo testem unho do m ártir, (e passe m ais um a vez o pleonasm o) se to m e tam bém ele um a teste­ m unha, que por sua vez desencadeará nos outros o m esm o efeito.

3

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Em últim a análise, os m artirologios, proporcionando o testem unho à com unidade que reconhece na vítim a o m ártir, com o que se constituem prova docum ental do m artírio. Eles divulgam e autentificam o gesto do m ártir. Isto, porém , não corresponde a um a novidade no m artirio m oderno pois já os p ri­ m eiros cristãos não se poupavam a riscos para conseguir as A ctas dos proces­ sos de m artírio ou, pelo m enos, relatos com base em testem unhos oculares. Por essa razão, alguns m agistrados interditavam o registo escrito dos interrogató­ rios ou m andavam queim ar os processos. O utras vezes, estes eram roubados e destruídos.4 Já no séc. X V I, o calvinista A grippa A ubigné relata na Confession

catholique du Sieur de Sancy que, m uitas vezes, os processos ju d iciais das

vítim as da perseguição eram roubados dos cartórios (por zelosos fiéis refor­ m ados), ou, outras vezes, atados ao pescoço do condenado para com ele arde­ rem.

O m artírio e o m artirologio contribuíam , assim , para reforçar ou fundar a identidade das várias confissões religiosas. N o caso das novas confissões, o derram am ento de sangue com o que conferia autoridade às novas doutrinas. No caso dos católicos, o apelo à identificação com os prim eiros m ártires cristãos e um a interpretação sacrificial do m artírio5 (incom patível com as doutrinas protestantes), reforçavam a sua identificação com o tem po fundador do cristia­ nism o, num a espécie de reactualização ou refundação.

Se, de acordo com a doutrina católica reforçada no C oncílio tridentino, os santos tinham realm ente um papel intercessor, questionado por Lutero, e se o sofrim ento dos m ártires com pletava m isticam ente o sacrifício de C risto, o pró ­ prio entendim ento do m ártir, entre católicos e protestantes era necessariam ente diferente. Independentem ente das divergentes leituras do m artírio, porém , ele tinha em todo o caso um efeito identitàrio. Sobretudo no m undo católico, a sua celebração, não só na literatura com o nas artes plásticas, m as tam bém na devo­ ção privada e no culto liturgico (este inaceitável nas confissões protestantes, uma vez que era considerado idolatria) contribuíram para um a verdadeira m ís­ tica de desejo do m artírio e para um a pedagogia valorizadora do m artírio enquanto suprem a participação da paixão de Cristo, sinal evidente do Corpo

M ístico de que fala S. Paulo (Col., 1, 24). A presentar o m odelo m artirial com exem pla contem porâneos que resultavam , quer dos confrontos religiosos na

Europa, quer das m issões na Igreja em expansão, prom ovia nas novas gerações o desejo de im itar os feitos destes novos heróis, potenciando os efeitos identitá- rios do m ártir. C om efeito, identificação e desejo estão tam bém intim am ente

4 V eja-se por exemplo a informação de Prudêncio no Peristephanon I, v. 75-78. 5 Sobre a consciência da dimensão sacrificial do martírio no séc. XVII vd. M iranda Urbano, Santos e H eró is... pp 213-223.

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relacionados, e podem ser objecto de uma pedagogia. Identifico-m e desejando, aprendo a desejar, contem plando e experim entando (Lopes, 2003).

A C om panhia de Jesus, nascida precisam ente no contexto das reform as e das cisões doutrinais que dividiram o cristianism o ocidental, apurou essa p ed a­ gogia do paradigm a pela narrativa e pela celebração da m em ória, explorando dim ensões com o a im aginação e a afectividade. Em duas ‘frentes de co m b ate’, na Europa a defesa da ortodoxia, e no N ovo M undo e no O riente a m issiona- ção, a C om panhia de Jesus dispunha na sua acção pedagógica de num erosos

exem pla paradigm áticos de heróis da patientia Christiana. C onsciente do capi­

tal que esses exem pla constituíam , tam bém a C om panhia fez sua divulgação por m eio das C artas  nuas, de Relações, E logios, C olecções de V idas, Poem as celebrativos e tc ... E stas obras, para além de prestigiar a jo v em O rdem R eli­ giosa (que assim patenteava os frutos da sua acção apostólica), cum priam os objectivos inform ativos, celebrativos e pedagógicos e, ju n tam en te com as m em órias litúrgicas, contribuíam para o fa z e r m em ória, prática sim ultanea­ m ente intelectual e afectiva dos E xercícios E spirituais de S. Inácio (Loyola,

Exercícios E spirituais § 118 a 125).

Os noviços e os alunos dos num erosos C olégios da C om panhia, na Europa e nas m issões dos reinos europeus, são feitos testem unhas dos m artírios que, de longe, se faziam perto, através da leitura das Cartas, da celebração das suas m em órias litúrgicas e através até dos exercícios literários narrativos e dram áticos. M uitas destas testem unhas deixariam a E uropa e experim entariam elas próprias o m artírio. Seguindo a lógica paradoxal do m artírio, os reveses e os recuos na m issionação, a perda de m issionários às m ãos de ataques calvi­ nistas ou de naufrágios, na sua divulgação literária, invertem -se, conferindo à derrota a dim ensão de aparência e apresentando com toda a evidência o triunfo das vítim as. Não raro, a representação iconográfica do m artírio apresenta já a própria apoteose dos m ártires, a sua entrada na glória divina. Q uando tal se verifica, Deus Pai ou o próprio Cristo, encim ando a representação entre as nuvens, acolhem os heróis a quem os anjos entregam as palm as ou as coroas, sím bolos agónicos da antiguidade, sublim ados e perpetuados na expressão do triunfo eterno.

A EUROPA MODERNA EM IDENTIFICAÇÃO COM UMA VOCAÇÃO UNIVERSALIZANTE

Os m artírios que tiveram lugar nas longínquas paragens do O riente, lar­ gam ente divulgados quer sob a form a dos relatos das C artas, quer sob a form a celebrativa dos elogios, das representações iconográficas e das com posições poéticas, ressoavam fortem ente na Europa.

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C onscientes da im portância da sua m issão, as ordens m issionárias, espe­ cialm ente a C om panhia de Jesus, sentiam o im perativo de dar a conhecer a sua pròpria história na Europa, e no resto do mundo. Este imperativo enquadrava-se na mais genuína mentalidade humanista que via a história como uma ‘escola de v irtu d es’ destinada a um a função retórica e pedagógica inalienável (Soares, 1992: 160).

N um discurso celebrativo do triunfo, m as que não om itia as perdas de recursos hum anos e os atrasos na m issionação que resultavam da clandestini­ dade dos m issionários e da sua m orte, aquela divulgação despertava na Europa uma nostalgia dos tem pos fundadores do cristianism o. A notícia de m uitos m artírios entre os cristãos autóctones reforçava esta tendência para reviver os tem pos paradigm áticos do prim itivo cristianism o, um pouco à sem elhança do que experim entavam as igrejas reform adas e do ideal que m overa os irm ãos da

Vida C om um , antepassados do m ovim ento da devotio M oderna. Os m issioná­

rios que viviam na clandestinidade identificavam -se com os prim eiros cristãos perseguidos e as suas cartas na Europa atraíam novas vocações para arrancar do dom ínio do D em ónio os povos que ainda não conheciam a revelação de Cristo. Tudo se resum ia neste com bate contra o Pai da M entira que m antinha cativos os ignorantes da fé cristã, por m eio das falsas aparências dos deuses locais. Para os m issionários, pelo baptism o, o outro passava a ser, antes de m ais, o fiel que nascia para um a nova realidade. O cristianism o convivia então m uito de perto com a sua m issão unlversalizante e os m issionários queriam chegar a todos e a cada um.

Religião incarnada, não no vazio, m as sem pre num determ inado povo, e sim ultaneam ente religião universal, o cristianism o da Europa M oderna não era um a religião para a Europa. Esta consciência da m issão unlversalizante, enrai­ zada no âm ago da revelação cristã e reforçada pelas relações do cristianism o nascente com o estoicism o, foi, no início da m odernidade, indissociável do nascim ento de uma consciência europeia do universal.

A noção evangélica de que ‘não há ju d eu nem grego; não há servo nem livre, não há hom em nem m ulher, pois todos vós sois um só em C risto ’ (Gal. 3, 28), converge na ideia estoica de um a espécie de fraternidade universal que abrange o grego e o bárbaro. Lem brem os que, em bora a recepção do estoi­ cism o no hum anism o cristão do séc. XVI se dividisse entre a recusa e a con­ vergência, quer entre católicos quer entre protestantes, foi feita a sua reabilita­ ção com o filosofia do m undo antigo com patível e convergente com o cristia­ nism o.6 Isso é visível, quer na leitura do m artírio à luz da m oral estoica e do

6 Sobre esta matéria veja-se Stoïcisme et christianisme à la Renaissance, Cahiers V.L.

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perfil do sábio estoico, quer na progressiva afirm ação de um a consciência u n i­ versal do hom em , em bora a p ra xis no terreno das M issões nos revele m uitas vezes entendim entos diferentes dessa ‘u niversalidade’. U m exem plo é a con­ testação que em parte sofreram as m edidas pastorais de D. L uís C erqueira, bispo do Japão (1552-1614), nom eadam ente as m edidas relativas à form ação e ordenação de clero nativo, bem com o à criação de um calendário litúrgico próprio (M iranda U rbano, 2004: 407).7 8

Entretanto, na Europa, os m ártires nativos eram tam bém celebrados e propostos com o m odelo de santidade. A epopeia novilatina P a d e c id o s (C oim ­ bra, 1640), da autoria do jesu íta B artolom eu Pereira, destinada a celebrar o m artírio de nove com panheiros jesuítas em N agasaki no ano de 1626, é um claro exem plo da consciência universal da C om panhia de Jesus. T endo com o pano de fundo a acção m issionària da C om panhia no Japão, o poem a parte da vida, m issão e m artírio do provincial do Japão, o P. F rancisco Pacheco e único português do grupo dos nove com panheiros m artirizados. Eram os restantes dois europeus, (os P.e B aptista Zola e B altasar de Torres, respectivam ente italiano e espanhol), cinco japoneses, (os irm ãos G aspar Sandam atçu, Pedro Rinxei, Paulo X inzuque, João Q uinzaco e M iguel Tozo) e um coreano (V icente Caún).

A lém de celebrar o m artírio destes heróis principais, o autor do poem a com põe e estrutura a narrativa de modo a evocar outros m ártires. Um recurso literário a que deita m ão é o m otivo épico da entrega do escudo ao herói (com o o de A qui les ou de Eneias), decorado, neste caso, com a representação dos com bates futuros dos m ártires da C om panhia, cruzando-o, assim , com o m otivo da visão dos heróis futuros (com o a que A nquises proporciona a Eneias na descida aos Infernos). N este escudo, os com panheiros contem plam o th ea ­

trum do suplício dos m ártires m as tam bém , em alguns casos, a glória que dos

‘soldados de C risto ’ se estende às suas pátrias, neste caso, várias cidades p o r­ tuguesas, algum as do Japão e a Ilha da Sicília (P a d e c id o s , XI, 258-444). Um a outra revelação é a da B em -A venturança, um a visão dos m ártires da C om pa­ nhia já na G lória, que virão em auxílio de Pacheco e dos com panheiros (P a d e ­

cidos, X, 68-116). Na enum eração destes heróis, o poeta concede referências

o

particulares a vários m ártires europeus e japoneses.

7 Precioso docum ento vivo desta problemática é a Apologia do Japão do Padre Valen- tim de Carvalho, recentem ente reeditada pelo Centro Cultural e Científico de Macau, com introdução e transcrição de José Eduardo Franco (Lisboa, 2007).

8 Nestes versos são recordados os nomes dos Padres Carlos Spinola, Paulo Navarro, Jerónimo de A ngelis e Camilo Constâncio, italianos, Sebastião Quimura, os irmãos Gonçalo Fusai, M iguel Sato, Tomás Acafuxi, António Quiuni, Agostinho Ota, Tiago Quisai e Tiago

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O utra digressão descritiva a que o poeta deita mão para elogiar os m árti­ res locais é a de um as tabuinhas figurativas que Francisco Pacheco traria con­ sigo, com a representação de m ártires japoneses, e que apresenta aos guardas do cárcere (.P a d e c id o s, V, 364-422). A seguir à contem plação destas im agens segue-se no poem a a conversão do jovem N arciso, o que não pode deixar de ser lido com o uma afirm ação do poder do ícone, da sua virtude catequética e evangelizadora, po r oposição à atitude iconoclasta. É de notar ainda que F ran­ cisco Pacheco apresenta aos guardas do cárcere as tabuinhas figurativas num a estratégia argum entativa de conversão, e que o poeta está ciente de que, para esses destinatários, terá m aior peso o sacrifício daqueles que lhe são m ais pró ­ xim os, os que pertencem à m esm a pátria, aqueles em que corre o m esm o san­ gue.

‘Demovam-vos, pois, estas imagens, a visão do vosso próprio sangue vos comova;

que convertam os vossos corações de pedra outras mil falanges de japoneses, homens, mulheres, crianças e velhos já sem força; quantos sofrendo o exílio cruel suportaram, pelo poder de Cristo, a prisão, as correntes, os açoites, o aguilhão, o fogo e a cruz’ (.Padecidos, V, 417-422).

P aradoxalm ente, a Europa dos alvores da m odernidade que viveu as difí­ ceis e tantas vezes sangrentas divisões confessionais é, sim ultaneam ente, a E uropa que vê reafirm ar-se um a crescente consciência universal do hom em e do m undo, alargada em parte pelos espantosos resultados da prim eira globali­ zação à escala planetária, desencadeada pelos cham ados ‘D esco b rim en to s’ levados a cabo pelos reinos ibéricos. A natureza m issionària do cristianism o que, sobretudo a partir do séc. XVI vê extraordinariam ente alargado o seu cam po de acção, contribuiu am piam ente para a consolidação de um a consciên­ cia europeia unlversalizante. Espalhados pelos quatro cantos do m undo, os m issionários europeus não estão sim plesm ente ao serviço dos seus reinos, mas de um a m issão que têm com o universal. Se atentarm os na que foi a m aior ordem m issionària de então, a C om panhia de Jesus, verificam os que, ao ser­ viço da Província portuguesa nas m issões quer do Brasil, quer da índia, da China e do Japão, estão jesu ítas portugueses, castelhanos, franceses, italianos, flam engos, coreanos, chineses, e japoneses.

Esta consciência unlversalizante, porém , não a devem os confundir com o ‘no v o ’ conceito de eurocentrism o hoje tão castigado, a que, em certos m eios, é politicam ente correcto apontar o dedo acusador, esquecendo-nos talvez que

Fuixima, João Goto e João Cachoco, Pedro, Diniz, Paulo Zamppo, Paulo Miqui, Luís Cara- vata e Simão Hempo, japoneses e os Padres João Baptista M achado, M iguel e Diogo Carva­ lho e o irmão Ambròsio Fernando, portugueses.

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esse dedo acusador enferm a do m esm o vício, que diríam os “egocêntrico” , de autoproclam ação, isto é, de um a época vivida com o m etro de ju stiça, apta, só ela, e sem pre pronta, a ju lg a r as que a precederam .

E sta consciência unlversalizante está enraizada no p e n sa r universal que os hum anistas da Europa m oderna herdaram da cultura grega, da tradição rom ana e da teologia patrística, e que no contexto dos séc. X V e X V I encon­ trou um vasto cam po de realização para se enraizar e alargar as fronteiras do universal, sem om issão do local. Julgam os, de resto, que faz parte da própria consciência europeia esta tensão constante entre um sentim ento de pertença e de atracção à terra-m ãe, gerador de identidade, e um sentim ento de cidadania universal.

N os alvores da m odernidade, regressando às fontes, a Europa m anifestava então, na própria paisagem ética e estética, aquela sua unidade cultural de fundo que as cisões religiosas das R eform as e a fragm entação política causada pelas em ergências nacionalistas nunca lograriam de todo desm antelar, e que apontaria sem pre para um a consciência do universal.

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Referências

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