Estudo da Faculdade
de
Medicina
de Lisboa
Portugueses
tomam
ansioliticos
a
mais
e
criam dependência
Ninguém na Europa
tona
tantos calmantes como osportugueses, que deviam fazer odesmame em meses e à3vezes prolongam a
RECEITA
PARA
COMBATER
O
VÍCIO
DOS
ANSIOLÍTICOS
Marta
F. Reis marta.reis@sol.ptPortugal tem
a
taxa mais elevada
de
consumo
de
calmantes
na Europa.
Problema:
causam dependência
e o
uso
crónico
aumenta
o
risco de
que-das
e
demência.
A
Faculdade
de
Me-dicina
de
Lisboa testou
uma
solução
e os
resultados
surpreenderam.
Cristina
está há vá-rios meses sem
to-mar os calmantes que durante anos fo-ram a sua muleta
contra asinsónias e
voltou finalmente a
dormir
me-lhor. Inesperado? Nem por isso: a medicação que começara atomarhá mais deuma década para conse-guir dormir levou-a aum ponto li-mite: estava cadavez mais nervosa,
já
nada funcionava esó dormiaduas a três horas. Deitava-se perto dameia-noite epor vezes às 2 ho-rasjánãohavia nadaafazer.
«Fica-va na cama a
olhar
até serhora
deme levantar», conta aoSOL.
Tudo mudou quando a médica de família adesafiou a participar num estudo inédito para adesabituacão
debenzodiazepinas, grupo de me-dicamentos que inclui ansiolíticos
esedativos. Aos75anos, Cristinafoi
uma dos 66participantes
recruta-dos em centros desaúde de Lisboa. Eéum dos casos de sucesso: 63%
dos doentes conseguiram largar a
medicação que usavam há muito mais tempo do que oindicado ejá
lhes estava a fazer mais mal doque
bem. Neste momento,
já
todos fo-ramavaliados passados seis meses deterem parado osmedicamentose sótrês voltaram a torná-los.
Descobrir a
receita certa
Oprojeto foi conduzido pelo Insti-tuto de Medicina Preventiva eSaú-dePública da Faculdade de Medi-cina deLisboa eveio a público há pouco mais deum ano, quando o
Ministério da Saúde garantiu a
isenção de taxas moderadoras aos
participantes.
VascoMaria, professor da Facul-dade de Medicina, médico de
famí-lia
e ex-presidente do Infarmed,lembra queesteapoio não foi ime-diato, mas foi essencial para
man-ter os doentes mobilizados. «Hoje em dia
um
dos indicadores deavaliação dos médicos éa
per-centagem de doentes com mais
de 65 anos que tomam benzodia-zepinas eoobjetivo é
reduzir
ouso crónico, mas os médicos não
têm
ferramentas
para
o fazer».Criar
umprotocolo adaptado àrealidade portuguesa etestá-lo para ver se eraeficaz foi um dos
objetivos doPrograma de Promo-ção/ Ação para o Uso Adequado
deBenzodiazepinas, aque deram
onome decódigo BEDS.
O projeto arrancou em2015, com um apoio de60mil euros da Fun-dação Calouste Gulbenkian.
Aequipa começou por planear qual seria a melhor estratégia para inverter asestatísticas do país:
Por-tugal é opaís europeu com maior
consumo deansiolítico, uma taxa que chega a ser duas a três vezes
superior à deoutros Estados
Mem-bros, diz Vasco Maria.
Osúltimos dados daOCDE
ates-tamisso mesmo, com Portugal a
re-gistar uma dose diária definida por
1000habitantes/dia (DHD)de96,8, oque significa que 96em cada mil portugueses tomarão umadose
mé-dia destes medicamentos
diaria-mente, ou seja 9,6% da população.
Sãoestimativas que têm em conta
ovolume devendas no país eque vários estudos têm alertado que merecem uma intervenção mais assertiva. Umdos avisos surgiu em
2013por parte doInfarmed: os
valo-res elevados deconsumo
-
quecom-param com 53DHDemItália ou31
DHDna Dinamarca
-
podemsigni-ficar que ostratamentos são mais prolongados do que o indicado. «Este é
um importante
proble-ma de saúde pública», reconhe-ciaoregulador, que tenciona refor-çar a sensibilização nesta área.Do planeamento daequipa da Faculdade deMedicina deLisboa
surgiu um programa de desabi-tuação que consiste em
reduzir
gradualmente adose, começando por passar os doentes que, às ve-zes,tomam dois ou três calmantes
diferentes para uma única subs-tância.
A
escolha recaiu sobre odiazepam, conhecido poruma das primeiras marcas Valium, mas que tem vários genéricos.
«Era
preciso
um medicamento
que existisse emvárias
dosagenspara
poderhaver uma
reduçãogradual
sem os doentesterem
de
partir
muito
osmedicamen-tos», explica Vasco Maria.
Aos médicos, deram dossiês com tabelas para poderem fazer
asequivalências esaber as
quan-tidades que era preciso prescre-ver, ao mesmo tempo que
docu-mentavam todo o processo. Aos doentes, erafornecido um diário para registarem os passos e
difi-culdades. O programa consiste
numa revisão das doses a cada duas semanas, com oito consultas noespaço deseis meses
-
daí a im-portância da isenção dastaxas, ex-plica o coordenador.Além disso, osdoentes recebiam telefonemas dapsicóloga da equipa, InêsNeves,para gerir eventuais
sin-tomas emanter a motivação. «Um
parar
abruptamente Já tenhovisto defender, porexemplo, que
osmédicos defamília não deviam
poder prescrever benzodiazepi-nas enão concordo. Como são
medicamentos que causam de-pendência, podem gerar
síndro
me deprivação e
ter
consequên-cias graves senãofor
feita umadesabituação gradual e acompa-nhada», sublinha oméclico.
Falta de Informação
O projeto quis também perceber
as perceções dos médicos e dos doentes, numa altura e mque tem havido mais estudos que sugerem que o uso crónico causa
depen-dência mas também está
associa-do a mais quedas, acidentes e
dé-fices cognitivos, aumentando o
risco de demência. Perceber que alguns médicos não valorizam
es-tesefeitos foiuma das conclusões. «Tivemos
um
médico que nos disse quenão
tinha
coragem
para
tirar
amedicação
aosdoentes porque
eram um
elixir
para
aqualidade
devida»,
exemplifica Inês Neves.
Vasco
Maria
explica que esseefeito éuma ilusão. «É preciso
mudar
mentalidades,dar
mais informação ealertar
que as ben-zodiazepinas nãotratam
nenhu-madoença. Sócontrolam
sinto-mas e, aofim
dealgum tempo, nem isso fazem». Sãomedicamen-tos que devem ser tomados por
pe-ríodos curtos: duas aquatro
sema-nas no tratamento dainsónia eaté três meses na ansiedade.
A
partirdaí, muitas vezes os sintomas dos doentes játêm mais a ver com a
de-pendência eserem precisas doses
maiores para surtir algum efeito. Não quer dizer que as pessoas não precisem de tratamento, diz o mé-dico, mas intervenção psicológica ou mesmo antidepressivos, que não causam dependência, serão
op-ções a equacionar. Do lado dos doentes, orelato mais impressio-nante foi muitos não saberem que
os medicamentos podiam
viciar
porque nunca tinham sido infor-mados disso. «Ficou-me a frase
de
um
doente que achava queeram
como osmedicamentos
do coração,
para tomar
para
sempre», conta Inês Neves.0
estudoincluiu
pessoas que estavam atomar calmantes há30anos e também houve casos de sucesso. Mas o que mais
sur-preendeu aequipa foi perceber
que mesmo entre aqueles que não estavam motivados e
acha-vam que não iam conseguir foi
possível parar. Já
fizeram
ofol-low-up de um ano a 23 dos 39doentes queconseguiram largar os medicamentos e só mais um retomou, oque dá uma taxa de
manutenção dos resultados de 82,6%.Osrestantes serão avalia-dos até dezembro.
9,6%
Estima-se
que
quase
um
em
cada
dez portugueses
tome calmantes
diariamente
28.859
Os
portugueses
con-somem
diariamente
quase
29
mil
embala-gens
de
benzodiazepi-nas.
Em
2016
foram
10,5 milhões
de
caixas
Quando a
prescrição
óumhábito
Como explicar ofenómeno? Vasco
Maria
não tem dúvidas de que é umaquestão de«hábito de prescri-ção» porque a medicação éantigae,ao início, estes efeitos não eram tão falados, mas sublinha que não
hárazão para osmédicos não infor-marem os doentes: osavisos estão
nas bulas. «É
um
problemaanti-go e nãotemmelhorado. Em1994 fizemos
um
primeiro estudonum
centro de saúde daperiferia
de Lisboa econcluímos que23% da populaçãoali
seguida consumiacronicamente benzodiazepinas».
Criar
um projeto que fosse im-plementável no terreno em vezde uma experiência académica foi apreocupação, para contribuir de vez para uma mudança de paradig-ma. «Conseguimos
demonstrar
que éexequível
e médicos e doentes ficaram satisfeitos».Ou-tra
vertente foi produzir panfle-tos eum site onde, no futuro, es-peramreunir
testemunhos de quem conseguiu tornar-se umex--dependente de ansiolíticos.
Organizar um workshop e fazer
umaproposta dealargamento da
experiência no SNS são outros planos, embora Vasco
Maria
re-conheça que ainda não quantifi-caram oscustos. Sobre osganhos não tem dúvidas. «Temos idososa
tomar
benzodiazepinas
há
anos que acabam
por
ir
aopsi-quiatra
porque
nãoandam
di-reitos evêm de
lá
com maisum
medicamento. Selhes tirassemos ansiolíticos
melhoravam».
Cristina também não temdúvi-das de que está melhor edeque a suateimosia contribuiu para o
des-fecho, porque não foi fácil.
«Acre-ditei
queia
conseguir mas aoinício não me sentia bem,
tinha
vómitos,falta
de apetite»-
tudo sintomas de privação.Nessa altura, foi essencial o te-lefonema da psicóloga, que lhe disse que era
normal
e para terforça
-
aprender técnicas paraadormecer como umbanho quen-tepara
relaxar
enãoficar
avertelevisão também éimportante. Cristina não tenciona voltar
atrás. No início, também ninguém
lhe disse que a medicação tinha
aquele efeito, mas percebeu por si que algo estava errado eoprojeto chegou em boa hora. «Sabia que
era
algo que eutinha
dedeixar, eraum
vício, comouma
droga».OABCDOS
ANSIOLhiCOS
O
que são
as
ben-zodiazepinas?
São os chamados medi-camentos calmantes, usa-dos no tratamento de ansiedade e insónias. EmPortugal, os mais usados são o alprazolam, o lora-zepam eodiazepam. Há
vários genéricos mas nomes comerciais conhe-cidos incluem Xanax, Ansilor ou Valium. No
caso da ansiedade ou
cri-ses de pânico, o
trata-mento não deve exceder
8a12semanas. Na
insó-nia, oindicado são duas
aquatro semanas.
Quais
são
os
riscos
do
uso
crónico?
Háum efeito de
tolerân-cia: são precisas doses cada vez maiores para
os mesmos efeitos. Por outro lado, criam depen-dência: quando se inter-rompem de forma repenti-na geram sintomas de abstinência, como insónia ou tremores. Saiba mais em www.bedsproject.pt