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A psicanálise e a clínica nas urgências

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Academic year: 2021

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A psicanálise e a clínica nas urgências

Bruna Americano e Sonia Alberti

O presente trabalho tem como objetivo levantar a questão do sujeito na clínica na urgência no hospital geral. A partir do atendimento nas situações de urgência buscaremos destacar as possibilidades de fazer o sujeito emergir diante de um real que se impõe violentamente. Para tanto, temos a visada de estudar as relações do sujeito com o tempo: com o tempo do sujeito do inconsciente, que Freud define como atemporal, e o tempo cronológico que se faz valer para todo ser falante e que aparece em destaque para a medicina.

Freud em 1915, no artigo “O Inconsciente” define o inconsciente como atemporal, ou seja, o que nele se inscreve não se altera em razão da passagem do tempo. Convém ressaltar que tal hipótese mostra-se presente desde os primórdios da psicanálise, no entanto é apenas em 1915 que Freud a define, a posteriori. Para o sujeito do inconsciente o tempo que se faz valer não é cronológico, não leva em conta as horas contadas pelo relógio, mas sim uma ordenação lógica que faz do passado presente. Ou como Lacan define, uma história de vida “não é o passado simples do que foi, já que não é mais, tampouco o passado composto do que tem sido no que sou, mas o futuro anterior do que teria sido para aquilo em que estou me transformando” (Lacan, 1953: 301).

No hospital geral o tempo se presentifica por sua dimensão cronológica – as intervenções médicas que requerem um tempo contado – e pelo contato com a morte. Em nossa pesquisa destacamos que na urgência da vida no hospital, por vezes, o que verificamos é um apagamento do sujeito diante do real do Outro absoluto, representado pelo tempo e pela morte. Ou seja, diante do inesperado, da iminência da morte, o sujeito fica sem palavras, imerso num sofrimento inefável.

Uma vez que o significante mortifica o ser, como Lacan nos ensina em O Seminário, livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, poderíamos dizer que em certas urgências, o que acontece é uma suspensão temporária do sujeito que entra em afânise em função do tempo se impor. De maneira que vemos um

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apagamento do sujeito diante do real do Outro absoluto.

Lacan (1964) define a afânise do sujeito como o seu apagamento. Ele nos diz que na afânise há uma petrificação do sujeito, que se encontra sem saída diante da representação por outro significante. O desaparecimento do sujeito ocorre em conseqüência daquilo que o causa como tal: o significante.

O primeiro significante deixa o sujeito assujeitado e subordinado a um significante do Outro. “O sujeito aparece primeiro no Outro, no que o primeiro significante, o significante unário, surge no campo do Outro, e no que ele representa o sujeito, para um outro significante” (Lacan, 1964: 207). Esse outro significante tem por efeito a afânise do sujeito. Lacan define a divisão do sujeito da seguinte maneira: “quando o sujeito aparece em algum lugar como sentido, em outro ele se manifesta como fading, como desaparecimento” (Lacan, 1964: 207). O sujeito se apaga diante de um real que não tem representação para ele. Podemos então derivar daí, que diante de S2, que é o saber médico, desaparece o sujeito, representado pelo seu sintoma no hospital, o S1.

Concomitantemente, a urgência, seja de que ordem for, coloca o sujeito frente à morte, e ela escancara os limites da vida humana. Diante disso, não há elaboração possível e o sujeito se apaga.

Nosso fragmento de caso clínico visa exemplificar tal apagamento do sujeito.

Clara e um tempo que não houve

Clara, 18 anos, foi internada na enfermaria do NESA durante o plantão geral noturno do HUPE, numa segunda feira. Ela chegou ao hospital durante a noite com dores no pescoço do tipo torcicolo. Sentia-se bem, segundo o relato da mãe, mas a dor era grande e seus pais ficaram preocupados, pois ela não costumava ficar doente e nem reclamar de dores. Aparentemente Clara estava bem, no entanto os médicos pediram um exame de sangue que apresentou taxas bastante alteradas. Seu hemograma era péssimo, segundo os médicos, apesar dela não parecer estar tão doente. Por conta do exame muito comprometido, Clara foi internada na enfermaria do NESA na mesma noite. Foi assistida pelo Plantão Geral até as 7 horas da manhã quando os médicos do NESA

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chegaram para sua rotina. A paciente ficou bem à noite e às 7 da manhã de terça-feira começou a ter grande dificuldade de respirar, apresentou sangue nas vias aéreas e precisou ser entubada. Seu raio X, que estava normal no dia anterior, nesse momento mostrava um pulmão tomado de sangue.

A equipe de psicanálise e saúde mental foi chamada a intervir junto aos pais de Clara no momento em que chegamos à enfermaria, pela manhã. A equipe médica solicitava um atendimento com urgência a seus pais, pois, a essa altura, Clara encontrava-se no respirador sem que os médicos sequer soubessem que patologia a acometia. A equipe médica não sabia o que dizer aos familiares, que acompanhavam a filha e notavam a sua piora brusca.

Clara encontrava-se sedada e, portanto impossibilitada de estabelecer uma comunicação. Além disso, uma grande equipe de médicos e enfermeiros do NESA permanecia ao redor de seu leito, todos preocupados e empenhados em salvá-la. Sua mãe, Cláudia, foi atendida logo após a entubação da filha.

Cláudia relatou o susto que levara com tudo o que estava acontecendo, já que sua filha sempre foi saudável e começou a se sentir mal há apenas 3 dias. Elas já tinham ido a outros hospitais e nenhum diagnóstico foi feito. Cláudia contou que Clara queria ser médica e que estava estudando farmácia para poder arrumar um emprego e pagar a faculdade de medicina. Clara tinha dois irmãos, um de 13 anos e uma de 8 anos, que ficava sob a responsabilidade de Clara, já que os pais trabalhavam. Clara a levava na escola, ajudava com os deveres e permanecia ao seu lado a tarde inteira quando ficavam em casa.

Cláudia, antes do atendimento, estava chorando bastante pelo corredor da enfermaria, falando alto, causando comoção aos profissionais e pacientes internados. No atendimento ela ainda chorava muito e falava “não posso perder minha filha”, “Porque ELA???” Dizia que não entendia o que estava acontecendo, em suas palavras, “Clara chegou aqui andando e agora está assim e ninguém sabe me dizer o que está havendo”. Cláudia estava desorientada, repetia essas palavras e chorava dizendo que amava muito sua filha e estava com medo. Num momento de tamanha angústia diante da morte, Cláudia dirigia a mim sua dor e de alguma forma ao falar dava uma ancoragem aos significantes desencadeados pela angústia.

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Por outro lado, o pai de Clara, Joaquim, que também foi atendido por mim na mesma manhã, mostrava-se forte e confiante. Ele dizia “Seja feita a vontade de Deus”. Bastante religioso, Joaquim é técnico em farmácia e trabalha num hospital público na Baixada Fluminense. Ele falou que já viu muitas pessoas perderem entes queridos e presenciou muito sofrimento, mas que nunca pensou que isso pudesse acontecer com ele. Disse que já ajudou os pacientes do Hospital que trabalhava e as pessoas da Igreja. Joaquim disse ainda que não estava suportando ver sua esposa em tamanho desespero, que ele não sabia como ajudá-la e pediu que eu a ajudasse “no que fosse possível” (sic). Joaquim e Cláudia permaneciam em lugares diferentes da enfermaria, nos parecia, nesse momento, haver uma certa dificuldade do casal de estar um ao lado do outro.

Clara não apresentava melhora clínica, sua mãe, no entanto, estava um pouco mais calma após uma conversa com os médicos. Dois médicos experientes do NESA passaram as informações que tinham ao casal. Mesmo sem um diagnóstico, explicaram aos pais de Clara exatamente o que acontecia. Convém ressaltar que participamos da reunião, mostrando a importância dada a nosso trabalho pela equipe médica.

Durante o almoço, a equipe de saúde mental recebeu um telefonema do Serviço Social do NESA. A assistente social dizia que Clara havia “parado” há dez minutos e que se solicitava nossa presença na enfermaria. Sabíamos que isso significava que ela havia falecido.

A notícia do óbito foi dada primeiramente ao pai de Clara pelos médicos do NESA na minha presença. Joaquim, numa atitude de defesa, reagiu de forma prática, dizendo que sabia que tinha sido feito todo o possível e que se preocupava com Cláudia, já que ela tinha pressão alta e ele tinha medo de como seria a reação dela. Ele pediu que estivéssemos perto na hora em que ele fosse falar com ela. Fomos junto com Joaquim dar a notícia à Cláudia, que estava acompanhada por sua irmã.

No momento em que ela recebeu a notícia, chorou desesperadamente e sentiu-se culpada. Levantamos a hipótese de que esta era uma forma dela se defender do vazio causado pela angústia frente ao real com o qual se deparava. Disse que devia ter levado a Clara antes ao hospital. A médica explicou o que havia acontecido e informou que não sabiam a causa da morte e que apenas uma necropsia poderia esclarecer o ocorrido.

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lado de Claudia e sua irmã, ambas chorando muito e dizendo não acreditar no estava acontecendo. Respeitei o silêncio e o choro delas, apenas me colocando à disposição para ouvir. Nesse momento, tomada pela angústia, Claudia não conseguia falar. Nossa posição ao seu lado era a de sustentar a presença de alguém que pudesse ouvir sua dor, sem lhe pedir para ficar calma ou consolá-la diante do inconsolável.

Tal situação nos leva a pensar o lugar do analista na urgência, como Lacan nos ensina, “O analista é tão menos seguro de sua ação quanto mais está interessado no seu ser” (Lacan, 1958: 594). O analista paga com as palavras para ocupar sua função e, neste caso, com o silêncio, com a difícil tarefa de sustentar o silêncio frente à morte. Além disso, ele paga com a sua pessoa uma vez que é inteiramente despossuído dela na transferência e paga com seus juízos que precisam estar fora do jogo na análise (Lacan, 1959-60: 349).

Cláudia nos perguntou se poderia ir ver a sua filha e se poderíamos ir junto com ela, pois não estava se sentindo bem. A levamos até o leito onde estava o corpo de Clara e a aguardamos do lado de fora do quarto.

Joaquim procurava resolver as questões burocráticas, perguntava se podia ir para casa, o que faria com o corpo, entre outras coisas. Seu sofrimento era muito grande, porém mostrava-se forte diante das circunstâncias. Sua esposa estava bastante desesperada. Ele autorizou que fosse feita a necropsia a pedido dos médicos, o que atrasaria o enterro.

Após o desespero inicial, fomos a uma sala reservada e Cláudia conseguiu falar um pouco sobre o que estava acontecendo. Pôde falar sobre sua filha e contou como era a rotina dela, relembrou alguns momentos da infância e falou da relação de Clara com a irmã mais nova, que estava na entrada do hospital sem saber o que ocorrera. Cláudia dizia que não sabia como daria essa notícia a sua filha mais nova.

Observamos, com esse caso, que, não apenas os familiares ficaram tomados pela angústia, mas também os profissionais. Joaquim perguntava quais eram os procedimentos a serem realizados e a equipe, a princípio, não sabia o que lhe responder. Como dar entrada no óbito? Para onde levar o corpo? Foram perguntas que ficaram sem resposta durante um intervalo de tempo. Uma vez que conhecemos e sabemos da competência técnica da equipe do NESA, sempre muito implicada em seu trabalho,

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acreditamos que a equipe de fato sabia o que era preciso ser feito, mas, tomada pelo encontro com o real da morte, ficou sem palavras. No dia em que Cláudia retornou à enfermaria em busca do resultado da necropsia, foi realizado mais um atendimento, no qual ela falou da culpa que sentia por não ter levado a filha antes ao hospital. Ao contrário do que o senso comum e a própria equipe médica poderiam responder a ela – que não havia como ela saber o que se passava – o analista deve se posicionar de outro lugar. Faz-se necessário recolher o que está sendo dito sem intervir de forma a desculpabilizar ou “aliviar” o paciente dessa culpa. Verificamos no cotidiano da urgência no hospital, uma função importante da culpa no processo de luto. A culpa parece dar um sentido àquilo que não tem sentido, ela tem a função de recobrir pelo imaginário o real da morte.

Cláudia foi colocada a falar a respeito de tantos sentimentos que tomavam conta dela nesse momento, e foi convidada a retornar ao hospital para outros atendimentos. Ela disse que tentaria vir, mas que era muito difícil retornar ao local da morte da filha e de fato não retornou.

O caso mostra a dificuldade de se fazer valer a psicanálise nos momentos críticos, no entanto, aponta para a possibilidade de sustentá-la, não dando significado ao sofrimento do sujeito e apostando que, mesmo em situações extremas, ele possa falar, iniciando-se assim a construção de um sentido para tamanho sofrimento.

Neste caso, fica claro o aspecto devorador do tempo: a morte chega muito rápido para Clara e sua mãe não dá conta de lidar com a tirania do tempo.

Cláudia praticamente se apaga diante do anúncio da morte da filha. Na desordem provocada por tamanha desgraça, ela minimamente se organiza ao relembrar momentos da filha e tem alguém para ouvir suas lembranças quando seu marido, também tomado pelo horror da morte, decide tomar as providências burocráticas.

Diante de uma pausa, provocada pela presença de um psicanalista ao seu lado, para ouvi-la mesmo no silêncio, os significantes da cadeia associativa começaram a aparecer e a se encadear: culpa, morte, faculdade de medicina, futuro... As interjeições de dor e sofrimento foram dando lugar a um dizer, o que possibilitou que ela saísse do desespero. Não queremos dizer que seu sofrimento diminuiu ou que ainda não haveria todo um trabalho de luto a ser feito, mas que nesse momento foi possível acolhê-la e

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permitir que ela significasse algo diante da tragédia. É essa possibilidade de elaboração que nos permite uma hipótese: de início, em afânise por estar todo no nome do sintoma no discurso médico, o sujeito se apaga. Com o real da morte, o sujeito é tão avassalado que, querendo ou não, desperta: não há significante que possa representar o que está acontecendo, o que necessariamente retira o sujeito da afânise em que se encontrava – como dito, a afânise ocorre porque um significante o subsume, no caso, o nome do sintoma no discurso médico. Mas como ainda nos ensina Lacan no já citado Seminário 11, diante do real que horroriza, o sujeito desperta para poder continuar dormindo – Lacan está trabalhando o tema do pesadelo, o sujeito ao se deparar com o real no sonho acorda para continuar a dormir por não ter meios para elaborar o real que o atinge. A hipótese então é: com a presença do analista no hospital institui-se a possibilidade de fazer desse despertar não uma fuga do real mas uma maneira de o sujeito poder suportar o encontro com o real: de um lado, permitindo fazer valer novamente o lugar do sujeito independente do momento que o doente esteja vivendo, de outro, atribuindo-lhe condições para não sucumbir à morte como um Outro absoluto que a ele parece querer se impor.

Referências Bibliográficas:

FREUD, S. “Lo inconciente” (1915). Vol. XIV. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 2006.

LACAN, J.“Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (1953) In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

__________ “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” (1958). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

_________ O seminário, Livro 7- A ética da psicanálise (1959-1960). Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1999.

_________ O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor: 1998

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