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Uma leitura espectrológica de Lovecraft: análise de A cor que caiu do céu, O chamado de Cthulhu e Sussurros na escuridão

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Academic year: 2021

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LUCIMARA DA SILVA CORRÊA

UMA LEITURA ESPECTROLÓGICA DE LOVECRAFT: ANÁLISE DE A COR QUE CAIU DO CÉU,

O CHAMADO DE CTHULHU E SUSSURROS NA ESCURIDÃO

Tubarão 2020

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LUCIMARA DA SILVA CORRÊA

UMA LEITURA ESPECTROLÓGICA DE LOVECRAFT: ANÁLISE DE A COR QUE CAIU DO CÉU,

O CHAMADO DE CTHULHU E SUSSURROS NA ESCURIDÃO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Letras Língua Portuguesa da Universidade do Sul de Santa Catarina como requisito parcial à obtenção do título de Licenciado em Letras.

Prof. Dr. Alexandre Linck Vargas (Orientador)

Tubarão 2020

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LUCIMARA DA SILVA CORRÊA

UMA LEITURA ESPECTROLÓGICA DE LOVECRAFT: ANÁLISE DE A COR QUE CAIU DO CÉU,

O CHAMADO DE CTHULHU E SUSSURROS NA ESCURIDÃO

Este Trabalho de Conclusão de Curso foi julgado adequado à obtenção do título de Licenciada em Letras Língua Portuguesa em 8 de dezembro de 2020 por banca formada pelos professores Alexandre Linck Vargas (presidente da sessão), Julian Alexander Brzozowski (avaliador) e Yasmin Pereira Yonekura (avaliadora); e foi aprovado em sua versão final em 11 de dezembro de 2020 pelo professor Alexandre Linck Vargas (orientador) e pelo professor Fábio José Rauen (professor da Unidade de Aprendizagem Trabalho de Conclusão de Curso II), que assina a presente declaração representando os avaliadores e a Coordenação do Curso de Graduação em Letras Língua Portuguesa da Universidade do Sul de Santa Catarina.

Tubarão, 11 de dezembro de 2020.

______________________________________________________ Dr. Fábio José Rauen

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Dedico este trabalho a todos que de alguma forma contribuíram para o seu desenvolvimento, especialmente aos meus professores e aos amigos que fiz durante o curso de letras. Sem o apoio deles, eu não teria chegado até aqui.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus professores pelo conhecimento adquirido ao longo do curso, pelo apoio e compreensão, e pela dedicação em ensinar; agradeço aos amigos que fiz durante o curso pelo conforto da companhia, pela acolhida da conversa, e pelo apoio durante os momentos ruins; agradeço aos meus familiares por acreditarem em mim, pela força e esperança que me passaram; e principalmente, agradeço ao professor doutor Alexandre Linck Vargas, meu orientador neste trabalho, por toda a sua contribuição, pela competência, pelo apoio e, sobretudo, por sempre me incentivar a continuar buscando ampliar o meu conhecimento acadêmico.

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“Nem a morte, nem a fatalidade, nem a ansiedade podem causar o insuportável desespero que resulta de perder a própria identidade” (Howard Phillips Lovecraft).

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RESUMO

A presente pesquisa trabalha com a escrita lovecraftiana a partir de uma leitura espectrológica. O objetivo é construir uma análise de três obras lovecraftianas, os contos A cor que caiu do céu, O chamado de Cthulhu e Sussurros na escuridão diante das noções espectrológicas de disjunção no ser e de outside, do filósofo Fabián L. Romandini. O trabalho é uma pesquisa bibliográfica, de caráter exploratório e qualitativo. Foi delimitada a produção literária lovecraftiana que trouxesse a aparição de elementos cósmicos e inumanos. A análise mostra que o horror cósmico lovecraftiano trabalha com o constante medo da disjunção, da perda de identidade e referência. E assim, a espectrologia se mostra precisa quando utilizada para analisar Lovecraft e suas obras, porque permite contemplá-los de modo amplo. A partir da espectrologia é possível estabelecer uma pergunta necessária para iniciar qualquer debate em Lovecraft: diante do horror cósmico, o que se espectraliza do humano?

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RESUMEN

La presente pesquisa trabaja con la escritura lovecraftiana a partir de una lectura espectrológica. El objetivo es construir un análisis de tres obras lovecraftianas, los cuentos The colour out of space, The call of Cthulhu y The whisperer in darkness delante de las nociones espectrológicas de la disyunción en el ser y de outside, del filósofo Fabián L. Romandini. El trabajo es una pesquisa bibliográfica, de carácter exploratorio y cualitativo. Fue delimitada la producción literaria lovecraftiana que trajese la aparición de elementos cósmicos e inhumanos. El análisis muestra que el horror cósmico lovecraftiano trabaja con el constante miedo de la disyunción, de la pérdida de identidad y referencia. Y así, la espectrología se muestra precisa cuando es utilizada para analizar a Lovecraft y sus obras, porque permite contemplarlos de un modo amplio. A partir de la espectrología es posible establecer una pregunta necesaria para iniciar cualquier debate en Lovecraft: delante del horror cósmico, ¿qué se espectraliza de lo humano? Palabras-clave: Lovecraft. Espectrología. Disyunción en el ser. Outside. Horror cósmico.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO... 9

2 METODOLOGIA ... 13

3 A COR QUE QUEIMA ... 14

4 R’LYEH: A CIDADE QUE (SE) DISTORCE ... 19

5 COMUNICAÇÃO QUE (DIS)JUNTA ... 24

6 CONCLUSÃO ... 28

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1 INTRODUÇÃO

A ideia de pesquisar as obras de Howard Phillips Lovecraft surgiu facilmente, uma vez que dentre as minhas leituras preferidas sempre estiveram os contos de horror, de ficção científica, e de fantasia. O objeto de estudo – a escrita lovecraftiana demonstrada em três contos específicos – foi escolhido apenas após a leitura do estudo a respeito da obra do autor, realizado pelo filósofo argentino Fábian Ludueña Romandini, o qual traz à tona a noção espectrológica de disjunção no ser. A partir deste conteúdo, se propôs o problema da pesquisa: como as noções espectrológicas propostas por Romandini realmente se dão nos contos lovecraftianos A cor que caiu do céu (1927), O chamado de Cthulhu (1928) e Sussurros na escuridão (1930)? O objetivo é construir uma análise da escrita lovecraftiana nestes três contos diante da noção de disjunção no ser e de outside. A pertinência deste trabalho é construída visando a sua futura contribuição para os estudos em literatura de horror, para os estudos em Lovecraft, e para a crescente divulgação do cosmicismo lovecraftiano.

Quando a escrita de Lovecraft ganhou forma, na década de 1920, a obra do autor ainda recebia uma espécie de rotulação: histórias ruins, limitantes e repetitivas. Suas produções não eram consideradas de alta cultura pelos críticos literários. (MAPA, 2017). Juntamente com autores como Robert E. Howard, Frank Belknap Long, Robert Bloch e Clark Ashton Smith, as histórias de Lovecraft eram publicadas em revistas pulp, como a Weird Tales (JOSHI, 2003) – que seria responsável por batizar, academicamente, as produções lá publicadas de weird fiction (NESTAREZ, 2017) – na qual o espaço era dedicado a histórias curtas e amadoras, por certas vezes mais focadas no entretenimento. Esta plataforma de publicação é a “culpada” pelo preconceito da crítica literária, pela subvalorização das obras, pois os autores que lá eram publicados recebiam fama de pequenos amadores ou escritores de pouco sucesso e escasso desempenho literário. No entanto, Lovecraft não criou apenas simples personagens, ele apresentou inúmeros seres monstruosos/espécies alienígenas, criou universos inumanos. O homem em Lovecraft não chega nem perto de ser o centro do universo, está abandonado em relação ao cosmos. O passado nada tem a ver com o humano, os universos não foram criados a partir da e para a vida humana, e ao serem “invadidos” pelos homens, estes universos “propõem” um destino apocalíptico. O contexto dos primeiros escritos lovecraftianos é um mundo, e mais precisamente, um Estados Unidos em mudanças, com um enorme aumento do fluxo migratório, e com a chegada de pessoas de várias regiões afetadas pela guerra. De acordo

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com Ramon Mapa, em um trecho da antologia “H.P. Lovecraft - Medo Clássico I”, da editora Darkside Books:

Para um branco tradicionalista e com vãs pretensões aristocráticas como Lovecraft, esse era um cenário de pesadelos. Não é à toa que seus personagens perdem a razão quando se deparam com o desconhecido e o estranho. Todos os dias a imprensa oferecia para o jovem Howard Phillips a ameaça do desconhecido, na forma de chineses, negros, poloneses, mexicanos. [...] O choque de Lovecraft ao descobrir que Providence não era o centro do mundo se equipara ao de seus personagens quando se dão conta de que o homem não é o centro do universo. (MAPA, 2017, p. 16). Como se constituem as ideias de Lovecraft em relação aos universos com os quais o escritor se relaciona e que, por sua vez, contribuiu para criar? É um tanto óbvio que ele tinha certa consciência da insignificância cósmica da humanidade em nosso universo. (JOSHI, 2014). Esta consciência fica visível em alguns trechos de suas cartas enviadas aos amigos. Eis um deles: “Há um conforto real na convicção científica de que nada importa muito; de que o único objetivo legítimo da humanidade é minimizar o sofrimento agudo da maioria e derivar a satisfação possível do exercício do pensamento em busca da verdade.” (LOVECRAFT, 1919, p. 87 apud JOSHI, 2014, s/p). Mais adiante, no começo da década de 1930, Lovecraft desenvolveu muitas de suas questões filosóficas, postulando seus princípios a respeito do cosmos.

Tudo o que podemos dizer [sobre o cosmos] é que ele não contém um princípio central visível tão próximo dos cérebros físicos dos mamíferos terrestres a ponto de podermos atribuir a ele com alguma razoabilidade os fenômenos puramente terrestres e biológicos relacionados a uma intenção consciente; e que formamos, mesmo abrindo caminho para as mais radicais concepções do relativista, uma parte tão insignificante e temporária do cosmos […] que todas as noções de relacionamentos especiais e nomes e destinos expressos pela conduta humana devem necessariamente ser mitos vestigiais […] (LOVECRAFT, 1929, p. 26 apud JOSHI, 2014, s/p).

Esta passagem mostra como, para Lovecraft, a negação da teologia está ligada à ideia da insignificância humana. (JOSHI, 2014, s/p). Sunand Tryambak Joshi, biógrafo dele, afirma que “a questão para Lovecraft era: como conduzir a própria vida diante da percepção de que a raça humana era um átomo insignificante na imensidão do cosmos?” (JOSHI, 2014, s/p). Esta questão talvez tenha levado o escritor a afirmar a relatividade dos valores: “Os valores são de todo relativos, e a própria ideia de uma coisa como o sentido postula uma relação simétrica com outra coisa. Nada, cosmicamente falando, pode ser bom ou ruim, belo ou feio; pois um ente é tão somente um ente”. (LOVECRAFT, 1928, p. 234). Nessa fala, Lovecraft se contradiz, pois

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ele atribuía sim valores diferentes às pessoas, e pior, de acordo com a cor e/ou nacionalidade delas.

O escritor estadunidense vem sendo motivo de muitas pesquisas acadêmicas recentemente. Para dar conta de apresentar algumas delas, foi realizada uma busca no Google acadêmico. Primeiramente, utilizou-se das seguintes palavras-chave: Lovecraft e mitologia. Com esta primeira busca, encontrei um número muito grande de pesquisas, no entanto, algumas delas me chamaram mais atenção. Dentre elas, destaco a pesquisa sobre a filosofia dos monstros lovecraftianos e a perpetuação da sua mitologia na cultura midiática, como traz Yuri Garcia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 2016, articulando Lovecraft aos pensamentos relacionados à comunicação, e pensando a forma como a sua mitologia tem sido consumida pela nossa cultura. (GARCIA, 2016). Outro destaque é o trabalho de Marcos Lampert Varnieri - mestrando em Letras na UniRitter -: “Medos aquáticos: uma poética do horror líquido em H. P. Lovecraft”. Marcos propõe identificar a influência da materialidade aquática na composição dos contos Dagon, A cor que caiu do céu, A sombra sobre Innsmouth e O chamado de Cthulhu. Segundo ele, o estudo das imagens ligadas à água contribui para expandir a leitura e o entendimento da obra de Lovecraft, comumente interpretada como terror cósmico. (VARNIERI, 2018). Por fim, como último exemplo de ilustração das pesquisas importantes e recentes a respeito de H. P. Lovecraft, vem a “Strange Days in the Anthropocene: The Inhuman in ‘The Colour out of Space’ and Annihilation”, de Jan Čapek, realizada em 2019. O artigo propõe um estudo, de certa forma, comparativo entre o conto lovecraftiano A cor que caiu do céu (1927) e o filme Aniquilação (2018), de Alex Garland, levando em conta todo o conceito de cosmos incompatível com o humano, de Lovecraft, e as críticas a respeito do antropocentrismo, em É. M. Cioran. (ČAPEK, 2019). Quando acrescentadas as palavras chaves que mais especificavam a minha pretensão de pesquisa: Espectrologia e Disjunção no ser, nenhuma outra pesquisa apareceu. Considerando-se o exposto, ressalta-se que a presente pesquisa apesar de relacionada ao mesmo escritor, difere das citadas anteriormente, uma vez que propõe um estudo mais específico de três contos, tendo como base metodológica para a análise, o filósofo Fábian Ludueña Romandini e a sua teoria da espectrologia acoplada à noção de disjunção no ser e outside. Em suma, busca não só adentrar na escrita lovecraftiana (no seu cosmicismo), como também enxergá-la diante de uma outra teoria e princípios da filosofia.

Os três contos escolhidos especificamente para a realização desta pesquisa são A cor que caiu do céu (1927), O chamado de Cthulhu (1928) e Sussurros na escuridão (1930). Eles são todos da mesma época, momento em que o processo criativo do autor disparou, no final da década de 20 e início da de 30. A atmosfera cósmica pode ser sentida durante a leitura de “A

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cor que caiu do céu”, a constante aparição de luzes e cores estranhas podem levar pessoas à loucura e ao definhamento físico e mental. “O chamado de Cthulhu” traz o monstro mais famoso de Lovecraft, é neste conto que o cosmicismo do autor se desenvolve e começa a chamar mais atenção, contribuindo para a futura construção de outras histórias. “Este conto ajuda a firmar o tentáculo como signo lovecraftiano por excelência.” (MAPA, 2017, p.14). “Sussurros na escuridão”, neste conto, as criaturas habitantes do nono planeta do Sistema Solar, Yuggoth, invadem a Terra. A história gira em torno da existência de outras galáxias e dos seres que lá habitariam, além de sua maligna ligação (comunicativa) com a raça humana.

Em seus estudos, no processo de formulação do pensamento a respeito dos espectros e construção da noção de disjunção no ser e de outside, Romandini explora, como ponto de partida, principalmente, Espinosa, Bayle, Descartes, Hobbes e Ficino. O trabalho do filósofo tem início em sua obra “A comunidade dos espectros – I. Antropotecnia”, na qual redige sobre a espectrologia. Entre o primeiro e o segundo livro a respeito da espectrologia, o autor produz o “H. P. Lovecraft: a disjunção no ser”, em que tenta demonstrar como “a visão cosmológica antiga é substituída pela ciência moderna produzindo uma mudança substancial para a filosofia [...]” (ROMANDINI, 2015, p.18). Seus estudos têm continuidade em “Princípios de espectrologia – A comunidade dos espectros II” e “Arcana Imperii: tratado político-metafísico - A comunidade dos espectros III.” Todas as obras citadas serão utilizadas como referência no processo de desenvolvimento desta pesquisa, em sua metodologia de análise. De acordo com Romandini,

o espectro [...] comporta algumas das chaves para a compreensão do modo de abordar uma nova metafísica em que o primado da consciência seja completamente subvertido pela disjunção do Ser. Contudo, [...] a disjunção no Ser [...] talvez assinale o caminho não tanto para uma metafísica [...], mas sim para uma espécie de região nem para aquém nem para além do Ser, mas que, espreitando-o desde o seu interior, o torna habitado por intensidades que denominamos ‘espectralidades’. (ROMANDINI, 2015, p. 20).

Neste sentido, a espectrologia está ligada à construção da noção de disjunção no ser e de outside, e assim, se faz importante no processo de análise da escrita de Lovecraft.

Depois de exposta a introdução ao tema deste trabalho, propõe-se agora descrever detalhadamente como ele de fato será realizado, a partir de quais métodos e recortes, e como o projeto é classificado cientificamente.

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2 METODOLOGIA

O trabalho é uma pesquisa bibliográfica, de caráter exploratório e qualitativo; um estudo de caso, tendo como instrumento de coleta de dados a análise de conteúdo. O conteúdo a ser analisado é o presente nos três contos lovecraftianos propostos: A cor que caiu do céu (1927), O chamado de Cthulhu (1928) e Sussurros na escuridão (1930). Delimita-se a produção literária lovecraftiana em busca do recorte de trechos os quais possam contribuir para o processo de análise da escrita de Lovecraft propriamente dita, levando em conta a construção da noção de disjunção no ser e de outside nestes textos, ambos princípios de Romandini.

A coleta de materiais e o critério de seleção dos trechos a serem estudados se darão, deste modo, perante a aparição de elementos cósmicos e inumanos. A natureza da investigação é descritiva e exploratória e de caráter qualitativo. Segundo Rauen (2015), pesquisas qualitativas são aquelas que

visam a compreender um fenômeno em seu sentido mais intenso. Entre as características essenciais podem ser destacadas: a objetivação, que é o esforço metódico do pesquisador de conter a subjetividade; a validade interna, que se fundamenta na triangulação de achados, pesquisadores, teorias e métodos; a validade externa, que se fundamenta na generalização naturalística, a confiabilidade, que determina em que medida os dados de pesquisa são consistentes ou podem ser reproduzidos; e a ética na coleta, análise e disseminação dos achados. (RAUEN, 2015, p. 549).

Corpus de análise: a literatura lovecraftiana do fim da década de 1920 ao início da de 30. Considerando o número de escritos de Lovecraft, optou-se pela delimitação de contos que tenham o cosmicismo como um elemento importante, cabendo investigar se essa escrita se encontra, de certo modo, em consonância com a noção de disjunção no ser e de outside, advinda do princípio de espectrologia de Romandini. Colocar-se-á em prática as seguintes ações: (1) leitura de livros, artigos e/ou documentos a respeito dos estudos do filósofo Fabián Ludueña Romandini – para a fundamentação e a análise; (2) leitura e releitura (se necessário) minuciosa dos três contos já anteriormente citados de Lovecraft; (3) escolha e recorte de trechos que tragam elementos cósmicos e/ou inumanos; (4) demanda e explicação da teoria a partir do objeto em análise.

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3 A COR QUE QUEIMA

A análise será realizada, primeiramente, utilizando-se do conto A cor que caiu do céu (1927). Em A cor que caiu do céu algumas pessoas são levadas à loucura devido à queda de uma grande pedra em uma fazenda, a qual torna constante a aparição de luzes e cores estranhas, envenenando a água e a plantação, e assustando ou matando os animais. Considerando a espectrologia e a sua ligação à construção da noção de disjunção no ser, de Romandini, serão apresentados recortes de trechos do conto perante a aparição de elementos cósmicos e inumanos, os quais serão utilizados no processo de análise da escrita de Lovecraft. A seguir, um dos primeiros recortes realizados:

E então, ao meio-dia, surgiu a nuvem branca, a sequência de explosões no ar, e a cortina de fumaça que partia do vale e penetrava na floresta. E à noite, toda a cidade de Arkham tinha ouvido falar da grande pedra que veio do céu e caiu no solo, ao lado do poço da casa de Nahum Gardner. (LOVECRAFT, 2018a, p. 21).

O trecho acima foi escolhido, previamente, como uma forma de contextualizar para o leitor como se dá o início do conto. A queda da grande pedra vira notícia em toda a cidade, e embora fossem apenas rumores – já que os cidadãos não haviam visto nada – a cidade fica bastante sensibilizada com o acontecimento. Destaca-se aqui a forma como a história se dá: como uma “ação em abismo”, um relato dentro de um relato. Para explicar este tipo de produção foi criado por André Gide, em 1893, o termo em francês mise en abyme. Lealis Conceição Guimarães, em sua tese de doutorado, contribui com a seguinte colocação:

A função da mise en abyme é colocar em evidência a construção do narrador-escritor e da escrita, cuja escolha já revela a estratégia em que o escritor torna-se seu próprio interlocutor, podendo até suscitar outra imagem além daquela em que ela se espelha. Na verdade, a narrativa realiza a construção recíproca de uma história e de um narrador. (GUIMARÃES, 2005, p. 65).

Diante do que traz o efeito mise en abyme, demanda-se as seguintes questões: como esses recursos narrativos são fundamentais para enxergar a espectrologia e a disjunção no ser dentro do conto lovecraftiano? Como a forma, os usos da palavra e das construções de Lovecraft contribuem neste sentido? Quando histórias são contadas dentro de outras histórias é construída uma sensação labiríntica, de adensamento narrativo, instigando a curiosidade perante os acontecimentos descritos. A espécie de “jogo dos espectros” dentro da escrita de Lovecraft se dá exatamente devido a descrição inominável das coisas e seres cósmicos. Um fator importante

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é o de que a espectrologia está ligada a referentes de linguagem extra-humanos. (ROMANDINI, 2018). Romandini determina os espectros como “os entes que sobrevivem (mesmo que sob a forma de um postulado) à sua própria morte, ou que estabelecem um ponto de indistinção entre vida e morte. [...] o espectro pode ser completamente imaterial ou adquirir diferentes

‘consistências’ [...]” (2012, p. 13). A espectrologia é, em suma, o estudo desses entes

denominados pelo filósofo como espectros. É no desenvolvimento dos estudos espectrológicos que surge o princípio de disjunção no ser, o qual designa o processo que acontece com o sujeito/ser em um cosmos deslocado e repleto de entes exteriores ao ser (os espectros): “não são as formas do cosmos que produzem o sujeito, mas, ao contrário, são as figuras espectrais que fraturam o real e inscrevem o sujeito a partir de fora, porém em seu próprio corpo [...].” (ROMANDINI, 2018, p. 185, grifo meu).

A disjunção no ser torna-se visível em Lovecraft, principalmente a partir das construções e ideologias lovecraftianas, uma vez que "ele postula uma filologia que não é uma ciência do homem, e sim do cosmos infra e supra-humano.” (ROMANDINI, 2013, p. 29-30). Ainda interessa, neste sentido, compreender como a literatura de Lovecraft pensa o sujeito. Segundo Romandini, o sujeito em Lovecraft:

tem lugar em uma a-temporalidade que não é uma condição apriorística, mas que, ao contrário, constitui a possibilidade real de que uma posição de sujeito viva, ao mesmo tempo, ou sucessivamente em várias temporalidades nas quais pode "tomar posição" sem formar uma identidade fixa. (ROMANDINI, 2013, p. 44).

Partindo para um segundo recorte de A cor que caiu do céu, nota-se prontamente os primeiros efeitos causados à plantação do local, logo em seguida, chama a atenção a maneira como o escritor descreve as cores:

Todas as árvores frutíferas floresceram com estranhas cores, e no solo pedregoso do jardim e do pasto adjacente havia mudas bizarras que apenas um botânico poderia ligar à flora adequada daquela região. Não se avistavam cores sãs, exceto pela relva e pela folhagem verdes, mas por toda parte estavam as variantes febris e prismáticas de alguma tonalidade primária doentia que não encontrava lugar entre as cores conhecidas da terra. (LOVECRAFT, 2018a, p. 31).

O que Lovecraft quis dizer com “cores sãs”? Quais seriam estas cores? E as que representam o contrário? As “cores sãs” são todas as cores já descobertas pelo homem na terra, sejam elas primárias, secundárias ou terciárias. São cores que representam, de certo modo, a espécie e a vida humana, ou a dos outros seres terrestres. Já as outras cores, as “doentias”

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demonstram ser cores perigosas, as quais sendo estranhas aos humanos, chegam para causar desconforto e destruição. A brincadeira de Lovecraft com uma “descrição pouco descritiva” – que mais confunde do que esclarece – dessas últimas cores leva o leitor a um certo pico de imaginação. Com o tipo de descrição utilizado, forma-se a ideia de que o narrador não é humano, pois mostra ter saberes além da humanidade, ocasionando em um cenário ainda mais misterioso. Poderá o narrador ser uma espécie de espectro? “O espectro é o horizonte que marca uma disjunção no Ser e advém como uma subsistência para-metafísica. [...] encontra seu lugar no próprio vazio que se abre na sutura impossível da ordem do mundo com a ordem das causas lógicas.” (ROMANDINI, 2018, p. 194). Pensando conforme Romandini, o narrador pode sim adquirir um caráter espectral.

As “ações” da coisa desconhecida (a pedra que caiu do céu) acabam por causar medo, estranhamento e danos aos donos da vegetação:

[...] pareciam estar se degenerando física e mentalmente, e ninguém se surpreendeu quando a notícia de que a Sra. Gardner havia enlouquecido se espalhou. Acontecera em junho, cerca de um ano depois da queda do meteoro, e a pobre mulher gritava sobre ver coisas no ar que não conseguia descrever. (LOVECRAFT, 2018a, p. 33).

Os gritos da Sra. Gardner parecem ser destinados a uma espécie de espectro inumano, algo que não tinha como ser explicado ao resto da família, causando desolação e loucura. Diante do espectro, a Sra. Gardner nem mesmo formula uma hipótese/ideia do que se trata e do que está acontecendo, pois, a sua consciência encontra-se afetada pela perturbação espectral. Romandini explica isso no trecho a seguir: “o espectro não é o que se coloca nem ante o pensamento nem ante a consciência como um externo objetivo. Independente de todo Homo, sua acossidade fende o pensamento, impede a fundação da consciência e desagrega o território do Um mais além do ser.” (ROMANDINI, 2018, p. 194, grifo meu).

Mais adiante, o próximo a enlouquecer é Thaddeus, o qual ao se aproximar do poço (local onde a pedra caíra) vê-se ensandecido pelas “cores que se movimentavam lá embaixo” (LOVECRAFT, 2018a, p. 36). Além das características já citadas de Lovecraft a respeito das cores inumanas, surge uma nova, a do movimento que elas são capazes de realizar. A descrição de cores que se movimentam esbarra novamente no espectro, pois é o que melhor consegue representá-las. Romandini aponta que “o que permite vislumbrar a disjunção no Ser é que o pensamento e o mundo estão fendidos por agências exteriores ao Ser, os espectros, que mostram a natureza para-metafísica que atravessa tudo o que existe e se pensa.” (ROMANDINI, 2018, p. 194, grifo meu). A natureza para-metafísica é parte do estudo espectrológico, pois “a

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espectrologia é uma ciência pós-metafísica do para além do Ser [...].” (ROMANDINI, 2018, p. 194), o espectro em si é um “ente” exterior ao ser, além do ser. O que Romandini afirma sobre o espectro corrobora essa visão, pois se ele faz parte de uma natureza além da metafísica, podem as cores, como espectros, movimentarem-se, agirem vivamente.

Tudo o que era vivo, da terra, e estava próximo ou tentava se aproximar era afetado, de certa forma, pela estranha coisa. O próximo trecho é o que mais ilustra os efeitos da estranha “cor” sobre os seres vivos terrestres:

Tudo tinha acontecido na última meia hora, mas o colapso, a cor cinza, e a desintegração já estavam em estágio avançado. Havia uma fragilidade horrível, e os fragmentos secos caiam em camadas. Ammi não conseguiu tocar, mas olhou horrorizado para a paródia distorcida daquilo que um dia tinha sido um rosto. [...] os lábios inchados conseguiram apenas esboçar uma última resposta. – Nada... nada... a cor... queima... fria e molhada... mas queima... vive no... poço... eu vi... um tipo de fumaça [...] o poço... brilhava... à noite... [...]... tudo que vive... sugando... a vida... de tudo... não sei o que ela quer... a coisa redonda... que... os homens... da universidade... tiraram da pedra... esmagaram... era... da mesma cor... igual... como as flores... e plantas... devia ter mais... sementes... sementes... cresceram... eu vi... primeira vez esta semana... [...] entra na sua mente... penetra... arde... lá no poço... água... você tinha razão... água diabólica... [...] não dá para escapar... arrasta... você sabe que a coisa está vindo, mas não dá para fugir... pega você... eu vi... muitas vezes... [...] minha cabeça... não está bem... não sei... quando ela comeu... vai pegá-la... se não tomarmos cuidado... a cor da cabeça depegá-la... está ficando cinza... às vezes queima e suga... à noite... veio de um lugar em que as coisas não são como aqui... os professores avisaram... estavam certos... olha, Ammi, vai acontecer mais coisa... suga a vida... [...] E aquilo foi tudo. (LOVECRAFT, 2018a, p. 44-45, grifo meu). O recorte traz, já de início, a desintegração humana, o desfazer-se dos traços comuns à humanidade. Ainda neste estágio, o homem (o fazendeiro Nahum Gardner) consegue expor tudo o que viu, sentiu, e sabe sobre o ser cósmico que se aloja em suas terras. Segundo o fazendeiro, a coisa vinda do espaço “sugava a vida”, e parecia ter “sementes”, que se espalhavam, causando terror e aniquilação sobre tudo o que chegava perto. Ao abastecer-se da vida humana, a cor entrava na mente, ardendo e queimando, parecia fazer com que houvesse um desequilíbrio mental, no qual a mente humana era, de certa forma, separada do corpo. Essa separação é um símbolo de disjunção, o qual é representado no trecho com o uso repetitivo das reticências (pausas na fala), elas demonstram a grande confusão mental sofrida pelo personagem. O fragmento do conto, manifesta então características da disjunção no ser. Romandini explica que “o espectro e o sujeito, tanto quanto o pensamento e o objeto, dão conta de um mundo disjunto.” (ROMANDINI, 2018, p. 186).

Após toda a destruição causada no local em que permaneceu, a coisa deixa o planeta terra: “[...] a cor desconhecida uniu-se à Via Láctea.” (LOVECRAFT, 2018a, p. 55). Lovecraft termina o conto com uma espécie de conclusão a respeito daquele ser inumano e de sua origem:

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“Era somente uma cor que caiu do céu. Um pavoroso mensageiro das regiões amorfas do infinito, com uma natureza desconhecida por nós [...]” (LOVECRAFT, 2018a, p. 60). Com isso, ficam algumas questões: O que ela (a coisa) queria? Conseguiu obter? Onde ela mora? Existe a possibilidade de um retorno à terra? A coisa sugeria ter como objetivo o contato com os seres terrestres, principalmente os humanos. De certo modo, ela conseguiu obtê-lo, e demonstrou-se satisfeita, pois deixou o planeta, retornando para a Via Láctea. No entanto, não é bem a possibilidade de um retorno o que mais assusta os moradores, mas sim o fato de que “algo horripilante caiu nas colinas e vales com aquele meteoro, e algo terrível ainda permanece por lá.” (LOVECRAFT, 2018a, p. 60). É desta maneira que Lovecraft encerra o conto, deixando o final um tanto aberto, acredita-se que na intenção de causar um pouco mais de mistério e tensão, uma vez que os males da coisa não têm uma resolução definitiva, podem ou não continuar presentes ou reaparecer subitamente. Assim também acontece com os espectros, visto que “os espectros são ‘transobjetivos’, pois já não indicam a independência [...] do objeto em relação ao sujeito ou vice-versa e sim a disjunção que subsiste no ‘através’ de toda estrutura (dinâmica) de sujeito-objeto.” (ROMANDINI, 2018, p. 203-204. Grifo meu). Em resumo, o “algo terrível” que fica no local (algo espectral) e os moradores da região (agora cheios de medo) poderiam representar essa dependência do objeto em relação ao sujeito e/ ou vice-versa. Seguindo os contos propostos por ordem de publicação, o próximo capítulo é destinado ao Grande Cthulhu e a cidade onde ele se criou, R’lyeh.

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4 R’LYEH: A CIDADE QUE (SE) DISTORCE

O segundo capítulo de análise é destinado ao conto O chamado de Cthulhu (1928). Este conto traz o monstro mais famoso de Lovecraft: Cthulhu. É aqui que o cosmicismo do autor começa a chamar maior atenção, passa a ser mais valorizado e acaba contribuindo para a futura construção de várias outras histórias lovecraftianas. A primeira descrição física de Cthulhu – feita a partir de uma estatueta do monstro – acontece no seguinte trecho:

Se eu disser que minha imaginação um tanto extravagante divisava ao mesmo tempo a figura de um polvo, de um dragão e de uma caricatura humana, não estarei sendo infiel ao espírito da imagem. Uma polpuda cabeça cheia de tentáculos despontava de um corpo grotesco e escamoso dotado de asas rudimentares; mas era o contorno geral do conjunto que o tornava surpreendentemente assustador. O fundo atrás da figura mostrava indícios de arquitetura ciclópica. (LOVECRAFT, 2018b, p. 20).

Uma mescla entre um polvo-dragão humanoide – eis como Lovecraft descreve Cthulhu. Diferente de A cor que caiu do céu, O chamado de Cthulhu traz mais do que imagens cósmicas e inumanas, há uma espécie de divisão entre estranhas e ancestrais criaturas marinhas e figuras levemente humanoides também. A menção à arquitetura ciclópica cria relação a algo bastante antigo e de construção coletiva. “O estilo ciclópico é composto por grandes pedregulhos não trabalhados de pedra dura local usados nas faces externas das paredes externas de palácios,

casas e construções defensivas.” (ZIELINSKI, 1998, p. 1, tradução minha).1 Esse tipo de

arquitetura é a utilizada na cidade-ilha de R’lyeh, onde criaram-se Cthulhu e seus seguidores. Cthulhu era a autoridade superior da cidade, tendo como responsabilidade exercer uma espécie de proteção aos “Grandes Anciões”, que vieram junto dele para a Terra a milhões de anos. De acordo com as descrições de Lovecraft (2018b, p. 64), “[...] a geometria do lugar era toda errada. Se uma pessoa não consegue garantir que o mar e a terra estão na horizontal, a posição relativa de todo o resto lhe parecerá fantasticamente variável.”. Lovecraft brinca com a plasticidade das formas, criando um lugar em que nenhuma delas segue um padrão ou sequer faz algum sentido em relação as formas terrestres comuns. R’lyeh é uma cidade informe. Georges Bataille postula que “informe, não é somente um adjetivo com certo sentido, mas um

1 The cyclopean style is composed of large unworked boulders of local hard stone used on the outer faces of the

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termo que serve para desorganizar, exigindo, geralmente, que cada coisa tenha sua própria forma. Isto que ele nomeia não aponta um caminho fixo e pode ser facilmente despedaçado [...]” (1929, 7, p.382, apud OLIVEIRA, 2009, p. 145). A natureza e os monstros lovecraftianos revelam um cenário de assombro, desconfortável, sublime. Burke destaca que “tudo que seja de algum modo capaz de incitar as ideias de dor e de perigo [...] constitui uma fonte do sublime.” (1993, p. 48). A paixão causada pelo sublime – o assombro – faz com que o sujeito permaneça “preso” ao horror. Sendo assim, os humanos no conto (como sujeitos) se veem tão fissurados pela natureza monstruosa (objeto) que por ela são destroçados. Não é mais possível distinguir sujeito de objeto.

Em consonância com o conto, estudar a arquitetura de R'lyeh por muito tempo pode acabar levando uma pessoa a loucura, justamente pela presença de uma geometria inumana, diferente de toda aquela da Terra. Quando os personagens do conto chegam à cidade ela é assim descrita: “[...] chegaram a um litoral que misturava barro, limo e pedras ciclópicas cobertas de musgo [...]” (LOVECRAFT, 2018b, p. 62). Casando a história da cidade de R’lyeh – levando em conta as suas características e a presença do Cthulhu lá – com os princípios espectrológicos, postula-se o seguinte: R’lyeh pode funcionar como um Outside, termo utilizado por Romandini para designar “um espaço deixado vago pela metafísica [...] um umbral onde tem lugar uma disjunção no Ser que torna possível conceber um território cuja geografia escapa dos confins tanto da ciência do ente enquanto ente, como do postulado do Ser como acontecimento primigênio.” (ROMANDINI, 2018, p. 133).

R’lyeh está para um Outside, uma vez que – sendo uma cidade-ilha com uma arquitetura completamente antiga, estranha e informe – abriga os Grandes Anciões e Cthulhu desde que estes vieram para a Terra a muito tempo atrás. E embora “adormecidos”, eles revivem sempre que a cidade é visitada, e esse lugar, devido as suas características, age sobre os visitantes, de modo a torná-los disjuntos do próprio Ser que representam, ocasionando em seres já não-humanos, afastando o “poder” antropocêntrico. R’lyeh configura-se como um portal para a disjunção no ser.

Voltando a questão da estatueta do Cthulhu, Lovecraft (2018b, p. 32-34) acrescenta as descrições a seguir: “[...] a pedra lisa, preto-esverdeada com filamentos e partículas dourados e iridescentes não se assemelhava em nada com algo familiar à geologia ou à mineralogia.”. Além da estatueta se mostrar estranha pela figura que representava, o material com o qual fora confeccionada também era desconhecido. Ainda de acordo com Lovecraft (2018b, p. 60), “os geólogos [...] juravam nunca terem visto pedra como aquela em algum outro lugar do mundo. [...] eles mesmos [Cthulhu e os Grandes Anciões] tinham se transportado das estrelas e trazido

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consigo suas imagens.”. A descrição dos objetos em Lovecraft se encaixa no que Barthes diz a respeito do efeito do real: “a própria carência do significado em proveito só do referente torna-se o significante mesmo do realismo: produz-torna-se um efeito de real.” (2004, p. 190). Quando Lovecraft descreve a estatueta ele faz uma representação do real, e aquele é o “real concreto” para o autor. Ainda de acordo com Barthes, esse real “passa a ser a referência essencial da narrativa histórica, que se supõe que relate ‘aquilo que se passou realmente’”. (2004, p. 188).

Produzida com uma espécie de material cósmico, a estatueta de Cthulhu remete a uma herança, vinda de outro planeta ou galáxia, do Ser aos seus seguidores. Cthulhu tinha se mantido

adormecido – num tipo de coma – durante longos anos, até que o ritual (um culto com

sacrifícios) feito para ele, quando descoberto, desperta a curiosidade e leva pessoas a investigarem a sua história, o que adiante, resulta em uma visita à cidade-ilha de R’lyeh. Os sacrifícios oferecidos a Cthulhu demonstram uma espécie de erotismo sagrado. Assim explica Bataille:

No sacrifício [...] a vítima morre, enquanto os assistentes participam de um elemento que revela sua morte. Este elemento é o que se pode chamar, com os historiadores das religiões, de sagrado. O sagrado é justamente a continuidade do ser revelada àqueles que fixam sua atenção, num rito solene, na morte de um ser descontínuo. (BATAILLE, 1987, p. 16).

Os participantes do culto acreditavam que ao “presentear” o monstro com sacrifícios, eles se tornariam seres contínuos. Uma continuidade divina, ligada ao seu deus, Cthulhu.

Assim como toda a cidade mantém características não terrestres, a estatueta também permanece desse modo. Partindo dos princípios da espectrologia, a pequena escultura em pedra não funciona como um simulacro do monstro, pois como destaca Romandini (2018, p. 204), “a espectrologia não é uma ciência do simulacro”, nela “a verdade vagabundeia no próprio vazio que o espectro abre na impossível clausura do Real e se torna acessível [...] como horizonte de rarefação que marca o ponto de fuga entre a subsistência espectral e o princípio da individualização.”. Pensando nessa linha, por um lado, a estatueta trabalharia então como um espectro de Cthulhu. O monstro, em sua subsistência espectral, seria parte de uma experiência mística, do inconsciente. Enquanto por outro lado, a estatueta também trabalharia abrindo caminhos para o processo de singularidade (individualização) do monstro, no qual ele se tornaria, enfim, uma divindade real.

A relação entre a estatueta do monstro como espectro e o monstro (Cthulhu) propriamente dito pode ser analisada diante do virtual e o atual de Deleuze. O virtual é

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simplesmente tudo o que não foi, mas poderia vir a ser. São os múltiplos universos possíveis. “Todo atual rodeia-se de uma névoa de imagens virtuais. Essa névoa eleva-se de circuitos coexistentes mais ou menos extensos, sobre os quais se distribuem e correm as imagens virtuais.” (ALLIEZ, 1996, p. 49). Pensando no conto lovecraftiano, postula-se o seguinte: perante a estatueta (atual) está a possível existência do Grande Cthulhu (virtual).

Tratando-se do ritual ao Grande Cthulhu, sobre como era realizado, e em que posição se encontrava a referência ao monstro, Lovecraft escreve:

Despidas, essas crias híbridas vociferavam, berravam e se debatiam ao redor de uma monstruosa fogueira em formato de anel em cujo centro, avistável por ocasionais aberturas na cortina de chamas, erguia-se um enorme monólito de granito de aproximadamente dois metros e meio de altura; em seu topo, revelava-se em sua pequenez a odiosa estatueta. (LOVECRAFT, 2018b, p. 39).

Cthulhu tinha a sua imagem exibida no ponto mais alto em meio ao ritual, mas ainda assim, o polvo-dragão humanoide não era o único a ser adorado na ocasião, pois como Lovecraft (2018b, p. 41) descreve, “eles adoravam, segundo diziam, aos Grandes Anciões que vieram dos céus eras antes da existência do homem, quando o mundo ainda era jovem. [...] haviam revelado seus segredos em sonhos aos primeiros homens, que geraram um culto que nunca morreu.”.

Alguns estudiosos da ecologia radical plantam a ideia de que o ser humano não é mais o protagonista do universo, que há ainda muita coisa além/fora da era do homem, levando em conta uma perspectiva não humana sobre o mundo e sobre a vida. Em Lovecraft, os seres cósmicos/espectrais têm muito mais influência e habitam um espaço indistinto se comparados aos homens. Uma era humana a qual não é sequer protagonista do seu próprio modo de ser: é assim que tem início o horror em O chamado de Cthulhu – Lovecraft traz forças antigas e ancestrais que governam os humanos, que lhe são determinantes e podem voltar a fazerem-se presentes a qualquer momento (os Grandes Anciões juntamente com o monstro Cthulhu). Trata-se de um pós ou anti-humanismo. O pré e o pós humanismo estão, de certa forma, juntos em Lovecraft, pois ao mesmo tempo em que ele escreve sobre como estranhos seres habitaram o planeta antes dos humanos, também escreve a respeito da força superior que estes seres ainda exercem sobre a humanidade, tornando-a, de algum modo, obsoleta.

O estudo de Eduardo Viveiros de Castro – o perspectivismo ameríndio – possibilita a construção de uma relação entre a cosmologia ameríndia (da descentralização do humano) e a cosmologia criada por Lovecraft, o que acaba soando até irônico, pois mostra que Lovecraft pensava parecido com pessoas que ele mesmo repudiava/repudiaria. A reflexão de Viveiros de

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Castro é pautada “na etnografia amazônica, [...] uma teoria indígena segundo a qual o modo como os humanos veem os animais ou outras subjetividades que povoam o universo [...] é profundamente diferente do modo como esses seres os veem e se veem.” (CASTRO, 1996, p. 116 - 117. Grifo meu.). Isso é ilustrado no universo lovecraftiano por meio da influência dos Grandes Anciões e de Cthulhu sobre os humanos, e pela realização dos rituais em adoração a esses seres cósmicos. A mitologia ameríndia concorda que “a condição original comum aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade.” (DESCOLA, 1986, p. 120 apud CASTRO, 1996, p. 119). Castro ainda continua: “a grande divisão mítica mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a natureza se afastando da cultura: os mitos contam como os animais perderam os atributos herdados ou mantidos pelos humanos.” (CASTRO,

1996, p. 119). Sendo assim, o que aproxima Cthulhu dos humanos não é a sua parte animal,

mas a humanoide.

Seguindo os contos propostos por ordem de publicação, o próximo capítulo traz o último a ser analisado, Sussurros na escuridão.

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5 COMUNICAÇÃO QUE (DIS)JUNTA

O terceiro e último capítulo de análise é destinado ao conto Sussurros na escuridão (1930). Nesse conto a Terra sofre uma invasão de criaturas alienígenas, as quais aterrorizam as colinas de Vermont e chegam até a se "comunicarem" com alguns humanos. Tudo começa durante uma grande época de enchentes, na qual surgem “algumas estranhas histórias sobre a descoberta de criaturas flutuando em alguns dos rios mais avolumados.” (LOVECRAFT, 2018c, p. 10). Os moradores da região descreviam que apesar de aparentar um contorno geral com traços humanoides, as criaturas “eram formas rosadas, medindo cerca de um metro e meio; com corpo de crustáceos e dotadas de pares de barbatanas dorsais enormes, ou asas membranosas [...] com uma infinidade de pequenas antenas onde seria o lugar da cabeça.” (LOVECRAFT, 2018c, p. 10-11). Quando mencionadas, essas criaturas recebiam o nome de “aqueles” ou “os antigos”.

Essas criaturas são monstros que coexistem com os moradores da região. De acordo com a Oxford Languages (2020), a palavra monstro vem da etimologia latina monstrum, que

significa “objeto ou ser de caráter sobrenatural que anuncia a vontade dos deuses”. Em

Sussurros na escuridão, os monstros servem a uma espécie de deus cósmico – o “poderoso mensageiro”. Considerando também que “o monstro nasce nessas encruzilhadas metafóricas, como a corporificação de um certo momento cultural — de uma época, de um sentimento e de um lugar. O corpo do monstro incorpora [...] medo, desejo, ansiedade e fantasia [...] O corpo monstruoso é pura cultura.” (COHEN, 2000, p. 26-27), os monstros no conto afetam então a subjetividade das pessoas, bem como mudam os costumes culturais de cada uma delas. Essas mudanças podem ser vistas no medo de caminhar próximo às colinas, no medo de andar pela rua desacompanhado tarde da noite, etc.

O monstro descrito por Cohen quando percebido extradiegeticamente no conto lovecraftiano põe em análise a época vivida pelo autor no momento em que ele escrevia e publicava – final da década de 1920 e início da de 30 – época marcada pela ascensão de regimes autoritários e pela crise econômica. Joshi (biógrafo de Lovecraft) comenta que o período durante o qual o racismo do autor chegou aos picos mais altos foi por volta de 1927. Segundo Joshi, “o que ele [Lovecraft] realmente julga ofensivo em relação aos estrangeiros [...] é o fato de eles lhe parecerem estranhos.” (JOSHI, 2014, s/p). Joshi também afirma que “o racismo era para ele [Lovecraft] uma defesa contra a necessidade de reconhecer que seu ideal de um país puramente anglo-saxão não tinha mais qualquer relevância e nunca poderia ser recuperado.”

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(JOSHI, 2014, s/p). Lovecraft manifesta uma aversão a todos aqueles considerados estrangeiros. Essa aversão é refletida em quase toda a obra do autor, os monstros inumanos e

cósmicos são representações do “diferente” com o qual ele não sabia lidar. Joshi conclui esse

assunto em seu livro afirmando o seguinte a respeito do racismo de Lovecraft: “[...] muito embora ele claramente defenda ideias reacionárias, intolerantes ou pura e simplesmente erradas cientificamente, seu racismo é pelo menos em termos lógicos separável do resto de seu pensamento filosófico e mesmo político.” (JOSHI, 2014, s/p). Essa última afirmação de Joshi pode ser contraposta quando se pensa a obra como representação daquilo que o autor não consegue ser ou expressar. Esteticamente, Lovecraft e a obra dele tem muito em comum, principalmente quanto ao horror ao diferente. O horror cósmico é como uma representação de um horror a alteridade insuportável. Assim como Lovecraft não conseguia suportar os negros e os imigrantes, seus personagens não suportavam o estranho, o inumano.

Os monstros “seguramente devem existir, pois se eles não existissem, como existiríamos nós?” (COHEN, 2000, p. 54), ou seja, os monstros enquanto monstros comunicam aos humanos que eles são humanos e vice-versa. É aqui que reside uma espécie de comunicação não verbal do sujeito. Contudo, no horror cósmico, mais especificamente em Lovecraft, os humanos tendem a fugir, a pregar um negacionismo quanto a esse tipo de comunicação, porque uma vez que eles a reconhecem, tornam-se seres disjuntos, dilacerados enquanto sujeitos. A comunicação, nesse sentido, torna-se um portal para a disjunção no ser. Pelo Outside (portal para a disjunção no ser) é concebido um território cuja geografia afasta o poder antropocêntrico, ou seja, faz com que os humanos deixem de acreditar que são o acontecimento primigênio do universo, desse modo, acontece a disjunção.

Um outro conceito que pode dar conta da disjunção no ser é o “estádio do espelho”, do psicanalista Jacques Lacan. “Basta compreender o estádio do espelho como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem.” (LACAN, 1998, p. 97). O ser humano nasce disjunto, não

tem noção de sujeito, não tem consciência do eu. Ao passar pela fase que Lacan chama de

estádio do espelho, o humano se tornaria um ser íntegro. Seria como se o espelho “falasse” para o humano, por meio da imagem, quem ele é enquanto indivíduo, o espaço que ocupa, suas singularidades, e assim, o indivíduo se identificaria integralmente consigo. Ainda de acordo com o psicanalista, “[...] o ponto mais importante é que essa forma situa a instância do eu.” (1998, p. 98). O processo dessa fase é assim descrito por Lacan: “[...] [o estádio do espelho] fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade.”

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(1998, p. 100. Grifo meu). Pensando na questão dos sujeitos (humanos) no conto lovecraftiano, surge a seguinte reflexão: poderia o horror cósmico, enquanto causador de uma disjunção no ser, fazer com que haja um retorno a uma condição anterior a essa fase, uma pré-fase do estádio do espelho? Agenciar uma nova fragmentação do sujeito? O único retorno possível seria um retorno enquanto pânico, uma vez que o que estaria a desorientar o ser quanto a sua integralidade seria um monstro. O horror cósmico trabalha com o pânico da disjunção, o medo desesperador do fragmentar-se, perder-se enquanto ser. A fase do estádio do espelho constitui-se com a identificação. A pessoa, olhando para o constitui-seu reflexo, sabe que aquele reflexo pertence a ela, mas permanece sem saber o que de fato ela é. O que ela tem é apenas uma alienação de si perante um reflexo com o qual ela se identificará ao longo de sua vida. Já o retorno a essa pré-fase do estádio do espelho pensada no horror cósmico (como mencionado anteriormente) seria um processo sem qualquer identificação. A pessoa reconhece a perda do conhecimento de si. Ela se vê nos fragmentos, e reconhece a sua perda enquanto ser. O reflexo se torna terrível. A disjunção no ser provoca uma crise da realidade, as pessoas perdem o referente, a identidade na qual se referenciar, o conhecimento de si.

Um dos personagens do conto consegue gravar uma conversa entre os monstros, e essa gravação não é apenas mencionada, mas transcrita por ele:

“[...] caminhai entre os homens e aprendei seus costumes, para que Ele, no Abismo, possa conhecê-los. [...] ao Poderoso Mensageiro todas as coisas devem ser contadas. E Ele há de assumir o semblante dos homens, a máscara de cera e o manto que oculta, e há de descer do mundo dos Sete Sóis para zombar...” (LOVECRAFT, 2018c, p.42).

A transcrição traz à tona o plano desses monstros: tomar o lugar dos humanos. Esse é o momento do conto no qual os humanos perdem exclusividade, uma vez que o monstro se humaniza. O que sobra do humano é um ser que teme a morte, a sua substituição enquanto espécie, e que irá se disjuntar. Caso deixe de existir uma diferença marcante entre o monstro e o humano, “o monstro ameaça destruir não apenas os membros individuais de uma sociedade, mas o próprio aparato cultural por meio do qual a individualidade é constituída e permitida.” (COHEN, 2000, p. 40). O monstro, nesse sentido, também pode assumir o papel de duplo do humano.

Para pensar o duplo usando Peter Sloterdijk é preciso partir da sua teoria da esferologia, sobre qual ele explica o seguinte: “a teoria das esferas busca de fato uma descrição abrangente do ser-junto [...] Aquilo que eu chamo de esfera é sempre um espaço que organiza um

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estar-com-outro – do par romântico até os agrupamentos sociais e cósmicos, de grande escala.” (SLOTERDIJK, 2018, s/p). Mais precisamente sobre o duplo, Sloterdijk discorre que

o sujeito e seu complemento formam de início, conjuntamente, uma célula de intimidade desprovida de mundo, ou que é seu próprio mundo; mas como o sujeito, numa dada cultura, é informado sobre o volume do ‘mundo’ por seu duplo, e, inicialmente, apenas por ele, o acesso ao exterior, para o sujeito em devir, depende por completo das qualidades de membrana do Outro interior. (SLOTERDIJK, 2016, p. 402).

Sloterdijk se dedica a escrever sobre o duplo de uma visão positiva, é o duplo “amigo”, o duplo “ajudante”. No entanto, o duplo nem sempre vai carregar essas características. Em Sussurros na escuridão, o que se vê é um Outro monstruoso. O povoado de Vermont poderia ser pensado como o sujeito, e os monstros que atormentavam a região seriam como o duplo desse sujeito. O duplo operaria inserindo os moradores em uma espécie de cultura nova, ou melhor, uma cultura de espécie nova, planejada pelo monstro para invadir os corpos e transformar a subjetividade humana até que eles perdessem as suas singularidades e se tornassem substituíveis, assim, os monstros poderiam destruir o humano enquanto espécie. Sloterdijk indaga: “onde estamos quando estamos no monstruoso?” (2016, p. 567). Pensando nesse sentido, onde se encontra o eu de cada personagem influenciado pelas criaturas monstruosas em Sussurros na escuridão? Como mencionado anteriormente nesse capítulo, o Outside é um portal para a disjunção no ser, ao atravessá-lo é que se encontra a disjunção. Considerando que a disjunção no ser é atópica (ROMANDINI, 2020), e que quando em domínio do duplo monstruoso o ser se encontra disjunto, ele não pode então ocupar lugar algum.

Sob o comando do Outro monstruoso, os humanos de Sussurros na escuridão se fragmentariam, perdendo o conhecimento de si. Como seres disjuntos, sem identidade na qual se referenciar e em crise, os personagens abririam espaço para humanização do monstro.

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6 CONCLUSÃO

A espectrologia se faz presente em Lovecraft a partir do atordoamento da consciência por meio da perturbação espectral e da desintegração humana – a mente humana separada do corpo (símbolo de disjunção). Essas duas primeiras características pelas quais se reconhece aspectos espectrológicos em Lovecraft se dão no conto A cor que caiu do céu. Alguns personagens são atormentados por forças espectrais a ponto de ficarem loucos, e Nahum Gardner, o protagonista, chega a apresentar um forte símbolo de disjunção, desfazendo-se dos traços comuns à humanidade.

A espectrologia também aparece partir da geometria inumana – plasticidade das formas – portal para a disjunção (outside) e dos seres cósmicos/espectrais governando a humanidade e tornando-a obsoleta. Essas aparições se dão no conto O chamado de Cthulhu. É na cidade-ilha de R’lyeh, onde criaram-se Cthulhu e seus seguidores. R’lyeh é uma cidade informe, e por tudo o que representa pelas suas características, pode se configurar como um Outside (portal para a disjunção no ser). A cidade (junto dos seres cósmicos que a habitam) tem o poder de agir sobre os visitantes, de modo a torná-los disjuntos do próprio ser que representam. Desse modo, afasta-se o “poder” antropocêntrico, e assim, a humanidade torna-afasta-se obsoleta.

A espectrologia ainda se faz presente a partir da comunicação monstruosa que disjunta, da humanização do monstro e da perda do eu (disjunção no ser). Essas últimas características são encontradas no conto Sussurros na escuridão. Criaturas monstruosas coexistem com os humanos e com eles desenvolvem uma espécie de comunicação não verbal do sujeito. No horror cósmico lovecraftiano essa comunicação torna os seres disjuntos, configurando-se então como um Outside. A comunicação monstruosa funciona como um portal para a disjunção no ser. Os monstros seguiam atuando como duplos monstruosos dos humanos e planejando transformar a subjetividade humana até que esses perdessem as suas singularidades e se tornassem substituíveis. E assim, com a perda do eu de cada humano, com a perda das suas próprias consciências, aconteceria, aos poucos, a humanização do monstro. Até que por fim eles pudessem assumir a identidade humana por completo.

Na escrita de Lovecraft como um todo quase sempre é possível enxergar aspectos espectrológicos, porque além de apresentar diversas criaturas e objetos cósmicos/inumanos, o horror cósmico também trabalha com o constante medo da disjunção, da perda de identidade e de referência. A escrita lovecraftiana trabalha com esse pânico de, uma vez passado pelo portal

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de disjunção (outside), se ver disjunto e não poder retornar ao que era antes. A vida de Lovecraft diz muito sobre a sua escrita, uma vez que o autor sentia uma perda de referência quanto ao povo que habitava o seu país, não sabia como lidar com o estranho, com o diferente. E é desse mesmo modo que se configuram a maioria dos seus personagens frente aos seres “estrangeiros”, com um enorme horror. A espectrologia se mostrou precisa quando utilizada para analisar Lovecraft e suas obras, porque ela permite contemplá-los de modo amplo. A partir das noções espectrológicas é possível estabelecer uma pergunta necessária para iniciar qualquer debate em Lovecraft: diante do horror cósmico, o que se espectraliza do humano? Essa questão nos possibilita entender desde como se dá a escrita lovecraftiana (em relação ao seu contexto e construção), e como ela vem servindo de referência para a cultura pop (como é abordada em quadrinhos, músicas, filmes, etc), até questões como as visões políticas de Lovecraft.

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Referências

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