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O ESPELHO COMO MEIO DO SENSÍVEL EM VARDA E PLATH

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ARIANE COSTA DERNER

O ESPELHO COMO MEIO DO SENSÍVEL EM VARDA E PLATH

Palhoça 2020

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ARIANE COSTA DERNER

O ESPELHO COMO MEIO DO SENSÍVEL EM VARDA E PLATH

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade do Sul de Santa Catarina como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Cinema e Audiovisual.

Prof. Dra. Ramayana Lira de Sousa (Orientadora) Dra. Ana Carolina Cernicchiaro (Coorientadora)

Dra. Mara Lúcia Salla (Coorientadora) Dra. Solange Maria Leda Gallo (Coorientadora)

Palhoça 2020

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AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a minha família, por terem me dado espaço quando necessário e uns puxões de orelha metafóricos também;

Obviamente, a meu cachorro também por estar literalmente sempre ao meu lado e me acordar todo dia de manhã com patinhas no meu rosto;

À minhas amigas de anos, Isadora, Carolina e Lara que amo com todo coração, se acostumem, pois sempre que eu escrever algum trabalho vocês estarão nos agradecimentos;

Às minhas amigas que virão a se tornar amigas de anos também, Débora e Luiza por toda ajuda e batata-frita, gostaria de ter passado esse momento mais pertinho de vocês;

Aos meus colegas de curso, dentre eles, Zanini, Kamila, Renan, Natália, Matheus, Greg, Rafael e Wagner;

Sou grata por todo o corpo docente do curso de Cinema e Audiovisual por esses 4 anos de muito aprendizado;

Sou extremamente grata a professora Ramayana Lira pelo tempo cedido a mim, a Débora e a Anna e por se entusiasmar com nossas pesquisas;

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“Ser fraco significa que há espaço para crescer. E não existe alegria maior que essa” (Haruichi Furudate).

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RESUMO

O presente trabalho propõe uma análise conjunta de duas obras cujas personagens estão diretamente relacionadas ao espelho e que veem suas imagens reproduzidas por outras pessoas sendo refletidas nos espelhos, também buscou analisar como o sobressalto do amadurecimento e morte reverberam nessas personagens. O primeiro estudo é sobre o filme Cléo de 5 á 7 (1962), da cineasta francesa Agnès Varda, que usa a relação da protagonista com os espelhos como forma de ver e refletir a visão dos que a cercam sobre sua personalidade e, posteriormente, como ela obtém controle sobre sua própria imagem e sua relação com a morte. A segunda obra em estudo é o poema Mirror, escrito em 1961 por Sylvia Plath, onde o espelho é a voz lírica e que abriga a imagem e os anseios de uma mulher ao longo de sua vida. O poema questiona a maturidade e, conseqüentemente, a morte. Ambos os produtos são analisados pela ótica do filósofo italiano Emanuele Coccia, a partir de seu livro A Vida Sensível, de 2010, que propõe uma nova forma de estudar e compreender como a reprodução de imagens e objetos culturais surgem, permanecem e influenciam nosso mundo, com o espelho como principal meio de reprodução.

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ABSTRACT

The present work proposes a joint analysis of two works whose characters are directly related to the mirror and which see their images reproduced by other people being reflected in the mirrors, also sought to analyze how the jolt ripening and death reverberate in these characters. The first study is about the film Cléo de 5 á 7 (1962), by the French filmmaker Agnès Varda, which uses the protagonist's relationship with mirrors as a means to see and reflect the views of those around her on her personality and, later, how she obtains control over her own image and her relationship with death. The second work under examination is the poem Mirror, written in 1961 by Sylvia Plath, where the mirror is the lyrical voice and who houses the image and anxieties of a woman throughout her life. The poem questions maturity, and consequently death. Both products are analyzed through the eyes of the Italian philosopher Emanuele Coccia, using his book The Sensible Life, from 2010, which proposes a new way of studying and understanding how the reproduction of images and cultural objects arise, remain and influence our world, with the mirror as the main means of this reproduction.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Capa do livro Japanese Fairy Tale Series, Book 10 ... 14

Figura 2 - Yata no Kagami ... 14

Figura 3 - Narciso (1597), Caravaggio ... 15

Figura 4 - La Venus del espejo (1647), Velázquez ... 16

Figura 5 - Cristo en casa de Marta y María (1618), Velázquez ... 16

Figura 6 - Las Meniñas (1656), Velázquez ... 16

Figura 7 - Instalação “Espelho Diário” de Rosângela Rennó (2001) ... 18

Figura 8 - Providence. Rhode Island (1975-1978), Woodman ... 18

Figura 9 - Providence, Rhode Island, (1975–1978), Woodman ... 19

Figura 10 - Sequência na casa da cartomante (Cléo de 5 à 7, 1962) ... 27

Figura 11 - Sequência de Cléo em mise en abyme (Cléo de 5 à 7, 1962) ... 28

Figura 12 - Cléo debruçando-se no espelho (Cléo de 5 à 7, 1962) ... 30

Figura 13 - Cléo e os espelhos na loja de chapéus (Cléo de 5 à 7, 1962) ... 31

Figura 14 - Cléo experimentando um chapéu de verão (Cléo de 5 à 7, 1962) ... 32

Figura 15 - Cléo em frente ao espelho provando o chapéu de palhaça (Cléo de 5 à 7, 1962) . 33 Figura 16 - Notícia sobre Edith Piaf no rádio (Cléo de 5 à 7, 1962) ... 34

Figura 17 - Coleção de relógios na casa de Cléo (Cléo de 5 à 7, 1962) ... 35

Figura 18 - O amante de Cléo em sua breve visita (Cléo de 5 à 7, 1962) ... 36

Figura 19 - A cantora conferindo sua aparência no espelho da penteadeira (Cléo de 5 à 7, 1962) ... 37

Figura 20 - Bob provocando Cléo (Cléo de 5 à 7, 1962) ... 38

Figura 21 - Cléo cantando Sans Toi e sobre sua mortalidade (Cléo de 5 à 7, 1962) ... 40

Figura 22 - Sequência da música Sans Toi (Cléo de 5 à 7, 1962) ... 40

Figura 23 – Cléo abandonando o ensaio (Cléo de 5 à 7, 1962) ... 41

Figura 24 - Continuação da sequência de Cléo abandonando o ensaio (Cléo de 5 à 7, 1962) . 42 Figura 25 - Cléo recorrendo a um espelho na rua (Cléo de 5 à 7, 1962)... 42

Figura 26 - O espelho fragmentado do café (Cléo de 5 à 7, 1962) ... 43

Figura 27 - Peruca loira de Cléo pendurada na penteadeira (Cléo de 5 à 7, 1962) ... 44

Figura 28 - Cléo vê um presságio de morte no espelho quebrado (Cléo de 5 à 7, 1962) ... 46

Figura 29 - O vidro quebrado por um tiro (Cléo de 5 à 7, 1962) ... 47

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Figura 31 - Florence e Antoine no jardim do hospital (Cléo de 5 à 7, 1962) ... 50 Figura 32 - Florence e Antoine caminham juntos (Cléo de 5 à 7, 1962) ... 51 Figura 33 - The Goldfish (1925), Paul Klee ... 56

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO... 10

2 O ESPELHO REFLETIDO NA HUMANIDADE... 13

3 CLÉO COMO ESPELHO ... 27

4 MIRROR E O ESPELHO QUE ABSORVE ... 52

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 57

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1 INTRODUÇÃO

A ideia do tema desse trabalho demorou para surgir, foram dias de pura procrastinação pois nada se encaixava em um tema que me chamasse a atenção, até que vi uma simples frase em uma postagem na rede social Tumblr: “the relationship women have with their own reflection...beyond complex”. Essa frase gerou uma série de comentários na postagem, de muitas usuárias relatando suas próprias experiências, compartilhando que a fascinação que tinham com espelho era sobre sempre verem uma pessoa completamente diferente refletida e tentarem se reconhecer e reconectar com aquela imagem, que sabiam que aquela imagem no espelho era a sua imagem, mas que não existia familiaridade ali. A cada novo comentário que eu lia eu me reconhecia. Como poderia o reflexo de uma imagem ser algo tão complexo?

Essa simplória frase me relembrou um livro que li quando criança: O Menino no Espelho, de Fernando Sabino. O livro é sobre as memórias da infância do autor e é divido em contos, dentre esses, o que dá nome a obra. No capítulo que leva o nome do livro, o menino Fernando faz amizade com seu reflexo, uma versão invertida de si mesmo e que pode sair do espelho, acompanhando-o em suas aventuras. O livro conversava demais com a Ariane criança, mas devo admitir que o capítulo “Menino no espelho” me deixou com um certo medo de em algum momento ser substituída pelo meu próprio reflexo e ficar presa dentro do espelho, um local que sempre observei e que imaginava que existia um portal para entrar ali, só nunca considerei se existiria uma saída.

Falar sobre literatura infantil e não citar Alice através do espelho é quase um sacrilégio, muitas das metáforas e explicações sobre o reflexo e o relacionamento dos personagens com a superfície espelhada deste trabalho poderiam ter Alice como alicerce, mas eu nunca gostei dela, pois diferente do menino Fernando, ela não era arteira e pôde ir para um outro mundo, um mundo mágico. Assim como o menino Fernando eu sempre tive imaginação suficiente para criar meu próprio mundo onde quer que eu estivesse. Não a incluir nessa análise foi sim uma questão de favoritismo, não irei mentir.

Ao entrar na faculdade aprendi sobre planos e contra planos, tabelas de produção, utilização de escalonamento para construção de roteiros, e claro, a assistir filmes. Dentre tantas obras apresentadas e assistidas como clássicas, foi em um seminário introdutório ao curso que conheci Agnès Varda pelo filme Réponse de femmes: Notre corps, notre sexe (1975), introduzido inclusive pela minha orientadora neste trabalho, em um auditório um tanto limpo, mas que me causou uma bela crise alérgica devido aos produtos de limpeza.

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A pureza do corpo feminino e questões que vão além disso trazidas pelo feminismo e pela própria Varda me deixaram maravilhada, mas acima de tudo o que me chamou atenção foi a sua aparição no seu próprio filme e a voz calma e paciente de quem possui todo o tempo do mundo para lhe explicar sobre qualquer assunto. Após esse maravilhoso primeiro encontro infelizmente acabei esquecendo do nome da cineasta enquanto eu buscava incessantemente na internet o título do filme (e não acertando uma única palavra) e me recusava a perguntar a qualquer professora por pura vergonha.

Eventualmente durante a quarentena de uma pandemia, um período histórico que, com toda certeza, afirmo que gostaria de não estar vivendo e questionando diariamente sobre: o que é a morte? Até onde minha alma se estende? Alma realmente existe? A partir de quando alma e morte se tornaram correlacionadas dentro de religiões para tentar capturar mais pessoas para dentro de igrejas e templos? Porque o conceito de alma só é reconhecível quando é visto fora de nós? E outras questões que minha mente acelerada por inúmeros motivos me fazia pensar e me atormentar por pura ansiedade. Em meio a tudo isso, minha amiga me indicou o filme Cléo de 5 a 7 (1962), e como a boa amiga que sou, eu assisti ao filme que me foi indicado. E ainda bem que assisti, o resultado está nesse artigo.

Assim como aquela postagem do Tumblr se apresentou para mim por acaso, a poesia Mirror de Sylvia Plath também foi da mesma forma. Enquanto eu tentava encontrar alguma maneira de conectar o assunto de espelhos e mortalidade e pesquisando sobre estes na literatura, o poema surgiu listado na reportagem Ten of the best mirrors in literature pelo jornal The Guardian. O poema estava listado após o livro de Alice através do espelho.

Devido a uma série de coincidências e acontecimentos históricos que parecem intermináveis, encontro-me aqui, escrevendo sobre espelhos, um objeto que sempre me maravilhou e assombrou. Se afinal tal assunto me interessa tanto é por causa de todo sentimentalismo humano que vem sendo transmitido desde a ideia de preservação de cultura. Afinal, o que diferencia os seres humanos do resto dos animais, de acordo com um dos meus professores de biologia do ensino médio, é a nossa capacidade de transmitir cultura de geração em geração. Bem, acho que estamos fazendo um trabalho e tanto, porém melhorar sempre é preciso, enfim a arte e a cultura são frutos de coincidências.

A pesquisa inicia situando o espelho no mundo, tendo o Japão como ponto de partida, em seguida englobando oriente e ocidente e localizando o espelho dentro da mitologia, história, literatura e arte. Ademais mostrando também o relacionamento entre o feminino e objeto em estudo.

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Assim será desenvolvido nessa pesquisa a análise sobre o espelho como meio por excelência para a multiplicação da nossa imagem no mundo, reflexão escrita pelo filósofo Emanuele Coccia e publicada no livro A Vida Sensível (2010), que serve como base para essa pesquisa. No ensaio, o filosofo sonda a sensibilidade, apoiado no embasamento de que o sensível, por criar e moldar formas, ideias e a vida, é a imagem. A teoria é usada para examinar o filme Cléo de 5 a 7 (1962) de Agnès Varda e a poesia Mirror escrita em 1961 pela autora Sylvia Plath, ambas ambientando o espelho como um dos elementos centrais de suas obras.

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2 O ESPELHO REFLETIDO NA HUMANIDADE

Um dos objetos que mais certamente cria uma mitologia ao seu redor, é o espelho. Desde contos japoneses como em O Espelho de Matsuyama, traduzido por Yei Theodora Ozaki para o inglês e publicado no livro The Japanese Fairy Book em 1903, que conta a história de uma pequena e feliz família da Província de Echigo, uma parte remota do Japão até hoje, é separada temporariamente quando o pai precisa viajar até a capital, deixando esposa e filha em casa. Após meses o homem retorna com presentes para sua filha e esposa, ele presenteia a criança com uma boneca por sua educação e promessa por obedecer a mãe, e a esposa recebe uma caixa com um objeto jamais visto antes, um espelho. De acordo com o homem, na capital, aprendeu um provérbio: assim como a espada é a alma do samurai, o espelho é a alma da mulher. Desejando que sua alma não ficasse exposta, a mulher guardou o presente com muito carinho. Após alguns anos, em seu leito de morte, a mãe presenteia a filha com a caixa e o espelho, dizendo que sempre que se sentir sozinha, bastaria olhar para o objeto que veria a mãe. O pai se casa novamente, e a filha querendo ser igualmente amável e carinhosa como sua mãe fora, trata a madrasta da melhor forma possível, entretanto, a filha se sente extremamente solitária, sempre recorrendo ao espelho para ver a imagem da mãe. A madrasta, espionando a garota e acreditando que a jovem planejava enfeitiça-la, recorre ao marido, implorando que a deixe ir embora por temer por sua vida. O homem, dividido entre acreditar em sua esposa e na bondade da filha, confronta a jovem, descobrindo que o que a esposa acreditava sendo a jovem enfeitiçando uma imagem sua, era, na verdade, ela conversando com o próprio reflexo, acreditando ser a imagem da mãe. O pai, então, entendeu que a filha, que tanto amava a sua mãe, cresceu à imagem e semelhança da mulher que tanto admirou.

Ainda no Japão, outro conto altera o significado do espelho. O Yata no Kagami, juntamente com a espada e uma pedra magatama, faz parte dos três objetos sagrados da Regalia Imperial do Japão. Por refletir tudo de maneira crua e adequada, é um símbolo de honestidade. De acordo com a lenda, estes artefatos foram entregues pela deusa do sol Amaterasu à seu neto Ninigi-no-Mikoto, que daria início à hierarquia japonesa. Os três objetos sagrados serviriam para pacificar o Japão. A origem destes elementos é desconhecida até hoje e estão fora do alcance do público, sendo protegidos pelo governo do país.

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Figura 1 - Capa do livro Japanese Fairy Tale Series, Book 10

Fonte: Amazon

Figura 2 - Yata no Kagami

Fonte: Wikipedia

Atualmente presente em todo o mundo, o espelho e consequentemente o reflexo, adquirem novos significados. Se no Japão apresenta amor, conexão com outras vidas e honestidade, na Grécia Antiga, com o famoso mito de Narciso, mostra o perigo da vaidade. Sendo filho do deus Cephisus e da ninfa Liriope, Narciso foi abençoado com uma beleza extrema, e por não acreditar que qualquer outro ser fosse merecedor de seu amor, o jovem preferiu viver só. Muitas ninfas se apaixonavam perdidamente por ele, entre elas, Eco, que viria a ser punida por Hera, fadada a não poder falar uma palavra por iniciativa própria. Um dia Narciso andava pela floresta quando encontrou Eco, acreditando ser uma ninfa que queria o possuir, Narciso fugiu, deixando Eco desolada e para apodrecer em uma caverna, tudo o que restou foi a sua voz. A deusa da vingança e justiça, Nemesis, vendo o final que a ninfa atingiu, amaldiçoou Narciso. Em uma fonte de água cristalina e parada, Narciso se aproximou para beber e se refrescar, vendo a sua imagem refletida na água, e acreditando ser um espírito, de tão belo, apaixonou-se. Não obtendo resposta, Narciso permaneceu à beira da fonte, admirando fixamente a imagem na água por dias, até sua morte.

Para os gregos, o reflexo mostrava a alma de quem refletia, presente ainda em rituais de oráculos e leitura de sorte, como a catoptromancia, e a partir disto, surge o mito popular do espelho quebrado, o pesquisador Piotr Sadowski analisa a indicialidade do espelho com a humanidade e espiritualidade no livro From Interaction To Symbol: A Systems View of The Evolution of Signs and Communication: “a crença igualmente popular é que quebrar um espelho causará a morte de alguém ou dará azar. Na Grécia antiga, apenas olhar para o próprio reflexo, a "alma" capturada no espelho, poderia convidar a morte, como o mito de Narciso ilustra a famosa ilustração” (2009, p. 152, tradução nossa). Um espelho quebrado equivale a sete anos

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de azar, em parte devido aos romanos que acreditavam que o número representava o tempo de um ciclo de vida humano. Justamente por abrigarem a alma, o espelho não reflete vampiros.

Ao mesmo tempo, acreditava-se amplamente que olhar intensamente em um espelho ou alguma outra superfície reflexiva encorajava a contemplação, a introspecção e o discernimento místico. Nos tempos antigos e medievais, os videntes (observadores de superfícies reflexivas) espreitavam espelhos, cristais, águas ou metal polido para supostamente obter conhecimento sobrenatural. Os videntes romanos eram chamados de specularii, após speculum, palavra latina para "espelho". Ambas as palavras derivam de specere, “olhar”, como em especulação. Como Mark Pendergrast mostra em seu fascinante relato da história cultural do espelho, todas as culturas registradas acreditavam na vidência e tinham algum tipo de crenças e práticas mágicas associadas aos espelhos. (SADOWSKI, 2009, p. 152, tradução nossa)1

O espelho exala uma conexão espiritual entre ser humano e sua imagem, seja de admiração ao seu próprio belo ou repúdio. Este objeto é certamente um meio para que até mesmo as reflexões mais simplórias sobre nós mesmos, encontrem um caminho para o mundo.

Figura 3 - Narciso (1597), Caravaggio

Fonte: Santhatela Galeria

O espanhol Diego Velázquez pintou em 1656 o enigmático quadro Las Meninas. A complexidade da obra foi objeto de estudo de Michel Foucault, publicado em As palavras e as coisas (1966). O filósofo dedica uma análise especial ao espelho que aparece no fundo, podendo

1 “At the same time looking intensely into a mirror or some other reflective sur-face was widely believed to

encourage contemplation, introspection, and mystical insight. In ancient and medieval times scryers (gazers into reflective surfaces) peered into mirrors, crystals, waters, or polished metal to allegedly gain super-natural knowledge. Roman scryers were called specularii, after speculum, the Latin for “mirror.” Both words stem from specere, “to look,” as in speculation. As Mark Pendergrast shows in his fascinating account of the cultural history of the mirror, all cultures on record believed in scrying and had some sort of magic beliefs and practices associated with mirrors.”. (SADOWSKI, 2009, p. 152)

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ser confundido com um quadro. A pintura em si nos coloca como espectadores, todavia, somos levados a nos questionar se apenas observamos a obra ou se também somos observados por ela. Além disto, somos negligenciados da obra que está sendo pintada por Velázquez, dentro da pintura, como escrito por Foucault “Em vez de girar em torno de objetos visíveis, esse espelho atravessa todo o campo da representação, negligenciando o que aí poderia captar, e restitui a visibilidade ao que permanece fora de todo olhar. ” (1966, p.24). As figuras no espelho são o reflexo do rei Felipe IV e a rainha Mariana da Áustria, os objetos iniciais da pintura. O espelho é inacessível para qualquer outro personagem no quadro além de nós, observadores, que também nos tornamos personagens, afinal, somos os novos objetos de pintura. Essa inacessibilidade aos outros personagens é um dos pontos centrais do quadro, o reflexo no espelho não lhes é importante, um reflexo visto apenas por nós e pelos outros objetos do quadro. O artifício do espelho e reflexo é construído em outros quadros de Velázquez, La Venus del espejo (1647) e Cristo en casa de Marta y María (1618).

Figura 4 - La Venus del espejo (1647), Velázquez

Fonte: Artmajeur

Figura 5 - Cristo en casa de Marta y María (1618),

Velázquez

Fonte: The National Gallery

Figura 6 - Las Meniñas (1656), Velázquez

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Os espelhos modernos que utilizam a prata química para criar a fina superfície refletora surgiram apenas no século XIX, levando-nos a refletir que o bronze polido da região da antiga Suméria e a água criavam imagens distorcidas. Cabia acreditar nos olhos dos artistas para reconhecer a si mesmo, mesmo que fosse através de outro olhar. Futuramente, o nitrato de prata, em 1826, daria início a fotografia utilizada por Niépce e Daguerre. A empresa alemã Zeiss Ikon em 1949 traria ao mercado a Contax S, a primeira câmera SLR (Single Lens Reflex) que contava com um pentaprisma para que o fotógrafo pudesse visualizar a imagem ao nível do olho, as câmeras digitais que surgiram inicialmente nos anos 90, contam com este mesmo uso de espelhos.

Apoderando-se dos espelhos modernos, em 2001, a artista plástica Rosângela Rennó juntamente com a escritora Alícia Duarte Penna, exibiram a instalação Espelho Diário, trabalho que conta com vídeos gravados por Rennó e o título do projeto fazendo referência ao jornal britânico Daily Mirror, conhecido por notícias sensacionalistas. Durante oito anos, reuniram relatos e notícias de jornais de mulheres chamadas Rosângela, após a reunião dessas histórias, Alícia escreveu-as sobre o ponto de vista das Rosângelas em relação às notícias e Rennó as interpretou nos vídeos. O espelho na instalação de Rennó brinca não com o espelhamento da imagem, mas com a inversão, as Rosângelas não são espelhadas uma da outra e apresentam vozes diferentes sobre os relatos dos jornais, um lado fala sobre sua vida e carreira e questiona sobre a morte ou a violência que sofreu enquanto o outro narra como feito nos jornais. Mesmo que os vídeos estejam posicionados no ângulo de 120º tal como um livro aberto, a quantidade e dimensão das personagens sugere uma casa de espelhos onde é indistinto a reflexão da imagem real demonstrando que o indivíduo não é um único sentimento ou imagem, como dito por Carla Sussenbach em sua tese “Espelho Diário” Corpo(s) arte de Rosângela(s) Rennó na Perspectiva Discursiva :

Há uma inscrição imaginária como é no Estádio do Espelho, a imagem do corpo que se cria no espelho, ou seja, há um registro do imaginário do corpo. Há também uma inscrição simbólica, o corpo é linguagem, gestos, movimentos corporais e simboliza. Mas há um real do corpo irrepresentável que escapa a uma simbolização que o imaginário e o simbólico tentam controlar, é o registro do real. (SUSSENBACH, 2017, p. 47)

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Figura 7 - Instalação “Espelho Diário” de Rosângela Rennó (2001)

Fonte: Printscreen do site RosangelaRennó

Enquanto Rosângela Rennó utiliza o espelho como divisão entre a realidade retratada nos jornais e a mulher real, a fotógrafa norte-americana Francesca Woodman é pautada no surrealismo e a ligação entre espelho e alma. Recebeu grande influência do surrealismo, que estudou enquanto morou em Roma e frequentou a livraria Maldoror, cuja especialidade era esse mesmo movimento. Em 22 anos de vida, Woodman produziu cerca de 500 fotografias onde, em sua maioria, ela era sua própria modelo. Seus trabalhos em filme fotográfico preto e branco mostram seu retrato em síntese com o ambiente onde ela estava, seja este seu apartamento, um prédio ou a natureza. Ainda em Roma, a fotógrafa também se interessou pela literatura gótica onde os personagens são melodramáticos e com emocional perseverante desejando demonstrar para o leitor a sua alma, além disso, cenários fantasmagóricos como templos, castelos e destroços fazem parte da estética. É inegável o tom misterioso nas fotografias da artista que usava a alta exposição da câmera para criação de vultos e borrar sua imagem. Francesca posava nua para boa parte de suas fotografias e fazia grande utilização do espelho, como se tentasse se aproximar de sua alma e levitar de seu corpo, sendo o espelho em qualquer frente artística o objeto que chega mais próximo de revelar a alma do personagem, já que é impossível se ver pelos olhos de outra pessoa precisamos nos ver pelos nossos próprios.

Figura 8 - Providence. Rhode Island (1975-1978), Woodman

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Figura 9 - Providence, Rhode Island, (1975–1978), Woodman

Fonte: ArtNet

O ser humano possui necessidade de reproduzir sua imagem, como escreve Sadowski “Enfatizei também o fato de que a necessidade de criar imagens permanentes é uma consequência da memória de trabalho extensa exclusivamente humana e da consciência resultante da passagem do tempo, com os sentimentos de ansiedade e nostalgia que os acompanham” (2009, p. 150), utilizando a poesia para expressar por meio de palavras e a pintura quando as palavras apenas não bastavam. A partir da literatura, com Narciso, Dorian Gray e Ricardo II de Shakespeare, personagens masculinos que possuem conexões extremas com o espelho o utilizaram para ecoar seus desejos mais profundos de beleza e poder. Entretanto, o espelho viria a se tornar um objeto de feminilidade e as qualidades que transformavam esses personagens masculinos em temerosos e fascinantes por suas reflexões, tais qualidades quando aplicadas em personagens mulheres, criam o efeito de rejeição.

Os Irmãos Grimm transcreveram contos infantis de tradição oral na Alemanha, no livro Kinder-und Hausmärchen (Contos de Fada para Crianças e Adultos) em 1812. Entre os contos, a da Branca de Neve. Na história uma Rainha Má que possui um espelho mágico que sempre conta a verdade, ela utiliza o objeto mágico para saber se é a mulher mais bonita de todo o reino, recebendo a resposta positiva até o dia em que Branca de Neve completa dezessete anos.

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Enlouquecida pela inveja, a Rainha tenta a todo custo matar a jovem, que também é sua enteada. A história foi popularizada mundialmente por Walt Disney e Joe Grant em 1934 e a personagem se tornou referência para a criação de vilãs mágicas. A vilã, considerada uma feiticeira, utiliza todo o seu poder para se manter jovem e desejável, e quando se transforma em uma velha para enganar Branca de Neve, estaria refletindo sua imagem real, a do seu interior. Comparando com os personagens citados anteriormente, a Rainha Má possui uma relação profunda com o seu espelho, porém sendo delimitado apenas a sua vaidade. Assim como o Espelho de Yata no Kagami, que mostra a verdade, o espelho mágico da Rainha Má também, a imagem e personalidade dela não passando além de vaidade feminina que sonha em ser eternamente a mais bonita, diferente de Dorian Gray e Ricardo II que foram personagens masculinos escritos por homens, a Rainha Má foi uma personagem feminina escrita a partir de histórias infantis passadas de forma oral entre gerações e compilado pelos irmãos Wilhelm Grimm e Jacob Grimm, enfatizando um desejo masculino em uma personagem feminina.

A escritora Virginia Woolf, em 1928 escreveu dois artigos para a Arts Society, do Girton College, que posteriormente seriam publicados no livro Um teto todo seu. A autora escreve sobre a insuficiência de produtos literários criados por mulheres e as premissas sociais que acarretam nisso. Dentre as pautas apresentadas, a reprodução do machismo, aplicando-se também sobre personagens femininas, assim como citada anteriormente, a Rainha Má. Ainda no livro, Virginia escreve uma de suas mais célebres frases que engloba tudo o que é prezado apresentar neste artigo: “As mulheres serviram por todos estes séculos como espelhos possuindo o mágico e delicioso poder de refletir a figura do homem com o dobro do seu tamanho natural” (2014, p. 6).

Movimentos artísticos são imprescindivelmente dominados por artistas masculinos e que ofuscam criadoras, ou até mesmo, apagam-nas da narrativa principal, transformando-as em tesouros que cabem às mulheres cavarem o buraco mais fundo para que sejam encontradas, no cinema, não é diferente. A historiadora de arte Linda Nochlin questionou em 1971 no ensaio “Porque não houve grandes mulheres artistas?” como o reconhecimento nas áreas artísticas, majoritariamente, se baseia na ideia mítica de genialidade, que aparentemente é um gene presente apenas nos artistas masculinos. Entretanto, a genialidade sendo considerada um presente divino entregue apenas aos escolhidos utiliza a paixão e o ego como combustível, um combustível que moveu a história da arte por muitos anos, porém no campo de estudos históricos, é necessário ser feita a avaliação de áreas que criam um artista, como afirmado no ensaio:

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Não é acidente o fato de que as condições cruciais para que se produza grande arte sejam raramente investigadas, ou que as tentativas de investigação de questões mais amplas foram, até muito recentemente, rejeitadas como não sendo temas de atividades acadêmicas, ou por serem muito extensas, ou campo de outra disciplina, como a sociologia. Encorajar uma abordagem desapaixonada, impessoal, sociológica e institucionalmente orientada, revelaria toda uma subestrutura romântica, elitista, de mérito próprio, monotemática na qual toda a carreira da história da arte está baseada, e apenas recentemente foi questionada por um grupo de jovens dissidentes. (NOCHLIN, 2016, p. 14 e 15)

Dentro do cinema, Agnès Varda é um exemplo claro do ressurgimento de mulheres na arte que acabaram por serem retiradas do holofote durante o início de sua produção, como foi na França, nos anos 60, quando surge a Nouvelle Vague, um contra movimento ao cinema norte-americano. A Nova Onda visava quebrar o moralismo, a linearidade da narrativa, experimentar com a montagem, fugindo da estética hollywoodiana de cortes invisíveis da ideias de Eisenstein, e além disso, apostar na mise-en-scène. De acordo com o escritor e historiador cinematográfico Michel Marie, a Nova Onda foi um fenômeno cinematográfico surgido a partir de críticos cinematográficos da revista Cahiers du Cinéma. As ideias de André Bazin e Alexandre Astruc, publicadas na revista, ajudaram a moldar e criar uma nova geração de artistas a partir da Nouvelle Vague. O nome do movimento foi cunhado por jornalistas da época, em uma pesquisa de opinião sobre a juventude do país para a revista L'Express.

O rótulo tomou-se, em seguida, mais ou menos crítico, às vezes bastante pejorativo para designar um estado de espírito, uma certa desenvoltura, ou até mesmo uma negligência na realização e no acabamento artístico de um filme. Um filme Nouvelle Vague significava, para um diretor de cinema da época, um filme de jovem, geralmente feito às pressas e pouco profissional, mas sempre surpreendente. (MARIE, 2003, p. 1)

Dentre os nomes mais famosos do movimento, Truffaut e Godard, do grupo da Margem Direita, possuem os filmes que se tornaram cânones para a Nouvelle Vague, Les quatre cents coups (1959) e À bout de souffle (1960). Todavia, já em 1955, Agnès Varda dirigiu o filme La Pointe-Courte que apresentava as características que a Nouvelle Vague cunhada por Truffaut e Godard viria a ter. Varda recebeu o apelido de Avó da Nouvelle Vague, “Eu tinha apenas 30 anos quando fui rotulada a avó da Nova Onda. Eu disse para mim mesma: 30 anos e avó? Está bem. Eu nunca poderei ser mais velha que isso.”(SJAASTAD, 2008, p.4, tradução nossa), tal apelido imposto a uma mulher tão jovem pode ao primeiro contato, soar carinhoso e uma grande consagração, entretanto, em um movimento como a Nova Onda, que também teve início com Varda, e dominado por autores masculinos, tal apelido a coloca em uma posição de criadora ultrapassada e que deve ser superada. Devido a sua forma de contato com a sétima arte a autora

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pode quebrar com o padrão cinematográfico assim como Godard e Truffaut fizeram, como explica Kelley Conway em Agnès Varda:

Ao contrário de outros diretores associados à New Wave, Varda não participou da rica cultura cinéphilie da França no pós-guerra. Não era membro de um

ciné-clube nem participava dos debates apaixonados sobre o realismo, o cineasta

como autor ou a natureza do cinema de Hollywood que enchiam as páginas dos

Cahiers du cinéma ou Positif. Ela ia ao cinema apenas uma vez por ano ou mais [...]

Diferente de outros diretores associados à New Wave francesa na época, Varda fez não tinha um vasto estoque de imagens e narrativas de Hollywood ou filmes europeus em sua cabeça, nem tinha uma rede de amigos em a indústria cinematográfica com a qual ela poderia colaborar em La Pointe Courte. (CONWAY, p. 10-11, 2015, tradução nossa)2

Como mencionado anteriormente, o mito do grande artista acaba novamente por não se aplicar a mulheres, paramentando com a pintura, Michelangelo é considerado até hoje um gênio e nunca precisou ser ultrapassado, por que o mesmo não foi aplicado a Agnès Varda?

Três anos dentro da Nova Onda, Varda inicia as gravações de seu segundo longa-metragem, Cléo de 5 à 7 (1962), que viria a ser o seu filme mais reconhecido e um dos grandes símbolos do movimento. No filme, acompanhamos Cléo, interpretada por Corinne Marchand, pelo dia mais longo do ano, tanto em duração de luz do sol quanto em expectativa para Cléo, enquanto ela aguarda o resultado de uma biópsia para saber se tem um câncer no estômago. Durante uma hora e meia, assistimos a um documentário sobre Paris pelos olhos de Cléo e reconhecemos a transformação da personagem e as suas facetas por meio dos que se relacionam com ela. Uma jovem e promissora cantora que tem tudo mas que se vê obrigada a enfrentar o vazio de sua juventude. A interpretação de Corinne Marchand lhe rendeu o Prêmio Suzanne Bianchetti, que consagra a jovens promissoras atrizes, uma a cada ano, muitas das atrizes que receberam este prêmio tiveram suas carreiras alavancadas a nível internacional, como Geneviève Bujold e Audrey Tautou. O filme também foi selecionado como o representante francês no Festival de Cannes de 1962, impulsionando a carreira de Varda. A diretora se tornou

2 Unlike other directors associated with the New Wave, Varda did not participate in France’s rich postwar culture

of cinéphilie. She was not a member of a ciné-club nor did she participate in the impassioned debates about realism, the film director as auteur, or the nature of Hollywood cinema that filled the pages of Cahiers du cinéma or Positif. She went to the cinema only once a year or so. [...] Unlike other directors associated with the French New Wave at that time, Varda did not have a vast storehouse of images and narratives from Hollywood or European films in her head, nor did she have a network of friends in the film industry with whom she could collaborate on La Pointe Courte. (CONWAY, p. 10-11, 2015)

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a primeira mulher a receber o prêmio honorário César pela sua carreira em 2001, em 2015 recebeu o prêmio honorário da Palma de Ouro em Cannes e o Oscar em 2017 pelo seu trabalho. Cléo de 5 á 7 foi um sucesso mundial, principalmente nos Estados Unidos. Agnès Varda recebeu propostas de venda dos direitos autorais do filme, até mesmo tendo Madonna querendo interpretar Cléo em uma versão norte-americana do filme. Além desta proposta, a diretora também foi oferecida a biografia da cantora francesa Édith Piaf, proposta a qual também recusou por não querer pertencer a Hollywood.

O filme foi produzido por Georges de Beauregard, um dos produtores mais importantes da Nouvelle Vague. Beauregard é considerado um descobridor de talentos por produzir os primeiros filmes de muitos dos diretores que viriam a ficar famosos no movimento como Jacques Rozier, Jacques Demy e claro, Agnès Varda. Além disso, Georges de Beauregard juntamente com os produtores Pierre Braunberger e Anatole Dauman foram responsáveis pela grande produção de filmes na Nova Onda, fugindo da produção tradicional e de grande orçamento dos filmes, abrindo caminho para novos autores.

A Nouvelle Vague não é, porém, um negócio só de crítico e produtores. É também e especialmente um fenômeno econômico. Ela marca o triunfo do filme mais barato (de duas a cinco vezes inferior ao preço médio do longa-metragem comercial da época), então extensivamente beneficiado por seus promotores. (MARIE, 2003, p.12)

Dentre as idiossincrasias marcantes de Varda, como seu cabelo vermelho, sempre com o mesmo corte, e o amor por batatas, a utilização de espelhos pela cineasta é sem dúvida, um dos elementos que ao primeiro olhar indicam sua obra. Em Cléo de 5 à 7 (1962), o uso de espelhos guia a personagem Cléo pela análise de sua imagem e transformação, essa gerada enquanto tenta lidar com o medo de um diagnóstico médico que pode mudar sua vida. Atualmente Agnès Varda é muito celebrada pela sua postura e autenticidade em relação às suas criações artísticas, contudo ela não foi incluída dentro da linha central histórica no cinema francês, deste modo, coube a ela escrever e pontuar seu local de direito na história do cinema, como dito por McFadden “Varda assume a tarefa com suas próprias mãos: sua inscrição curatorial em Les Plages d'Agnès reivindica seu lugar no cinema francês, preenchendo as lacunas deixadas pelos historiadores e críticos de cinema.” (2014, p. 38, tradução nossa)3.

3“Varda takes the task into her own hands: her curatorial inscription in Les Plages d’Agnès claims her place in

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Diferentemente de Varda, é questionável se Sylvia Plath teve o controle sobre sua própria narrativa artística, como mencionado por Susan Bassnett em Sylvia Plath An Introduction to the Poetry: “Ela também observa a maneira como Plath ajudou Hughes a publicar nos primeiros dias de seu casamento, em particular ajudando-o a adquirir leitores americanos, enquanto ele então inverte o padrão e foi fundamental na edição e publicação de seu trabalho depois a morte dela. ” (2005, p. 13, tradução nossa). O casamento com Ted Hughes e seu suicídio se tornam caminhos recorrentes para a análise e influência sobre suas obras, vale ressaltar que felizmente, não são os únicos caminhos. Sylvia, que viria a ter o reconhecimento anos após sua morte em 1963 e chegando ao patamar mítico de genialidade, infelizmente não recebeu a aclamação aspirada durante seus anos de produção artística, seu único romance A Redoma de Vidro, publicado em 1963 e Ariel, publicado dois anos após, se tornaram leituras obrigatórias no ensino médio norte-americano e inspiram trabalhos acadêmicos, além de filmes e impulsionam novas leitoras a verem seus sentimentos espelhados por outras mulheres. A poesia de Plath possui uma mitologia própria, que muito tenta ser desvendado baseando-se na vida da autora, sua escrita intimista e simbólica acaba erroneamente por classificá-la como uma poeta complicada de se traduzir para um sentimento da própria leitora.

Muitos dos estudos sobre sua escrita procuram fazer conexões com episódios de sua vida, e é certamente verdade que, em certo nível, Plath foi uma escritora fortemente autobiográfica. No entanto, como insistiu e como Ted Hughes sempre argumentou, ela não via a poesia essencialmente como um canal para seus sentimentos pessoais, mas sim como um processo consciente de elaboração através do qual a experiência e a emoção poderiam ser refinadas em um sentido alquímico e transformadas em algo novo. A sua é uma poesia sobre a busca de identidade, e parte dessa busca era encontrar uma voz como escritora e experimentar o ofício da poesia. (BASSNETT, 2005, p. 2, tradução nossa)4

É de extrema dificuldade encaixar os poemas de Sylvia Plath em apenas uma categoria, que muitas vezes acaba sendo classificada como uma autora confessional ou que flerta constantemente com a morte. Os sentimentos e angústias escritas por Plath não devem ser vistos exclusivamente por uma lente ou com um objetivo de tentar apenas desvendar a mitologia e símbolo da autora, antes mesmo de todos os adjetivos a ela abrituidos, Sylvia Plath é uma mulher e suas palavras não reverberam no vazio, seus versos escritos sobre a depressão, angústia, morte e família refletem o universo feminino.

4 “Many of the studies of her writing seek to make connections with episodes in her life, and it is certainly true

that on one level, Plath was a strongly autobiographical writer. Nevertheless, as she insisted and as Ted Hughes has always argued, she did not see poetry primarily as a conduit for her personal feelings, but rather as a conscious process of crafting through which experience and emotion could be refined in an alchemical sense and transformed into something new. Hers is a poetry about searching for identity, and part of that search was to find a voice as a writer and experiment with the craft of poetry.” (BASSNETT, 2005, p. 2)

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As primeiras respostas à sua poesia centraram-se na escuridão, nas imagens de sangue e violência que pareciam prefigurar o seu eventual suicídio. Posteriormente, seu trabalho foi reavaliado, principalmente por críticas feministas, que chamaram a atenção para o poder de sua linguagem, para as expressões de raiva e indignação que permeiam seus escritos e para a forma como seu trabalho pode ser visto como um exemplo de muitas das contradições e dilemas enfrentados pelas mulheres que lutam pela auto-realização enquanto se esforçam para se conformar às expectativas sociais. Enquanto alguns críticos lêem no trabalho de Plath a história de um indivíduo danificado cuja morte foi o culminar de um longo flerte com a ideia de morrer, outras a viram como uma mulher comum, cuja poesia falava da dor de ser uma mulher lutando para viver de acordo com ideais impossíveis de feminilidade. (BASSNETT, 2005, p. 1, tradução nossa)5

O poema “Mirror” foi publicado pela primeira vez na revista New Yorker em 1963, posteriormente viria a fazer parte da publicação do livro póstumo Crossing The Water: Transicional Poems (1971), organizado por Ted Hughes. Mirror foi escrito em 1961, durante a fase mais produtiva de Sylvia, dois anos antes de sua morte. O poema é narrado do ponto de vista de um espelho em que, onisciente, observa uma mulher. A partir da segunda estrofe, o poema assume um tom mais melancólico e filosófico em relação à mulher que o espelho vê, trazendo à superfície a mortalidade da mulher.

As obras de Agnès Varda e Sylvia Plath se entrelaçam pelo fato de serem escritas por mulheres e sobre mulheres. A utilização do espelho como meio entre as personagens e o mundo abre uma nova percepção, ultrapassando a ideia de narcisismo feminino e obsessão com a própria imagem e guiando para o caminho de entendimento do seu lugar no mundo e como a figura feminina se vê em um mundo, além disto, uma imagem ou ideia não existe por si só, muito menos se sustenta sozinha, o filósofo Emanuele Coccia discorre sobre o assunto:

Se durante séculos o espelho foi a experiência decisiva de qualquer teoria do conhecimento não é porque reproduz uma duplicação narcisista da consciência entre um eu sujeito e um eu objeto, mas porque representa o paradigma da medialidade, sendo seu exemplo mais evidente. [...] O espelho demonstra que a visibilidade de algo é realmente separável da coisa em si e do sujeito cognoscente. Nele, se está diante da própria visibilidade, da própria imagem, diante de si mesmo enquanto ser puramente sensível; essa imagem, no entanto, existe em um outro lugar, diferente daquele onde existem o sujeito cognoscente e o objeto do qual a imagem é visibilidade. (COCCIA, 2010, p. 20 - 21)

5 Early responses to her poetry focussed on its darkness, on the imagery of blood and violence that appeared to

prefigure her eventual suicide. Later, her work was reassessed, particularly by feminist critics, who drew attention to the power of her language, to the expressions of rage and outrage that run through her writing and to the way in which her work can be seen as exemplifying many of the contradictions and dilemmas faced by women struggling for self-realisation while endeavouring to conform to social expectations. While some critics read into Plath’s work the story of a damaged individual whose death was the culmination of a long flirtation with the idea of dying, others saw her as an Everywoman, whose poetry spoke of the pain of being a women struggling to live up to impossible ideals of womanliness. ” (BASSNETT, 2005, p. 1)

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Em ambas obras, o espelho quebra o paradigma do narcisismo que é tão explorado na pintura clássica e na literatura, como nos exemplos já citados anteriormente de Narciso, Dorian Gray e da Rainha Má. A poesia intimista e o filme feito durante a Nouvelle Vague colaboram para uma abordagem sui generis e extraordinária para um novo olhar sobre a relação entre mulher e espelho e como se ver refletida vai muito além de enxergar sua figura em uma superfície polida de vidro e cristal.

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3 CLÉO COMO ESPELHO

Em Cléo de 5 á 7, após ter sua sorte lida nas cartas, temos o primeiro contato com os espelhos do filme. A primeira figura refletida no espelho é a cartomante, seguida por Cléo, mesmo ela se vendo refletida na superfície, a figura (de acordo com Coccia) que ela realmente vê é a sua imagem reproduzida pelo olhar da cartomante, as cartas sendo um dos meios para a análise da cartomante sobre Cléo e o espelho a reafirmação final da visão que ela tem sobre a sua cliente, jovem e vaidosa, porém com pouco tempo a sua frente. A primeira imagem que recebemos da protagonista é criada pelos sentimentos da cartomante, como dito por Coccia: “A imagem é a forma vivendo em um outro corpo ou em um outro objeto. A objetividade, a corporeidade, é, então, seu lugar, seu substrato, seu sujeito, mas não uma propriedade sua. ” (COCCIA, 2010, p. 25). O contato com o primeiro espelho é breve e pouco marcante, como se a pretensão fosse deixar as informações e sensibilidades dadas pela cartomante sobre a personagem em segundo plano, sendo trazidas à luz apenas nos minutos finais do filme.

Figura 10 - Sequência na casa da cartomante (Cléo de 5 à 7, 1962)

Varda divide o filme em capítulos, com horário para iniciar e acabar, tendo início o primeiro horário após Cléo sair da casa da cartomante. A partir do primeiro capítulo a relação entre espelho e protagonista começa a ser desvendada. Ao chegar à entrada do prédio, Cléo para novamente em frente a um espelho, estando localizado em frente a outro espelho, surge a mise en abyme ou efeito Droste que consiste em uma imagem existindo dentro de outra imagem, no caso a imagem de Cléo existe dentro da sua própria imagem e na poesia Mirror de Sylvia Plath o espelho refletindo a parede oposta do quarto, de acordo com Coccia, existem quatro formas de existência simultânea da imagem:

“Nesse momento, nossa forma existe em quatro modos distintos: como corpo que se reflete no espelho, como sujeito que se pensa e faz experiência de si, como forma que existe no espelho, e como conceito ou imagem na alma do sujeito pensante,

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que lhe permite pensar em si mesmo. [...] O sensível é a multiplicação do ser. Pode-se discutir Pode-se existe um único mundo ou infinitos. ” (COCCIA, 2010, p.33)

Figura 11 - Sequência de Cléo em mise en abyme (Cléo de 5 à 7, 1962)

Posterior a cena em que desce as escadas e o primeiro plano no rosto de Cléo é fragmentado e repetido em três partes, ela se dirige para um espelho, onde a voice-over da personagem reverbera os seus pensamentos. Ela assume uma máscara criada pela reprodução de sua imagem por outros, tal máscara é vestida logo ao início do filme por Cléo ser uma artista performática por profissão e que deseja saciar seu público, mas está máscara é quebrada ao decorrer do filme pela própria Cléo, ou melhor, por Florence. No artigo de Janice Mouton sobre o filme, a escritora explica a necessidade do uso da máscara imaginária pela protagonista:

A imagem de Cléo se reflete de várias maneiras nos espelhos da entrada. Objeto fragmentado e adornado, ela é um substituto de algo que está lá e não está. Ela se torna a mulher que não é - uma fantasia, um objeto fetichizado, alguém para ser olhado, mais tranquilizador do que perigoso. Construída conscientemente para se conformar às demandas do desejo masculino, a mascarada de Cléo lhe permite se enganar e se consolar de que está saudável e negar o que acredita, dados seus sintomas e a profecia da cartomante. A consciência de Cléo se desdobra em seu saber de si e em sua negação de si, correspondendo, respectivamente, ao seu eu interior, onde a doença é uma realidade, e ao seu eu externo, cuja beleza mascara a doença. Enquanto Cléo fala

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consigo mesma no espelho, ela está duplamente fragmentada. (MOUTON, 2001, p. 4, tradução nossa)6

Durante o primeiro capítulo, após conversar com sua figura, seguimos com Cléo pelo centro de Paris por três minutos até o início do segundo capítulo. Enquanto caminha em direção ao café, Cléo é o centro de muitos olhares das pessoas que assim como ela estão na rua. Cléo é uma cantora jovem e com uma fama modesta, com músicas cativantes e alegres (como virá a ser discutido no capítulo seis pelo olhar de Bob), e sua beleza esguia com cabelos loiros, quase brancos, chamam a atenção por destoar do estilo da Nova Onda, Rona Murray, professora de Film and Media Studies na Holy Cross College no Reino Unido escreve que a escolha da atriz Corinne Marchand teve um papel fundamental nestas características destoantes, o cabelo loiro vai contra a naturalidade que os autores da Nova Onda perseguiam e pode até mesmo fazer referência ao Star System do cinema norte-americano, com o qual visavam se afastar, além disto, a magreza é um alicerce para a ênfase na doença da personagem:

A loireza, para esses novos cineastas, está associada à forma de cinema antiquada e voltada para as estrelas. Sem saber a intenção de Varda, há algo vulnerável e frágil em Cléo que sua loireza serve para enfatizar. Junto com seu corpo esguio, há a sensação de que ela é uma presença leve - que poderia facilmente desaparecer de cena - significando visualmente a sentença de morte que paira sobre essa personagem na narrativa. (MURRAY, 2009, tradução nossa)7

Ao adentrar o café onde marcou de encontrar com Angèle, sua assistente, Cléo não é recepcionada por olhares como na rua, ela parece deslocada e perdida enquanto tenta localizar a assistente, como uma criança desorientada na multidão. Ao se encontrarem ela é questionada pela supersticiosa assistente sobre a cartomante. Após falhar ao tentar consolar Cléo, a protagonista recorre a um dos espelhos que preenchem o ambiente do café, reclamando para si mesma sobre a frustração que teve com a leitura de cartas, que diferente do esperado, não serviu nem mesmo como um simples alívio.

6 Cléo's image is reflected in multiple ways in the entryway mirrors. A fragmented and adorned object, she is a substitute for something that is both there and not there. She becomes the woman she is not- a fantasy, a fetishized object, someone to be looked at, reassuring rather than dangerous. Whether consciously constructed to conform to the demands of masculine desire, Cléo's masquerade enables her to deceive and comfort herself that she is healthy and to deny what she believes, given her symptoms and the prophecy of the fortune teller. Cléo's consciousness is split into her knowing self and her denying self, corresponding, respectively, to her interior self, where the illness is a reality, and her external self, whose beauty masks the illness. As Cléo speaks to herself in the mirror, she is doubly fragmented. (MOUTON, 2001, p. 4)

7 Blondeness, for these new filmmakers, is associated with the outmoded, star-driven form of cinema. Without knowing Varda’s intention, there is something vulnerable and fragile about Cléo that her blondeness serves to emphasise. Together with her slim frame, there is a feeling of her being a slight presence – one which could easily disappear out of the frame – signifying visually the death sentence that hangs over this character in the narrative. . (MURRAY, 2009)

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Figura 12 - Cléo debruçando-se no espelho (Cléo de 5 à 7, 1962)

Logo após debruçar-se sobre o espelho em um ato infantil, é introduzido o segundo capítulo do filme, com o nome de Angèle, direcionando sob qual olhar observamos Cléo. Se para a cartomante, Cléo é uma mulher beijada pela morte, para a assistente, ela não passa de uma criança mimada e que sempre procura por mais atenção, e o mais importante, que necessita de cuidados. Angèle age como uma mãe para Cléo, afrouxando o cinto do vestido de bolinhas que usa, acalmando-a e até mesmo assoando seu nariz. Quando questionada por um cliente do café se Cléo está bem, quem responde é Angèle, enquanto Cléo chora ao seu lado. A cantora apenas para de chorar quando outro homem lhe oferece um café, ato inicialmente repreendido pelo olhar de Angèle, que alerta que a cafeína irá deixá-la apenas mais agitada, contudo, ela cede ao desejo de Cléo.

Durante todo o capítulo visto através de Angéle, Cléo age como uma criança. É exagerada e deseja atenção, entreouve conversas de casais alheios no café e decide parar de chorar quando sente que não tem mais a atenção direcionada a ela. As duas mulheres se direcionaram a uma loja de chapéus para o final do capítulo, onde Cléo olha para a vitrine e aponta “Eu quero aquele” com o brilho no olhar de uma criança em uma loja de doces. Angèle questiona a escolha da mulher mais jovem, o uso de chapéu de pele no verão não é adequado. A primeira ação de Angèle ao entrar na loja de chapéus é sentar-se em uma cadeira, colocando a bolsa sobre seu colo e fitar Cléo com um riso de canto de boca, uma mãe observando sua criança se divertindo. Cléo experimenta chapéu atrás de chapéu, aponta para outros e pede a opinião sobre demais.

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Figura 13 - Cléo e os espelhos na loja de chapéus (Cléo de 5 à 7, 1962)

A loja é recheada com espelhos e Cléo passa por cada um deles com um diferente chapéu e com poses diferentes, personificando o que cada chapéu transmite a ela. Ainda estamos observando Cléo pelo olhar de Angèle, vemos uma jovem animada e com toda atenção voltada a ela, criando novos sujeitos em frente a cada espelho e com cada chapéu vestido. Cléo não tem controle sobre a sua imagem reproduzida pelo olhar de Angèle e transmitida por meio dos espelhos, ela é fragmentada e multiplicada para fora de seu alcance e de sua percepção e Cléo é a apenas vista assim por ser percebida por outra alma, a de Angèle. Não sabemos se esta imagem produzida por Angèle sobre Cléo chega a mesma, quem a recebe é Angèle e o público. É preciso observar a gênese da percepção do ponto de vista da imagem mesma e não a partir do sujeito que a percebe. O verdadeiro centro da percepção é a imagem. Observada a partir desse ponto de vista, toda forma de conhecimento sensível é uma aceitação passiva de uma imagem perceptiva que já se produziu fora de nós. Não há uma ação específica do sujeito no ato da percepção: perceber não significa produzir a imagem de algo, mas recebê-la. (COCCIA, 2010, p. 28)

O terceiro capítulo abre com outro monólogo de Cléo consigo mesma, em frente a um espelho, assim como ocorre no primeiro capítulo, entretanto a diferença é que não vemos primeiramente o espelho neste plano, a câmera serve como espelho para o público reproduzir a imagem de Cléo. O uso da câmera nesta cena como alegoria para o espelho é um dos pontos-chave do filme, dentre os muitos capítulos intitulados com o nome de pessoas que cercam Cléo, temos acesso direto a imagem de Cléo por sua percepção e olhar, característica que apenas outro personagem no filme consegue alcançar, Antoine, porém apenas ao final do filme.

Cléo é percebida inúmeras vezes como uma mulher deslumbrada com sua própria beleza e juventude, e durante a uma hora e meia que a acompanhamos se torna perceptível que a relação da personagem com o espelho e beleza vai muito além de puro narcisismo, pois é graças ao espelho que podemos nos perceber no mundo, como Coccia escreve: “Como é apenas através de um espelho que podemos nos tornar experiência para nós mesmos, também é apenas nos

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meios que a nossa existência espiritual consegue se prolongar para fora de nós”. (2010, p. 47), e para Cléo, se assegurar que ela ainda existe, que a morte e a confirmação da doença não suprimiram seu desejo de viver, por mais que se distraia, o medo ainda existe ali.

Figura 14 - Cléo experimentando um chapéu de verão (Cléo de 5 à 7, 1962)

A cena que abre o capítulo intitulado por Cléo a mostra experimentando um chapéu de verão e novamente temos o voice-over da personagem, ouvimos suas pontuações sobre o adereço que está experimentando. Cléo é uma mulher que reverbera o momento em que vive, principalmente com o aparato da moda. O vestido acinturado de bolinhas, o cabelo loiro ondulado e preso minuciosamente com a peruca a transformam numa boneca, o chapéu é mais um enfeite à sua performance. Emanuele Coccia escreve que a moda para os seres humanos é como o exoesqueleto: pelos, plumagens e escamas são para os demais animais, por não possuirmos tais características, nossa specie utiliza tecidos, pedrarias e maquiagem para reconhecer seus semelhantes e expressar sua individualidade dentro da comunidade, se tornar reconhecido pelo que não nos pertence: “Ou seja, na moda somos nós mesmos que nos transformamos em um meio, que nos tomamos o nosso próprio meio de existência enquanto imagem”. (COCCIA, 2010, p. 86). Toda imagem necessita de um meio para sua reprodução e assim, entrar em contato com o mundo e com outras almas, dessa forma, a moda é a forma encontrada pelos humanos para repercutirmos a nossa existência utilizando nossos corpos como meio para reverberação de nossas imagens e almas, sem necessitar recorrer ao espelho para tal função.

Em umas das últimas interações com o espelho, Cléo altera a cor e tecido dos chapéus, passando de cores claras e tecidos leves para a cor preta. O chapéu preto com um fino véu que cai sobre o rosto acompanhado da frase que a cor lhe cai bem é um chiste a todo o filme, se aos

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minutos iniciais a cartomante viu a morte no baralho, Cléo escolheu seu próprio chapéu para seu funeral. O último chapéu provado é um gorro pontudo e preto, que contra as observações iniciais de Angèle, Cléo o coloca na frente do espelho e decide ser o chapéu que irá comprar. A estampa de bolinhas do vestido com o chapéu pontudo a transformam em uma palhaça, destoando da personagem personificada por ela anteriormente e ilustrando a situação em que está atuando:

Nos primeiros vinte minutos do filme, Cléo usa um vestido brilhante sem mangas, com bolinhas grandes e caprichosas, sobre uma saia de baixo escura. Esse traje faz dela a própria caricatura de uma estrela, chamando a atenção para sua personalidade brilhante e "vale-tudo" e para suas características físicas relacionadas ao gênero. O fato de o público estar ciente da angústia mental que nem o vestido nem a boca do arco do cupido podem ocultar faz com que a roupa se destaque como um traje, totalmente separada da pessoa por baixo. Quando, em uma chapelaria, ela escolhe um gorro pontudo, enfeitado com pele, a fantasia está completa: ela é uma palhaça. (NELSON, 1983, p. 738, tradução nossa)8

Figura 15 - Cléo em frente ao espelho provando o chapéu de palhaça (Cléo de 5 à 7, 1962)

8 For the first twenty minutes of the film, Cleo wears a bright, sleeveless frock, with big, whimsical polka dots,

over a dark underskirt. This costume makes of her the very caricature of a starlet, calling attention to her bright, "anything-goes" personality and to her gender-related physical characteristics. The fact that the audience is aware of the mental anguish that neither the dress nor the cupid's bow mouth can conceal makes the clothing stand out as a costume, quite separate from the person beneath. When, in a hat shop, she picks out a little, pointed, furtrimmed bonnet, the costume is complete: she is a female clown. (NELSON, 1983, p. 738)

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O chapéu é embrulhado e mandado ser entregue na casa de Cléo, de acordo com Angèle, não se deve usar nada de novo nas terças-feiras, muito menos carregá-las! Terminando a compra na loja, as mulheres buscam um táxi para irem para casa, com Angèle escolhendo o carro pelo número na placa que demonstra não ser azarado. Na viagem para casa, surge o letreiro do quarto capítulo, intitulado por Angèle novamente, porém neste capítulo, mal vemos Cléo, somos recepcionados pela frenética cidade de Paris e por uma motorista que conta suas histórias sobre a profissão. O único espelho presente em cena é o retrovisor do carro e que reflete apenas a motorista. Durante a viagem, o rádio notícia a Guerra de independência Argelina que ocorreu de 1954 a 1962, tal guerra irá, de certo modo mudar a percepção de Cléo sobre sua própria mortalidade em um encontro inesperado no final do dia mais longo do ano.

Ainda no mesmo programa de rádio, a notícia de outra operação médica feita na popular cantora Edith Piaf surge, explanando que o fato dela ter sobrevivido é um milagre. Edith Piaf viria a morrer em 1963, vítima de uma hemorragia causada pelo câncer no fígado, Cléo escuta a notícia enquanto espera o resultado de seu exame de câncer no estômago.

Figura 16 - Notícia sobre Edith Piaf no rádio (Cléo de 5 à 7, 1962)

Neste capítulo conhecemos a casa de Cléo, pintada de branco do chão ao teto, com poucos móveis, apenas a cama e a penteadeira pintadas de cores escuras, destoando do resto do ambiente. Dentre os objetos que decoram as paredes, uma coleção de relógios em uma prateleira e uma série de espelhos espalhados pelo cômodo. O primeiro movimento de Cléo dentro de casa é se despir do vestido de palhaça e ser vestida por Angèle com um roupão branco, volumoso e com plumagens nas mangas e na barra da roupa, novamente sendo vestida como uma boneca por Angèle.

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Ela usa uma combinação de renda na altura do quadril e uma camisola com acabamento de penas, presa apenas no busto. Ela mantém o penteado louro que tinha desde o início: um estilo bufante, com cachos de chifre de carneiro na lateral e uma trança na parte de trás da cabeça, derramando-se em cachos petulantes na parte superior e algumas franjas errantes na frente. Essa criação excessivamente estilizada, em conjunto com o roupão revelador com babados, produz outra caricatura: o gatinho sexy - e os inúmeros gatinhos reais que brincam em sua cama reforçam a mensagem. (NELSON, 1983, p. 739, tradução nossa)9

Se Cléo não demonstrava sinais de perceber a reverberação de sua imagem por Angèle no café e na loja de chapéu, agora ela mostra que entende, “Você é minha melhor audiência” diz para Angèle, e mesmo assim escolhe acolher a imagem criada sobre ela. De uma criança mimada ela se torna uma boneca sexualizada com aparência angelical, uma kitty cat cercada por seus gatinhos pretos na sua cama, até mesmo a bolsa de água quente que Angèle entrega a Cléo é um gato.

O espelho perto da coleção de relógios reflete exatamente e pontualmente Cléo, simbolizando que a sensificação (termo usado por Coccia em seu livro) de Cléo por outras pessoas está perto do fim. A partir do momento em que nossa protagonista aceita personificar uma sensificação ela tem consciência que pode se desatar disto em um futuro muito próximo, pois quando entende o fluxo intracorpóreo, Cléo está mais viva que nunca: “Não existem corpos em absoluto: no fluxo intracorpóreo (no corpo vivo), tudo toma forma como percepção e através (não antes ou depois) dela. O vivente está naquilo que percebe, e vive apenas através daquilo que percebe”. (COCCIA, 2010, p. 65-66).

O capítulo de Angèle termina com ela dizendo para Cléo não mencionar que está doente para o amante da cantora, que está vindo fazê-la uma visita, pois homens não gostam disso.

Figura 17 - Coleção de relógios na casa de Cléo (Cléo de 5 à 7, 1962)

9 She wears a hip-length lace slip and a feather-trimmed negligee, fastened only at the bust. She retains the blond coiffure she has had from the beginning: a bouffant style, with ram's-horn curls on the side and a braid up the back of her head, spilling out in flippant ringlets cross the top and a few errant bangs in front. This excessively styled creation, in conjunction with the frilly, revealing negligee, produces another caricature: the sex kitten-and the numerous real kittens that frolic on her bed reinforce the message. (NELSON, 1983, p. 739)

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Pela primeira vez em um capítulo de Cléo, não inicia com uma espiadinha no que a personagem está pensando, mas ainda começa mostrando Cléo e um espelho. No pequeno e prateado espelho de mão, podemos ler por sua expressão e toque o que não nos foi dito, ela busca por reafirmação, de sua beleza, de que sua saúde externa está intocável.

O amante de Cléo nem mesmo possui um nome e sua presença em cena se resume a dois minutos e meio, mas pela primeira vez o nome de Cleópatra é pronunciado. Aqui é apresentada mais uma faceta de Cléo, a artista, performance e atriz. Em seu encontro com o amante, ela nem mesmo recorre ao espelho que tem pendurado ao lado da cama para captar a sensibilização de sua imagem por seu amante pois, de acordo com a mesma, ele não se importa com ela, esta reprodução já está totalmente desvendada e defasada. E Cléo não conta a seu amante que está doente.

Figura 18 - O amante de Cléo em sua breve visita (Cléo de 5 à 7, 1962)

O encontro com o amante precede o ensaio com os músicos e quando o homem sai do apartamento da cantora, ela vai até a penteadeira conferir sua aparência e preparar sua próxima atuação. A cena é extremamente rápida e pode passar batida a um primeiro olhar sobre o filme. Ela recorre ao espelho antes de reclamar sobre seu relacionamento amoroso para Angèle, conferindo no reflexo se sua aparência está intacta. Assim como na primeira cena, aqui ocorre um mise en abyme, porém sem ser por intermédio direto dos espelhos presentes no filme. Em Mirror, o mise en abyme ocorre através da narração, o poema foi escrito por Plath mas quem é a voz lírica é o espelho que observa uma mulher, que possivelmente é a própria autora, no filme, a personagem Cléo é interpretada pela atriz Corinne Marchand, que se vê interpretando uma personagem interpretando outra personagem, uma atriz dentro da atriz,

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fazendo o filme e a realidade se chocarem. O efeito da mise em abyme ocorre quando uma narrativa existe dentro de outra e em Cléo de 5 á 7, a realidade dos acontecimentos históricos como a narrativa base da própria história e a história em si se entrelaçam, pois, além de ser um filme ficcional também é um documentário sobre Paris nos anos 60.

Figura 19 - A cantora conferindo sua aparência no espelho da penteadeira (Cléo de 5 à 7, 1962)

A solidão e o medo são expressos no diálogo com a assistente, Cléo confessa que queria ter contado ao amante sobre sua doença, que ele deveria ter sentido que algo não estava certo com ela, que no caso sentiria se realmente a amasse e aponta que ela parece ser a única que lembra da enfermidade, ao que Angéle desconversa, usando a superstição para fugir do assunto, mas Cléo é perseverante e continua a falar sobre sua aflição até a chegada dos músicos Bob e Maurice para o ensaio.

Enquanto Angèle abre a porta da casa para os músicos, abre-se o sexto capítulo. O sexto capítulo é visto pelo olhar do músico Bob, interpretado pelo compositor e pianista Michel Legrand, responsável pela trilha sonora e composição da música que é o clímax do filme, como virá a ser explicado mais à frente.

Cléo de 5 á 7 está recheado de mise en abyme, e a atuação de Michel Legrand como um pianista e compositor é mais um exemplo. Varda escolheu o colega para participar do elenco após o ver ensaiando com Corinne Marchand e percebeu que a sua personalidade era a que procurava pelo personagem.

Bob chega à casa de Cléo acompanhado de Maurice, o letrista, os dois homens informados que Cléo está na cama, Bob rebate que ela apenas quer atenção, mas que a música irá animá-la. Os dois homens então entram na casa branca e se fantasiam de médicos, criam uma seringa enorme juntando um guarda-chuva com um cilindro metálico, usam casacos

Referências

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