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MIRROR E O ESPELHO QUE ABSORVE

O filme de Agnès Varda e o poema de Sylvia Plath são complementares não apenas for terem o espelho como meio de transformação, mas também por apresentares mulheres utilizando esse meio para compreender o que a mudança, consequente da maturidade, altera em suas visões de si mesmas dentro de do mundo. Mais um tema que conecta essas duas obras é o inescapável medo da morte que ronda as duas mulheres protagonistas. O poema foi escrito em 1961 e o filme foi rodado em 1961 e tendo sua primeira exibição em 1962. Mesmo não se conhecendo ou tendo qualquer tipo de amizade na época, essas duas mulheres obtiveram uma conexão inesperada e profunda entre suas obras, que permite com que sejam lidas de forma conjunta, como feito neste trabalho.

Originalmente escrito em inglês, o poema passa por disparidades quando traduzido para (outras) línguas, como o português. Na língua anglo-saxônica, as terceiras pessoas do singular e plural não possuem distinção de gênero, diferente de como ocorre nas línguas latinas, desse modo, “Mirror” que poderia ser lido originalmente tanto como um objeto (ou no caso do poema, como entidade) agênero, se torna masculino quando lido em português.

A voz lírica do poema é dúbia, por ser um poema escrito por Sylvia, ela seria a voz lírica primordial, todavia, a voz que lemos no poema é a do espelho. O objeto narra a transformação de uma mulher, esta mulher podendo ser Sylvia Plath. Além disso, o poema é formado por duas estrofes com nove linhas cada, construindo a propriedade física de reflexão do espelho, como dito pela professora de literatura americana Jo Gill:

Ele assume a voz do espelho ao declarar seus próprios atributos, sua neutralidade (‘unmisted by love or dislike’) e seu papel ostensivo como mero refletor em vez de criador. Esse hermetismo de auto-satisfação, porém, sutilmente dá lugar a algo um pouco mais criativo e produtivo. Embora em um nível o espelho continue simplesmente a replicar o que vê diante dele, em outro - e especificamente nas linhas finais cada vez mais longas do poema - ele assume um papel totalmente mais criativo e imaginativo. É como se o reflexo ultrapassasse as bordas da moldura. (GILL, 2008, p. 63, tradução nossa)17

17 “It assumes the mirror’s voice as it declares its own attributes, its neutrality (‘unmisted by love or dislike’) and

its ostensible role as mere reflector rather than creator. This self-satisfied hermeticism, though, subtly gives way to something rather more creative and productive. Although on one level the mirror continues simply to replicate what it sees before it, on another – and specifically in the poem’s lengthening closing lines – it assumes an altogether more creative, imaginative role. It is as though the reflection exceeds the edges of the frame.”. (GILL, 2008, p. 63)

O espelho de Sylvia, que fica pendurado em seu quarto, é prata e exato, sem preconceitos e apenas reflete o que vê, sem alteração da imagem, apesar de ser considerado cruel, é apenas honesto, ou pelo menos é o que ele nos conta sobre si mesmo. Tanto tempo passa fitando a parede rosa oposta a si que a considera parte de seu coração. O espelho é separado da imagem da parede por outras pessoas, vultos e vozes, que eventualmente se aproximam para verem suas imagens refletidas durante a noite.

Dentro da prata desse espelho, que agora se vê como um lago, uma jovem mulher é inicialmente engolida pelo pequeno deus, para ser afogada. O reflexo da jovem é revisitado por uma velha, que tem sua aparência alterada por velas e pela lua, que diferentes do espelho, são mentirosas, pois modificam a imagem real. A velha sofre em detrimento da jovem ali, afogada, e é fadada a ressentir eternamente o medo da imagem que agora vê de si mesma, refletida pela exatidão do espelho/lago, e sente medo do terrível peixe que vive agora, na profundidade do espelho, a velhice.

Como mencionado anteriormente, a dualidade da voz lírica do poema é o espelho, este que adquire sentimentos humanos, como monotonia e comenta sobre a parede que reflete boa parte do tempo, mas continua a refletir e olhar sem julgamentos, aceitando os sentimentos da mulher cujo quarto habita e o medo dela do envelhecimento.

A fala reprimida feminina vem à tona através de um espelho falante e a mulher adquire o poder de manipular sua linguagem e a evidência que o espelho fornece: ela se torna a escritora que escreve sobre o espelho em que se percebe e sobre o espelho que é. Ela se torna o texto em que ocorre aquela gravação. (GEORGANTA, 2010, p. 114, tradução nossa)18

Tanto a mulher como o espelho se tornam co-dependentes um do outro, a mulher retorna incessantemente para o espelho em busca da verdade, por mais que a despreze e odeie, e o espelho reconhece a sua importância para a mulher, porque apenas ele pode lhe mostrar a real verdade, crua e inalterada. Dentre das escolhas de Sylvia Plath, uma palavra me chama a atenção dentro do poema, a autora utiliza Swallow (engolir) no verso: Whatever I see I swallow immediately. O ato de engolir é um puro ato de vida, você engole a comida para sobreviver, você engole o choro para se controlar mediante a uma situação, e o oxigênio também é engolido para que você continue consciente e vivo. A escolha desse verbo prova os aspectos humanos

18 “The female repressed speech comes to the surface through a speaking mirror and the woman acquires the

power of manipulating her language and the evidence that the mirror provides: she becomes the writer who writes of the mirror in which she perceives herself and of the mirror she is. She becomes the text in which that recording occurs”. (GEORGANTA, 2010, p. 114)

que o espelho adquire, porém, não engolindo comida ou oxigênio, mas angustias e verdades, reforçando o aspecto de uma criatura, ou como se auto intitula o espelho no poema, little god (pequeno deus).

Este pequeno deus também é capaz de mudar de forma, ao início da segunda estrofe deixa de ser um espelho e se transforma em um lago, onde abriga o temido peixe e onde a jovem foi afogada. A jovem afogada pode ser interpretada como uma versão mais nova da velha que explora o lago, revelando o medo do envelhecimento e maturidade, este substantivo para mulheres implicando não apenas mudanças psíquicas, mas corporais também. Sylvia escreve sobre o temor do envelhecimento em cartas enviadas para sua mãe e publicadas no livro Letters Home: “Tenho medo de envelhecer. Tenho medo de me casar. Poupe-me de cozinhar três refeições por dia, poupe-me da gaiola implacável da rotina e da rotina. Eu quero ser livre. Eu quero, eu acho, ser onisciente. ” (1975, tradução nossa). No filme de Agnés Varda o mesmo medo é pertinente na personagem Cléo, como apresentado no capítulo anterior, a discordância é em que momento da vida este medo se apresenta para ela, o medo de envelhecer rápido demais por causa de uma doença e vir a morrer. Neste lago, a mulher entende que é impossível viver no passado.

Contudo, outra interpretação também é cabível a mudança de forma do espelho para o lago. Ao afogar sua juventude, a mulher envelhecida a visita em sua mente, sua psique, em suma, ela visita a alma. Freud e Lacan trabalham com esta angústia de maneiras diferentes, Freud utilizando o conceito de Unheimlich, traduzido mais próximo ao português como “o infamiliar” ou “o inquietante”, uma palavra que descreve um sentimento de estranhamento dentro de casa, a presença de algo ameaçador, tentador e desconhecido que se encontra dentro dos limites do íntimo. Já para Lacan, o conceito de Outro, no caso do poema, poderia ser interpretado como o Outro Simbólico, uma imagem. Esta imagem ou lugar serve como um registro, onde pode-se recuperar o que precedeu o sujeito atual. A jovem afogada se torna esse Outro Simbólico e também um estrangeiro como dito por Coccia:

Nossa forma adquire um ser diferente daquele natural, um ser que os escolásticos chamavam esse extraneum, ser estranho, ser estrangeiro. O ser das imagens e o ser da estranheza. Isso significa que as imagens não têm um ser natural, mas sim um esse

extraneum-, entre o corpo e o espírito, que dão lugar ao ser natural, há um ser estranho,

estrangeiro. (COCCIA, 2010, p.17)

Este pequeno deus também é capaz de mudar de forma, ao início da segunda estrofe deixa de ser um espelho e se transforma em um lago, onde abriga o temido peixe e onde a jovem

foi afogada. A jovem afogada pode ser interpretada como uma versão mais nova da velha que explora o lago, revelando o medo do envelhecimento e maturidade, este substantivo para mulheres implicando não apenas mudanças psíquicas, mas corporais também. Sylvia escreve sobre o temor do envelhecimento em cartas enviadas para sua mãe e publicadas no livro Letters Home: “Tenho medo de envelhecer. Tenho medo de me casar. Poupe-me de cozinhar três refeições por dia, poupe-me da gaiola implacável da rotina e da rotina. Eu quero ser livre. Eu quero, eu acho, ser onisciente. ” (1975, p.51, tradução nossa)19. No filme de Agnés Varda o mesmo medo é pertinente na personagem Cléo, como apresentado no capítulo anterior, a discordância é em que momento da vida este medo se apresenta para ela, o medo de envelhecer rápido demais por causa de uma doença e vir a morrer. Neste lago, a mulher da poesia e também Cléo entendem que é impossível viver no passado.

O inconsciente como discurso do Outro nos indica que não só ele é estruturado como uma linguagem, mas que o lugar do Outro equivale ao lugar do código pessoal dos significantes do sujeito. O grande Outro é o conjunto de significantes que marcam o sujeito em sua história, seu desejo, seus ideais – eles sustentam suas fantasias inconscientes e imaginárias. [...] E é no retorno do recalcado, através das manifestações do inconsciente, que escapam ao controle do eu, que o sujeito experimenta essa alteridade que nele se presentifica. (QUINET, 2010, p. 12)

No último verso de Mirror, Plath escreve que o terrível peixe emerge em sua direção, ela não pode mais fugir do terrível animal por muito tempo pois em algum momento terá que aceitá-lo e carregar consigo. Apesar de todas as alegorias e significados, o peixe é uma imagem amedrontadora, mas que eventualmente deve ser entendido como parte de nós, parte do autoconhecimento surge de compreender os mais profundos medos que sentimos de nós mesmos, o medo do envelhecimento e consequentemente da morte é um deles.

O peixe terrível "é o resultado de uma tentativa de autodefinição, uma imagem assustadora de si mesma que foi misteriosamente inscrita na superfície do vidro" ou, como William Freedman coloca, ‘a forma demoníaca que ameaçava rasgar a frágil membrana'. Um ponto de viragem em seu desenvolvimento, Mirror 'representa um meio-termo entre os extremos de passividade e ação, anulação entorpecente e autoafirmação agressiva', um anjo bidimensional com o terrível peixe 'seu oposto oculto e seu eu oculto'. (GEORGANTA, 2010, p. 115, tradução nossa)20

19 I'm afraid of getting old. I'm afraid of getting married. Save me from cooking three meals a day, save me from

the relentless cage of routine and routine. I want to be free. I want, I think, to be omniscient”. (PLATH, p. 51,

1975)

20 “The terrible fish is the result of an attempt at self-definition, a 'fearful image of herself that has been

mysteriously inscribed on the surface of the glass' or, as William Freedman puts it, the demonic form that threatened to tear the fragile membrane'. A turning point in her development, Mirror ‘represents a middle- ground between the extremes of passivity and action, numbing self-cancellation and aggressive self-assertion', a two-dimensional angel with the terrible fish ‘its concealed opposite and its concealed self’. (GEORGANTA,

Figura 33 - The Goldfish (1925), Paul Klee

Fonte: PaulKlee.net

A conclusão que a protagonista da poesia alcança ao fim do poema é parecida com a que Cléo, ou melhor, Florence chega ao final do filme. Toda a superstição relacionada a azar e morte enfatiza o seu medo da morte, de seu corpo apodrecer cedo de mais e perder sua beleza. Quando está no Parque Montsouris sozinha em frente ao lago, ela também vê o mesmo peixe e começa a aceita-lo, transformando o medo sobre o diagnóstico da doença. Não sabemos qual foi a conclusão da mulher da poesia sobre o seu terrível peixe, o que deixa em aberto a possibilidade: se escolhermos não aceitar o peixe, a personagem irá continuar a buscar por algo que ela não é, mas se aceitarmos, ela poderá seguir em frente, apesar do sofrimento. O espelho da poesia fala antes de qualquer personagem, sobre quem o lê e se vê ali refletido.

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