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U O que é um alguém

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Academic year: 2021

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Texto

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« U m alguém» (ou arguem, por vezes) é a expressão que se utiliza no crioulo de Cabo Verde e da Guiné-Bissau quando se quer dizer «uma pessoa». Além desse uso, «um alguém» serve para substituir o pronome «se» de uma forma análoga à do inglês one ou do espanhol uno. Num caso em que a expressão portuguesa «quando se pensa» pudesse ser traduzida pela espanhola cuando uno piensa ou a inglesa when one thinks, a frase correspondente em crioulo poderia transcrever-se kando um arguem ta pensa.

Aqueloutra pessoa é outr’alguem (ou out’arguem) e assim sucessivamente.

A primeira vez que ouvi esta expressão fiquei instantaneamente encantado. E de cada vez que medito nela acontece qualquer coisa mais: vão-se descolando várias camadas de significados, como se fossem fibras de plantas ou frutos. Ou vejo as suas possibilidades acumularem-se como se fossem extractos num rochedo. «Um alguém» é ao mesmo tempo neutral e íntimo.

Dizer que aquela pessoa é «um alguém» é entender, admitir, que ela é alguém como nós.

Uma palavra nova, ou uma palavra antiga a que damos nova vida, é um pouco como uma substância acabada de descobrir. A pouco e pouco lhe vamos descobrindo cada vez mais aplicações possíveis. Em primeiro lugar, apercebemo-nos de que «um alguém» admite mais espaço para a abundância interna a cada consciência individual. É-nos impossível ser exactamente como outrem; entrar na sua consciência; partilhar da experiência de

«ser-se a si mesmo» de outro alguém. Mas meditar sobre «um alguém» permite-nos con- siderar melhor a esse alguém, na abundância da sua experiência individual, porque nos obriga a compará-lo connosco mesmos. Nós somos um alguém e sabemos que é por isso que condensamos, em cada um, toda a abundância do mundo. Manhãs, insectos, sonhos, dores de dentes – é inesgotável tudo aquilo que experimentamos e, logo, somos.

Se chamássemos ao outro «um alguém» deveríamos ao menos notar que ele ou ela ou eu é assim – cada consciência com o universo todo dentro dela. Quando se apaga um alguém é como se se apagasse uma lâmpada que alumia sozinha tudo o resto. Parece que estavam erradas aquelas teorias antigas que supunham que era dos nossos olhos – e não do Sol – que partiam os raios que iluminavam os objectos. Mas tinham razão inteira numa coisa: de cada vez que perdemos um alguém perdemos tudo.

O que é um alguém Rui Tavares 087

P E T R Ó L E O E P O D E R

O que é um alguém

*

Rui Tavares

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Nada é tão importante como manter cada alguém em vida. Logo depois, a segunda coisa mais importante é manter cada um desses alguém em dignidade e conforto. A razão é que, como notou Primo Levi em Se Isto é um Homem, depois de ultrapassada uma certa linha de indignidade se consegue fazer que as pessoas deixem de parecer humanas.

Aí começamos a correr todos os riscos do mal:

Vós que viveis seguros Nas vossas mornas casas,

Vós que encontrais voltando à noitinha A refeição aquecida e rostos amigos:

Considerai se isto é um homem Que trabalha na lama Que não conhece paz Que luta por meia broa

Que morre por um sim ou por um não

Há umas semanas visitei Carlos Nô no seu estúdio. Todos os quadros da série que então finalizava eram dedicados à forma mais estúpida e inaceitável de desaparecimento de um alguém. Quando humanos se organizam – e fazem-no todos os dias, em todo o mundo – para fazer desaparecer outros humanos.

Nas paredes iam sendo sucessivamente colocados os rostos depurados de pessoas desaparecidas que nos olhavam de frente a partir da tela. Emergiam de um claro- escuro de apenas dois tons. Os contornos das manchas eram rigorosamente demar- cados; alguns rostos inscreviam-se neles com um olhar de pássaro, perscrutador.

Talvez fosse incómodo meu: eles pareciam sondar-me. Noutros rostos, para alívio meu, um pequeno gesto quebrava aquela indagação do olhar: pareciam resignados.

Seria eu tão egoísta que desejasse esquecê-los? Quis afastar esse pensamento; nou- tros quadros os rostos começavam a ser cobertos por uma camada branca, quase opaca. Era aflitiva aquela ideia, claustrofobicamente sentida mais do que pensada, de que alguém ali pudesse alguma vez ser esquecido. Mas é bom notar que para esquecer é preciso ter alguma vez lembrado; e isso, ao menos, alguém estava ali fazendo.

Carlos tratava-os pelo nome: Muhammed, Glenda, Andreas. Lembrei-me de que ele passa ali horas sozinho com eles. Desenha-lhes os lábios, as sobrancelhas, os olhos.

Os olhos.

Perguntei-lhe se em nenhum momento se questionava sobre a relação de intimidade que assim estabelecia com estas pessoas. Disse-me que sim. Que enquanto pintava e, mais ainda, quando se sentava ao fim da tarde, olhava para os rostos e se perguntava que pen- sariam os seus donos, cada um deles, disto tudo – que estivesse ali um indivíduo que eles nunca conheceram, dia após dia, a pintar os seus rostos.

RELAÇÕES INTERNACIONAIS MARÇO : 2006 09 088

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A certa altura referi-me a algumas destas pessoas usando o passado. O Carlos corrigiu- -me: não sabemos se estão mortos, muitos deles estarão certamente vivos. Alguns deles serão algum dia resgatados, tão breve quanto possível. Alegrámo-nos pensando como seria bom poder um dia oferecer-lhes uma imagem que havia tentado, em tempos, evi- tar-lhes um segundo desaparecimento. Porque se é verdade que quando perdemos um alguém perdemos tudo, é também verdade que se conseguimos salvar outro alguém ganhamos mais um universo inteiro.

Considerai se isto é uma mulher Sem cabelos e sem nome Sem forças para recordar Vazios os olhos e frio o colo Como uma rã no inverno Meditai que isto ocorreu:

Ordeno-vos estas palavras.»

[Primo Levi, Se Isto É Um Homem]

O que é um alguém Rui Tavares 089

N O T A S

* Este texto faz parte de um volume de ensaios do autor, Pobre e Mal Agradecido, a publicar este ano pela editora Tinta-da- -China.

Referências

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