• Nenhum resultado encontrado

CARLOS TESCHAUER E A HISTORIOGRAFIA RIO-GRANDENSE1

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2018

Share "CARLOS TESCHAUER E A HISTORIOGRAFIA RIO-GRANDENSE1"

Copied!
12
0
0

Texto

(1)

CARLOS TESCHAUER

WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

E

A HISTORIOGRAFIA

RIO-GRANDENSE

1

zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

LUIZ HENRIQUE TORRES*

RESUMO

É realizada uma análise da produção historiográfica de Carlos Teschauer entre 1911 e 1929, buscando desvelar os enfoques do autor referentes ao lugar das Missões Jesuítico-Guaranis na formação histórica luso-brasileira e platina no Rio Grande do Sul.

PALAVRAS-CHAVE: Historiografia, Rio Grande do Sul, formação missioneira.

o

jesuíta Carlos Teschauer desenvolveu, entre as décadas de dez e

vinte deste século, um trabalho fundamental para os estudos missioneiros,

pois inseriu as Missões Jesuítico-Guaranis na história rio-grandense.

qponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

História do Rio Grande do Sul dos dois prim eiros séculos' é a obra principal

de Teschauer, composta de três volumes, sendo o último constituído

integralmente por documentos. A ênfase no. rigor na indicação dos

documentos citados ou transcritos no texto e o privilegiamento do acontecer

histórico missioneiro caracterizam a obra. A preocupação documental levou

o autor a pesquisar na Bibtioteca Nacional do Rio de Janeiro e em arquivos

de Buenos Aires, Montevidéu, Assunção, Santiago, Madri, Roma, Vaticano,

Bruxelas e Sevilha. A análise dessa documentação propiciou a elaboração

de um trabalho que, de forma menos especulativa, já que está respaldado

em fontes documentais, incorporou sistematicamente ao debate

historio-gráfico rio-grandense a temática missioneira. Para além da produção do

conhecimento, a obra constitui-se numa referência para apreciações

favoráveis ou desfavoráveis à incorporação da história missioneira na

formação colonial do Rio Grande do Sul.

Considerando que o assunto era "uma página em branco", Teschauer

propunha-se desenvolver uma "narração documentada do antigo passado

* Professor do Dep. de Biblioteconomia e História - FURG. Doutor em História. 1Síntese dos resultados do projeto de pesquisa A Produção Historiográfica de G arlos

Teschauer. Departamento de Biblioteconomia e História - FURG.

2 TESCHAUER, Garlos. História do Rio G rande do Sul dos dois prim eiros séculos. Porto Alegre: Selbach, 1918. v. 1; 1921. v. 2; 1922. v. 3.

(2)

do Rio Grande do Sul", afirmando que "o presente trabalho não pretende ser

uma apologia nem dos missionários caluniados nem do proceder da Igreja

nas Missões ultramarinas tão atacadas pelos dissidentes; o seu alvo é mais

simples: oferecer a verdade objetiva como se apresenta nos documentos e

monumentos históricos, a qual por si defende a inocência e acusa a calúnia

e a injustiça". Conclamando o amor

WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

à verdade e à imparcialidade, o autor

acusava alguns intelectuais de reproduzirem a historiografia do século XVIII,

por estarem "oferecendo romance por narração histórica". Ao referir-se à

historiografia do século XVIII, Teschauer indicou os trabalhos de orientação

antijesuítica que acusavam a Companhia de Jesus de estabelecer um Império

teocrático na América, onde o temporal estava suplantando os objetivos de

conversão espiritual dos indigenas. Os acontecimentos da segunda metade

do século XVIII5 , que resultam na expulsão dos jesuítas do Brasil e da

América, fortaleceram essa posição defendida pelo marquês de Pombal. O

trabalho vinha no sentido de reabilitar a ação jesuítica no Rio Grande do Sul.

Os

qponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

princípios e norm as que presidiram este trabalho são os da rigorosa

crítica histórica m oderna e de im perturbável im parcialidade, tendo sem pre por norte a lei suprem a, recom endada por Leão XIII aos historiadores a quem sem diferença de credo generosam ente franqueou

os arquivos do Vaticano. A primeira lei da história é que não ouse dizer

coisa falsa, a segunda que tenha a coragem de dizer a verdade inteira.6

O autor acreditava manter a imparcialidade, não deixando a emoção

conduzir a um maior destaque de certos autores e acontecimentos ligados

ao universo da Companhia de Jesus. O "amor à verdade" deve garantir a

cientificidade da produção intelectual, porém a análise do trabalho

desenvolvido por Teschauer não permite a comprovação dessa premissa. A

verdade histórica almejada está amparada numa pesquisa documental, mas

a leitura dessa documentação está engajada e comprometida em reproduzir

o projeto civilizatório dos missionários jesuítas. A seleção dos documentos e

a definição dos personagens é feita em referência no enaltecimento da obra

missionária. É o caso de Hernandarias de Saavedra, Governador da

Província do Paraguai e simpatizante dos jesuítas: "para aumentar entre os

índios o respeito devido aos missionários, visitou pessoalmente a primeira

3 Idem, v. 1, p. v-vi. 4 Ibidem, p. v-vi.

S A acusação da existência de minas de ouro controladas por jesuítas foi rebatida por Teschauer: "as minas de ouro não existiram senão na fantasia dos adversários". (TESCHAUER, Carlos. A lenda do Ouro : estudo etnológico-histórico. Revista do Instituto

Histórico eG eográfico do Ceará, Fortaleza, p. 33, 1911.

6TESCHAUER, História do ... ,v. 1, p. vii.

22

BIBlOS, Rio Grande, 10:21-30. 1998.

redução e, à vista dos neófitos e pagãos, foi beijar a mão do sacerdote com

todas as demonstrações de sincera humildade".7

A imparcialidade inicialmente proposta cede espaço à parcialidade e ao

engajamento de uma visão de mundo ligada ao papel civilizatório desenvolvido

pelos padres jesuítas na Província jesuftica do Paraguai. De um lado estão

os poucos defensores da catequese, como Saavedra e a Coroa espanhola.

De outro, os muitos inimigos, como os encomendeiros e os bandeirantes.

Enquanto os bandeirantes viviam sem lei e sem religiã08 , os encomendeiros

exploravam demasiadamente a mão-de-obra indígena, exploração que o

governo espanhol tudo fazia para combater" É nas relações entre a igreja e

o estado moderno, em que os jesuítas dependiam da autorização real para a

catequese, que se tornava compreensívef a defesa e obediência do autor

frente às diretrizes e procedimentos emanados de Madri,' afirmando que o

Conselho das fndias procurava proteger o índio e, "por mais que se tenha

declamado contra a Espanha e seu modo de governar suas colônias, nunca

poderão negar a prudência, o empenho, o cuidado e generosidade com que

se esforçaram os reis para acertar nesta administração"lO

A

obra

catequizadora estava em sintonia com os interesses do rei da Espanha:

Os tapes, suas terras e propriedades prestavam à Coroa de Espanha

e às suas colônias na América um serviço positivo e im portantíssim o:

o de defender as fronteiras e eficazm ente contribuir para a integridade

de seu território. 11

Teschauer considerava que nas relações entre a Igreja e o Estado

cabia à Companhia de Jesus obediência às normas do rei e às orientações

papais. A necessidade em deixar claro que os missionários agiam dentro das

normas do poder temporal e espiritual é coerente com a argumentação de

que os jesuítas sempre agiram fielmente frente à lei e dentro do espaço

concedido para a conquista espiritual. Com a guerra guaranítica, quando os

índios se rebelaram frente à decisão das Coroas de Portugal e Espanha em

desocupar os Sete Povos, os padres não participaram das atividades de

resistência à execução do Tratado de Madri. A perseguição dirigida aos

jesuítas, acusados de criarem um Império independente, não encontraria

fundamento na prática cotidiana das Missões e suas relações com o universo

7 Idem, p. xxviii.

8Ibidem, p. 156 e segs. Referindo-se aos bandeirantes, "se fosse lícito, sem prevaricar contra as leis a que está sujeito o historiador, passaríamos um véu sobre uma das mais negras páginas da história da América do Sul".

9Ibidem, p. 229 e segs. 1 0 Ibidem, p. 27. 1 1 Ibidem, p. 238.

BIBLOS, Rio Grande, 10:21-30, 1998.

(3)

colonial espanhol. Afinal,os padres tentaram persuadir os índios a emigrar,

não incentivando a sua resistência". A insistente tentativa de justificar a

ação legal da Companhia de Jesus, que agia sempre em nome do rei e do

Papa, indica que o comprometimento da conversão dos índios está baseado

na fidelidade aos interesses do poder real e não na perspectiva dos guaranis.'

Nesse contexto, o extermínio promovido pelos exércitos luso-espanhóis sobre

a frágil resistência dos guaranis era tratado com certa indiferença, na medida

em que o ator principal- o jesuíta - não participou dessa sublevação.

Em Teschauer, a definição dos atores é fundamental. O desenrolar

dos acontecimentos é dirigido por alguns personagens que são movidos por

iluminação e intervenção divina, conduzindo a massa bruta dos habitantes

das florestas para a lapidação espiritual. A civilização cristã é o centro de

humanização do selvagem, e o padre é o veículo na conquista espiritual e,

dessa forma, o ator principal.

qponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

Os m issionários trabalharam infatigável, incessantem ente e

vtvtem

sobriam ente. Seu alim ento m ais esquisito era constituído de favas

WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

e

farinha de' m andioca, que raras vezes condim entavam com sal. Dorm iam no chão, sobre um a pele de boi- ou em um a rede. Em preendiam grandes viagens através de pântanos, selvas espessàs

e íngrem es m ontanhas a pé. O que porém fazia de sua existência entre selvagens um exercício contínuo do m ais elevado heroísm o, era que tinham entre antropófagos por um fio suas vidas.13

A abnegação, a sobriedade, o sacrifício e a coragem são atributos que

somente poderiam provir de uma força superior, trazendo energia a algumas

dezenas de padres, homens vindos da Europa e lançados no ambiente

animalizado da floresta e que tiveram ânimo para sobreviver e lançar as

bases da civilização cristã. O heroísmo transparece em cada. novo

acontecimento que assume um caráter épico transcendendo as situações

localizadas no tempo e no espaço. É o caso do falecimento de algum padre,

que, para além do passamento, significava um sinal divino de novos

acontecimentos da expansão do cristianismo. O heroísmo chegava a um

plano de realização integral no martírio, uma das temáticas recorrentes nos

escritores jesuítas da época, como o próprio Teschauer, em seu artigo "Vida

e obra do padre Roque Gonzales de Santa Cruz, S.J., o primeiro apóstolo do

Rio Grande do Sul"14. Segundo Moacyr Flores, "o objeto de estudo é a vida e

12 Ibidem, p. 252-253. 13lbidem, p. 115-116.

14 TESCHAUER, Carlos. Vida e obra do padre Roque Gonzales de Santa Cruz, S.J., apóstolo do Rio Grande do Sul. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, 3. trim. 1928.

24 BIBlOS, Rio Grande. 10:21-30, 1998.

obra do padre Roque, que procura civilizar os índios através da fé cristã. A

ação dos acontecimentos históricos sofre a interferência de Deus, que

castiga os pagãos e predestina Roque Gonzales ao martírio"'5 "Podemos

nos ufanar", comentou Teschauer, por "termos" sido o teatro de diversos

marttnos", momento máximo de superaçãoterrena e pOssível passagem

para uma beatificação papal. Ao padre Roque Gonzales coube "a grande

empresa de abrir o Rio Grande à cultura cristã, de ser seu descobridor e

primeiro a p ó s t o t o : " A ocupação missioneira precedeu outras modalidades

civilizatórias, pois "antes que os bandeirantes invadissem a antiga região do

Tape, já o descobridor e primeiro apóstolo do Rio Grande do Sul, Roque

Gonzales de Santa Cruz, no primeiro quartel do século 17, devassara-Ihe as

matas virqens"!" Além de alcançar a vida eterna, o esforço heróico e quase

sobrenatural dos missionários gerava um retorno ainda neste mundo: o

cacique Nheçum, "inimigo declarado da lei cristã, foi o instrumento com que

a Providência quis cingir a fronte do P. Roque com a coroa do martírio"'B Os

frutos do heroísmo consistiam também nos extraordinários resultados da

conversão dos "selvagens" em homens, no espaço reducional20 Nas Missões,

buscava-se "educar povos selvagens, acostumando-os à ordem e ao

trabalho, para assim elevá-Ias paulatinamente à cultura européia e cristà"."

O espaço de ação civilizatória é o projeto reducional, enquanto o ator

principal que age sob intervenção divina é o jesuíta. E os figurantes, os

"selvagens", quem eram eles para Teschauer? Ele afirmava que os índios

eram dotados de humanidade e liberdade, possuindo, apesar das limitações

intelectuais, a capacidade de entender a pregação do evangelho e abraçar a

fé n

Os guaranis, portanto, propiciavam um farto material humano para a

conversão, o que não reduzia as dificuldades para a catequização, já que

eles sequer eram "bárbaros", estando num estágio de desenvolvimento

muito rudimentar.23

1 5FLORES, Moacyr. Historiografia: estudos. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1989. p. 55. 16TESCHAUER, História do ... , v. 1, p. 50.

1 7 TESCHAUER, Carlos. Os veneráveis m ártires do Rio Grande Sul. Porto Alegre GlObo, 1925. p.5.

1 8TESCHAUER, História do ... , v. 1, p. xxix. 1 9TESCHAUER, Os veneráveis ... ,op. cit., p. 13. 20TESCHAUER, História do ... , v. 1, p. 121. 2 1 Idem, p, 55.

2 2 Ibidem, p. 26. A humanidade e liberdade dos indígenas é baseada na bula do Papa Paulo 1 1 1 .

2 3 "A índole do índio, sua inconstância, volubilidade e falta de previsão não mudou tanto nos guaranis depois de convertidos, que não exigisse a constante fadiga de não só ensinar-Ihes e explicar-ensinar-Ihes o catecismo, mas de vigiar-Ihes a vida e economia domésiica, para não descurarem as suas familias nem desperdiçarem seus bens móveis e imóveis" (TESCHAUER, Carlos. O caráter canônico das reduções no Rio Grande do Sul. Revista do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, tomo 77, parte 2, p. 190, 1916).

BIBLQS, Rio Grande, 10:21-30, 1998.

(4)

Para que se possa ser um apreciador justo na nossa questão,

WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

é

indispensável não esquecer

zyxwvutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

o estado em que os m issionários encontraram os índios e que n@ o era somente o de bárbaros, mas sim

o de selvagens. Os povos bárbaros têm ainda as suas leis, suas autoridades que os governam , têm sua agricultura e até m esm o certa indústria; são de algum a sorte policiados e entretêm relações am igáveis com as nações que Ihes são vizinhas. Nada disto têm , por via de regra, os selvagens. Nada sem eavam , diz um autorizado escritor, estes selvagens para se sustentar, e m enos civilizados que as form igas, não faziam provisão algum a para o inverno, gastando cada dia tudo quanto tinham .2 4

O quadro apresentado indica a incapacidade da sociedade indígena

em sobreviver, mantendo-se fiel aos valores culturais de cada grupo.

Evoca-se a incompetência intelectual e cultural, o atraso tecnológico e espiritual e a

ausência de uma "consciência pública", sempre em comparação com a

sociedade supostamente completa, a européia e católica". A sociedade

tribal é associada com a irracional idade dos animais que compõem o cenário

da floresta tropical. Nesse espaço de animal idade os guaranis recebem uma

série de adjetivos que lhe definem a personalidade: indolente, imprevidente,

volúvel, pusilânime, inconstante, mentiroso, fleumático, fútil, antropófago

e t c . " . Os comentários que situam o jesuíta civilizado e o índio selvagem,

estão presentes em textos jesuíticos dos séculos XVII e XVIII, porém

Teschauer assumiu, no século XX, a conquista espiritual a partir de uma

visão eurocêntrica, em que os referenciais culturais europeus configuram a

superioridade civilizatória frente à população indígenaY

2 4 TESCHAUER, Carlos. Poranduba rio-grandense. Porto Alegre: Globo, 1929. p. 240. 2 5 TESCHAUER, História do ... ,v. 2, p. 55.

2 6 "Se indagarmos as causas do baixo nível intelectual e moral do índio, acharemos uma a que entre outras se deve atribuir esta triste verdade; é o vício, pode-se dizer, geral da embriaguez e do costume de entregar-se longos dias e noites às suas borracheiras. Com este vício andava naturalmente a luxúria a que já desde pequeno se entregava. Estes vícios, praticados tão universal e constantemente de geração em geração, embotam necessariamente o entendimento e enfraquecem a vontade, produzem a cegueira para não conhecer o verdadeiro bem moral, a precipitação, a inconstância, a imprevisão e todos os vícios opostos à prudência, os quais a transtornam e finalmente consomem" (TESCHAUER, História do .. ,v. 1, p. 31).

2 7 "Como qualquer homem, o jesuíta dos séculos XVII e XVIII foí condicionado pelo seu momento histórico. A filosofia humanista da época colocava o homem no centro do Universo. Numa posição privilegiada, o ser racional se opunha a todas as demais criaturas existentes, o que servia de base para a afirmação gradativa do europeu sobre todos os demais povos do planeta ( ... ). A inferioridade sócio-cultural dos ameríndios e a sua dificuldade ou relutância na aceitação do cristianismo e dos valores civilizados logo os transformou em 'povos desprovidos de razão'. Ao longo do processo missionário, os Guaranis sempre foram considerados de fato e dejure como menores de idade" (SOUZA, José Otávio Catafesto de. Uma análise do discurso missionário o caso da indolência e imprevidência dos Guaranis. Veritas, Porto Alegre,

2 6 B I B l O S ,Rio Grande. 10:21-30. 1998.

Os avanços intelectuais obtidos deviam-se à persistente luta dos

padres contra as deficiências humanas desse material sel~agem. As fontes

etnológicas consultadas por Teschauer, fontes enqajadas na visão

eurocêntrica, como os padres Montoya, Sepp e Nüsdorffer, foram

reproduzidas integralmente, sem um distanciamento temporal, assinalando o

engajamento a um passado que o autor buscava justificar e enaltecer.

Além de um raciocínio e discernimento "débil e defeituoso", os guaranis

possuíam uma aptidão natural para decair nos vícios tribais pela ausência

de um poder moralizador", sendo necessária a contínua vigilância por parte

dos mestres, devido ao risco de todo o trabalho ser perdido". A presença

paternal do jesuíta, associada à marginalização das lideranças religiosas

dos caraís, seria fundamental para o implemento de novas concepções

espirituais e materiais, rompendo com a resistência mágico-religiosa:

Verem os com o depois de enérgica resistência dos selvagens, que não recuam do m artírio a que sacrificaram os prim eiros m issionários, as m atas virgens do Rio Grande, onde se ouviam as cabaças e

taquaras tocadas pelos pajés, ressoam da prédica do evangelho; verem os com o, onde se celebraram festas antropófagas, se levantam tem plos ao verdadeiro Deus e em redor brotam florescentes núcleos de

civilização, e dos primitivos habitantes desta nossa terra, em que

viveram com o feras, sairão prim eiro hom ens; dos hom ens cristãos, a

fam ília cristã, e desta as com unidades e um a grande província de índios cristãos, felizes súditos do então soberano que m andava neste país.3 0

A felicidade residia na substituição dos valores mágico-religiosos

pelos valores cristãos amparados na cidadania que a condição de súditos do

rei poderia trazer. Os pajés, feiticeiros ou caraís, eram transformados em

pretensiosos charlatões e embusteiros, herdeiros de superstições

infundadas31. Nesses feiticeiros sobrevivia aquilo que o esforço dos

missionários tentava apagar, partindo para uma leitura parcial da sociedade

PUCRS, v. 35, n.40., p. 112, 1990).

2 8 "A sociedade guarani era uma sociedade igualitária na sua formação original antes do contato, ou seja, uma sociedade sem estado, como normalmente ocorre entre os bandos caçadores coletores e as chamadas sociedades tribais. Isto significa que estas sociedades carecem de um órgão de poder separado do seu corpo social; o poder não está separado da sociedade, mas sim repousa de forma homogênea sobre ela mesma. As sociedades Igualitárias são sociedades indivisas" (GIORGIS, Paula Caleffi. O traçado das Reduções Jesuíticas ea Iransformação de conceitos culturais ( 2 " parte): o cabildo. Veritas, Porto Alegre, PUCRS, V . 37, 1 : 1 1 .146, p, 260, 1992).

2 9TESCHAUER, Poranduba ... ,p.1 7 8 . a oTESCHAUER, História do... ,v _1, p. xxxiii. l1i Idem, p . .12.

B I 8 l O S , R i "Gtlande,1 . 0 : 2 1 , - 3 ! l , 1 9 9 8 .

(5)

guarani: os vícios grosseiros, a luxúria e a poligamia, a embriaguez, a ira, a

f . 32

cruel e sangrenta antropo agia.

No papel de historiador cristão, Teschauer buscou a verdade

histórica, evocando o impulso interior e sobrenatural para a catequese que

foi delegada por Deus aos membros da Companhia de Jesus, em que o

desempenho da tarefa espiritual foi uma verdadeira vitória da razão sobre a

brutalidade, da mansidão cristã sobre a ferocidade selvagem, esforço que

representava o glorioso triunfo para a igreja catónca". O esforço foi

recompensado pela obra desenvolvida no nível de domesticação das "feras

ou tigres antropófagos", que se transformavam em mansos cordeiros, já

convertidos pela fé nos evangelhos

WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

3 4

Porém, a decadência e ruína desta

civilização demonstrava que somente o contínuo contato com os jesuítas

permitiria a elevação do índio à condição de homem, abandonando sua

tendência à infantilidade e a outras características de sua personalidade,

como a má índole que induz a vícios, a propensão para a preguiça, a

indolência e a "inteligência pouco desenvolvida senão tapada". O guarani

quando criança "é mentiroso, em rapaz parece ter algo de talento, porém o

corpo cresce e o entendimento fica parado, continua criança'?". A presença

do padre seria indispensável, e sua expulsão após a Guerra Guaranítica, um

dos fatores que explicavam a desintegração das Missões, de uma sociedade

frágil frente aos desígnios e desmandos dos governos temporais. As

intervenções divinas não bastariam para salvar a civilização missioneira

constituída por crianças e mártires em potencial. Segundo Teschauer, em

visita à região missioneira, um sentimento de melancolia o tomou de assalto

ao contemplar as ruínas onde floresceram a cristandade e o sacrifício,

tamanha melancolia que uma "estranha tristeza" o acompanhou na

elaboração dos capítulos seguintes da história das Missões."

No último capítulo do livro

qponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

História do Rio Grande do Sul dos dois

prim eiros séculos, na ausência dos atores principais - os jesuítas _ a

narração tornou-se desinteressada frente aos novos acontecimentos que

assinalavam a integração do Rio Grande do Sul ao mundo luso-brasileiro.

Os guaranis também caíam no descaso e acabavam por constituir o gaúcho,

no cruzamento com o português e o espanhol, que Ihes tomavam as

mulheres, recorrendo ou não ao matrimônio, porém garantindo a reprodução

da ascendência indíqena". De qualquer forma, há uma perda de in.teresse

pelo destino da população indígena, pois a ausência do contato paternal dos

3 2TESCHAUER, História do ... ,v. 2, p. 157, 195 e 196. 3 3 Idem, p. 184 e 199.

3 4Ibidem, p. 195.

3 5TESCHAUER, História do ,v. 1, p. 29. 3 6TESCHAUER, História do ,v. 2, p. 200-201. 3 7Idem, p. 431.

28

B I B l O S , R i o G r a n d e , 1 0 : 2 1 - 3 0 , 1 9 9 8 .

adrés torna O processo missioneiro sem sentido. A ênfase estava em

~esgatar os triunfos e glórias da conquista espi~itual ~os séculos XVI.I e XVIII

enquanto lição moral e exemplo da intervenção divina. A sobrevivência de

parte da população missioneira posterior à expulsão da Companhia de Jesus

não constituiu um tnunfo para a humanidade, caindo no esquecimento, sem

um conteúdo épico e sobren~tural que merecesse destaque.

Haveria um abismo intransponível entre a civilização européia e os

ameríndios38

, o abismo entre o mármore e a massa modelável:

A

m assa ou m aterial que se forma e educa na Europa é com o de m árm ore; este, tendo recebido a forma de estátua a retém tenaz e

im utavelm ente, assim não acontece com o substratum am azônico; este é sem pre m udável com o aquelas figuras, tigres, elefantes, form ados de buxo nos jardins chineses, que precisam de um contínuo aparo para não perderem a form a que Ihes foi

impresse"

Voltada ao enaltecimento da ação civilizadora e fazendo uma defesa

moral desta, na obra de Teschauer transforma-se numa ode de louvor à

determinação e ao desprendimento destes santos homens, que se

dispuseram a enfrentar uma empresa tão arriscada"."

A inserção das Missões como temática ligada à história do Rio

Grande do Sul e a associação destas com o universo platina já estava

presente no autor em 1911. nA luz que dissipa as trevas que pairam sobre os tempos antigos do Rio Grande não vem do Rio nem do norte, mas do sul e

oeste. Nos arquivos de Buenos Aires, Montevidéu e outros é que se acham

os documentos que, como aqueles raios maravilhosos há pouco descobertos,

nos habilitam a penetrar a mais densa obscuridade da nossa história"."

A concepção de "massa de mármore" utilizada por Carlos Teschauer

encontrou um seguidor em Luiz Gonzaga Jaeger (S.J.), que a aprofundou.

Essa concepção não foi desenvolvida teoricamente, mas estava presente

3 8 "O fato de Teschauer menosprezar as instituições tribais e o tipo de liderança que POssuíam indica a dificuldade do autor de reunir e transcrever os diversos aspectos que se encerram no processo de transformação pelo qual passaram as aldeias guaranis. De um estágio do 'neolítico tropical', os guaranis passam a se integrar, através dos Povoados Missioneiros, na Idade Moderna, num processo de interação social e cultural extremamente complexo. Neste processo mudam os padrões de subsistência, a organização política e o universo mental das tradições e costumes das populações indígenas agora reduzidas" (SANTOS, .Maria /Cristina dos. Jesuítas e guaranis na sociedade missioneira: uma análise cntlca da historioératía. Estudos Ibero-Am ericanos, Porto Alegre, PUCRS, v. 13, n. 1, p. 78-79. 1987)

3 9 TESCHAUER, História do ... ,v. 2, p. 86. 4 0SANTOS, Jesuítas e índios ... , op. cit., p. 80.

. 4 ' TESCHAUER, Carlos. Habitantes primitivos do Rio Grande do Sul. In:Alm anaque do

RIo Grande do Sul para 1911. Rio Grande: Livraria Americana, 1911. p. 25.

(6)

num enfoque que privilegiou alguns participantes em detrimento de outros. A

presença de Deus e dos demônios foi constante nessa análise que enaltecia

os jesuítas e depreciava os selvagens ou bárbaros.

A narração não se prende a uma postura favorável ou contrária a

Portugal ou Espanha; antes disso, busca reverenciar e fortalecer a ação da

Companhia de Jesus no Novo Mundo através da atuação idealizada dos

padres jesuítas em defesa dos índios. O papel religioso de cristianizar

populações selvaqens que viviam

WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

à margem da civilização cristã e da

felicidade, através da atuação da Providência divina, que delegou poderes

aos jesuítas, é o encaminhamento desse tipo de narração histórico-literária.

O caráter de conversão doutrinária, ao demonstrar através do martírio dos

padres que o bom cristão estava sempre pronto a morrer em nome da fé em

Cristo, é marcante, desviando-se de um procedimento científico do

conhecimento histórico.

Em relação à formação histórica do Rio Grande do Sul, destacar a

ação dos jesuítàs e criticar os bandeirantes e o Marquês de Pombal não

significa uma aproximação platina, já que os espanhóis não são enaltecidos.

Não transparece uma alternativa platina para a problemática da formação

histórica e sim a doutrinação de valores católicos.

30 BIBlOS. Rio Grande 10:21·30.1998.

A FORMAÇÃO DA REPÚBLICA NO RIO GRANDE DO SUL

NA VERSÃO DE UM FEDERALlSTA

FRANCISCO DAS NEVES AL VES*

RESUMO

A gênese· da forma de governo republicana no Rio Grande do Sul foi caracterizada pelos confrontos políticos, ideológicos e militares entre as forças castilhistas e anticastilhistas, traduzidos na Revolução Federalista, gerando-se, a partir desta, uma série de interpretações diferentes e divergentes quanto aos acontecimentos que marcaram esse período. Em geral vinculados a um dos lados do conflito, durante grande parte da República Velha, os autores produziram uma história marcada pelo partidarismo e pela paixão política. O presente trabalho intenta estabelecer um estudo de caso sobre uma dessas interpretações, analisando a visão de um federalista a respeito da formação da República no contexto sul-rio-grandense, expressa na obra de Wenceslau Escobar, elemento com participação efetiva nos eventos que marcaram o processo de fermentação, eclosão, desenvolvimento e seqüelas da Guerra Civil de 1893.

PALAVRAS-CHAVE: Rio Grande do Sul: história e historiografia, Revolução Federalista, Wenceslau Escobar.

1 INTRODUÇÃO

No Rio Grande do Sul, ao contrário do restante da maior parte das

províncias/estados brasileiros, onde se deu uma republicanização tranqüila,

a mudança na forma de governo trouxe consigo uma série de conflitos que

agitariam a vida política da jovem nação republicana. Diferentemente do

contexto brasileiro, no qU<31os antigos partidos imperiais engendraram

alianças ou adaptaram-se à nova situação reinante, no caso gaúcho, o

Partido Liberal, senhor soberano da situação política, não aceitou o

alijamento do poder, perdido para os republicanos a partir da transição

monarquia-república. Além disso, o exclusivismo político-partidário

executado pelos republicanos liderados por Júlio de Castilhos para garantir a

manutenção do controle dos aparelhos burocrático-administrativo e eleitoral

também levou ao afastamento de republicanos "de última hora" e ate de

• Professor do Dep. de Biblioteconomia e História - FURG.

BIBLOS. Rio Grande. 10.31-43. 1998.

(7)

"históricos", com a formação de considerável dissidência.

Desse modo, constituiu-se uma cisão intransponlvel entre os

republicanos-castilhistas, no poder, e uma forte oposição representada pelos

antigos liberais e conservadores, além da dissidência republicana, os quais

buscaram certa organização e arregimentação interna, nem sempre

eficiente, intentando assim a possibilidade de retorno ao poder. Eliminadaa

instância das disputas políticas, tendo em vista a virtual exclusão das

oposições do processo eleitoral e o conseqüente aprofundamento das

discrepâncias partidárias, o Rio Grande do Sul mergulharia em cruenta

guerra civil.

Ao lado do confronto militar, desenvolveu-se, durante a Revolução

Federalista e nos anos subseqüentes, uma verdadeira batalha de

pronunciamentos expressos em geral através da imprensa. Paralelamente

aos inflamados e panfletários artigos jornalísticos, vários autores elaboraram

também livros e "folhetos" da mesma natureza, retratando, segundo suas

concepções, os eventos que marcaram esse período. Essas publicações

caracterizaram-se pela enraizada presença do partidarismo, servindo de

fomento às paixões políticas, defendendo e legitimando as atitudes dos

aliados, atacando os inimigos

qponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

elou servindo como respostas às versões

entabuladas pelo adversário.

Nesse quadro esteve inserida a obra de Wenceslau Escobar, político

rio-grandense figadalmente envolvido nos conflitos do antes e depois da

Revolução de 1893, servindo sua pena à causa dos federalistas. O objetivo

deste trabalho consiste em analisar alguns dos escritos de Escobar,

elaborados nas primeiras décadas do século XX, intentando estabelecer

uma associação entre o seu pensamento político e a sua forma de "fazer

história", bem como identificar suas convicções político-partidárias na versão

estabelecida para os episódios que marcaram a formação da república no

Rio Grande do Sul, desde a proclamação até o ec/odir da Revolução

Rio-Grandense de 1893.

2 HISTÓRIA E POLíTICA NA OBRA DE WENCESLAU ESCOBAR

Wenceslau Pereira Escobar era gaúcho de São Sarja, nascido a 8 de

dezembro de 1857, vindo a falecer no Rio de Janeiro a 14 de abril de 1938.

Como muitos dos políticos rio-grandensesde então, formou-se em Direito,

no ano de 1880, na Faculdade de São Paulo. Dedicou-se à advocacia,

sendo versado em Direito Constitucional, além do que foi Promotor Público e

Juiz Municipal em sua cidade natal, atuando como Deputado Provincial, em

1881. Já na República, foi um seguidor do gasparismo, militando no Partido

Federalista, chegando a ser eleito deputado federal para o período entre

32 BIBLOS, Rio Grande, 10:31-43, 199B.

1906

WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

e 1908.1

Escobar dedicou-se fambém ao jornalismo e 'foi diretor 'da revista

porto-alegrense A Lei, em 1892. Além dê ter publicado Um grande número

de artigos na imprensa, elaborou as seguintes obras: Unldade Pátria (1914),

escrita no intuito de promover a manutenção da "comunhão brasileira", ao

discutir questões, como língUa, raça, 'letras, tradições, costumes, direito,

religião, viação e impostos; Aponiementos para '8 História da Revolução

Rio-Grandense de 1893 '(1919), seu trabalho mais conhecido, consistindo numa

narração dos acontecimentos político-militares da Revolução Federalista; 30

Anos de Ditadura Rio-Grandense(1922), libelo que historia a formação

republicana rio-grandense até o início da década de vinte; Pela Intervenção

no Rio Grande - Renúncia do Dr. Borges de M edeiros (1923), folheto

contendo oito artigos e duas cartas abertas-ao governador do Rio Grande do

Sul, defendendo a renúncia deste elou a intervenção federal no estado; e

Discursos Parlam entares - 1906-1908 (1926), com a transcrição de uma

série' de pronunciamentos proferidos à época da deputação na Câmara

Federal.ê

Ao buscar elaborar uma interpretação dos eventos que marcaram a

gênese da República no Rio Grande do Sul, Escobar articulava um "produzir

história" com um "fazer política", estando suas obras marcadas pelo

pensamento político-partidário dos federalistas". Os ideais políticos do autor

tiveram por arcabouço os princípios liberais, os quais Escobar traduzia por

"liberdade", típica, segundo ele, da formação histórica do Rio Grande do Sul.

Na concepção de Wenceslau Escobar, a "liberdade" estava intrinsecamente

ligada aos gaúchos, desde os primitivos habitantes e perpassando as

diversas gerações de rio-grandenses, que, "sempre aurindo a vida neste

ambiente de sadios princípios liberais, iam serenos correndo os tempos"."

1 Sobre a biografia de Wenceslau Escebar, observar: BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Dicionário bibliográfico bresileiro. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1902. v. 7, p, 345,; MARTINS, Wi~son.História da inteligência brasileira, São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1978, v, 6, p. 212.; VILLAS-BÓAS, Pedro. Notas de, bibliografia sul-rio-grandense, Porto Alegre: A NaçãollEL, 1974, p. 178. .

2 Escobar também publicou: O Gabinete de 5de Janeiro (1880), Cartas Abertas ao

Senador Pinheiro M achado (1904), Réplica aos Contraditores dos m eus Apontam entos para a

História da Revolução de 1 8 9 3 (1921), Esboço de Reform a da Constituição (1931) e Decurso

de um a vida (1937). '

3 Os preceitos a respeito do pensamento político e da forma de fazer história de Wenceslau Escobar foram elaborados a partir de proposições estabelecidas em: ALVES, Francisco das Neves, Wenceslau Escobar e a oposição ao borgismo (1906-1923), Estudos

Ibero-Am ericanos, Porto Alegre, PUCRS, v, 21, n. 2. p. 91-97, 1995; ALVES, Francisco das

Neves. Revolução Federalista e "verdade histórica", In: ALVES, Francisco das Neves, TORRES, Luiz Henrique. Ensaios de História do Rio Grande do Sul. Rio Grande: Universidade do Rio Grande, 1996. p, 88-90,

4 ESCOBAR, Wenceslau. 30 anos de ditadura tio-çrendense. Rio de Janeiro: Canton & Beyer, 1922_ p. 12.

BIBLOS, Rio Grande, 10:31-43, 1998.

(8)

Outro elemento da história rio-grandense, destacado pelo autor para

fundamentar seu pensamento, foi o caráter militar do "povo" gaúcho.

Descrevendo a participação dos sul-rio-grandenses ao longo de uma série

de conflitos - desde os tempos coloniais até o Segundo Império, como nas

disputas luso-hispânicas pela Colônia do Sacramento e pelo território do Rio

Grande do Sul, na Guerra da Cisplatina, na Revolução Farroupilha, na

guerra contra Rosas, na guerra contra Oribe e na Tríplice Aliança - Escobar

explicava que, por "mais de cento e cinqüenta anos, o berço rio-grandense

foi sempre abalado em ruidoso ambiente de agitações bélicas", afeiçoando

"o caráter de seus filhos às rudes e tormentosas vicissitudes das lutas pelas

armas"."

Desse modo, ao associar a "liberdade" ao "caráter bélico", como

fundamentos imanentes

WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

à formação gaúcha, o autor buscava justificar que

qualquer recurso seria legítimo, mesmo a luta armada, para garantir a

manutenção daquele primeiro fator. Essa proposição estava intimamente

ligada a um dos componentes básicos do discurso federalista, ou seja, a

arraigada luta contra o autoritarismo do sistema castilhista, considerado

como verdadeira tirania pelos seus adversários.

-Segundo Wenceslau Escobar, o funcionamento da república, de

acordo com o sistema pelo qual esta se estruturou no Brasil, estava

prejudicado pelo desequilíbrio de forças entre os três poderes, com o

absoluto predomínio do Executivo, que "desacatava" o Judiciário e

"menosprezava" o Legislativo, distorção esta ainda mais evidenciada na

Constituição Sul-Rio-Grandense, que destinava ao Legislativo poderes

simplesmente consultivos, com relação ao. Presidente da Província".

Utilizando seus conhecimentos em Direito Constitucional, Escobar levava

em frente um dos intentos que era a pedra de toque dos inimigos do

castilhismo, ou seja, o combate à constituição castilhista, a qual garantia

através de seus mecanismos político-eleitorais a perpetuidade do grupo

situacionista no poder. Para ele, a constituição rio-grandense não era

"absolutamente republicana",· e sim "uma ditadura mascarada' de

democracia" e "uma verdadeira excrescência no mecanismo constitucional

da república", que não garantia, ao' menos, as liberdades públicas7.

Apontava também como inconcebíveis e inconstitucionais a nomeação do

vice-presidente pelo presidente, a inelegibilidade dos não-rio-grandenses

para o governo do estado, a possibilidade da reeleição presidencial e a

organização das eleições por 'parte do Executivo, pregando constantemente

a revisão desses dispositivos constitucionais.

5 ESCOBAR, 1922. p, 4-14.

6 ESCOBAR, Wenceslau.

qponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

Unidade pátria. Porto Alegre: Globo, 1914. p. 184. 7 ESCOBAR. Wenceslau. Discursos parlam entares (1-906-1908). Porto Alegre: GlobO, 1926. p. 4-5. .

3 4

BIBLOS. Rio Grande. 10:31-43. 1998.

o

pensamento político de Escobar estava voltado para os ideais e as

práticas do liberalismo, pois, como militante do Partido Federalista, foi

seguidor e herdeiro dos princípios gasparistas no que concerne à

organização do Estado. Na sua concepção, o ponto básico a ser

transformado nas estruturas institucionais do Brasil Republicano era o da

rigidez do sistema presidencialista, defendendo, assim, que os ministros de

estado fossem solidariamente responsáveis, junto ao Presidente, pelo Poder

Executivo, e que a eleição do Presidente da República fosse efetuada via

Congresso Nacional, pois considerava o sufrágio direto como uma "burla",

tendo em vista a "escassa cultura" popular que anulava os possíveis

resultados positivos daquele princípio democrático, elucidando que só os

congressistas representavam a "corporação ilustrada e a mais competente

para conhecer os cidadãos na altura de ocuparem o posto de primeiro

magistrado da n a ç ã o " . "

Dessa forma, rezando pela cartilha gasparista, Escobar propunha a

implantação de um sistema parlamentarista no país e, em consonância com

os princípios liberais, propunha que o chefe de um estado republicano

deveria governar com patriotismo e como um funcionário prudente, criterioso

e da confiança do povo, que poderia afastá-Io, quando julgasse isso

necessário? - características diametralmente opostas ao sistema castilhista,

o que tornava natural e justificável o combate, por parte do autor, ao que

considerava como a "ditadura rio-grandense".

Esse pensamento político de Wenceslau Escobar moldou a sua forma

de "produzir história". Mesmo não se constituindo no "historiador" de acordo

com o sentido estritamente científico, Escobar pretendia "fazer história", ao

entabular uma resposta às versões legalistas e ao prestar um "inestimável

serviço" de esclarecimento à pátria, através do "testemunho" que legava

"aos vindouros de um esforço em prol da paz da família rio-grandense" e do

esclarecimento a respeito da "verdade do regime federativo", considerando

que este não passara de uma "sombra"? no contexto político rio-grandense

ao longo da República Velha. .

Ao buscar prestar um testemunho histórico, Escobar caía em

contradição na utilização dos conceitos isençãolimparcialidade. Admitindo

não ser possível praticar o primeiro, propunha-se, entretanto, tratar os fatos

de forma imparcial, característica que teria sido adquirida através do

distanciamento cronológico com relação ao desencadeamento dos eventos

que marcaram os fatores promotores e os efeitos da Revolução

8ESCOBAR, 1914. p. 190-196. 9ESCOBAR, 1926. p. 9.

1 0 ESCOBAR, Wenceslau. Pela intervenção no Rio Grande - renúncia do Dr. Borges

de M edeiros. Rio de Janeiro: Canton & Beyer, 1923. p. 3.

BIBLOS. Rio Grande, 10:31·43, 1998.

(9)

Federalista". No entanto, a "imparcialidade" do autor ficou íirnitada a partir

de suas convicções político-partidárias, de modo que ele não esteve isento

de paixões, deixando-se envolver pela dicotomia do bem e do mal entre

pica-paus e maragatos e anulando, por conseguinte, qualquer possibilidade

de distanciamento crítico com relação ao objeto em estudo."

Assim, como "historiador", Escobar pretendia prestar

"esclarecimentos" às gerações futuras, de modo que estas tivessem

subsídios para reavaliar a história rio-grandense, reconhecendo qual dos

lados em confronto era o detentor da razão, buscando demonstrar, de

acordo com a sua compreensão, que os federalistas eram os verdadeiros

defensores das liberdades e das instituições gaúchas, e que, após aquela

reavaliação, os rio-grandenses saberiam como proceder, menoscabando a

imagem de Júlio de Castilhos e glorificando a de Gaspar da Silveira Martins:

À

qponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

m em ória do [tirano] seus partidários levantaram estátua. Entretanto,

o cadáver do famoso tribuno que, na m ais am pla com preensão do

am or às liberdades patrícias, proclam ava os verdadeiros princípios liberais, esse nem ao menos descansa no solo pá trio, dorm e exilado

em terra estranha. Talvez um dia, as gerações por vir, cujo grau de

perfeição m oral deve ser superior ao da atual, melhor avaliando a

m entalidade

WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

e beleza de sentim entos entre aquele que dizia "inim igos não se poupa, nem na pessoa nem nos bens", e o que dizia "guerra

civil não, m aior flagelo pode cair sobre um povo", repare a clam orosa injustiça, apeando do pedestal da estátua a figura brônzea do ditador

para em seu lugar colocar a do grande estadista liberal. A história, às

vezes, tem destas sanções, duras mas justas. 13

Nesse sentido, história e política estiveram articuladas na obra de

Wenceslau Escobar, interagindo mutuamente na reconstrução histórica que

o autor empreendeu com relação aos eventos que marcaram a formação da

república no Rio Grande do Sul.

1 1

o

autor afirma: "Não tenho a pretensão de escrever com absoluta isenção de ãnimo: sou homem, tomei parte pelo coração e pelas idéias nessa lamentável lu~a fratricida. Procurei, no entanto, expor os fatos com a possível imparcialidade, limitando para isso, a meu favor, não só o quarto de século que já nos distancia desse cruento sucesso, senão também a madureza dos anos, poderoso calmante para ajuizarmos dos acontecimentos com menos paixão e mais justiça" (ESCOBAR, Wenceslau. Apontam entos para a história da Revolução Rio-Grandense de 1893. Brasília : Ed. da UnB, 1983. p. 4).

1 2 De acordo com: FLORES, Moacyr. Historiografia da Revolução Federalista. In: FLORES, Moacyr (org.). 1893-1895: aRevolução dos M aragatos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993. p. 123; PICCOLO, Helga Iracema Landgraf. A Revolução Federalista no Rio Grande do Sul considerações l;1istoriográficas.ln: ALVES, Francisco das Neves, TORRES, Luiz Henrique (org.). Pensara Revolução f=ederalista. Rio Grande: Ed. da FURG, 1993. p. 69.

1 3 ESCOBAR, 1983. p. 340.

3 6 BIBlOS, Rio Grande, 10:31-43, 1998.

~

3 A GÊNESE DA REPÚBLICA NO RIO GRANDE DO SUL NA VISÃO

ANTICASTILHISTA DE WENCESLAU ESCOBAR

De acordo com Wenceslau Escobar, a república colocara termo à

alternância dos partidos políticos no poder, típica do período monárquico e

que, segundo o autor, bem representava a natureza das instituições políticas

brasileiras, apontando-a como "um fator de considerável importância na

formação do caráter nacional", uma vez que "a certeza de ser governo

dentro de certo período, que podia ser mais ou menos longo, mas nunca

indefinido, era um incentivo para a firmeza de idéias e princípios". Já com a

nova forma de governo, segundo Escobar, "a facção que escalara o poder

se eternizava no governo, e só alcançavam posições aqueles que se

lançassem em seus braços, sincera ou finqidarnente"!", situação que se

manifestava ainda mais gravemente no caso do Rio Grande do Sul:

Os arautos da idéia triunfante, que, enfaticam ente, se deram a

denom inação de "históricos", a quantos não faziam pública profissão de fé ou não tinham sido partidários dos tem pos da propaganda, excluíram , de m odo sistem ático, de todas as funções públicas e

eletivas. Até alguns que pouco antes de 1 5 de novem bro tinham se

declarado republicanos, alcançou esta odiosa exclusão. Ao invés de procurarem fraternizar todos os membros da fam ília rio-grandense, conjurando dificuldades à consolidação da nova form a de governo, seguros do apoio da espada, cujo único dom ínio im perava, am eaçaram arrogantes com o brado mavórcio - "a guerra com o na guerra", tratando com o suspeitos todos quantos com alacridade não entoavam hosanas à nova ordem de coisas. 1 5

Nesse sentido, Escobar argumentava que a república "surpreendeu" a

todos, e que, no Rio Grande do Sul, "os detentores do poder, que

incontestavelmente representavam a maioria da opinião", ou seja, os

liberais, de quem o autor era sectário, entregaram "a contragosto" o governo

"aos paladinos da idéia triunfante", e afirmava que já os primeiros meses

com os republicanos no poder caracterizaram-se pela "demolição de todas

as liberdades políticas alcançadas na monarquia?". A sistemática exclusão

por parte dos republicanos com relação a todos os virtuais adversários, não

só para com os cargos político-partidários e eleitorais, como para os

burocrático-administrativos, era acusada pelo autor, que apontava para as

"iniqüidades praticadas por homens que alardeavam um puritanismo sem

_ •...-..~."""'''l''Y.~('''~~-~ ...

\ ~ , : . • C , :

~"t~~:'

l.

i ;"-'"

"'-:",

L

, ~ : , ~

. .

"._~,,·,,_--1

3 7

1 4ESCOBAR, 1922. p. 15-16. 1 5ESCOBAR, 1983. p. 8. 1 6ESCOBAR, 1922. p. 19-20.

(10)

jaça", e condenava o "exclusivismo irritante de uma grande massa, senão

maioria dos cidadãos do Estado", e a "intolerância levada a excesso", que

teriam dividido "o povo rio-grandense em vencidos e vencedores",

indispondo "o espírito público contra o partido republicano":" Acusava,

enfim, o completo alijamento das forças anticastilhistas de qualquer

possibilidade de retomada do controle do aparelho do Estado.

Escobar condenava veementemente os meios utilizados pelo

castilhismo para garantir a perpetuação do Partido Republicano

Rio-Grandense no poder. A respeito do líder máximo dos republicanos gaúchos,

o autor afirmava que "a política preconizada por Comte, de que se

enamorou, calhava perfeitamente a seus intuitos, porque sob fórmulas

democráticas dissimulava a ditadura". Quanto ao grupo republicano no

poder, destacava que este "baniu escrúpulos, rompeu todas as cadeias de

inveteradas tradições, feriu interesses, violou direitos, enfim ( ...) postergou

todas as liberdades polltícas":". Além de criticar o aparelho eleitoral montado

pelos governistas, que inviabilizava qualquer oportunidade de vitória da

oposição, Escobar denunciava as fraudes eleitorais" que complementavam

o trabalho de alijamento político daquela.

A constituição rio-grandense era um dos principais alvos das críticas

do autor federalista, o qual a apontava como a "mais completa negação do

regime republicano, porque, sob a máscara democrática, concentrava todos

os poderes em mão do Executivo, arvorando seu representante em perfeito

ditador". Nessa linha, considerava "a organização constitucional

rio-grandense" como "uma felonia aos verdadeiros princípios republicanos'F",

uma vez que

WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

a

qponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

divisão do poder público, nesse estatuto político, era quase nula. O

papel da câm ara de representantes lim itava-se unicam ente a decretar despesas e a criar fontes de receitas; era um a sim ples câm ara

1 7 ESCOBAR, 1983. p. 10. 1 8ESCOBAR, 1922. p. 22-23.

19 o autor descrevia o processo eleitoral então em voga: "A absoluta totalidade das mesas compostas exclusivamente de partidários do governo não admitiam, com raríssimas exceções, fiscalização. Nestas condições, apuravam discricionariamente votos para os candidatos oficiais, embora dados a candidatos da oposição. Algumas houve, cujo procedimento foi tão desonesto, que apuraram mais votos que o número de eleitores qualificados na respectiva seção. Muitas, na impossibilidade de evitarem a derrota, deixavam de se reunir, frustrando por esse modo a eleição. Em uma das sessões eleitorais da própria capital, tal foi a falta de pejo, que, na ocasião da votação, a polícia arrebatou violentamente a urna, tudo com ciência, senão instrução do governador, que nenhuma providência tomou para punir os culpados deste atentado. Como se não bastassem as tropelias e fraudes praticadas pelas mesas eleitorais, ainda, por sua vez, o mesmo faziam as juntas apuradoras dos municipios, completando a obra daquelas". ESCOBAR, 1983. p. 22.

2 0 ESCOBAR, 1922. p. 24.

3 8 BIBlOS. Rio Grande. 10:31-43, 1998.

orçam entária, segundo a tecnologia com tista. Ao representante do poder Executivo, o prim eiro m agistrado do Estado, cabia a iniciativa de todas as mais leis, que interessassem à prosperidade e bem-estar

da fam ília rio-grandense (. ..). Por um tal sistem a constitucional ficava o presidente investido de grande som a do poder público: era quase, senão, um ditador, cuja atribuição ia até nom ear seu próprio substituto legal. Esta obra, pondo em evidência o espírito de seita, quadrava-se perfeitam ente à natureza autoritária do dr. Júlio de Castilhos.

Conquanto o patenteasse estadista divorciado da república, cuja negação ela era, prestava-se com o excelente instrum ento para realizar o objetivo que jam ais perdeu de vista - fortalecer seu partido

- [e] enfim, para governar sem dar contas à

optniéo"

Dessa forma, para Escobar, a estrutura constitucional rio-grandense

estava a serviço de Júlio de Castilhos, que, com ela, "via-se investido de um

aparelho que lhe facultava governar à vontade", de modo que, "amparado

por esta organização constitucional draconiana", completava seus planos de

manutenção no poder ao cercar-se "de um pessoal de absoluta confiança,

de criaturas incondicionais, sem vontade, que só pensavam pela sua

cabeça". Segundo o autor, "este aparelho governativo, em completo divórcio

com as tradições do povo, avolumou consideravelmente a onda da

oposição, que já demasiado prevenida, via em tudo motivo para crítica";

porém, continuava, "como o absolutismo produzindo descontentamento,

aumentaria a necessidade do absolutismo, Castilhos não parava nesse

caminho, quanto maior era a atividade dos adversános'F. De acordo com

Escobar, as atitudes das autoridades republicanas só levavam a um

crescente e irreversivel acirramento de ânimos:

Essas autoridades, em vez de m oderarem por atos de correção e

justiça os ânim os, m ais Ihes acendiam a exaltação pela prática ebusive de iníquas perseguições e violências de outras naturezas. (. ..) Castilhos, dom inaao por histerism o raivoso e obedecendo às

im pulsões de seu tem peram ento despótico, com irrefletido m enosprezo da m oderação e cordura (. ..), o que queria era esm agar pela força m anifestações contrárias ao governo. Parecia não com preender república em que tivessem representação todas as

opiniões; tinha por ideal o im pério absoluto do partido, que era o seu próprio, porque om enejeve à vontedeP

2 1 ESCOBAR, 1983. p. 23. 2 2 ESCOBAR, 1983. p. 29-34. 2 3ESCOBAR, 1922. p. 34.

_ • . : ' : \ o . ~ • • • • •

...-..,.:L-\ ~.'," >'

~ " ' C E

c,~

1

BIBlOS. Rio Grande, 10:31-43. 1998.

~

. . • ' • . • . c _ _

. ~ _ J

(11)

Estas práticas autoritárias denunciadas por Wenceslau Escobar

justificavam, segundo o autor, as atitudes bélicas da oposição, uma vez que

a esta assistiria o "direito á revolução", ou seja, o pegar em armas para

destituir um governante considerado como ilegítimo ou discordante das

aspirações gerais. Dessa forma, para o escritor federalista, "tal foi a situação

de mal-estar e compressão", criada pelo castilhismo e "sentida por uma

grande parte da comunhão rio-grandense, que, desenganada de alcançar

pelos meios pacíficos a garantia eficaz de todos os seus direitos, já

começava a afagar a idéia da revolução, vendo nela o recurso extremo dos

oprimidos?". Para o autor, o "pensamento da revolta" representava "a

flâmula da esperança da redenção dos oprimidos", os quais "aguardavam

ansiosos o momento de resgatar as garantias dos tempos em que tranqüilos

desfrutariam as doçuras da

WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

p a z " . "

Além disso, Escobar defendia a idéia de que a oposição rio-grandense

era a verdadeira representante de um dos elos fundamentais à formação

histórica gaúcha - "a liberdade" - uma vez que seus representantes "ainda

mantinham no Rio Grande acesa a pira das gloriosas tradições

democráticas, edificadas por seus maiores, em cerca de dois séculos e

meio, à custa de árduos trabalhos, lutas incessantes e sacrifício de inúmeras

e preciosas existências'?". Nesse sentido, o autor traçava um paralelo entre

as visões de liberdade para federalistas e republicanos:

qponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

No desdobram ento dos sucessos que ocorreram no Rio Grande após

a proclam ação da República, percebe-se com toda clareza a ação de duas forças atuando em sentido contrário. Um a defendendo ciosa o

patrim ônio de suas liberdades, esforçando-se por aum entá-Io; outra, prodigalizando m ais largas prom essas desse benefício, vai, no entanto, na prática, cerceando os ramos dessa árvore frondosa e até

aniquilando-a pelo corte de suas m ais fundas radículas. Esta é

representada pelos governos republicanos (. ..). Aquela é a oposição, concretizada, na m aior parte, pelo partido

teaereuste?'

2 4 ESCOBAR, 1983. p. 27. 2 S ESCOBAR, 1922. p. 53.

2 6 ESCOBAR, 1922. p. 36. Quanto à oposição rio-grandense, Wenceslau Escobar fazia uma nítida distinção entre a atuação dos dissidentes e dos federalístas; partidário destes, o autor imputou muito das culpas pelos insucessos dos rebeldes àqueles. Para o escritor, ao passo que o grupo dos dissidentes republicanos defendia uma orientação considerada como "a negação da república, por ter por base a política ditatorial preconizada por A. Comte", os federalistas mantinham "a força dos sentimentos democráticos do partido que, durante trinta anos, tinha sido doutrinado pelos próceres do liberalismo rio-grandense e cujo espírito [que] ainda era bafejado pelas auras memoráveis de 35, repelia, dominado por sincera convicção, esse regime constitucional como contrário às suas tradições de povo livre" (ESCOBAR, 1922. p. 42-43).

2 7 ESCOBAR, 1922. p. 51-52.

40

BIBlOS. Rio Grande, 10:31-43, 1998.

Ao identificar os motivos que levaram à Revolução Rio-Grandense de

1893, Escobar apontava a violência como elemento primordial. Ao destacar

esse fator que norteou as relações entre os dois lados em conflito, o autor

sempre apresentou os federalistas como as vítimas e os republicanos

castilhistas como os verdugos. Nesse quadro, relatava as diversas formas

de emprego da força sofridas pelos anticastilhistas, que variavam desde a

violência física, passando pelos ataques à propriedade privada, até os

atentados contra a moral dos indivíduos e das famllias."

Escobar ainda localizava nas atitudes dos governantes, nas esferas

estadual e federal, a culpa pelo desencadear da Guerra Civil de 1 8 9 3 . Para

o autor, nos atos de Júlio de Castilhos mesclavam-se "ambição do poder,

conveniências partidárias e pessoais", que "prevaleceram à idéia de conjurar

uma provável revolução" e "às desgraças que, ( ...) em resultado deste

flagelo, pudessem sobrevir à terra natal". O apoio do Presidente da

República, Floriano Peixoto, às forças governistas gaúchas também foi

condenado pelo escritor, considerando que não poderia "sofrer dúvida a

verdade histórica", de que o marechal fora "a alma da revolução" e o

"causante de todas as desgraças que nos três anos subseqüentes

sobrevieram ao Rio Grande do Sul"29. Em síntese, o autor denunciava a

"tirania" como a responsável direta pela eclosão revolucionária:

A guerra civil foi a conseqüência da tirania, que audaciosa levantou

colo em todo o Rio Grande, cujo heróico sacrifício decenal pelo ideal

republicano via, agora, num m om ento, eclipsado por ferrenha ditadura, m ascarada de roupagens dem ocráticas. De 1 8 9 3 a 1 8 9 5 o

Rio Grande ardeu em chamas da m ais feroz e cruenta revolução. Nesta guerra, em que o principal com bustível foi o ódio alim entado pelo fanatism o rubro da intolerância, não houve atentado que não figurasse nos anais dessa horrorosa calam idade. Castilhos, m ordido de raiva, em expansões de fúria atroz, m andava que não poupassem adversários nem na pessoa, nem nos bens (. ..). Foi época em que um

dilúvio de lágrim as e sangue inundou a terra gaúcha, cobrindo de crepe todos os corações. 30

Ao referir-se ao final do conflito entre federalistas e republicanos,

Wenceslau Escobar esclarecia que os confrontos, as paixões e os ódios

Político-partidários não estavam encerrados no ato da pacificação e, pelo

contrário, haviam sido ainda mais fermentados durante o processo

revolucionário, resultando numa série de seqüelas as quais se manisfestariam

2 8 ESCOBAR, 1983. p. 53-67; 1922. p. 48-50. 2 9 ESCOBAR, 1983. p. 50 e 42.

3 0 ESCOBAR, 1922. p. 54.

BIBlOS, Rio Grande, 10:31-43, 1998

(12)

ao longo de toda a vida política rio-grandense durante a República Velha:

WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

o

qponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

fim desastroso da revolução consolidou seu predom ínio absoluto

[do castilhismo] e assegurou definitivam ente no Rio Grande a vitória

da ditadura ea derrota da liberdade. (. ..)

[Castilhos] não queria a liberdade; queria a disciplina, a tranqüilidade

das m assas, a paz à im agem da água estagnada. As conseqüências deste ensinam ento são deploráveis; origina um a população obediente

até à docilidade, que suprim e o espírito de crítica. Além disso, nos que

se submetem à tirania com a consciência sem pre em revolta, gera

ódios profundos, que se transmitem de pais a filhos e se concretam no patrim ônio das gerações que se vão sucedendo. São estas as

sem entes das revoluções sem eadas pelos governos que sobrepõem

a sua vontade absoluta aos verdadeiros princípios

cemocréticos."

4 ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES

A produção histórica acerca da transição monarquia-república no Rio

Grande do Sul foi, por longo período, caracterizada por um marcante

partidarismo. Grande parte dos trabalhos elaborados nos primeiros anos

após a instauração da nova forma de governo e durante praticamente toda a

República Velha não deixou de estar vinculada, em maior ou menor grau, a

um dos lados que, em confronto, agitaram a vida política rio-grandense nas

três primeiras décadas após a derrocada da monarquia.

As profundas cisões político-partidárias originadas a partir do advento

da república levariam à deflagração da Revolução Federalista, fenômeno

que não serviu para aparar as arestas entre as forças em divergência no Rio

Grande do Sul, e sim para agravá-Ias. Acompanhando a luta armada

estabeleceu-se paralelamente uma peleja por meio das palavras, articuladas

através da imprensa e de uma série de livros que buscaram explicar, de

acordo com a visão de cada um dos grupos em desacordo, os eventos

relacionados ao processo de instalação da nova forma de governo.

Inserida nesse contexto esteve a obra de Wenceslau Escobar, político

militante dos princípios federalistas/gasparistas, cuja proposta de trabalho

consistiu em combater ferreamente o modelo político implantado no Rio

Grande do Sul por Júlio de Castilhos. O autor dedicou-se a prestar um

"testemunho" histórico, intentando "esclarecer" as gerações futuras a respeito

do que considerava como distorções da forma republicana, provocadas pelo

castilhismo.

3 1 ESCOBAR, 1922. p. 59 e 74.

4 2 BIBLOS. Rio Grande. 10:31-43. 1998.

Colocando a "história" a serviço de seus princípios político-partidários,

Escobar voltou seus escritos ao combate do autoritarismo castilhista,

apontado como "ditadura", "despotismo", ~/ou "tirania", opondo a esse

sistema os ideais propagados pelos federahstas, apresentados como fiéis

depositários das "liberdades" e da "democracia" do povo rio-grandense.

Legitimando o pensamento e os atos de uma das alas do contigente

anticastilhista sul-rio-grandense, Wenceslau Escobar foi um dos mais

importantes escritores a desempenhar o papel de arauto dos federalistas,

numa contenda em que a pena e a espada atuaram lado a lado.

BIBLas. Rio Grande. 10:31-43. 1998.

43

...-.V ....~,;;<;,.dh••.~·

\

~ , ',,"'• .\ r· '" ." •••. \ . l : l > , t & \ \ . ; · ' " ~ ; r . . · , ' ' ' ' ' ; ,

\ "','. "W ;;.':

I

I

Referências

Documentos relacionados

Prevê-se a concessão de autorização legislativa ao Governo para criar a contribuição especial para a conservação dos recursos florestais, a incidir sobre o volume de negócios

Para tanto, no Laboratório de Análise Experimental de Estruturas (LAEES), da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (EE/UFMG), foram realizados ensaios

Sendo assim, o presente estudo visa quantificar a atividade das proteases alcalinas totais do trato digestório do neon gobi Elacatinus figaro em diferentes idades e dietas que compõem

As mulheres travam uma história de luta por reconhecimento no decorrer do tempo sistematicamente o gênero masculino dominava o feminino, onde prevalecia a hierarquização do sexo

In vitro biological control of Ceratobasidium ramicola by using tannin extracts from Acacia villosa, Myristica fragrans, Acacia mangium, and.. Calliandra calothyrsus

Focamos nosso estudo no primeiro termo do ensino médio porque suas turmas recebem tanto os alunos egressos do nono ano do ensino fundamental regular, quanto alunos

No primeiro livro, o público infantojuvenil é rapidamente cativado pela história de um jovem brux- inho que teve seus pais terrivelmente executados pelo personagem antagonista,

A campanha Dia da Independência no Facebook criou perfis reais para alguns dos personagens que participaram da independência do país, como Dom Pedro I, Dom João VI,