CARLOS TESCHAUER
WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
E
A HISTORIOGRAFIA
RIO-GRANDENSE
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LUIZ HENRIQUE TORRES*
RESUMO
É realizada uma análise da produção historiográfica de Carlos Teschauer entre 1911 e 1929, buscando desvelar os enfoques do autor referentes ao lugar das Missões Jesuítico-Guaranis na formação histórica luso-brasileira e platina no Rio Grande do Sul.
PALAVRAS-CHAVE: Historiografia, Rio Grande do Sul, formação missioneira.
o
jesuíta Carlos Teschauer desenvolveu, entre as décadas de dez evinte deste século, um trabalho fundamental para os estudos missioneiros,
pois inseriu as Missões Jesuítico-Guaranis na história rio-grandense.
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História do Rio Grande do Sul dos dois prim eiros séculos' é a obra principal
de Teschauer, composta de três volumes, sendo o último constituído
integralmente por documentos. A ênfase no. rigor na indicação dos
documentos citados ou transcritos no texto e o privilegiamento do acontecer
histórico missioneiro caracterizam a obra. A preocupação documental levou
o autor a pesquisar na Bibtioteca Nacional do Rio de Janeiro e em arquivos
de Buenos Aires, Montevidéu, Assunção, Santiago, Madri, Roma, Vaticano,
Bruxelas e Sevilha. A análise dessa documentação propiciou a elaboração
de um trabalho que, de forma menos especulativa, já que está respaldado
em fontes documentais, incorporou sistematicamente ao debate
historio-gráfico rio-grandense a temática missioneira. Para além da produção do
conhecimento, a obra constitui-se numa referência para apreciações
favoráveis ou desfavoráveis à incorporação da história missioneira na
formação colonial do Rio Grande do Sul.
Considerando que o assunto era "uma página em branco", Teschauer
propunha-se desenvolver uma "narração documentada do antigo passado
* Professor do Dep. de Biblioteconomia e História - FURG. Doutor em História. 1Síntese dos resultados do projeto de pesquisa A Produção Historiográfica de G arlos
Teschauer. Departamento de Biblioteconomia e História - FURG.
2 TESCHAUER, Garlos. História do Rio G rande do Sul dos dois prim eiros séculos. Porto Alegre: Selbach, 1918. v. 1; 1921. v. 2; 1922. v. 3.
do Rio Grande do Sul", afirmando que "o presente trabalho não pretende ser
uma apologia nem dos missionários caluniados nem do proceder da Igreja
nas Missões ultramarinas tão atacadas pelos dissidentes; o seu alvo é mais
simples: oferecer a verdade objetiva como se apresenta nos documentos e
monumentos históricos, a qual por si defende a inocência e acusa a calúnia
e a injustiça". Conclamando o amor
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à verdade e à imparcialidade, o autoracusava alguns intelectuais de reproduzirem a historiografia do século XVIII,
por estarem "oferecendo romance por narração histórica". Ao referir-se à
historiografia do século XVIII, Teschauer indicou os trabalhos de orientação
antijesuítica que acusavam a Companhia de Jesus de estabelecer um Império
teocrático na América, onde o temporal estava suplantando os objetivos de
conversão espiritual dos indigenas. Os acontecimentos da segunda metade
do século XVIII5 , que resultam na expulsão dos jesuítas do Brasil e da
América, fortaleceram essa posição defendida pelo marquês de Pombal. O
trabalho vinha no sentido de reabilitar a ação jesuítica no Rio Grande do Sul.
Os
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princípios e norm as que presidiram este trabalho são os da rigorosacrítica histórica m oderna e de im perturbável im parcialidade, tendo sem pre por norte a lei suprem a, recom endada por Leão XIII aos historiadores a quem sem diferença de credo generosam ente franqueou
os arquivos do Vaticano. A primeira lei da história é que não ouse dizer
coisa falsa, a segunda que tenha a coragem de dizer a verdade inteira.6
O autor acreditava manter a imparcialidade, não deixando a emoção
conduzir a um maior destaque de certos autores e acontecimentos ligados
ao universo da Companhia de Jesus. O "amor à verdade" deve garantir a
cientificidade da produção intelectual, porém a análise do trabalho
desenvolvido por Teschauer não permite a comprovação dessa premissa. A
verdade histórica almejada está amparada numa pesquisa documental, mas
a leitura dessa documentação está engajada e comprometida em reproduzir
o projeto civilizatório dos missionários jesuítas. A seleção dos documentos e
a definição dos personagens é feita em referência no enaltecimento da obra
missionária. É o caso de Hernandarias de Saavedra, Governador da
Província do Paraguai e simpatizante dos jesuítas: "para aumentar entre os
índios o respeito devido aos missionários, visitou pessoalmente a primeira
3 Idem, v. 1, p. v-vi. 4 Ibidem, p. v-vi.
S A acusação da existência de minas de ouro controladas por jesuítas foi rebatida por Teschauer: "as minas de ouro não existiram senão na fantasia dos adversários". (TESCHAUER, Carlos. A lenda do Ouro : estudo etnológico-histórico. Revista do Instituto
Histórico eG eográfico do Ceará, Fortaleza, p. 33, 1911.
6TESCHAUER, História do ... ,v. 1, p. vii.
22
BIBlOS, Rio Grande, 10:21-30. 1998.redução e, à vista dos neófitos e pagãos, foi beijar a mão do sacerdote com
todas as demonstrações de sincera humildade".7
A imparcialidade inicialmente proposta cede espaço à parcialidade e ao
engajamento de uma visão de mundo ligada ao papel civilizatório desenvolvido
pelos padres jesuítas na Província jesuftica do Paraguai. De um lado estão
os poucos defensores da catequese, como Saavedra e a Coroa espanhola.
De outro, os muitos inimigos, como os encomendeiros e os bandeirantes.
Enquanto os bandeirantes viviam sem lei e sem religiã08 , os encomendeiros
exploravam demasiadamente a mão-de-obra indígena, exploração que o
governo espanhol tudo fazia para combater" É nas relações entre a igreja e
o estado moderno, em que os jesuítas dependiam da autorização real para a
catequese, que se tornava compreensívef a defesa e obediência do autor
frente às diretrizes e procedimentos emanados de Madri,' afirmando que o
Conselho das fndias procurava proteger o índio e, "por mais que se tenha
declamado contra a Espanha e seu modo de governar suas colônias, nunca
poderão negar a prudência, o empenho, o cuidado e generosidade com que
se esforçaram os reis para acertar nesta administração"lO
A
obracatequizadora estava em sintonia com os interesses do rei da Espanha:
Os tapes, suas terras e propriedades prestavam à Coroa de Espanha
e às suas colônias na América um serviço positivo e im portantíssim o:
o de defender as fronteiras e eficazm ente contribuir para a integridade
de seu território. 11
Teschauer considerava que nas relações entre a Igreja e o Estado
cabia à Companhia de Jesus obediência às normas do rei e às orientações
papais. A necessidade em deixar claro que os missionários agiam dentro das
normas do poder temporal e espiritual é coerente com a argumentação de
que os jesuítas sempre agiram fielmente frente à lei e dentro do espaço
concedido para a conquista espiritual. Com a guerra guaranítica, quando os
índios se rebelaram frente à decisão das Coroas de Portugal e Espanha em
desocupar os Sete Povos, os padres não participaram das atividades de
resistência à execução do Tratado de Madri. A perseguição dirigida aos
jesuítas, acusados de criarem um Império independente, não encontraria
fundamento na prática cotidiana das Missões e suas relações com o universo
7 Idem, p. xxviii.
8Ibidem, p. 156 e segs. Referindo-se aos bandeirantes, "se fosse lícito, sem prevaricar contra as leis a que está sujeito o historiador, passaríamos um véu sobre uma das mais negras páginas da história da América do Sul".
9Ibidem, p. 229 e segs. 1 0 Ibidem, p. 27. 1 1 Ibidem, p. 238.
BIBLOS, Rio Grande, 10:21-30, 1998.
colonial espanhol. Afinal,os padres tentaram persuadir os índios a emigrar,
não incentivando a sua resistência". A insistente tentativa de justificar a
ação legal da Companhia de Jesus, que agia sempre em nome do rei e do
Papa, indica que o comprometimento da conversão dos índios está baseado
na fidelidade aos interesses do poder real e não na perspectiva dos guaranis.'
Nesse contexto, o extermínio promovido pelos exércitos luso-espanhóis sobre
a frágil resistência dos guaranis era tratado com certa indiferença, na medida
em que o ator principal- o jesuíta - não participou dessa sublevação.
Em Teschauer, a definição dos atores é fundamental. O desenrolar
dos acontecimentos é dirigido por alguns personagens que são movidos por
iluminação e intervenção divina, conduzindo a massa bruta dos habitantes
das florestas para a lapidação espiritual. A civilização cristã é o centro de
humanização do selvagem, e o padre é o veículo na conquista espiritual e,
dessa forma, o ator principal.
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Os m issionários trabalharam infatigável, incessantem ente e
vtvtem
sobriam ente. Seu alim ento m ais esquisito era constituído de favas
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efarinha de' m andioca, que raras vezes condim entavam com sal. Dorm iam no chão, sobre um a pele de boi- ou em um a rede. Em preendiam grandes viagens através de pântanos, selvas espessàs
e íngrem es m ontanhas a pé. O que porém fazia de sua existência entre selvagens um exercício contínuo do m ais elevado heroísm o, era que tinham entre antropófagos por um fio suas vidas.13
A abnegação, a sobriedade, o sacrifício e a coragem são atributos que
somente poderiam provir de uma força superior, trazendo energia a algumas
dezenas de padres, homens vindos da Europa e lançados no ambiente
animalizado da floresta e que tiveram ânimo para sobreviver e lançar as
bases da civilização cristã. O heroísmo transparece em cada. novo
acontecimento que assume um caráter épico transcendendo as situações
localizadas no tempo e no espaço. É o caso do falecimento de algum padre,
que, para além do passamento, significava um sinal divino de novos
acontecimentos da expansão do cristianismo. O heroísmo chegava a um
plano de realização integral no martírio, uma das temáticas recorrentes nos
escritores jesuítas da época, como o próprio Teschauer, em seu artigo "Vida
e obra do padre Roque Gonzales de Santa Cruz, S.J., o primeiro apóstolo do
Rio Grande do Sul"14. Segundo Moacyr Flores, "o objeto de estudo é a vida e
12 Ibidem, p. 252-253. 13lbidem, p. 115-116.
14 TESCHAUER, Carlos. Vida e obra do padre Roque Gonzales de Santa Cruz, S.J., apóstolo do Rio Grande do Sul. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, 3. trim. 1928.
24 BIBlOS, Rio Grande. 10:21-30, 1998.
obra do padre Roque, que procura civilizar os índios através da fé cristã. A
ação dos acontecimentos históricos sofre a interferência de Deus, que
castiga os pagãos e predestina Roque Gonzales ao martírio"'5 "Podemos
nos ufanar", comentou Teschauer, por "termos" sido o teatro de diversos
marttnos", momento máximo de superaçãoterrena e pOssível passagem
para uma beatificação papal. Ao padre Roque Gonzales coube "a grande
empresa de abrir o Rio Grande à cultura cristã, de ser seu descobridor e
primeiro a p ó s t o t o : " A ocupação missioneira precedeu outras modalidades
civilizatórias, pois "antes que os bandeirantes invadissem a antiga região do
Tape, já o descobridor e primeiro apóstolo do Rio Grande do Sul, Roque
Gonzales de Santa Cruz, no primeiro quartel do século 17, devassara-Ihe as
matas virqens"!" Além de alcançar a vida eterna, o esforço heróico e quase
sobrenatural dos missionários gerava um retorno ainda neste mundo: o
cacique Nheçum, "inimigo declarado da lei cristã, foi o instrumento com que
a Providência quis cingir a fronte do P. Roque com a coroa do martírio"'B Os
frutos do heroísmo consistiam também nos extraordinários resultados da
conversão dos "selvagens" em homens, no espaço reducional20 Nas Missões,
buscava-se "educar povos selvagens, acostumando-os à ordem e ao
trabalho, para assim elevá-Ias paulatinamente à cultura européia e cristà"."
O espaço de ação civilizatória é o projeto reducional, enquanto o ator
principal que age sob intervenção divina é o jesuíta. E os figurantes, os
"selvagens", quem eram eles para Teschauer? Ele afirmava que os índios
eram dotados de humanidade e liberdade, possuindo, apesar das limitações
intelectuais, a capacidade de entender a pregação do evangelho e abraçar a
fé n
Os guaranis, portanto, propiciavam um farto material humano para a
conversão, o que não reduzia as dificuldades para a catequização, já que
eles sequer eram "bárbaros", estando num estágio de desenvolvimento
muito rudimentar.23
1 5FLORES, Moacyr. Historiografia: estudos. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1989. p. 55. 16TESCHAUER, História do ... , v. 1, p. 50.
1 7 TESCHAUER, Carlos. Os veneráveis m ártires do Rio Grande Sul. Porto Alegre GlObo, 1925. p.5.
1 8TESCHAUER, História do ... , v. 1, p. xxix. 1 9TESCHAUER, Os veneráveis ... ,op. cit., p. 13. 20TESCHAUER, História do ... , v. 1, p. 121. 2 1 Idem, p, 55.
2 2 Ibidem, p. 26. A humanidade e liberdade dos indígenas é baseada na bula do Papa Paulo 1 1 1 .
2 3 "A índole do índio, sua inconstância, volubilidade e falta de previsão não mudou tanto nos guaranis depois de convertidos, que não exigisse a constante fadiga de não só ensinar-Ihes e explicar-ensinar-Ihes o catecismo, mas de vigiar-Ihes a vida e economia domésiica, para não descurarem as suas familias nem desperdiçarem seus bens móveis e imóveis" (TESCHAUER, Carlos. O caráter canônico das reduções no Rio Grande do Sul. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, tomo 77, parte 2, p. 190, 1916).
BIBLQS, Rio Grande, 10:21-30, 1998.
Para que se possa ser um apreciador justo na nossa questão,
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éindispensável não esquecer
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o estado em que os m issionários encontraram os índios e que n@ o era somente o de bárbaros, mas simo de selvagens. Os povos bárbaros têm ainda as suas leis, suas autoridades que os governam , têm sua agricultura e até m esm o certa indústria; são de algum a sorte policiados e entretêm relações am igáveis com as nações que Ihes são vizinhas. Nada disto têm , por via de regra, os selvagens. Nada sem eavam , diz um autorizado escritor, estes selvagens para se sustentar, e m enos civilizados que as form igas, não faziam provisão algum a para o inverno, gastando cada dia tudo quanto tinham .2 4
O quadro apresentado indica a incapacidade da sociedade indígena
em sobreviver, mantendo-se fiel aos valores culturais de cada grupo.
Evoca-se a incompetência intelectual e cultural, o atraso tecnológico e espiritual e a
ausência de uma "consciência pública", sempre em comparação com a
sociedade supostamente completa, a européia e católica". A sociedade
tribal é associada com a irracional idade dos animais que compõem o cenário
da floresta tropical. Nesse espaço de animal idade os guaranis recebem uma
série de adjetivos que lhe definem a personalidade: indolente, imprevidente,
volúvel, pusilânime, inconstante, mentiroso, fleumático, fútil, antropófago
e t c . " . Os comentários que situam o jesuíta civilizado e o índio selvagem,
estão presentes em textos jesuíticos dos séculos XVII e XVIII, porém
Teschauer assumiu, no século XX, a conquista espiritual a partir de uma
visão eurocêntrica, em que os referenciais culturais europeus configuram a
superioridade civilizatória frente à população indígenaY
2 4 TESCHAUER, Carlos. Poranduba rio-grandense. Porto Alegre: Globo, 1929. p. 240. 2 5 TESCHAUER, História do ... ,v. 2, p. 55.
2 6 "Se indagarmos as causas do baixo nível intelectual e moral do índio, acharemos uma a que entre outras se deve atribuir esta triste verdade; é o vício, pode-se dizer, geral da embriaguez e do costume de entregar-se longos dias e noites às suas borracheiras. Com este vício andava naturalmente a luxúria a que já desde pequeno se entregava. Estes vícios, praticados tão universal e constantemente de geração em geração, embotam necessariamente o entendimento e enfraquecem a vontade, produzem a cegueira para não conhecer o verdadeiro bem moral, a precipitação, a inconstância, a imprevisão e todos os vícios opostos à prudência, os quais a transtornam e finalmente consomem" (TESCHAUER, História do .. ,v. 1, p. 31).
2 7 "Como qualquer homem, o jesuíta dos séculos XVII e XVIII foí condicionado pelo seu momento histórico. A filosofia humanista da época colocava o homem no centro do Universo. Numa posição privilegiada, o ser racional se opunha a todas as demais criaturas existentes, o que servia de base para a afirmação gradativa do europeu sobre todos os demais povos do planeta ( ... ). A inferioridade sócio-cultural dos ameríndios e a sua dificuldade ou relutância na aceitação do cristianismo e dos valores civilizados logo os transformou em 'povos desprovidos de razão'. Ao longo do processo missionário, os Guaranis sempre foram considerados de fato e dejure como menores de idade" (SOUZA, José Otávio Catafesto de. Uma análise do discurso missionário o caso da indolência e imprevidência dos Guaranis. Veritas, Porto Alegre,
2 6 B I B l O S ,Rio Grande. 10:21-30. 1998.
Os avanços intelectuais obtidos deviam-se à persistente luta dos
padres contra as deficiências humanas desse material sel~agem. As fontes
etnológicas consultadas por Teschauer, fontes enqajadas na visão
eurocêntrica, como os padres Montoya, Sepp e Nüsdorffer, foram
reproduzidas integralmente, sem um distanciamento temporal, assinalando o
engajamento a um passado que o autor buscava justificar e enaltecer.
Além de um raciocínio e discernimento "débil e defeituoso", os guaranis
possuíam uma aptidão natural para decair nos vícios tribais pela ausência
de um poder moralizador", sendo necessária a contínua vigilância por parte
dos mestres, devido ao risco de todo o trabalho ser perdido". A presença
paternal do jesuíta, associada à marginalização das lideranças religiosas
dos caraís, seria fundamental para o implemento de novas concepções
espirituais e materiais, rompendo com a resistência mágico-religiosa:
Verem os com o depois de enérgica resistência dos selvagens, que não recuam do m artírio a que sacrificaram os prim eiros m issionários, as m atas virgens do Rio Grande, onde se ouviam as cabaças e
taquaras tocadas pelos pajés, ressoam da prédica do evangelho; verem os com o, onde se celebraram festas antropófagas, se levantam tem plos ao verdadeiro Deus e em redor brotam florescentes núcleos de
civilização, e dos primitivos habitantes desta nossa terra, em que
viveram com o feras, sairão prim eiro hom ens; dos hom ens cristãos, a
fam ília cristã, e desta as com unidades e um a grande província de índios cristãos, felizes súditos do então soberano que m andava neste país.3 0
A felicidade residia na substituição dos valores mágico-religiosos
pelos valores cristãos amparados na cidadania que a condição de súditos do
rei poderia trazer. Os pajés, feiticeiros ou caraís, eram transformados em
pretensiosos charlatões e embusteiros, herdeiros de superstições
infundadas31. Nesses feiticeiros sobrevivia aquilo que o esforço dos
missionários tentava apagar, partindo para uma leitura parcial da sociedade
PUCRS, v. 35, n.40., p. 112, 1990).
2 8 "A sociedade guarani era uma sociedade igualitária na sua formação original antes do contato, ou seja, uma sociedade sem estado, como normalmente ocorre entre os bandos caçadores coletores e as chamadas sociedades tribais. Isto significa que estas sociedades carecem de um órgão de poder separado do seu corpo social; o poder não está separado da sociedade, mas sim repousa de forma homogênea sobre ela mesma. As sociedades Igualitárias são sociedades indivisas" (GIORGIS, Paula Caleffi. O traçado das Reduções Jesuíticas ea Iransformação de conceitos culturais ( 2 " parte): o cabildo. Veritas, Porto Alegre, PUCRS, V . 37, 1 : 1 1 .146, p, 260, 1992).
2 9TESCHAUER, Poranduba ... ,p.1 7 8 . a oTESCHAUER, História do... ,v _1, p. xxxiii. l1i Idem, p . .12.
B I 8 l O S , R i "Gtlande,1 . 0 : 2 1 , - 3 ! l , 1 9 9 8 .
guarani: os vícios grosseiros, a luxúria e a poligamia, a embriaguez, a ira, a
f . 32
cruel e sangrenta antropo agia.
No papel de historiador cristão, Teschauer buscou a verdade
histórica, evocando o impulso interior e sobrenatural para a catequese que
foi delegada por Deus aos membros da Companhia de Jesus, em que o
desempenho da tarefa espiritual foi uma verdadeira vitória da razão sobre a
brutalidade, da mansidão cristã sobre a ferocidade selvagem, esforço que
representava o glorioso triunfo para a igreja catónca". O esforço foi
recompensado pela obra desenvolvida no nível de domesticação das "feras
ou tigres antropófagos", que se transformavam em mansos cordeiros, já
convertidos pela fé nos evangelhos
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3 4Porém, a decadência e ruína desta
civilização demonstrava que somente o contínuo contato com os jesuítas
permitiria a elevação do índio à condição de homem, abandonando sua
tendência à infantilidade e a outras características de sua personalidade,
como a má índole que induz a vícios, a propensão para a preguiça, a
indolência e a "inteligência pouco desenvolvida senão tapada". O guarani
quando criança "é mentiroso, em rapaz parece ter algo de talento, porém o
corpo cresce e o entendimento fica parado, continua criança'?". A presença
do padre seria indispensável, e sua expulsão após a Guerra Guaranítica, um
dos fatores que explicavam a desintegração das Missões, de uma sociedade
frágil frente aos desígnios e desmandos dos governos temporais. As
intervenções divinas não bastariam para salvar a civilização missioneira
constituída por crianças e mártires em potencial. Segundo Teschauer, em
visita à região missioneira, um sentimento de melancolia o tomou de assalto
ao contemplar as ruínas onde floresceram a cristandade e o sacrifício,
tamanha melancolia que uma "estranha tristeza" o acompanhou na
elaboração dos capítulos seguintes da história das Missões."
No último capítulo do livro
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História do Rio Grande do Sul dos doisprim eiros séculos, na ausência dos atores principais - os jesuítas _ a
narração tornou-se desinteressada frente aos novos acontecimentos que
assinalavam a integração do Rio Grande do Sul ao mundo luso-brasileiro.
Os guaranis também caíam no descaso e acabavam por constituir o gaúcho,
no cruzamento com o português e o espanhol, que Ihes tomavam as
mulheres, recorrendo ou não ao matrimônio, porém garantindo a reprodução
da ascendência indíqena". De qualquer forma, há uma perda de in.teresse
pelo destino da população indígena, pois a ausência do contato paternal dos
3 2TESCHAUER, História do ... ,v. 2, p. 157, 195 e 196. 3 3 Idem, p. 184 e 199.
3 4Ibidem, p. 195.
3 5TESCHAUER, História do ,v. 1, p. 29. 3 6TESCHAUER, História do ,v. 2, p. 200-201. 3 7Idem, p. 431.
28
B I B l O S , R i o G r a n d e , 1 0 : 2 1 - 3 0 , 1 9 9 8 .
adrés torna O processo missioneiro sem sentido. A ênfase estava em
~esgatar os triunfos e glórias da conquista espi~itual ~os séculos XVI.I e XVIII
enquanto lição moral e exemplo da intervenção divina. A sobrevivência de
parte da população missioneira posterior à expulsão da Companhia de Jesus
não constituiu um tnunfo para a humanidade, caindo no esquecimento, sem
um conteúdo épico e sobren~tural que merecesse destaque.
Haveria um abismo intransponível entre a civilização européia e os
ameríndios38
, o abismo entre o mármore e a massa modelável:
A
m assa ou m aterial que se forma e educa na Europa é com o de m árm ore; este, tendo recebido a forma de estátua a retém tenaz eim utavelm ente, assim não acontece com o substratum am azônico; este é sem pre m udável com o aquelas figuras, tigres, elefantes, form ados de buxo nos jardins chineses, que precisam de um contínuo aparo para não perderem a form a que Ihes foi
impresse"
Voltada ao enaltecimento da ação civilizadora e fazendo uma defesa
moral desta, na obra de Teschauer transforma-se numa ode de louvor à
determinação e ao desprendimento destes santos homens, que se
dispuseram a enfrentar uma empresa tão arriscada"."
A inserção das Missões como temática ligada à história do Rio
Grande do Sul e a associação destas com o universo platina já estava
presente no autor em 1911. nA luz que dissipa as trevas que pairam sobre os tempos antigos do Rio Grande não vem do Rio nem do norte, mas do sul e
oeste. Nos arquivos de Buenos Aires, Montevidéu e outros é que se acham
os documentos que, como aqueles raios maravilhosos há pouco descobertos,
nos habilitam a penetrar a mais densa obscuridade da nossa história"."
A concepção de "massa de mármore" utilizada por Carlos Teschauer
encontrou um seguidor em Luiz Gonzaga Jaeger (S.J.), que a aprofundou.
Essa concepção não foi desenvolvida teoricamente, mas estava presente
3 8 "O fato de Teschauer menosprezar as instituições tribais e o tipo de liderança que POssuíam indica a dificuldade do autor de reunir e transcrever os diversos aspectos que se encerram no processo de transformação pelo qual passaram as aldeias guaranis. De um estágio do 'neolítico tropical', os guaranis passam a se integrar, através dos Povoados Missioneiros, na Idade Moderna, num processo de interação social e cultural extremamente complexo. Neste processo mudam os padrões de subsistência, a organização política e o universo mental das tradições e costumes das populações indígenas agora reduzidas" (SANTOS, .Maria /Cristina dos. Jesuítas e guaranis na sociedade missioneira: uma análise cntlca da historioératía. Estudos Ibero-Am ericanos, Porto Alegre, PUCRS, v. 13, n. 1, p. 78-79. 1987)
3 9 TESCHAUER, História do ... ,v. 2, p. 86. 4 0SANTOS, Jesuítas e índios ... , op. cit., p. 80.
. 4 ' TESCHAUER, Carlos. Habitantes primitivos do Rio Grande do Sul. In:Alm anaque do
RIo Grande do Sul para 1911. Rio Grande: Livraria Americana, 1911. p. 25.
num enfoque que privilegiou alguns participantes em detrimento de outros. A
presença de Deus e dos demônios foi constante nessa análise que enaltecia
os jesuítas e depreciava os selvagens ou bárbaros.
A narração não se prende a uma postura favorável ou contrária a
Portugal ou Espanha; antes disso, busca reverenciar e fortalecer a ação da
Companhia de Jesus no Novo Mundo através da atuação idealizada dos
padres jesuítas em defesa dos índios. O papel religioso de cristianizar
populações selvaqens que viviam
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à margem da civilização cristã e dafelicidade, através da atuação da Providência divina, que delegou poderes
aos jesuítas, é o encaminhamento desse tipo de narração histórico-literária.
O caráter de conversão doutrinária, ao demonstrar através do martírio dos
padres que o bom cristão estava sempre pronto a morrer em nome da fé em
Cristo, é marcante, desviando-se de um procedimento científico do
conhecimento histórico.
Em relação à formação histórica do Rio Grande do Sul, destacar a
ação dos jesuítàs e criticar os bandeirantes e o Marquês de Pombal não
significa uma aproximação platina, já que os espanhóis não são enaltecidos.
Não transparece uma alternativa platina para a problemática da formação
histórica e sim a doutrinação de valores católicos.
30 BIBlOS. Rio Grande 10:21·30.1998.
A FORMAÇÃO DA REPÚBLICA NO RIO GRANDE DO SUL
NA VERSÃO DE UM FEDERALlSTA
FRANCISCO DAS NEVES AL VES*
RESUMO
A gênese· da forma de governo republicana no Rio Grande do Sul foi caracterizada pelos confrontos políticos, ideológicos e militares entre as forças castilhistas e anticastilhistas, traduzidos na Revolução Federalista, gerando-se, a partir desta, uma série de interpretações diferentes e divergentes quanto aos acontecimentos que marcaram esse período. Em geral vinculados a um dos lados do conflito, durante grande parte da República Velha, os autores produziram uma história marcada pelo partidarismo e pela paixão política. O presente trabalho intenta estabelecer um estudo de caso sobre uma dessas interpretações, analisando a visão de um federalista a respeito da formação da República no contexto sul-rio-grandense, expressa na obra de Wenceslau Escobar, elemento com participação efetiva nos eventos que marcaram o processo de fermentação, eclosão, desenvolvimento e seqüelas da Guerra Civil de 1893.
PALAVRAS-CHAVE: Rio Grande do Sul: história e historiografia, Revolução Federalista, Wenceslau Escobar.
1 INTRODUÇÃO
No Rio Grande do Sul, ao contrário do restante da maior parte das
províncias/estados brasileiros, onde se deu uma republicanização tranqüila,
a mudança na forma de governo trouxe consigo uma série de conflitos que
agitariam a vida política da jovem nação republicana. Diferentemente do
contexto brasileiro, no qU<31os antigos partidos imperiais engendraram
alianças ou adaptaram-se à nova situação reinante, no caso gaúcho, o
Partido Liberal, senhor soberano da situação política, não aceitou o
alijamento do poder, perdido para os republicanos a partir da transição
monarquia-república. Além disso, o exclusivismo político-partidário
executado pelos republicanos liderados por Júlio de Castilhos para garantir a
manutenção do controle dos aparelhos burocrático-administrativo e eleitoral
também levou ao afastamento de republicanos "de última hora" e ate de
• Professor do Dep. de Biblioteconomia e História - FURG.
BIBLOS. Rio Grande. 10.31-43. 1998.
"históricos", com a formação de considerável dissidência.
Desse modo, constituiu-se uma cisão intransponlvel entre os
republicanos-castilhistas, no poder, e uma forte oposição representada pelos
antigos liberais e conservadores, além da dissidência republicana, os quais
buscaram certa organização e arregimentação interna, nem sempre
eficiente, intentando assim a possibilidade de retorno ao poder. Eliminadaa
instância das disputas políticas, tendo em vista a virtual exclusão das
oposições do processo eleitoral e o conseqüente aprofundamento das
discrepâncias partidárias, o Rio Grande do Sul mergulharia em cruenta
guerra civil.
Ao lado do confronto militar, desenvolveu-se, durante a Revolução
Federalista e nos anos subseqüentes, uma verdadeira batalha de
pronunciamentos expressos em geral através da imprensa. Paralelamente
aos inflamados e panfletários artigos jornalísticos, vários autores elaboraram
também livros e "folhetos" da mesma natureza, retratando, segundo suas
concepções, os eventos que marcaram esse período. Essas publicações
caracterizaram-se pela enraizada presença do partidarismo, servindo de
fomento às paixões políticas, defendendo e legitimando as atitudes dos
aliados, atacando os inimigos
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elou servindo como respostas às versõesentabuladas pelo adversário.
Nesse quadro esteve inserida a obra de Wenceslau Escobar, político
rio-grandense figadalmente envolvido nos conflitos do antes e depois da
Revolução de 1893, servindo sua pena à causa dos federalistas. O objetivo
deste trabalho consiste em analisar alguns dos escritos de Escobar,
elaborados nas primeiras décadas do século XX, intentando estabelecer
uma associação entre o seu pensamento político e a sua forma de "fazer
história", bem como identificar suas convicções político-partidárias na versão
estabelecida para os episódios que marcaram a formação da república no
Rio Grande do Sul, desde a proclamação até o ec/odir da Revolução
Rio-Grandense de 1893.
2 HISTÓRIA E POLíTICA NA OBRA DE WENCESLAU ESCOBAR
Wenceslau Pereira Escobar era gaúcho de São Sarja, nascido a 8 de
dezembro de 1857, vindo a falecer no Rio de Janeiro a 14 de abril de 1938.
Como muitos dos políticos rio-grandensesde então, formou-se em Direito,
no ano de 1880, na Faculdade de São Paulo. Dedicou-se à advocacia,
sendo versado em Direito Constitucional, além do que foi Promotor Público e
Juiz Municipal em sua cidade natal, atuando como Deputado Provincial, em
1881. Já na República, foi um seguidor do gasparismo, militando no Partido
Federalista, chegando a ser eleito deputado federal para o período entre
32 BIBLOS, Rio Grande, 10:31-43, 199B.
1906
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e 1908.1Escobar dedicou-se fambém ao jornalismo e 'foi diretor 'da revista
porto-alegrense A Lei, em 1892. Além dê ter publicado Um grande número
de artigos na imprensa, elaborou as seguintes obras: Unldade Pátria (1914),
escrita no intuito de promover a manutenção da "comunhão brasileira", ao
discutir questões, como língUa, raça, 'letras, tradições, costumes, direito,
religião, viação e impostos; Aponiementos para '8 História da Revolução
Rio-Grandense de 1893 '(1919), seu trabalho mais conhecido, consistindo numa
narração dos acontecimentos político-militares da Revolução Federalista; 30
Anos de Ditadura Rio-Grandense(1922), libelo que historia a formação
republicana rio-grandense até o início da década de vinte; Pela Intervenção
no Rio Grande - Renúncia do Dr. Borges de M edeiros (1923), folheto
contendo oito artigos e duas cartas abertas-ao governador do Rio Grande do
Sul, defendendo a renúncia deste elou a intervenção federal no estado; e
Discursos Parlam entares - 1906-1908 (1926), com a transcrição de uma
série' de pronunciamentos proferidos à época da deputação na Câmara
Federal.ê
Ao buscar elaborar uma interpretação dos eventos que marcaram a
gênese da República no Rio Grande do Sul, Escobar articulava um "produzir
história" com um "fazer política", estando suas obras marcadas pelo
pensamento político-partidário dos federalistas". Os ideais políticos do autor
tiveram por arcabouço os princípios liberais, os quais Escobar traduzia por
"liberdade", típica, segundo ele, da formação histórica do Rio Grande do Sul.
Na concepção de Wenceslau Escobar, a "liberdade" estava intrinsecamente
ligada aos gaúchos, desde os primitivos habitantes e perpassando as
diversas gerações de rio-grandenses, que, "sempre aurindo a vida neste
ambiente de sadios princípios liberais, iam serenos correndo os tempos"."
1 Sobre a biografia de Wenceslau Escebar, observar: BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Dicionário bibliográfico bresileiro. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1902. v. 7, p, 345,; MARTINS, Wi~son.História da inteligência brasileira, São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1978, v, 6, p. 212.; VILLAS-BÓAS, Pedro. Notas de, bibliografia sul-rio-grandense, Porto Alegre: A NaçãollEL, 1974, p. 178. .
2 Escobar também publicou: O Gabinete de 5de Janeiro (1880), Cartas Abertas ao
Senador Pinheiro M achado (1904), Réplica aos Contraditores dos m eus Apontam entos para a
História da Revolução de 1 8 9 3 (1921), Esboço de Reform a da Constituição (1931) e Decurso
de um a vida (1937). '
3 Os preceitos a respeito do pensamento político e da forma de fazer história de Wenceslau Escobar foram elaborados a partir de proposições estabelecidas em: ALVES, Francisco das Neves, Wenceslau Escobar e a oposição ao borgismo (1906-1923), Estudos
Ibero-Am ericanos, Porto Alegre, PUCRS, v, 21, n. 2. p. 91-97, 1995; ALVES, Francisco das
Neves. Revolução Federalista e "verdade histórica", In: ALVES, Francisco das Neves, TORRES, Luiz Henrique. Ensaios de História do Rio Grande do Sul. Rio Grande: Universidade do Rio Grande, 1996. p, 88-90,
4 ESCOBAR, Wenceslau. 30 anos de ditadura tio-çrendense. Rio de Janeiro: Canton & Beyer, 1922_ p. 12.
BIBLOS, Rio Grande, 10:31-43, 1998.
Outro elemento da história rio-grandense, destacado pelo autor para
fundamentar seu pensamento, foi o caráter militar do "povo" gaúcho.
Descrevendo a participação dos sul-rio-grandenses ao longo de uma série
de conflitos - desde os tempos coloniais até o Segundo Império, como nas
disputas luso-hispânicas pela Colônia do Sacramento e pelo território do Rio
Grande do Sul, na Guerra da Cisplatina, na Revolução Farroupilha, na
guerra contra Rosas, na guerra contra Oribe e na Tríplice Aliança - Escobar
explicava que, por "mais de cento e cinqüenta anos, o berço rio-grandense
foi sempre abalado em ruidoso ambiente de agitações bélicas", afeiçoando
"o caráter de seus filhos às rudes e tormentosas vicissitudes das lutas pelas
armas"."
Desse modo, ao associar a "liberdade" ao "caráter bélico", como
fundamentos imanentes
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à formação gaúcha, o autor buscava justificar quequalquer recurso seria legítimo, mesmo a luta armada, para garantir a
manutenção daquele primeiro fator. Essa proposição estava intimamente
ligada a um dos componentes básicos do discurso federalista, ou seja, a
arraigada luta contra o autoritarismo do sistema castilhista, considerado
como verdadeira tirania pelos seus adversários.
-Segundo Wenceslau Escobar, o funcionamento da república, de
acordo com o sistema pelo qual esta se estruturou no Brasil, estava
prejudicado pelo desequilíbrio de forças entre os três poderes, com o
absoluto predomínio do Executivo, que "desacatava" o Judiciário e
"menosprezava" o Legislativo, distorção esta ainda mais evidenciada na
Constituição Sul-Rio-Grandense, que destinava ao Legislativo poderes
simplesmente consultivos, com relação ao. Presidente da Província".
Utilizando seus conhecimentos em Direito Constitucional, Escobar levava
em frente um dos intentos que era a pedra de toque dos inimigos do
castilhismo, ou seja, o combate à constituição castilhista, a qual garantia
através de seus mecanismos político-eleitorais a perpetuidade do grupo
situacionista no poder. Para ele, a constituição rio-grandense não era
"absolutamente republicana",· e sim "uma ditadura mascarada' de
democracia" e "uma verdadeira excrescência no mecanismo constitucional
da república", que não garantia, ao' menos, as liberdades públicas7.
Apontava também como inconcebíveis e inconstitucionais a nomeação do
vice-presidente pelo presidente, a inelegibilidade dos não-rio-grandenses
para o governo do estado, a possibilidade da reeleição presidencial e a
organização das eleições por 'parte do Executivo, pregando constantemente
a revisão desses dispositivos constitucionais.
5 ESCOBAR, 1922. p, 4-14.
6 ESCOBAR, Wenceslau.
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Unidade pátria. Porto Alegre: Globo, 1914. p. 184. 7 ESCOBAR. Wenceslau. Discursos parlam entares (1-906-1908). Porto Alegre: GlobO, 1926. p. 4-5. .3 4
BIBLOS. Rio Grande. 10:31-43. 1998.
o
pensamento político de Escobar estava voltado para os ideais e aspráticas do liberalismo, pois, como militante do Partido Federalista, foi
seguidor e herdeiro dos princípios gasparistas no que concerne à
organização do Estado. Na sua concepção, o ponto básico a ser
transformado nas estruturas institucionais do Brasil Republicano era o da
rigidez do sistema presidencialista, defendendo, assim, que os ministros de
estado fossem solidariamente responsáveis, junto ao Presidente, pelo Poder
Executivo, e que a eleição do Presidente da República fosse efetuada via
Congresso Nacional, pois considerava o sufrágio direto como uma "burla",
tendo em vista a "escassa cultura" popular que anulava os possíveis
resultados positivos daquele princípio democrático, elucidando que só os
congressistas representavam a "corporação ilustrada e a mais competente
para conhecer os cidadãos na altura de ocuparem o posto de primeiro
magistrado da n a ç ã o " . "
Dessa forma, rezando pela cartilha gasparista, Escobar propunha a
implantação de um sistema parlamentarista no país e, em consonância com
os princípios liberais, propunha que o chefe de um estado republicano
deveria governar com patriotismo e como um funcionário prudente, criterioso
e da confiança do povo, que poderia afastá-Io, quando julgasse isso
necessário? - características diametralmente opostas ao sistema castilhista,
o que tornava natural e justificável o combate, por parte do autor, ao que
considerava como a "ditadura rio-grandense".
Esse pensamento político de Wenceslau Escobar moldou a sua forma
de "produzir história". Mesmo não se constituindo no "historiador" de acordo
com o sentido estritamente científico, Escobar pretendia "fazer história", ao
entabular uma resposta às versões legalistas e ao prestar um "inestimável
serviço" de esclarecimento à pátria, através do "testemunho" que legava
"aos vindouros de um esforço em prol da paz da família rio-grandense" e do
esclarecimento a respeito da "verdade do regime federativo", considerando
que este não passara de uma "sombra"? no contexto político rio-grandense
ao longo da República Velha. .
Ao buscar prestar um testemunho histórico, Escobar caía em
contradição na utilização dos conceitos isençãolimparcialidade. Admitindo
não ser possível praticar o primeiro, propunha-se, entretanto, tratar os fatos
de forma imparcial, característica que teria sido adquirida através do
distanciamento cronológico com relação ao desencadeamento dos eventos
que marcaram os fatores promotores e os efeitos da Revolução
8ESCOBAR, 1914. p. 190-196. 9ESCOBAR, 1926. p. 9.
1 0 ESCOBAR, Wenceslau. Pela intervenção no Rio Grande - renúncia do Dr. Borges
de M edeiros. Rio de Janeiro: Canton & Beyer, 1923. p. 3.
BIBLOS. Rio Grande, 10:31·43, 1998.
Federalista". No entanto, a "imparcialidade" do autor ficou íirnitada a partir
de suas convicções político-partidárias, de modo que ele não esteve isento
de paixões, deixando-se envolver pela dicotomia do bem e do mal entre
pica-paus e maragatos e anulando, por conseguinte, qualquer possibilidade
de distanciamento crítico com relação ao objeto em estudo."
Assim, como "historiador", Escobar pretendia prestar
"esclarecimentos" às gerações futuras, de modo que estas tivessem
subsídios para reavaliar a história rio-grandense, reconhecendo qual dos
lados em confronto era o detentor da razão, buscando demonstrar, de
acordo com a sua compreensão, que os federalistas eram os verdadeiros
defensores das liberdades e das instituições gaúchas, e que, após aquela
reavaliação, os rio-grandenses saberiam como proceder, menoscabando a
imagem de Júlio de Castilhos e glorificando a de Gaspar da Silveira Martins:
À
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m em ória do [tirano] seus partidários levantaram estátua. Entretanto,o cadáver do famoso tribuno que, na m ais am pla com preensão do
am or às liberdades patrícias, proclam ava os verdadeiros princípios liberais, esse nem ao menos descansa no solo pá trio, dorm e exilado
em terra estranha. Talvez um dia, as gerações por vir, cujo grau de
perfeição m oral deve ser superior ao da atual, melhor avaliando a
m entalidade
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e beleza de sentim entos entre aquele que dizia "inim igos não se poupa, nem na pessoa nem nos bens", e o que dizia "guerracivil não, m aior flagelo pode cair sobre um povo", repare a clam orosa injustiça, apeando do pedestal da estátua a figura brônzea do ditador
para em seu lugar colocar a do grande estadista liberal. A história, às
vezes, tem destas sanções, duras mas justas. 13
Nesse sentido, história e política estiveram articuladas na obra de
Wenceslau Escobar, interagindo mutuamente na reconstrução histórica que
o autor empreendeu com relação aos eventos que marcaram a formação da
república no Rio Grande do Sul.
1 1
o
autor afirma: "Não tenho a pretensão de escrever com absoluta isenção de ãnimo: sou homem, tomei parte pelo coração e pelas idéias nessa lamentável lu~a fratricida. Procurei, no entanto, expor os fatos com a possível imparcialidade, limitando para isso, a meu favor, não só o quarto de século que já nos distancia desse cruento sucesso, senão também a madureza dos anos, poderoso calmante para ajuizarmos dos acontecimentos com menos paixão e mais justiça" (ESCOBAR, Wenceslau. Apontam entos para a história da Revolução Rio-Grandense de 1893. Brasília : Ed. da UnB, 1983. p. 4).1 2 De acordo com: FLORES, Moacyr. Historiografia da Revolução Federalista. In: FLORES, Moacyr (org.). 1893-1895: aRevolução dos M aragatos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993. p. 123; PICCOLO, Helga Iracema Landgraf. A Revolução Federalista no Rio Grande do Sul considerações l;1istoriográficas.ln: ALVES, Francisco das Neves, TORRES, Luiz Henrique (org.). Pensara Revolução f=ederalista. Rio Grande: Ed. da FURG, 1993. p. 69.
1 3 ESCOBAR, 1983. p. 340.
3 6 BIBlOS, Rio Grande, 10:31-43, 1998.
~
3 A GÊNESE DA REPÚBLICA NO RIO GRANDE DO SUL NA VISÃO
ANTICASTILHISTA DE WENCESLAU ESCOBAR
De acordo com Wenceslau Escobar, a república colocara termo à
alternância dos partidos políticos no poder, típica do período monárquico e
que, segundo o autor, bem representava a natureza das instituições políticas
brasileiras, apontando-a como "um fator de considerável importância na
formação do caráter nacional", uma vez que "a certeza de ser governo
dentro de certo período, que podia ser mais ou menos longo, mas nunca
indefinido, era um incentivo para a firmeza de idéias e princípios". Já com a
nova forma de governo, segundo Escobar, "a facção que escalara o poder
se eternizava no governo, e só alcançavam posições aqueles que se
lançassem em seus braços, sincera ou finqidarnente"!", situação que se
manifestava ainda mais gravemente no caso do Rio Grande do Sul:
Os arautos da idéia triunfante, que, enfaticam ente, se deram a
denom inação de "históricos", a quantos não faziam pública profissão de fé ou não tinham sido partidários dos tem pos da propaganda, excluíram , de m odo sistem ático, de todas as funções públicas e
eletivas. Até alguns que pouco antes de 1 5 de novem bro tinham se
declarado republicanos, alcançou esta odiosa exclusão. Ao invés de procurarem fraternizar todos os membros da fam ília rio-grandense, conjurando dificuldades à consolidação da nova form a de governo, seguros do apoio da espada, cujo único dom ínio im perava, am eaçaram arrogantes com o brado mavórcio - "a guerra com o na guerra", tratando com o suspeitos todos quantos com alacridade não entoavam hosanas à nova ordem de coisas. 1 5
Nesse sentido, Escobar argumentava que a república "surpreendeu" a
todos, e que, no Rio Grande do Sul, "os detentores do poder, que
incontestavelmente representavam a maioria da opinião", ou seja, os
liberais, de quem o autor era sectário, entregaram "a contragosto" o governo
"aos paladinos da idéia triunfante", e afirmava que já os primeiros meses
com os republicanos no poder caracterizaram-se pela "demolição de todas
as liberdades políticas alcançadas na monarquia?". A sistemática exclusão
por parte dos republicanos com relação a todos os virtuais adversários, não
só para com os cargos político-partidários e eleitorais, como para os
burocrático-administrativos, era acusada pelo autor, que apontava para as
"iniqüidades praticadas por homens que alardeavam um puritanismo sem
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3 71 4ESCOBAR, 1922. p. 15-16. 1 5ESCOBAR, 1983. p. 8. 1 6ESCOBAR, 1922. p. 19-20.
jaça", e condenava o "exclusivismo irritante de uma grande massa, senão
maioria dos cidadãos do Estado", e a "intolerância levada a excesso", que
teriam dividido "o povo rio-grandense em vencidos e vencedores",
indispondo "o espírito público contra o partido republicano":" Acusava,
enfim, o completo alijamento das forças anticastilhistas de qualquer
possibilidade de retomada do controle do aparelho do Estado.
Escobar condenava veementemente os meios utilizados pelo
castilhismo para garantir a perpetuação do Partido Republicano
Rio-Grandense no poder. A respeito do líder máximo dos republicanos gaúchos,
o autor afirmava que "a política preconizada por Comte, de que se
enamorou, calhava perfeitamente a seus intuitos, porque sob fórmulas
democráticas dissimulava a ditadura". Quanto ao grupo republicano no
poder, destacava que este "baniu escrúpulos, rompeu todas as cadeias de
inveteradas tradições, feriu interesses, violou direitos, enfim ( ...) postergou
todas as liberdades polltícas":". Além de criticar o aparelho eleitoral montado
pelos governistas, que inviabilizava qualquer oportunidade de vitória da
oposição, Escobar denunciava as fraudes eleitorais" que complementavam
o trabalho de alijamento político daquela.
A constituição rio-grandense era um dos principais alvos das críticas
do autor federalista, o qual a apontava como a "mais completa negação do
regime republicano, porque, sob a máscara democrática, concentrava todos
os poderes em mão do Executivo, arvorando seu representante em perfeito
ditador". Nessa linha, considerava "a organização constitucional
rio-grandense" como "uma felonia aos verdadeiros princípios republicanos'F",
uma vez que
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a
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divisão do poder público, nesse estatuto político, era quase nula. Opapel da câm ara de representantes lim itava-se unicam ente a decretar despesas e a criar fontes de receitas; era um a sim ples câm ara
1 7 ESCOBAR, 1983. p. 10. 1 8ESCOBAR, 1922. p. 22-23.
19 o autor descrevia o processo eleitoral então em voga: "A absoluta totalidade das mesas compostas exclusivamente de partidários do governo não admitiam, com raríssimas exceções, fiscalização. Nestas condições, apuravam discricionariamente votos para os candidatos oficiais, embora dados a candidatos da oposição. Algumas houve, cujo procedimento foi tão desonesto, que apuraram mais votos que o número de eleitores qualificados na respectiva seção. Muitas, na impossibilidade de evitarem a derrota, deixavam de se reunir, frustrando por esse modo a eleição. Em uma das sessões eleitorais da própria capital, tal foi a falta de pejo, que, na ocasião da votação, a polícia arrebatou violentamente a urna, tudo com ciência, senão instrução do governador, que nenhuma providência tomou para punir os culpados deste atentado. Como se não bastassem as tropelias e fraudes praticadas pelas mesas eleitorais, ainda, por sua vez, o mesmo faziam as juntas apuradoras dos municipios, completando a obra daquelas". ESCOBAR, 1983. p. 22.
2 0 ESCOBAR, 1922. p. 24.
3 8 BIBlOS. Rio Grande. 10:31-43, 1998.
orçam entária, segundo a tecnologia com tista. Ao representante do poder Executivo, o prim eiro m agistrado do Estado, cabia a iniciativa de todas as mais leis, que interessassem à prosperidade e bem-estar
da fam ília rio-grandense (. ..). Por um tal sistem a constitucional ficava o presidente investido de grande som a do poder público: era quase, senão, um ditador, cuja atribuição ia até nom ear seu próprio substituto legal. Esta obra, pondo em evidência o espírito de seita, quadrava-se perfeitam ente à natureza autoritária do dr. Júlio de Castilhos.
Conquanto o patenteasse estadista divorciado da república, cuja negação ela era, prestava-se com o excelente instrum ento para realizar o objetivo que jam ais perdeu de vista - fortalecer seu partido
- [e] enfim, para governar sem dar contas à
optniéo"
Dessa forma, para Escobar, a estrutura constitucional rio-grandense
estava a serviço de Júlio de Castilhos, que, com ela, "via-se investido de um
aparelho que lhe facultava governar à vontade", de modo que, "amparado
por esta organização constitucional draconiana", completava seus planos de
manutenção no poder ao cercar-se "de um pessoal de absoluta confiança,
de criaturas incondicionais, sem vontade, que só pensavam pela sua
cabeça". Segundo o autor, "este aparelho governativo, em completo divórcio
com as tradições do povo, avolumou consideravelmente a onda da
oposição, que já demasiado prevenida, via em tudo motivo para crítica";
porém, continuava, "como o absolutismo produzindo descontentamento,
aumentaria a necessidade do absolutismo, Castilhos não parava nesse
caminho, quanto maior era a atividade dos adversános'F. De acordo com
Escobar, as atitudes das autoridades republicanas só levavam a um
crescente e irreversivel acirramento de ânimos:
Essas autoridades, em vez de m oderarem por atos de correção e
justiça os ânim os, m ais Ihes acendiam a exaltação pela prática ebusive de iníquas perseguições e violências de outras naturezas. (. ..) Castilhos, dom inaao por histerism o raivoso e obedecendo às
im pulsões de seu tem peram ento despótico, com irrefletido m enosprezo da m oderação e cordura (. ..), o que queria era esm agar pela força m anifestações contrárias ao governo. Parecia não com preender república em que tivessem representação todas as
opiniões; tinha por ideal o im pério absoluto do partido, que era o seu próprio, porque om enejeve à vontedeP
2 1 ESCOBAR, 1983. p. 23. 2 2 ESCOBAR, 1983. p. 29-34. 2 3ESCOBAR, 1922. p. 34.
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BIBlOS. Rio Grande, 10:31-43. 1998.
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Estas práticas autoritárias denunciadas por Wenceslau Escobar
justificavam, segundo o autor, as atitudes bélicas da oposição, uma vez que
a esta assistiria o "direito á revolução", ou seja, o pegar em armas para
destituir um governante considerado como ilegítimo ou discordante das
aspirações gerais. Dessa forma, para o escritor federalista, "tal foi a situação
de mal-estar e compressão", criada pelo castilhismo e "sentida por uma
grande parte da comunhão rio-grandense, que, desenganada de alcançar
pelos meios pacíficos a garantia eficaz de todos os seus direitos, já
começava a afagar a idéia da revolução, vendo nela o recurso extremo dos
oprimidos?". Para o autor, o "pensamento da revolta" representava "a
flâmula da esperança da redenção dos oprimidos", os quais "aguardavam
ansiosos o momento de resgatar as garantias dos tempos em que tranqüilos
desfrutariam as doçuras da
WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
p a z " . "Além disso, Escobar defendia a idéia de que a oposição rio-grandense
era a verdadeira representante de um dos elos fundamentais à formação
histórica gaúcha - "a liberdade" - uma vez que seus representantes "ainda
mantinham no Rio Grande acesa a pira das gloriosas tradições
democráticas, edificadas por seus maiores, em cerca de dois séculos e
meio, à custa de árduos trabalhos, lutas incessantes e sacrifício de inúmeras
e preciosas existências'?". Nesse sentido, o autor traçava um paralelo entre
as visões de liberdade para federalistas e republicanos:
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No desdobram ento dos sucessos que ocorreram no Rio Grande após
a proclam ação da República, percebe-se com toda clareza a ação de duas forças atuando em sentido contrário. Um a defendendo ciosa o
patrim ônio de suas liberdades, esforçando-se por aum entá-Io; outra, prodigalizando m ais largas prom essas desse benefício, vai, no entanto, na prática, cerceando os ramos dessa árvore frondosa e até
aniquilando-a pelo corte de suas m ais fundas radículas. Esta é
representada pelos governos republicanos (. ..). Aquela é a oposição, concretizada, na m aior parte, pelo partido
teaereuste?'
2 4 ESCOBAR, 1983. p. 27. 2 S ESCOBAR, 1922. p. 53.
2 6 ESCOBAR, 1922. p. 36. Quanto à oposição rio-grandense, Wenceslau Escobar fazia uma nítida distinção entre a atuação dos dissidentes e dos federalístas; partidário destes, o autor imputou muito das culpas pelos insucessos dos rebeldes àqueles. Para o escritor, ao passo que o grupo dos dissidentes republicanos defendia uma orientação considerada como "a negação da república, por ter por base a política ditatorial preconizada por A. Comte", os federalistas mantinham "a força dos sentimentos democráticos do partido que, durante trinta anos, tinha sido doutrinado pelos próceres do liberalismo rio-grandense e cujo espírito [que] ainda era bafejado pelas auras memoráveis de 35, repelia, dominado por sincera convicção, esse regime constitucional como contrário às suas tradições de povo livre" (ESCOBAR, 1922. p. 42-43).
2 7 ESCOBAR, 1922. p. 51-52.
40
BIBlOS. Rio Grande, 10:31-43, 1998.Ao identificar os motivos que levaram à Revolução Rio-Grandense de
1893, Escobar apontava a violência como elemento primordial. Ao destacar
esse fator que norteou as relações entre os dois lados em conflito, o autor
sempre apresentou os federalistas como as vítimas e os republicanos
castilhistas como os verdugos. Nesse quadro, relatava as diversas formas
de emprego da força sofridas pelos anticastilhistas, que variavam desde a
violência física, passando pelos ataques à propriedade privada, até os
atentados contra a moral dos indivíduos e das famllias."
Escobar ainda localizava nas atitudes dos governantes, nas esferas
estadual e federal, a culpa pelo desencadear da Guerra Civil de 1 8 9 3 . Para
o autor, nos atos de Júlio de Castilhos mesclavam-se "ambição do poder,
conveniências partidárias e pessoais", que "prevaleceram à idéia de conjurar
uma provável revolução" e "às desgraças que, ( ...) em resultado deste
flagelo, pudessem sobrevir à terra natal". O apoio do Presidente da
República, Floriano Peixoto, às forças governistas gaúchas também foi
condenado pelo escritor, considerando que não poderia "sofrer dúvida a
verdade histórica", de que o marechal fora "a alma da revolução" e o
"causante de todas as desgraças que nos três anos subseqüentes
sobrevieram ao Rio Grande do Sul"29. Em síntese, o autor denunciava a
"tirania" como a responsável direta pela eclosão revolucionária:
A guerra civil foi a conseqüência da tirania, que audaciosa levantou
colo em todo o Rio Grande, cujo heróico sacrifício decenal pelo ideal
republicano via, agora, num m om ento, eclipsado por ferrenha ditadura, m ascarada de roupagens dem ocráticas. De 1 8 9 3 a 1 8 9 5 o
Rio Grande ardeu em chamas da m ais feroz e cruenta revolução. Nesta guerra, em que o principal com bustível foi o ódio alim entado pelo fanatism o rubro da intolerância, não houve atentado que não figurasse nos anais dessa horrorosa calam idade. Castilhos, m ordido de raiva, em expansões de fúria atroz, m andava que não poupassem adversários nem na pessoa, nem nos bens (. ..). Foi época em que um
dilúvio de lágrim as e sangue inundou a terra gaúcha, cobrindo de crepe todos os corações. 30
Ao referir-se ao final do conflito entre federalistas e republicanos,
Wenceslau Escobar esclarecia que os confrontos, as paixões e os ódios
Político-partidários não estavam encerrados no ato da pacificação e, pelo
contrário, haviam sido ainda mais fermentados durante o processo
revolucionário, resultando numa série de seqüelas as quais se manisfestariam
2 8 ESCOBAR, 1983. p. 53-67; 1922. p. 48-50. 2 9 ESCOBAR, 1983. p. 50 e 42.
3 0 ESCOBAR, 1922. p. 54.
BIBlOS, Rio Grande, 10:31-43, 1998
ao longo de toda a vida política rio-grandense durante a República Velha:
WVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
o
qponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
fim desastroso da revolução consolidou seu predom ínio absoluto[do castilhismo] e assegurou definitivam ente no Rio Grande a vitória
da ditadura ea derrota da liberdade. (. ..)
[Castilhos] não queria a liberdade; queria a disciplina, a tranqüilidade
das m assas, a paz à im agem da água estagnada. As conseqüências deste ensinam ento são deploráveis; origina um a população obediente
até à docilidade, que suprim e o espírito de crítica. Além disso, nos que
se submetem à tirania com a consciência sem pre em revolta, gera
ódios profundos, que se transmitem de pais a filhos e se concretam no patrim ônio das gerações que se vão sucedendo. São estas as
sem entes das revoluções sem eadas pelos governos que sobrepõem
a sua vontade absoluta aos verdadeiros princípios
cemocréticos."
4 ÚLTIMAS CONSIDERAÇÕES
A produção histórica acerca da transição monarquia-república no Rio
Grande do Sul foi, por longo período, caracterizada por um marcante
partidarismo. Grande parte dos trabalhos elaborados nos primeiros anos
após a instauração da nova forma de governo e durante praticamente toda a
República Velha não deixou de estar vinculada, em maior ou menor grau, a
um dos lados que, em confronto, agitaram a vida política rio-grandense nas
três primeiras décadas após a derrocada da monarquia.
As profundas cisões político-partidárias originadas a partir do advento
da república levariam à deflagração da Revolução Federalista, fenômeno
que não serviu para aparar as arestas entre as forças em divergência no Rio
Grande do Sul, e sim para agravá-Ias. Acompanhando a luta armada
estabeleceu-se paralelamente uma peleja por meio das palavras, articuladas
através da imprensa e de uma série de livros que buscaram explicar, de
acordo com a visão de cada um dos grupos em desacordo, os eventos
relacionados ao processo de instalação da nova forma de governo.
Inserida nesse contexto esteve a obra de Wenceslau Escobar, político
militante dos princípios federalistas/gasparistas, cuja proposta de trabalho
consistiu em combater ferreamente o modelo político implantado no Rio
Grande do Sul por Júlio de Castilhos. O autor dedicou-se a prestar um
"testemunho" histórico, intentando "esclarecer" as gerações futuras a respeito
do que considerava como distorções da forma republicana, provocadas pelo
castilhismo.
3 1 ESCOBAR, 1922. p. 59 e 74.
4 2 BIBLOS. Rio Grande. 10:31-43. 1998.
Colocando a "história" a serviço de seus princípios político-partidários,
Escobar voltou seus escritos ao combate do autoritarismo castilhista,
apontado como "ditadura", "despotismo", ~/ou "tirania", opondo a esse
sistema os ideais propagados pelos federahstas, apresentados como fiéis
depositários das "liberdades" e da "democracia" do povo rio-grandense.
Legitimando o pensamento e os atos de uma das alas do contigente
anticastilhista sul-rio-grandense, Wenceslau Escobar foi um dos mais
importantes escritores a desempenhar o papel de arauto dos federalistas,
numa contenda em que a pena e a espada atuaram lado a lado.
BIBLas. Rio Grande. 10:31-43. 1998.
43
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