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Aprender a não perceber

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Academic year: 2023

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

APRENDER A NÃO PERCEBER

José Álvaro da Camara Ruas

Tese orientada pelo Professor Doutor Alberto Arruda, especialmente elaborada para a obtenção do grau de Mestre em Teoria da Literatura.

2022

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Índice

Resumo/Abstract ... 5

Introdução ... 9

I - O Método de Bouwsma ... 11

a) “Repor a expressão no contexto onde originalmente tinha um uso” ... 12

b) “Criar analogias apropriadas de modo a tornar as ideias de outros claras” ... 20

c) “Procurar o motivo ou a causa mais profunda da ideia de um filósofo” . 30 II – Sobre a Filosofia ... 33

Bouwsma e Baker ... 33

Aprendizagem ... 44

III – Nos Extremos da Filosofia ... 52

Poesia ... 52

Religião ... 63

Bibliografia ... 69

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Resumo

Segundo Thomas Stonborough, sobrinho de Ludwig Wittgenstein, o relato que melhor descrevia o seu tio é o que O. K. Bouwsma deixou sobre os encontros que tiveram nos últimos anos da vida de Wittgenstein. De facto, Bouwsma é principalmente conhecido por essas conversas – que foram postumamente coligidas e publicadas – e por alguns ensaios que deixou sobre Wittgenstein. Todavia, Bouwsma teve uma actividade filosófica intensa anterior e posterior ao encontro com Wittgenstein. Trabalhou acima de tudo sobre filosofia da linguagem, tendo como base a linguagem corrente e daí a sua ligação à escola da Ordinary Language Philosohy; teve também uma série de outros interesses (sobretudo literatura e religião) sobre os quais escreveu. E em estreita ligação com o que escreveu (sem o qual isso não teria acontecido) foi professor de filosofia desde que se formou até à sua morte. O objectivo principal deste trabalho é oferecer um bom resumo da sua actividade, assim como da sua ideia sobre filosofia. O primeiro capítulo é sobre o que se convencionou chamar o “método de Bouwsma”; o segundo sobre a sua visão de filosofia – em referência à obra de Wittgenstein e em contraste com ideias de Gordon Baker; no terceiro capítulo, apresentam-se as ideias de Bouwsma sobre religião e poesia, que por sua vez, e assim se espera, iluminam os limites da filosofia.

Palavras-Chave: O. K. Bouwsma – Metafilosofia – Analogia – Poesia – Religião – Filosofia da Literatura

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Abstract

To Thomas Stonborough, nephew of Ludwig Wittgenstein, said that the account that better described his uncle was the one O. K. Bouwsma left of the meetings they had in the last years of Wittgenstein’s life. In effect, Bouwsma is mostly well-known for those conversations – which were posthumously gathered and published – and by some essays on Wittgenstein. Even so, Bouwsma had an intense philosophical life before and after his meeting Wittgenstein. His work was mainly focused on philosophy of language, having as a foundation the ordinary language and hence his connection to Ordinary Language Philosophy; he had also many other interests (mainly literature and religion) and about which he wrote. And in strict connection with what he wrote, and without which the writing wouldn’t have happened, he taught philosophy since his graduation until his death. The main goal of this dissertation is to give a good summary of his activity, as of his ideia of philosophy. The first chapter is about what became known as “Bouwsma’s method”; the second chapter is on his vision of philosophy – in reference to Wittgenstein’s work and in contrast with the ideas of Gordon Baker; in the third chapter, Bouwsma’s ideas on religion and poetry are presented in a way that, so we hope, shed light on the limits of philosophy.

Keywords: O. K. Bouwsma – Metaphilosophy – Analogy – Poetry – Religion – Philosophy of Literature

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Deixo

Aos meus pais esta tese

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Introdução

O trabalho de O. K. Bouwsma é normalmente associado à escola da Ordinary Language Philosophy (filosofia da linguagem corrente), e a maior parte dos seus textos conhecidos incluem-se perfeitamente nessa descrição. Contudo, Bouwsma teve uma série de outros interesses e escreveu sobre muitas outras coisas além de filosofia; e fê-lo com sucesso pela ligação ao trabalho filosófico. Mais ainda, porque as diferentes áreas ocupam cada uma o seu lugar, têm relações importantes entre si e completam um todo.

Nesta tese exploram-se as técnicas da análise filosófica que Bouwsma usa nos seus trabalhos e pelas quais é conhecido. Depois de serem apresentadas é esperado que se possa aprender essas técnicas. Disserta-se também sobre algumas das suas ideias sobre filosofia, religião, e poesia que ajudam na leitura de textos e que ajudam a não encontrar problemas onde eles não existem. Se Bouwsma conseguiu não perceber certos enunciados, isso só lhe poupou (e nos poupa) dificuldades posteriores.

Os seus ensaios mais relevantes encontram-se coligidos em três livros:

Philosophical Essays (publicado por Bouwsma), Toward a New Sensibility (póstumo), e Without Proo for Evidence (póstumo). Muitos dos seus textos estão inéditos – por exemplo as suas notas a Ulysses de James Joyce, e a primeira edição das John Locke Lectures – e muitos dos seus textos publicados são pouco conhecidos; pelo que nos parece que ainda há muito trabalho a fazer sobre Bouwsma.

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No primeiro capítulo dá-se atenção à prática filosófica de Bouwsma. A partir de um resumo feito por um aluno seu, são enunciadas as três principais técnicas da sua prática e são mostrados e analisados exemplos para cada uma delas. No segundo capítulo, de carácter metafilosófico, é mostrada a ideia que Bouwsma tem sobre filosofia em contraste com a ideia de Gordon Baker. O texto de base para a visão de Bouwsma é a análise que faz do Blue Book de Wittgenstein, enquanto que a de Baker parte do primeiro ensaio do seu livro Wittgenstein's Method: Neglected Aspects, “Philosophical Investigations §122: Neglected Aspects”. No fim do capítulo explora-se a possibilidade de aprender filosofia, em particular o tipo de filosofia praticada por estes autores. Depois destes dois capítulos, e de se terem visto as faces prática e teórica da filosofia, é dado enfoque à análise de Bouwsma sobre áreas que estão para além da filosofia; ao mesmo tempo é proposto que ao olhar para estas áreas – a poesia e a religião – se tenha uma visão mais delimitada da filosofia.

Para além disso, parecem-nos de extremo interesse as ideias que Bouwsma tem sobre tais áreas.

Os ensaios citados estão referidos pelas iniciais de acordo com a legenda da bibliografia. As traduções são todas minhas à excepção de quando indicado, e por isso deixei algumas vezes o original em nota de rodapé.

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I - O Método de Bouwsma

Quase sempre que se fala de O. K. Bouwsma o tema do método vem ao de cima - o que acontece também em alguns contextos com Wittgenstein. Um método de análise filosófica com atenção à linguagem e à sua estrutura; não um método de refutação de teorias, mas sim de avaliação do sentido ou falta de sentido numa teoria, frase, expressão, etc. A bem dizer, será difícil encontrar na obra de Bouwsma um único método; tendo sentido, ainda assim, dizer que há uma homogeneidade de práticas nos seus escritos. Ronald Hustwit, na introdução a um trabalho de Bouwsma que não chegou a ser publicado1, descreve bem essas diferentes práticas:

“Demonstra aqui as técnicas em que, para tentar perceber uma expressão filosófica, vai repor a expressão no contexto onde originalmente tinha um uso, criar analogias apropriadas para fazer as ideias de outros claras, procurar o motivo ou causa mais profunda da ideia de um filósofo, fazer aparecer a falta de sentido de uma ideia por contraste com aquilo que faz sentido.”2

A minha proposta para este capítulo consiste em mostrar exemplos de cada uma destas práticas assim como excertos onde Bouwsma fala sobre elas.

1 John Locke Lectures: uma série de palestras que Bouwsma foi convidado a dar em Oxford, e que Hustwit editou e introduziu, mas que nunca publicou. A introdução é um muito bom resumo do trabalho de Bouwsma e está reproduzida em anexo.

2 “He demonstrates here the techniques of trying to understand a philosophical expression by replacing it in the context from which it originally had a use, of developing appropriate analogies to try to make another’s ideas clear, of looking for the motive or deeper source of a philosopher’s statements, of making the nonsense of a statement apparent by contrasting it with what does make sense.” Introdução às John Locke Lectures.

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É bom notar que cada uma destas versões do método são grosseiras reduções do trabalho filosófico. Em princípio, em cada trabalho, são encontradas diferentes partes juntas formando um todo sem divisões muito marcadas. Hustwit fala de quatro acções; sendo que as três primeiras são as técnicas de que falarei:

a) “repor a expressão no contexto onde originalmente tinha um uso,”

b) “criar analogias apropriadas para fazer as ideias de outros claras,”

c) “procurar motivo ou causa mais profunda da ideia de um filósofo,”

e a última é o resumo das três anteriores, no fundo, o resumo daquilo que o método é: “fazer aparecer a falta de sentido de uma ideia por contraste com aquilo que faz sentido.” Estas três primeiras, embora próximas, ganham em estar delimitadas. Até porque, como veremos, seria difícil dizer que estão a fazer a mesma coisa.

a) “Repor a expressão no contexto onde originalmente tinha um uso”

A primeira técnica é normalmente a mais citada, principalmente quando se associa Bouwsma à escola da Ordinary Language Philosophy (Filosofia da Linguagem Corrente): “repor a expressão no contexto onde originalmente tinha um uso.” A ideia principal é a de que se pode compreender melhor uma expressão, uma palavra, um conceito, ou uma confusão que neles possa existir, se se procurar o seu uso no contexto original. Aqui usaremos “contexto original” para dizer de uma forma

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abrangente “exemplos de frases na linguagem corrente.”3 Mais ainda, para dizer que se trata de um caso em que a dita expressão aparece sem causar problemas, sem causar confusões.

O primeiro ensaio de que vou falar, e que ilustra esta técnica, pertence a um grupo com o título “Failures” (falhas), sendo este “Failure I: Are Dreams Illusions” do livro Toward a New Sensibility. Este facto não é de importância menor. Se pensarmos que este método é uma forma de compreender um problema, é estranho que desde o início se assuma que o que se segue é um falhanço. Ora, é isso que se passa:

Bouwsma mostra como uma frase de Descartes que parece ter um sentido não pode tê-lo. A parte interessante é que Bouwsma não está interessado no argumento, nem em refutar o argumento, mas sim no facto de não conseguir compreender aquela expressão.

A ideia em questão (e que se tornou eventualmente num tema4) é a de que

“sonhos são ilusões,” para Bouwsma incompreensível. A expressão tem origem nas Meditações de Descartes: “recordo-me de muita vez haver sido enganado, quando dormia, por semelhantes ilusões.”; “Suponhamos, pois, que nos achamos adormecidos; e que todas aquelas particularidades, - a saber: que abrimos os olhos, que abanamos a cabeça, que estendemos as mãos, e cousas que tais, - são só ilusões.” 5 A forma de perceber isto será separar os dois termos da expressão (os termos da analogia): sonhos e ilusões. Depois, poder-se-ia fazer uma análise

3 É importante dizer que o contexto-exemplo é criado ad hoc (o que pode ter implicações, nomeadamente, até que ponto é que é contexto).

4 Tem inclusive uma página na Wikipedia: https://en.wikipedia.org/wiki/Dream_argument

5 Descartes, Renato, Meditações Metafísicas, “Primeira Meditação”, António Sérgio (trad.), Coimbra:

Imprensa da Universidade, 1930, pp. 12-13.

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detalhada da natureza de cada uma das partes; mas Bouwsma vai antes recriar casos de ilusões e casos de sonhos, e contrastá-los – casos que ocorrem ou podem ocorrer no dia-a-dia.

Pode-se acusar Bouwsma de não ter em consideração o contexto de Descartes ou a sua intenção final por se preocupar em demasia com um pormenor.

Mas, como faria Descartes, Bouwsma não aceita que o argumento tenha como base um erro.

Bouwsma começa então por mostrar a forma de uma ilusão: “julguei que estava a ver um rato, mas não era um rato [...] era só uma bola a rolar pelo chão.”6 Logo de início, é feito um ponto muito fino: o passado de “julguei que estava a ver um rato” (quando falamos de uma ilusão) não é “julgo estar a ver um rato,” mas sim

“um rato!” Experimentamos alguma coisa da qual estamos certos, mas por alguma razão somos levados a duvidar; sendo que duvidamos, tentaremos confirmar ou negar a nossa posição - “afinal era só uma bola.” Logo, a forma da ilusão é certeza – dúvida – certeza.

Deste modo, podemos contar o que se passou a alguém, e o contexto de contar uma ilusão é:

“- Julguei que estava a ver (ouvir, cheirar, etc.) um cão morto deitado na estrada.

- O que é que viste? O que é que era?

- Era um casaco velho, castanho.

6 ADI, 67-69.

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- Como é que pensaste que era um cão morto?

- Enfim, estava escuro. Não conseguia ver com clareza.”7

Se pensarmos que sonhos são ilusões, então poderemos pensar que as mesmas perguntas fazem sentido. E de facto fazem sentido se a ilusão for dentro de um sonho, como Bouwsma propõe:8 ter esta mesma conversa, mas em que tudo o que é descrito foi sonhado. Bouwsma refere-se ao caso de ter uma ilusão dentro de um sonho: ver uma coisa, desconfiar do que se viu, confirmar que o não era, mas tudo dentro de um mesmo sonho. Por isso, aqui continuamos a falar de ilusões (ilusões dentro de sonhos, mas ilusões.) A possibilidade mais difícil é a de pensar o sonho como ilusão, e de pôr ao sonhador as questões que se puseram ao iludido:

“- Sonhei que estava a ver um cão morto deitado na rua. [...]

- O que é que era?

- O que é que era o quê?

- Aquilo que viste. [...]

- Não sei.

- E como é que não sabes?”

- Ouve, eu estava a dormir. E quando estou a dormir, durmo tão profundamente que estou muito pouco atento ao que se passa comigo...”9

7 ADI, 74. O diálogo é importante na procura de um caso de contexto original. A linguagem servirá principalmente para dizer coisas a outros, e quando não, para nos treinarmos a dizer coisas a outros.

Talvez seja por essa razão que Bouwsma “contextualiza” muitas vezes as expressões problemáticas em diálogos.

8 TSN, 78.

9 ADI, 78-79. Este excerto pretende mostrar que sobre sonhos não se segue a mesma conversa que se segue sobre ilusões.

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Aqui é muito importante perceber que “sonhei que estava a ver” corresponde a

“julguei que estava a ver.” E assim como o passado do último não é “julgo estar a ver,” mas sim o acto de ver ou “vejo”; então também o passado do primeiro não é

“sonho que estou a ver” mas sim o acto de ver (mesmo que no sonho.) Isto é, quando alguém diz “julguei que estava a ver” refere a um momento anterior em que via (de facto); e paralelamente, quando diz “sonhei que estava a ver” refere-se também ao momento em que estava a ver (mesmo que dentro do sonho).

Este é o momento em que a analogia falha. Mais, em que se vê que analogia não chega a funcionar; não pode funcionar. Porque há um passo na ilusão, nomeadamente a desilusão, que não acontece no sonho; nem tampouco o passo final de confirmação. Podíamos, contudo, dizer que ao acordar parecia que se estava a viver, mas isto não faria sentido. Olhemos para esta possibilidade: diríamos que sonhar é uma ilusão de estarmos a viver, mas então não há nada que se parecesse com uma determinada coisa, que tenhamos ido confirmar, e que agora vejamos que assim não era. Apenas estamos acordados, sonhamos, estamos acordados, e sonhamos; estamos sempre em tempos e condições diferentes e não há forma de o confirmarmos.10 Dito isto, há razões para que tal confusão aconteça – a forma como falamos de sonhos, em particular de certos sonhos muito vívidos.11

10 Sabe-se de um sonho que Descartes teve e que interpretou ainda a sonhar, que nos chegou pelo relato de um biógrafo. Descartes apercebe-se de estar a sonhar, e pensa sobre o que está a ver. Nem aqui há desilusão: continuou a ver a mesma coisa, apenas percebeu que estava num estado outro,

“alterado”.

Benton, John F., Descartes's Olympica, Philosophy and Literature, Volume 4, Number 2, Fall 1980, pp.

162-166

11 O escritor francês Raymond Queneau, na versão Sonho da sua história repetida diz: “parecia-me que tudo era nebuloso.” E como é que era? Era nebuloso. É a nossa maneira de falar de sonhos que

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Podia parecer, também, que esta diferença é entre a natureza do sonho e a natureza da ilusão, mas aquilo que Bouwsma faz é uma comparação do uso da linguagem no contexto de ilusões e sonhos. Bouwsma está preocupado em dizer que esta analogia, esta maneira de falar, só dificulta a percepção de cada um dos termos; que só se perde em usá-la. Mesmo a acreditar que esta análise revele alguma coisa da natureza de cada objecto12, começa por ser uma análise do contexto do uso da linguagem. E para pôr de parte todas as possibilidades, Bouwsma refaz a conversa tentando ao máximo encaixar nela o sonho; neste caso recorrendo às imagens do sonho. A introdução de uma imagem como aquilo que é sonhado pode dar força ao sonho como ilusão, “parecia-me ter visto um cão, mas era apenas a imagem de um cão.” A imagem é uma introdução que, como a própria analogia, não tem benefício nenhum. Se for impossível distinguir entre uma imagem de um cão e um cão, não ganhamos nada em falar da imagem como uma ilusão pois continua a não ser possível desfazê-la ou confirmá-la. Há ainda mais uma possibilidade: dizer que tudo o que vemos são imagens do que vemos, mas teremos oportunidade de olhar para este problema quando falarmos mais à frente do ensaio sobre Moore.

Pelo que se viu acima, poder-se-ia estar tentado a dizer que Bouwsma não aceita quaisquer analogias; e não é assim. É exactamente por aceitar algumas analogias que faz sentido rejeitar outras; e o critério não é formal (seria mesmo difícil

parece dar a entender que são parecidos a ilusões. Maneiras de falar próximas que são contudo enganosas. Queneau, Raymond, Exercices de style, Paris, France: Gallimard, 2003, p. 14.

12 Bouwsma estende-se mais sobre o tema num ensaio do mesmo ano “On Many Occasions I Have In Sleep Been Deceived” em Philosophical Essays (1965). Aí defende que, nos termos em que o problema é posto, é impossível provar que estamos a sonhar ou acordados: é impossível dar uma reposta, logo é impossível que seja um problema.

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pensar nalgum tal critério que não fosse demasiado restritivo ou demasiado geral13.) Bouwsma considera que o significado de uma metáfora é de maior importância14, como veremos na secção (c) deste capítulo, e por isso não pode permitir que qualquer metáfora faça sentido. O significado de uma metáfora não é a sua paráfrase ou o seu desenrolar, mas parece que estes são condição necessária para os usarmos – se não pudermos fazer nada com a metáfora, ela de nada serve. Só com esta ressalva é que se pode continuar a desenrolar uma metáfora e vice-versa. Este é o primeiro aspecto; o segundo, e que se segue do primeiro, é o do uso abusivo. O perigo de pegar numa analogia e continuar a usá-la para aquilo que não pode ser usada. Bouwsma explica muito bem esta ideia no seguinte parágrafo:

“Se se tentar perceber sonhos por analogia com ilusões (i.e., com “sonhos são ilusões”), que mais é que se poderá dizer? Se se tentar perceber desejos por analogia com cavalos, chegar-se-á a sprinters e cavalos de trote no modo optativo.

Mas, talvez, não se deva espreitar para a boca de cavalos-desejos.”15

A expressão a que Bouwsma se refere aparece no início do ensaio, “se desejos fossem cavalos, os pedintes montariam”.16 Esta analogia tem um seguimento porque é uma “falsidade evidente;”17 “sonhos são ilusões” não. Talvez

13 Por hipótese, a distância entre os dois termos. Se os termos são muito diferentes, muito distantes em grau, então não podemos aceitar a analogia. Próximos em grau seria uma analogia matemática e uma distante seria a que compara desejos e cavalos.

14 Aqui uso os termos analogia e metáfora para dizer a mesma coisa, dado que a uma metáfora corresponde uma analogia.

15 ADI, 83. “If one is to try to understand dreams by analogy with illusions (i.e., with “Dreams are Illusions”), what else is one to say? If you try to understand wishes by analogy with horses, you will come upon sprinters and trotters in the optative mood. But, perhaps, one should not look wish-horses in the mouth.” ADI, 83.

16 “If wishes were horses, beggars would ride.” ADI, 61.

17 São, como diz Donald Davidson, “blatant falsity”. São tão declaradamente falsas que não se tentará fazer com elas o que se faria com uma frase com sentido; mesmo que falsas, não deixam de ter um

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até mais correctamente: percebemos que “desejos são cavalos” tem o seu uso desacreditado; já “sonhos são ilusões” pode ser problemática se não for posta no seu lugar, que é ao lado de “desejos são cavalos”: ainda com as desvantagens de ter uma natureza confusa (uma metáfora disfarçada de não-metáfora) e de não ter piada. Assim, aparece um problema que preocupa Bouwsma: o que é que se faz com analogias que parecem não o ser? Ou, o que é que se deve fazer quando alguém começa a tratar uma analogia como se o não fosse? Pode-se também aqui, sem querer, levantar um novo problema e entrar na discussão de perceber o que é que é e não é uma analogia. Bouwsma responde sem se comprometer com uma definição:

cria novas analogias e põe-nas ao lado da analogia que é problemática. Fica implícito o evitar de comprometimentos sobre a natureza da linguagem, o foco é na impossibilidade de uso de uma expressão que não é o que parece.

É importante, contudo, distinguir bem entre contexto e a criação de outras analogias. Dizer que as analogias que iremos encontrar nos próximos ensaios são “o contexto original da expressão” é esticar demasiado o sentido de contexto original;

são criações novas para aquele propósito.

uso. Davidson, Donald. “What Metaphors Mean.” Critical Inquiry, vol. 5, no. 1, The University of Chicago Press, 1978, pp. 31–47.

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b) “Criar analogias apropriadas de modo a tornar as ideias de outros claras”

Este pressuposto é muito caridoso para com Bouwsma porque assume que a sua criação de analogias é para a compreensão daquilo que lê. A criação de analogias segue-se à não compreensão de um determinado enunciado; contudo, na maior parte das vezes esse enunciado nunca chega a ser compreendido – pelo contrário, as novas analogias mostram que não pode fazer sentido. Por outro lado, não podemos dizer que o esforço da escrita não seja o de compreensão – é normal pensar-se que quem vai escrever sobre alguma coisa tem já uma ideia e uma inclinação sobre esse assunto, mas muitos dos cadernos de Bouwsma mostram que ele os usava para tentar desenvolver os problemas com o objectivo de os compreender. O primeiro ensaio que veremos nesta secção é um claro caso disso:

vê-se que o trabalho está a ser feito ali, e vêm-se as repetidas tentativas.18 Foi possivelmente lido algures, não sabemos, e Bouwsma continuou a escrever notas subsequentes depois de o já ter acabado.

O ensaio tem uma particularidade que deve ser realçada, chama-se “Meaning ... is ... Use” (Significado ... é ... Uso)19 e tem como tema o significado; mais

18 Veremos mais à frente como Bouwsma muitas vezes difere de Wittgenstein quando não tenta reavivar um problema e continuar um problema para o “perceber,” mas para terminar a conversa – demonstra o não sentido de uma expressão e acaba. Este ensaio “Meaning ... is ... Use” talvez seja dos que mais se aproxima da atitude de Wittgenstein, provavelmente por ser um tema Wittgensteiniano e uma defesa positiva de uma ideia.

19 MIU, Toward a New Sensibility, 1982.

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precisamente, a ideia Wittgensteiniana de significado como uso. Pode parecer difícil e demasiado intrincado quando um exemplo de como trabalhar a linguagem é ele mesmo, de alguma forma, sobre a linguagem. Contudo, isto pode ser uma vantagem:

o exemplo fala daquilo que exemplifica e assim, com sorte, poderá dar-nos uma ideia mais completa. E tem ainda outra particularidade, pertence ao mesmo conjunto que o anterior: Failures – este é Failure II. Mas aqui o esforço não é o de demonstrar que não faz sentido aquilo que Bouwsma já pelo menos intuía que não faz sentido. Neste caso, há um esforço real para tentar compreender a intuição de que o significado de uma palavra é o seu uso na linguagem. As falhas neste ensaio são precisamente as versões desta teoria que não são as que Bouwsma quer; é aqui que aparece a técnica: várias possibilidades são apresentadas ao lado da verdadeira e espera-se assim perceber o que é que esta quer dizer (por oposição.) Há um exemplo em particular que é bastante útil e que traz à discussão problemas sobre a analogia que serão discutidos mais à frente: a analogia entre o uso de uma palavra e o uso de um parafuso.

Bouwsma começa por tentar explicar em que é que não consiste “significado como uso,” e para isso apresenta um leque de possibilidades distintas da sua ideia.

O primeiro caso é o de quando não se conhece o significado de uma palavra – o que nos impede de receber ordens, verificar aquilo de que se fala, etc.; dizer “traz-me uma orquídea” a quem não sabe o que é uma orquídea. Em suma, que não saiba fazer coisas com aquela palavra. O “significado de uma palavra é o seu uso na linguagem” não pode substituir simplesmente “significado de uma palavra.” Não podem ser duas formas de dizer a mesma coisa: a primeira é usada num contexto muito particular e a segunda ainda é demasiado genérica. Significado como uso tem

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que ser outra coisa. Também não é, obviamente, o significado agarrado à palavra, ou com uma ligação única, como o referente20. Nem tampouco a ideia ostensiva de que apontando, a coisa apontada (que nos dá a conhecer o significado) é o seu uso – porque o uso não está explicito na coisa, está também nas estruturas que já conhecemos.

O significado como uso – positivamente – é o que permite seguir na linguagem. Inclusive seguir por caminhos diferentes com um mesmo significado;

caminhos nos quais não estávamos a pensar quando aprendemos o significado da palavra. Ao contrário das possibilidades que “começam com algumas ideias de significado tirado da superfície das explicações comuns, e, ingenuamente certos disso, avançam para acomodar a nossa visão de linguagem a isso.”21 Esta possibilidade parte do uso da linguagem e eventualmente chega a uma ideia.

Há ainda uma possibilidade que Bouwsma rejeita e que requer atenção, a visão funcionalista. Se cada palavra tem uma função, ou várias, então o seu uso é cumprir essa função. “Acordámos todos” que teria determinada função e ficamos com esse uso. A analogia de que quero falar é importante aqui. É aquela que liga o significado de uma palavra e um parafuso. Assim como a palavra tem o seu uso na linguagem (que não é o mesmo que significado), o parafuso tem o seu uso no mundo – que costuma ser limitado, mas o “errado” é ilimitado! A versão do parafuso está mais próxima da ideia ostensiva: a alguém que não perceba para que serve um

20 Por poder ser mal-usada e mesmo assim usada como veremos à frente.

21 MIU, 100. “begin with some ideas of meaning skimmed of the surface of common explanations, and, naively sure of this, to go on to accommodate our view of language to this”.

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parafuso, é-lhe mostrado um parafuso a apertar alguma coisa e percebe como se usa.22 Para uma palavra, tem de ser mostrado de alguma forma como é que se pode usar. Ou não. Pode-se simplesmente intuir um uso e fazer coisas com ele; usar de forma errada. Um misto destes dois casos é o uso metafórico. Aqui há um ponto importante no limite da analogia. Um parafuso não tem uso metafórico.23 O interessante disto é que na justaposição de palavra e parafuso se poder perceber aquilo que não tem paralelo – e aqui parece haver um ganho cognitivo.

É também de notar, pelo estilo, a forma como Bouwsma apresenta este caso.

A analogia entre não conhecer o significado de uma palavra (orquídea, neste caso) e não conhecer o uso de um parafuso. O parafuso é mostrado com a porca; quanto à

“orquídea,” é mostrada uma orquídea (que se percebe que é uma flor, que pode ser usada em determinadas ocasiões, etc.) Diz Bouwsma: “Esta é uma parte do contexto segundo o qual se pode ver como a explicação funciona. Porca-Parafuso;

“orquídea”-orquídea; perceber estas conexões pressupõe que haja uma expansão da vizinhança (surroundings) em cada caso.”24

Numa das últimas notas, Bouwsma faz um reparo interessante. Pode-se compreender todas as palavras sem compreender o sentido da frase. Compreender todas as palavras, e eventuais sentidos da frase, mas sem perceber se se está a falar a sério ou a brincar – sem perceber o tom. Este é igualmente um caso de “expansão da vizinhança.” Compreender o significado de todas as palavras não garante a

22 Vamos aqui assumir que esta demonstração tem sucesso.

23 MIU, 112.

24 “This is a part of the background in terms of which one may see how the explanation works. Nut- bolt; “orchid”-orchid; understanding these connections presupposes expanses of surroundings in each case.” MIU, 109.

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compreensão do sentido de uma frase e vice-versa. Mas quanto mais sabemos das palavras, das pessoas, e do contexto, mais possibilidades temos de caminhos a seguir, “uma palavra por si só não tem significado.”25 Nem tampouco uma proposição fora de contexto, onde se aproxima de uma ideia de Wittgenstein no parágrafo 142 em Da Certeza: “Não são os axiomas isolados que me parecem óbvios, é um sistema em que as conclusões e as premissas se apoiam mutuamente.26

Uma ideia espectável é de que o pensamento de Bouwsma tenha mudado radicalmente depois de conhecer Wittgenstein e a sua obra, e não é errada. Por outro lado, e como nota Hustwit27, as ideias principais (e mesmo as técnicas!) que veio a aprimorar estavam já presentes nos seus primeiros trabalhos. Um exemplo disto é o ensaio “Moore’s Theory of Sense-Data”28 escrito em 1942 (o ensaio anteriormente analisado, escrito 1957, é de uma altura em que Bouwsma já conhecia muito bem o trabalho de Wittgenstein, inclusive as Investigações Filosóficas; em 1949 teria tido apenas contacto com o Tractatus pelo qual não se interessou muito). Também aqui se encontra a técnica de justaposição de uma expressão/acção ininteligível com casos análogos que fazem sentido.29

25 “A word by itself has no meaning.” MIU, 107.

26 Wittgenstein, Ludwig, Da certeza, Costa, Maria Elisa, Lisboa: Ed. 70, 1998, §142

27 Introdução às John Locke Lectures. “Quando se pensa nestas John Locke Lectures como precedendo a publicação das Investigações Filosóficas de Wittgenstein e o subsequente trabalho de anos no qual Bouwsma se dedicou a compreender este trabalho, poderia pensar-se que as prelecções (lectures) seriam um entendimento preliminar e imperfeito daquilo que Bouwsma viria a perceber tão bem. Mas tenho abandonado esta ideia ao prepará-las para publicação.”

28 MTS, Philosophical Essays.

29 Podemos dizer que a diferença desta técnica b) para a primeira técnica a) é de que a análise já não é feita só ao nível da linguagem – da sua ocorrência ou não em contextos normais – mas da acção toda – uma separação que talvez deva ser feita com cuidado dado que o acesso a qualquer coisa é feito através de descrição, de linguagem.

(25)

O problema em questão são os dados dos sentidos (sense-data) e a citação analisada é o excerto famoso onde Moore usa como exemplo a mão direita. O objectivo de Bouwsma, mais uma vez, não é o de refutar alguma teoria de Moore, mesmo que pareça desconfiar bastante da ideia de dados dos sentidos.30 Existe apenas qualquer coisa no excerto de Moore que não faz sentido. O excerto é, no fundo, constituído por uma série de directrizes, as quais, se seguidas, têm como resultado encontrar um dado dos sentidos. Quando tenta fazer o percurso proposto por Moore, Bouwsma dá a entender que se baralha e que não consegue chegar ao resultado (resta saber se Moore esperava que alguém seguisse as suas pistas.) Assim, num esforço de compreensão (eventualmente de compreender porque é que não compreendeu,) Bouwsma propõe uma série de casos análogos nos quais são dadas pistas que levam a um objecto concreto, e nas quais é sempre evidente o desencontro com aquilo que é pedido por Moore. Reproduzo primeiro o excerto de Moore:

“E de modo a mostrar ao leitor o tipo de coisas a que me refiro como dados dos sentidos (sense-data), preciso apenas de lhe pedir que olhe para a sua mão direita. Se fizer isto, poderá escolher uma coisa (e a não ser que esteja a ver a dobrar, uma só coisa) em relação à qual verá que é, à primeira vista, uma visão natural, que essa coisa seja idêntica, não exactamente, a toda a sua mão direita, mas àquela parte da superfície que se está de facto a ver; mas também será capaz (depois de alguma reflexão) de perceber que é duvidoso

30 Grande parte dos ensaios de Bouwsma criticam, não cépticos, mas as refutações feitas aos cépticos; mostrando como estas são momentos embaraçosos por nem refutarem nem fazerem sentido.

(26)

que possa ser idêntico à parte da superfície da mão em questão. Coisas do tipo (num certo sentido) de que esta é parte, que alguém vê ao olhar para a sua mão, e em relação à qual pode perceber como é que alguns filósofos possam ter suposto que era a parte da superfície da mão que ele está a ver, enquanto outros supuseram que não pode ser, são aquilo a que me refiro como dados dos sentidos (sense-data). Defino, por conseguinte, o termo de uma tal maneira que é uma questão em aberto se um dado dos sentidos (sense-datum) que eu vejo agora ao olhar para a minha mão e que é um dado dos sentidos (sense-datum) da minha mão, é ou não é idêntico àquela parte da superfície que vejo agora.”31

Resumirei brevemente as indicações de Moore: é proposto ao leitor que olhe para a sua mão direita e que daí escolha algo; essa coisa é idêntica, não com toda a mão, mas com a parte da superfície da mão que está a ver; depois de alguma reflexão, verá que não consegue ter a certeza de que aquilo que vê é idêntico à parte da mão em questão. (Este é um caso de um dado dos sentidos e é isto que traz dúvidas aos filósofos – se esta tal coisa que se escolheu é ou não idêntica à superfície da mão.) A forma é mais sucinta é: escolher (uma coisa/parte da mão); perceber que é idêntica (com aquilo que está a ver); ficar na dúvida se é idêntico.

Daqui se segue a tentativa de solução de Bouwsma, em várias partes, onde nunca consegue seguir as indicações. A estrutura da solução é: uma série de pequenas analogias para cada uma das partes (cada uma das acções) e, depois,

31 MTS, 1-2.

(27)

uma analogia para o todo – uma que resolveria o todo, mas que mesmo assim não é possível. Bouwsma começa por notar que há algo de estranho na primeira pista:

“deve-se escolher algo; e quando se escolhe algo, escolhe-se dentro de várias possibilidades e há um resto. Por exemplo, se da mão se escolher uma parte, o nó dos dedos, não se escolhem as veias, as unhas, etc. Isso é uma parte da mão que se escolhe deixando de fora as outras; porém, não é isto que Moore quer. Moore pede que se escolha uma coisa que é idêntica a “a toda a sua mão direita.”

Em segundo lugar, é pedido que o objecto seja idêntico àquilo que escolhemos, o que também parece problemático. Podem-nos pedir para tirar dois objectos de um saco, e percebemos que existem dois que são idênticos; mas temos os dois em separado, podemos pô-los lado a lado. Também não é isso que Moore quer. Aquilo que quer é uma coisa que é idêntica à mão (talvez uma imagem que estaria sobre a mão, mas não é claro.32) Mais precisamente, uma coisa que é idêntica à parte da mão que se está a ver.33 O que se escolhe deve ser idêntico à superfície da mão sem que se tenha a certeza disso. Um polegar é uma hipótese: da minha mão direita escolho o polegar, se por acaso duvido que aquilo que escolhi é o polegar, que aquilo para que olho (se é isso que aqui é escolher) é o polegar, a dúvida cessa eventualmente;

há uma possibilidade de confirmação. Também não é isto que Moore procura porque na sua versão ficaríamos para sempre na dúvida.

32 Assemelha-se ao problema que vimos no caso das imagens dos sonhos na primeira parte.

33 Este tipo de situações, que aliás já tinha sido encontrada quando Bouwsma mostra aquilo que entende por “significado é o uso” por oposição a outras visões, é um problema frequente na filosofia:

alguma coisa de que se fala que é totalizante e não tem um oposto que a destaque.

(28)

Com algum suspense retórico – substituindo “dados dos sentidos” por outra expressão que só revela no fim – Bouwsma propõe uma analogia para o todo depois das pequenas analogias para cada uma das partes, uma analogia final que resolveria o todo e que merece a pena transcrever:

“E de modo a mostrar ao leitor o tipo de coisas a que me refiro como ----, preciso apenas de lhe pedir que olhe para a mão direita do cozinheiro. Se fizer isto, poderá escolher uma coisa em relação à qual verá que é, à primeira vista, uma visão natural que essa coisa seja idêntica, não exactamente, a toda a mão direita do cozinheiro, mas àquela parte da superfície que se está de facto (?) a ver; mas também será capaz (depois de alguma reflexão) de perceber que é duvidoso que possa ser idêntico à parte da superfície da mão em questão. Coisas deste tipo, que o leitor vê ao olhar para a mão do cozinheiro, e em relação à qual pode perceber como é que alguns visitantes da cozinha possam ter suposto que era a parte da superfície da mão em questão, enquanto outros supuseram que não pode ser, são aquilo a que me refiro por luvas de borracha.” 34

34 MTS, 5. “And in order to point out to the reader what sort of thing I mean by ---, I need only ask him to look at the cook's right hand. If he does this he will be able to pick out something with regard to which he will see that it is at first a natural view to take that that thing is identical not indeed with the cook's whole right hand, but with that part of its surface which one is actually (?) seeing but will also (on a little inspection) be able to see that it is doubtful whether it can be identical with the part of the hand in question. Things of the sort of which this thing is, which he sees in looking at the cook's hand, and with regards to which he can understand how some kitchen visitors should have supposed it to be the part of the surface of the cook's hand at which he was looking, while others have supposed that it can't be, or what I mean by rubber gloves.”

(29)

Esta analogia da proposta inicial substitui, por completo e com sentido, o pedido inicial de Moore. Ao lado de um pedido estranho, Bouwsma coloca outro (e no resto do ensaio outros ainda) que seriam perceptíveis, que seriam plausíveis, e dos quais podemos pensar, sem grande suspeita, que aconteceram.

Não obstante, há que notar uma parte importante de todo o processo. Parece que Bouwsma se está a fazer de desentendido quando fala das instruções que Moore dá. De facto, imagina-se que perceba do que é que se está a falar; que conhece o problema e os meandros da discussão sobre os dados dos sentidos. Por outro lado, e como dizem bem Hustwit e Craft, “[o] que outros atravessaram com entendimento fosco, ele aprendeu a não conseguir perceber. E daí os intermináveis desvios e as estradas secundárias, a recusa de fingir estar numa auto-estrada larga e aberta.”35 Mais ainda, o próprio Bouwsma diz no fim do ensaio que não pretende que isto seja uma refutação e que aliás continua cheio de dúvidas. O seu objectivo principal é “deixar as coisas claras.” Outra forma de o fazer é a que veremos a seguir.36

35 Introdução de Toward A New Sensibility, p. xvii. “What others pass over in dull understanding, he has learned to fail to understand. And so the endless detours and secondary roads, the refusal to pretend to be on the straight and open highway.”

36 MTS, 20.

(30)

c) “Procurar o motivo ou a causa mais profunda da ideia de um filósofo”

Hustwit, na citação acima, está a pensar no comentário que Bouwsma faz a filósofos. Interessantemente, nos exemplos de que vou falar a seguir nenhuma das expressões vem de um filósofo – no sentido de filósofo conhecido; são casos de alunos seus ou simplesmente casos hipotéticos. Estes casos parecem revelar mais sobre a natureza da linguagem do que sobre os maus hábitos dos filósofos porque são sempre de difícil acesso. Por outro lado, onde o assunto é mais difícil, os hábitos dos filósofos ficam a nu.

Aqui, então, gostava de trabalhar o lado inverso da primeira técnica – e até certo ponto da segunda. São os casos em que um determinado termo funciona sem problemas, e nos são apresentados os casos correntes do uso de um termo. Um termo que funciona no uso comum e funciona em analogias. Em que nenhum dos exemplos que Bouwsma refere é problemático. Contudo há uma tendência que é problemática: a de tentar definir o termo – não no sentido de substituição em que se explica o significado ou se dá um exemplo, mas de dizer metafisicamente o que é. A tendência de identificar a coisa, dizer onde ela está.

Os dois exemplos são significado e tempo:

(31)

“Mas nunca ninguém ouve ou vê os significados – interrogador e interrogado, como dois mágicos, que não percebem os seus próprios truques.”37

“O significado não é separável e não está escondido…. Nem é a linguagem e o seu significado como o gato e a sua pata, ou como o gato e taça de leite, mas certamente mais como o gato e o seu sorriso ou o gato e o seu caçar-ratos. O que é o caçar-ratos de um gato? O que é o significado de uma palavra”38

Nestes casos vemos o diagnóstico do erro: por muito que falemos de significado será difícil encontrá-lo, dizer onde ele está. Mas é ao falar de tempo que Bouwsma mostra o que motiva o erro, e para isso tem de recorre a analogias:

“… o caso simples de um homem que não sabe o que o tempo é… aproxima- se do relógio com uma fita-métrica à espera de encontrar vagamente alguma coisa como linóleo [como o cientista], e aproxima-se com a indecisa expectativa de que o relógio trabalhe como um medidor de água, e que por ele passe algo como água.”39

“Esta confusão da linguagem [descobrir linóleo e medir a passagem de água vs.

encontrar ou medir tempo] dá azo a situações como quando uma rua que nos é familiar num determinado bairro nos leva, sem que tenhamos noção disso, a um bairro que é muito diferente.”40

37 MIU, 92. “But no one ever hears or sees the meanings – asker and answerer, like two magicians, who do not understand their own tricks.”

38 WIM p.58 “The meaning is not separable and is not hidden... Neither is the language and its meaning like the cat and its foot, or like the cat in its saucer of milk, but certainly more like the cat and its smile or the cat in its mousing. What is the mousing of the cat? What is the meaning a word?”

39 “The Mistery of Time”, Philosophical Essays, 1965. pp. 106-107

40 Ibidem, 107-108.

(32)

É surpreendente que use analogias para falar dos temas de difícil acesso, dificilmente identificáveis (significado, tempo); mas, pelo contrário, isto revela a natureza destes

“objectos.” Só são acessíveis indirectamente – por analogia.

Esta prática é também a mais autocrítica. Aqui Bouwsma diz, “eu percebo aquilo que estás a fazer, mas não dá sequer para fazer isso. É da nossa condição de filósofos fazer este tipo de coisas, mas isto só serve para divagar – tem atenção!”

Em contrapartida, para chamarmos a esta técnica uma técnica, esperaríamos mais do que simplesmente dizer: não se pode fazer, porque não se pode. O que é legítimo, mas não é um argumento nem tão pouco é uma técnica: não há nenhum tipo de pergunta que possamos fazer que nos possa ajudar a chegar à conclusão de que estamos perante um tal caso, não há nenhum procedimento de diagnóstico. O que se pode esperar da técnica é que ela nos mostre o que fazer quando percebemos que é isto que está a acontecer, quando estamos à procura de encontrar uma coisa que usamos e não vemos. Não pode identificar por nós quais os casos. Para isso, teremos de estar atentos. No capítulo seguinte tentarei falar das vantagens e limites do método e de como se pode eventualmente aprendê-lo – como se pode aprender a estar atento.

(33)

II – Sobre a Filosofia

Depois de termos visto os exemplos práticos da análise de Bouwsma, exploraremos neste capítulo a visão que tem sobre a filosofia. Para isso analisar-se- á a recensão que fez ao Blue Book de Wittgenstein41 (face ao qual se percebe a sua própria posição) em contraste com o ensaio de Gordon Baker sobre o método Wittgensteiniano. Para Bouwsma é mais importante o lado terapêutico; para Baker importam as diferentes perspectivas perante um problema, as “representações perspícuas.” Na primeira parte do capítulo trata-se dos pontos em que os dois estão de acordo, e de seguida aqueles em que estão em desacordo; no fim exploram-se as ideias que têm sobre aprendizagem.

Bouwsma e Baker

No primeiro ensaio do livro Wittgenstein’s Method: Neglected Aspects42 Gordon Baker apresenta duas ideias contrastantes sobre aquilo que é a

“representação perspícua” de Wittgenstein. A primeira ideia é muito concreta:

consiste numa representação, sucinta e facilmente apreensível43, da gramática da linguagem; ao passo que a segunda, a que Baker defende, não tem um caracter tão restritivo. Para este propósito focar-me-ei apenas nesta última visão (mais lata) de Baker e será doravante aqui referida simplesmente como a “visão de Baker.”44 Interessa pensar nesta visão sobre o trabalho de Wittgenstein porque está muito

41 [BBB] “The Blue Book [de Bouwsma]”

42 Baker, Gordon, Wittgenstein's Method: Neglected Aspects, 2004.

43 Neste sentido, os memes podiam ser um bom caso contemporâneo.

44 O resumo de Baker aqui apresentado diz respeito exclusivamente às ideias presentes neste ensaio.

(34)

próxima da de Bouwsma (do método de Bouwsma). Contudo, por ser diferente, deixa-nos com mais clareza ver qual é a visão de Bouwsma quando contrastada com a de Baker.45 Devo deixar claro que entendo a ideia de apresentar uma

‘representação perspícua’ como parte integrante (instrumento) do ‘método filosófico’

de Bouwsma e de Wittgenstein; assim tomo as duas expressões como referindo a mesma coisa.

No final do ensaio, Baker faz um resumo (metafilosófico) da sua visão de representações perspícuas. Ao contrário da descrição que fiz acima do método de Bouwsma, esta descrição daquilo que Wittgenstein faz não se prende com o modo como é feito o seu trabalho – com uma descrição daquilo que está a acontecer – prende-se antes com: os casos a que se aplica; a natureza do trabalho; os requisitos do trabalho filosófico. É deste resumo que saem os pontos de comparação aqui usados.

Começo pelos pontos em que estão de acordo, e em primeiro lugar pelo lado de Baker:

Até os componentes de uma representação perspícua da “gramática da nossa linguagem” não têm de ser descrições do uso de símbolos da “nossa linguagem”. Podem ser “centros de variação” para dadas descrições do uso das “nossas palavras” (LPP 25); ou podem ser descrições de diferentes jogos de linguagem (até dos que têm uma aparência absurda (BB 28)) que podem

45 É ainda de notar que o trabalho filológico de Baker está muito além daquilo que Bouwsma fez na recensão de um livro. Porém, não parece que um conhecimento filológico de Wittgenstein fosse levar Bouwsma a conclusões diferentes – tendo Bouwsma a vantagem de ter conhecido Wittgenstein.

(35)

servir como objectos de comparação de modo a que possamos ver as coisas de forma diferente (ou mudar a nossa maneira de olhar para as coisas (PI

§144)).46

A grande novidade desta ideia é que tudo pode ser usado para chegar a um ponto.

Podemos mostrar qualquer ponto filosófico usando material que não tem de ser a descrição daquilo que estamos a tentar mostrar. Isto pode levar a algumas reacções dentro da filosofia. Bouwsma, por sua vez, diz que quem ler o Blue Book pode fazer uma reclamação contra o tratamento que está a ser feito, “[estas questões] não são tratadas de maneira filosófica.”47 Daí esta ser uma grande novidade, uma nova forma de fazer filosofia – tão diferente, que por alguns nem é tomada como filosofia. Aquilo que está a ser feito não é o trabalho comum de um filósofo, se entendermos isso como o trabalho de defender algumas teorias e atacar outras; aqui o importante é conseguir ter uma perspectiva (uma visão) diferente do problema.

Mais tarde perceber-se-á que Baker e Bouwsma distam no objectivo final deste trabalho, mas antes disso devemos olhar ainda para uma advertência que partilham:

“Claramente, não é necessário que exista uma representação perspícua que resolva simultaneamente todos os problemas filosóficos nos quais as pessoas possam naturalmente cair ao reflectirem sobre “o uso das palavras”. [...] A respeito de cada aspecto particular, é um esforço criativo (não um processo

46 PI:NA, 42.

47 BBB, 181.

(36)

mecânico) levar outro a percebê-lo, e é uma tarefa de persuasão (não uma prova demonstrativa) conseguir que outro veja as coisas de modo diferente.”48 Bouwsma também está de acordo com este ponto. Este trabalho é constante, porque é preciso encontrar uma solução para cada problema; talvez até para cada ocasião em que se olha para o mesmo problema seja preciso encontrar uma forma nova de abordar o problema. Umas das ideias mais famosas faz sentido ser aqui referida, e onde se fala da analogia condutora (leading analogy, por oposição a analogia enganadora – misleading analogy): “Podemos, então, perceber que essa frase (a analogia condutora) se destina a ajudar-nos a mudar de perspectiva: “Uma vez atingida a mudança, a frase, como a escada, não tem qualquer uso.”49 Esta noção aparece no ensaio de Bouwsma como conclusão da discussão do tema de que Baker fala aqui.

O problema em questão é o de cristalizar certas frases, que seriam utilizadas somente como “escadas”, e fazer delas definições. Bouwsma dá dois exemplos:

“Mas se tivéssemos que nomear qualquer coisa que seja a vida do sinal, deveríamos ter de dizer que é o seu uso.”50 e “está tudo bem com a linguagem corrente.”51 A partir do momento em que se cristalizam estas frases e são tomadas como definições, começam a surgir problemas (não deixa de ser irónico que estas frases estivessem a tentar destruir o tipo de problemas nos quais acabam por se transformar.) O que acontece é que “o contexto imediato da frase é ignorado e a

48 PI:NA, 44.

49 BBB, 198.

50 Ibid., 196.

51 Ibid., 198.

(37)

frase é entendida como estando a expressar uma qualquer teoria filosófica.”52 Daí seguem-se as confusões do costume: de repente “existem filósofos da linguagem corrente” (ordinary language philosophers). Quer-se saber o que é que é a linguagem corrente, e se é de facto uma linguagem, e como é que isso se decide sem primeiro se descobrir o que uma linguagem é,”53 etc. Esta confusão inicial espoleta uma série de outras questões sem interesse, precisamente por se basearem numa confusão:

levar à letra uma analogia. O trabalho filosófico é, assim, uma constante alteração, não a procura de bases sólidas a partir das quais se construa.

Baker diz que não é necessário que uma representação seja uma descrição geral da linguagem, logo uma definição, mas admite, por isso, que se possa fazer sentido de definições. Bouwsma só aceita, relutante54, a possibilidade da definição se for um certo tipo de definição. Não poderá ser como uma definição de facto, uma descrição final e completa da realidade. Se a ideia de “uso como significado”, por exemplo, for uma ideia fixa e repetida, então a pessoa que a usa terá de ter consciência de que se trata de uma analogia, de uma “representação perspícua”. E neste caso cumprirá dois propósitos, o de iluminar uma certa característica da linguagem e de nos impedir de cair na escravidão de uma analogia enganadora (misleading).

52 Ibid. É importante a distinção entre contexto imediato e contexto original.

53 Ibid. É de notar o ensaio de Bouwsma sobre o tema: “The terms of ordinary language are…”

54 Admite mesmo que esteve muito tempo equivocado com a questão do “uso como significado”, como exemplo. Muito provavelmente, as referências a este problema no primeiro capítulo são da fase em que Bouwsma ainda não está totalmente certo de como tratar este enunciado. Wittgenstein dá-o como uma definição, ou pelo menos como algo muito parecido (com aspecto de definição).

(38)

Na última frase do parágrafo de Baker supracitado, este fala de um ponto importante igualmente importante para Bouwsma. Levar alguém a ver as coisas de modo diferente é um “esforço criativo (não um processo mecânico)” e uma “tarefa de persuasão (não uma prova demonstrativa)”. Na verdade, a ideia de método de que tenho vindo a falar deve ser vista de modo pouco estrito, são apenas uma série de práticas que se repetem. Bouwsma também encontra um certo método no trabalho de Wittgenstein ao recensear o Blue Book, mesmo que nele exista “loucura, talvez, mas pouco método”55 São três ideias “estranhas, novas e difíceis:”56

1. “Primeiro, o autor procura avivar o sentido de estranheza (sense of the queer) [...] Podem-se inventar questões em que a estranheza é fortíssima como uma explosão [...] Pode-se precisar de um tipo de estranheza que sussurre, quase inaudível, o suficiente para a matiz certa.”

2. “Em segundo lugar, o autor está preocupado em apresentar o significado daquelas expressões que estão relacionadas com o caso particular, e em especial aquelas que são relevantes para mostrar não a estranheza em si, mas as suas origens, as suas raízes.”

3. “Terceiro, o autor tenta desvelar a “analogia enganadora” [...] para mostrar a falta de sentido (non-sense) – o desvio do sentido – e explicar a ilusão de sentido.”

55 BBB, 178. “Madness, perhaps, but little method!” A minha implicação aqui é de que a visão que Bouwsma tem do método Wittgensteiniano é também a que tem do seu próprio trabalho filosófico.

56 Ibid., 194.

(39)

Ao contrário dos pontos que apresentei no primeiro capítulo a partir da descrição de Hustwit, Bouwsma fala aqui de fases de um processo. É uma visão cronológica do método e salienta aquilo que está a acontecer em cada fase: “e usei intencionalmente

‘fases ou ‘momentos’ para evitar o erro de se supor que se podia traçar uma linha entre eles.”57; ao invés de ter o foco nas “técnicas” diferentes. Há também uma salvaguarda importante: estas fases não são necessariamente nesta ordem e nada diz que possam ser simultâneas. Mais uma vez, é um esboço do trabalho que ajuda a entendê-lo e eventualmente a aprendê-lo.58

Esta é a descrição positiva do método feita por Bouwsma, e que torna mais completa aquela que vimos no primeiro capítulo, mas interessa perceber aquilo que Bouwsma vê como as dificuldades do método. Uma dessas dificuldades prende-se com o primeiro ponto: se por um lado, mostrar a estranheza do problema é feito pela aproximação de duas frases, nada garante que uma segunda frase estranha revele a estranheza de uma primeira. Por exemplo, pode-se achar estranha a frase “uma máquina com uma dor de dentes”, sem que isso altere o estatuto da frase “uma máquina que pensa”. No fundo, Bouwsma fala da rejeição de uma analogia: por muito boa que consideremos a nossa analogia, o nosso interlocutor pode achar que ela não funciona. É por isso que este trabalho tem criatividade e persuasão, e deve

57 BBB, 187.

58 A sistematização das práticas filosóficas destes dois autores terá como maior benefício a sua assimilação, o que não exclui a necessidade de contacto com a obra original. Pode, por exemplo, servir como lembrança e como sugestão do caminho a seguir, mas para caminhar daquela forma é preciso tê-la visto. A sistematização é uma ajuda e é essa a tarefa da qual Bouwsma se incumbe:

“Muito bem, então também eu sou um ajudante”. “Very well, then, I too am a little helper.” BBB, 177.

(40)

ser recriado em cada caso. Neste sentido, não é uma teoria que está “certa” ou acabada.

No entanto, há uma solução para que este trabalho não se torne fútil ou um mero trabalho de persuasão; a pedra de toque está na descrição da segunda fase, quando Bouwsma diz que é preciso apresentar “tanto do significado quanto for preciso para aquele que for o propósito.”59 Atingir o propósito desejado dirá sobre a capacidade da analogia60. Mesmo que Baker e Bouwsma partilhem os meios, distam no objectivo último desta tarefa. Diz Baker:

“Que uma representação seja perspícua não se deve ao facto de ter uma determinada característica intrínseca (e.g. poder ser apreendida num só olhar, ou ser facilmente reproduzível), mas caracteriza o seu papel ou função.”61

“[Representações perspícuas] podem servir como objectos de comparação para nos persuadir a ver as coisas de forma diferente (ou para mudar a forma como olhamos para as coisas.)”62

59 Ibid.

60 O ensaio “Wittgenstein on Metaphysical/Everyday Use” de Baker é um caso de representação perspícua: é a partir de uma aberração que nós percebemos o que é o nosso normal. A ideia pouco comum de que é a partir do uso metafísico de linguagem que percebemos o uso corrente. O uso corrente é-nos tão familiar que não o podemos ver. Chegámos a uma confusão, e esta é a forma de a resolvermos.

61 PI:NA, 42.

62 Ibid. Itálico meu.

(41)

“Os critérios de sucesso para o uso de uma representação perspícua são estritamente relativos a situações particulares. A justeza deve ser julgada em relação à eliminação do não saber para onde ir de uma pessoa particular numa situação particular [...] a sua utilidade é julgada principalmente pelos efeitos que tem ou não na alteração do modo como olhamos para [e.g.] ‘a nossa linguagem.’”63

E também em Bouwsma encontramos a mudança de perspectiva como condição necessária do método. Mas para Bouwsma isto não é o fim: há uma consequência que se deve seguir desta; deve existir cura. Poderíamos pensar que “cura” e

“mudança de perspectiva” são duas formas de dizer a mesma coisa, ou até que

“eliminação do não saber para onde ir de uma pessoa particular numa situação particular” é uma forma de cura. A diferença é que Baker pressupõe a continuação do trabalho e vê nisso um ganho, enquanto que Bouwsma parece só ver a liberdade como o prémio64:

“É a arte da cura. [...] Chamemos-lhe terapia intelectual de um certo tipo.”65

“A ideia é de que se o [teu] pensamento é dominado neste caso por uma analogia enganadora, então pode ser reacertado por uma analogia condutora.

Se a segunda analogia também nos desvia, é claro que não se ganhou muito.

63 Ibid., 43.

64 Num ensaio tardio apresenta a liberdade como motor da obra de Nietzsche, e o constante desafio e choque com a sociedade como o preço da liberdade. Embora com outras ferramentas, acaba por ter o mesmo fim.

65 BBB, 183.

(42)

Mas enquanto se tiver consciência do que é a analogia e daquilo para que serve, deve funcionar.”66

A finalidade do trabalho deve ser o abandono da ideia enganadora (misleading.) Uma boa analogia não tem outro valor senão o de nos tirar do mau caminho. Não é uma simples mudança de perspectiva por si só, não é só a vantagem de ver novas coisas, mais coisas; é sim, a de abandonar as más, de purgar.67

Viu-se acima como Bouwsma admite que o tratamento dos problemas filosóficos não é, tanto no seu trabalho como no de Wittgenstein, um tratamento típico da filosofia. No entanto, Bouwsma insiste que os problemas típicos não são para desprezar. Se existe fundamentalmente uma vontade de diluir os problemas filosóficos, qual é a importância das questões antigas? Qual é a importância de reavivar velhos problemas? É missão? Na verdade, esta pode ser uma forma de se relacionar com a filosofia. Mesmo sendo este o programa oficial de Bouwsma, de abandono, parece ainda assim haver alguma coisa de positivo no contacto com a filosofia, e que inevitavelmente tem impacto na vida. Acerca da leitura de Nietzsche, Bouwsma pergunta aos especialistas: “não mudou a tua vida?”68

Gostava de acabar esta exposição com um parágrafo que me parece resumir bem o trabalho do seu método:

66 Ibid., 197.

67 Se Baker propõe, na nota 20 deste ensaio, que Wittgenstein possa estar a aderir a um certo tipo de relativismo, a visão de Bouwsma difere por ser sempre negativa – ser sempre abandono. Podemos, ainda assim, perguntar se rejeitar toda e qualquer coisa não será igual a aceitar tudo. A diferença será explorada no terceiro capítulo quando falarmos de fé. Se Bouwsma for relativo por ser negativo, Baker é-o por ser cumulativo.

68 Without Proof or Evidence, p. 122.

(43)

A mosca que saiu da garrafa-armadilha percebe como é que entrou, dado que a condição para conseguir sair é que perceba isso. E agora pode voar dentro e fora quando quiser. Para ela já não é mais uma garrafa-armadilha. Pode entrar e sair e apreciar a estrutura da garrafa. Uma garrafa-divertimento, então? Sim, até que encontre uma nova garrafa com uma abertura diferente.

Vigilância eterna é o preço para voar em liberdade. 69

Se eu ler um determinado enunciado à luz de uma analogia, perceberei melhor o enunciado (“voar dentro e fora”) e ele não dominará o meu pensamento. Resta saber se alguém fica preso desta forma a uma teoria. Certo é que na maior parte das vezes se fala e se pensa com base em analogias.

69 “That fly that was let out of the fly-bottle understands how he got in there, since the condition of his being let out is that he should understand that. And now he can fly in and out as he likes. It is no longer a fly-bottle for him. He can now buzz in and out enjoying the structure of the bottle. A fun-bottle, then?

Yes, until he finds himself in another bottle with a different opening. Eternal vigilance is the price of buzzing freely.” BBB, 186. Itálico meu.

BBB, 197: “Enquanto se tiver consciência do que é a analogia e daquilo para que serve, deve funcionar.” “But as long as one is well aware of the analogy and what it is for, it should do its work.”

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