• Nenhum resultado encontrado

II – Sobre a Filosofia

No documento Aprender a não perceber (páginas 33-52)

Depois de termos visto os exemplos práticos da análise de Bouwsma, exploraremos neste capítulo a visão que tem sobre a filosofia. Para isso analisar-se-á a recensão que fez ao Blue Book de Wittgenstein41 (face ao qual se percebe a sua própria posição) em contraste com o ensaio de Gordon Baker sobre o método Wittgensteiniano. Para Bouwsma é mais importante o lado terapêutico; para Baker importam as diferentes perspectivas perante um problema, as “representações perspícuas.” Na primeira parte do capítulo trata-se dos pontos em que os dois estão de acordo, e de seguida aqueles em que estão em desacordo; no fim exploram-se as ideias que têm sobre aprendizagem.

Bouwsma e Baker

No primeiro ensaio do livro Wittgenstein’s Method: Neglected Aspects42 Gordon Baker apresenta duas ideias contrastantes sobre aquilo que é a

“representação perspícua” de Wittgenstein. A primeira ideia é muito concreta:

consiste numa representação, sucinta e facilmente apreensível43, da gramática da linguagem; ao passo que a segunda, a que Baker defende, não tem um caracter tão restritivo. Para este propósito focar-me-ei apenas nesta última visão (mais lata) de Baker e será doravante aqui referida simplesmente como a “visão de Baker.”44 Interessa pensar nesta visão sobre o trabalho de Wittgenstein porque está muito

41 [BBB] “The Blue Book [de Bouwsma]”

42 Baker, Gordon, Wittgenstein's Method: Neglected Aspects, 2004.

43 Neste sentido, os memes podiam ser um bom caso contemporâneo.

44 O resumo de Baker aqui apresentado diz respeito exclusivamente às ideias presentes neste ensaio.

próxima da de Bouwsma (do método de Bouwsma). Contudo, por ser diferente, deixa-nos com mais clareza ver qual é a visão de Bouwsma quando contrastada com a de Baker.45 Devo deixar claro que entendo a ideia de apresentar uma

‘representação perspícua’ como parte integrante (instrumento) do ‘método filosófico’

de Bouwsma e de Wittgenstein; assim tomo as duas expressões como referindo a mesma coisa.

No final do ensaio, Baker faz um resumo (metafilosófico) da sua visão de representações perspícuas. Ao contrário da descrição que fiz acima do método de Bouwsma, esta descrição daquilo que Wittgenstein faz não se prende com o modo como é feito o seu trabalho – com uma descrição daquilo que está a acontecer – prende-se antes com: os casos a que se aplica; a natureza do trabalho; os requisitos do trabalho filosófico. É deste resumo que saem os pontos de comparação aqui usados.

Começo pelos pontos em que estão de acordo, e em primeiro lugar pelo lado de Baker:

Até os componentes de uma representação perspícua da “gramática da nossa linguagem” não têm de ser descrições do uso de símbolos da “nossa linguagem”. Podem ser “centros de variação” para dadas descrições do uso das “nossas palavras” (LPP 25); ou podem ser descrições de diferentes jogos de linguagem (até dos que têm uma aparência absurda (BB 28)) que podem

45 É ainda de notar que o trabalho filológico de Baker está muito além daquilo que Bouwsma fez na recensão de um livro. Porém, não parece que um conhecimento filológico de Wittgenstein fosse levar Bouwsma a conclusões diferentes – tendo Bouwsma a vantagem de ter conhecido Wittgenstein.

servir como objectos de comparação de modo a que possamos ver as coisas de forma diferente (ou mudar a nossa maneira de olhar para as coisas (PI

§144)).46

A grande novidade desta ideia é que tudo pode ser usado para chegar a um ponto.

Podemos mostrar qualquer ponto filosófico usando material que não tem de ser a descrição daquilo que estamos a tentar mostrar. Isto pode levar a algumas reacções dentro da filosofia. Bouwsma, por sua vez, diz que quem ler o Blue Book pode fazer uma reclamação contra o tratamento que está a ser feito, “[estas questões] não são tratadas de maneira filosófica.”47 Daí esta ser uma grande novidade, uma nova forma de fazer filosofia – tão diferente, que por alguns nem é tomada como filosofia. Aquilo que está a ser feito não é o trabalho comum de um filósofo, se entendermos isso como o trabalho de defender algumas teorias e atacar outras; aqui o importante é conseguir ter uma perspectiva (uma visão) diferente do problema.

Mais tarde perceber-se-á que Baker e Bouwsma distam no objectivo final deste trabalho, mas antes disso devemos olhar ainda para uma advertência que partilham:

“Claramente, não é necessário que exista uma representação perspícua que resolva simultaneamente todos os problemas filosóficos nos quais as pessoas possam naturalmente cair ao reflectirem sobre “o uso das palavras”. [...] A respeito de cada aspecto particular, é um esforço criativo (não um processo

46 PI:NA, 42.

47 BBB, 181.

mecânico) levar outro a percebê-lo, e é uma tarefa de persuasão (não uma prova demonstrativa) conseguir que outro veja as coisas de modo diferente.”48 Bouwsma também está de acordo com este ponto. Este trabalho é constante, porque é preciso encontrar uma solução para cada problema; talvez até para cada ocasião em que se olha para o mesmo problema seja preciso encontrar uma forma nova de abordar o problema. Umas das ideias mais famosas faz sentido ser aqui referida, e onde se fala da analogia condutora (leading analogy, por oposição a analogia enganadora – misleading analogy): “Podemos, então, perceber que essa frase (a analogia condutora) se destina a ajudar-nos a mudar de perspectiva: “Uma vez atingida a mudança, a frase, como a escada, não tem qualquer uso.”49 Esta noção aparece no ensaio de Bouwsma como conclusão da discussão do tema de que Baker fala aqui.

O problema em questão é o de cristalizar certas frases, que seriam utilizadas somente como “escadas”, e fazer delas definições. Bouwsma dá dois exemplos:

“Mas se tivéssemos que nomear qualquer coisa que seja a vida do sinal, deveríamos ter de dizer que é o seu uso.”50 e “está tudo bem com a linguagem corrente.”51 A partir do momento em que se cristalizam estas frases e são tomadas como definições, começam a surgir problemas (não deixa de ser irónico que estas frases estivessem a tentar destruir o tipo de problemas nos quais acabam por se transformar.) O que acontece é que “o contexto imediato da frase é ignorado e a

48 PI:NA, 44.

49 BBB, 198.

50 Ibid., 196.

51 Ibid., 198.

frase é entendida como estando a expressar uma qualquer teoria filosófica.”52 Daí seguem-se as confusões do costume: de repente “existem filósofos da linguagem corrente” (ordinary language philosophers). Quer-se saber o que é que é a linguagem corrente, e se é de facto uma linguagem, e como é que isso se decide sem primeiro se descobrir o que uma linguagem é,”53 etc. Esta confusão inicial espoleta uma série de outras questões sem interesse, precisamente por se basearem numa confusão:

levar à letra uma analogia. O trabalho filosófico é, assim, uma constante alteração, não a procura de bases sólidas a partir das quais se construa.

Baker diz que não é necessário que uma representação seja uma descrição geral da linguagem, logo uma definição, mas admite, por isso, que se possa fazer sentido de definições. Bouwsma só aceita, relutante54, a possibilidade da definição se for um certo tipo de definição. Não poderá ser como uma definição de facto, uma descrição final e completa da realidade. Se a ideia de “uso como significado”, por exemplo, for uma ideia fixa e repetida, então a pessoa que a usa terá de ter consciência de que se trata de uma analogia, de uma “representação perspícua”. E neste caso cumprirá dois propósitos, o de iluminar uma certa característica da linguagem e de nos impedir de cair na escravidão de uma analogia enganadora (misleading).

52 Ibid. É importante a distinção entre contexto imediato e contexto original.

53 Ibid. É de notar o ensaio de Bouwsma sobre o tema: “The terms of ordinary language are…”

54 Admite mesmo que esteve muito tempo equivocado com a questão do “uso como significado”, como exemplo. Muito provavelmente, as referências a este problema no primeiro capítulo são da fase em que Bouwsma ainda não está totalmente certo de como tratar este enunciado. Wittgenstein dá-o como uma definição, ou pelo menos como algo muito parecido (com aspecto de definição).

Na última frase do parágrafo de Baker supracitado, este fala de um ponto importante igualmente importante para Bouwsma. Levar alguém a ver as coisas de modo diferente é um “esforço criativo (não um processo mecânico)” e uma “tarefa de persuasão (não uma prova demonstrativa)”. Na verdade, a ideia de método de que tenho vindo a falar deve ser vista de modo pouco estrito, são apenas uma série de práticas que se repetem. Bouwsma também encontra um certo método no trabalho de Wittgenstein ao recensear o Blue Book, mesmo que nele exista “loucura, talvez, mas pouco método”55 São três ideias “estranhas, novas e difíceis:”56

1. “Primeiro, o autor procura avivar o sentido de estranheza (sense of the queer) [...] Podem-se inventar questões em que a estranheza é fortíssima como uma explosão [...] Pode-se precisar de um tipo de estranheza que sussurre, quase inaudível, o suficiente para a matiz certa.”

2. “Em segundo lugar, o autor está preocupado em apresentar o significado daquelas expressões que estão relacionadas com o caso particular, e em especial aquelas que são relevantes para mostrar não a estranheza em si, mas as suas origens, as suas raízes.”

3. “Terceiro, o autor tenta desvelar a “analogia enganadora” [...] para mostrar a falta de sentido (non-sense) – o desvio do sentido – e explicar a ilusão de sentido.”

55 BBB, 178. “Madness, perhaps, but little method!” A minha implicação aqui é de que a visão que Bouwsma tem do método Wittgensteiniano é também a que tem do seu próprio trabalho filosófico.

56 Ibid., 194.

Ao contrário dos pontos que apresentei no primeiro capítulo a partir da descrição de Hustwit, Bouwsma fala aqui de fases de um processo. É uma visão cronológica do método e salienta aquilo que está a acontecer em cada fase: “e usei intencionalmente

‘fases ou ‘momentos’ para evitar o erro de se supor que se podia traçar uma linha entre eles.”57; ao invés de ter o foco nas “técnicas” diferentes. Há também uma salvaguarda importante: estas fases não são necessariamente nesta ordem e nada diz que possam ser simultâneas. Mais uma vez, é um esboço do trabalho que ajuda a entendê-lo e eventualmente a aprendê-lo.58

Esta é a descrição positiva do método feita por Bouwsma, e que torna mais completa aquela que vimos no primeiro capítulo, mas interessa perceber aquilo que Bouwsma vê como as dificuldades do método. Uma dessas dificuldades prende-se com o primeiro ponto: se por um lado, mostrar a estranheza do problema é feito pela aproximação de duas frases, nada garante que uma segunda frase estranha revele a estranheza de uma primeira. Por exemplo, pode-se achar estranha a frase “uma máquina com uma dor de dentes”, sem que isso altere o estatuto da frase “uma máquina que pensa”. No fundo, Bouwsma fala da rejeição de uma analogia: por muito boa que consideremos a nossa analogia, o nosso interlocutor pode achar que ela não funciona. É por isso que este trabalho tem criatividade e persuasão, e deve

57 BBB, 187.

58 A sistematização das práticas filosóficas destes dois autores terá como maior benefício a sua assimilação, o que não exclui a necessidade de contacto com a obra original. Pode, por exemplo, servir como lembrança e como sugestão do caminho a seguir, mas para caminhar daquela forma é preciso tê-la visto. A sistematização é uma ajuda e é essa a tarefa da qual Bouwsma se incumbe:

“Muito bem, então também eu sou um ajudante”. “Very well, then, I too am a little helper.” BBB, 177.

ser recriado em cada caso. Neste sentido, não é uma teoria que está “certa” ou acabada.

No entanto, há uma solução para que este trabalho não se torne fútil ou um mero trabalho de persuasão; a pedra de toque está na descrição da segunda fase, quando Bouwsma diz que é preciso apresentar “tanto do significado quanto for preciso para aquele que for o propósito.”59 Atingir o propósito desejado dirá sobre a capacidade da analogia60. Mesmo que Baker e Bouwsma partilhem os meios, distam no objectivo último desta tarefa. Diz Baker:

“Que uma representação seja perspícua não se deve ao facto de ter uma determinada característica intrínseca (e.g. poder ser apreendida num só olhar, ou ser facilmente reproduzível), mas caracteriza o seu papel ou função.”61

“[Representações perspícuas] podem servir como objectos de comparação para nos persuadir a ver as coisas de forma diferente (ou para mudar a forma como olhamos para as coisas.)”62

59 Ibid.

60 O ensaio “Wittgenstein on Metaphysical/Everyday Use” de Baker é um caso de representação perspícua: é a partir de uma aberração que nós percebemos o que é o nosso normal. A ideia pouco comum de que é a partir do uso metafísico de linguagem que percebemos o uso corrente. O uso corrente é-nos tão familiar que não o podemos ver. Chegámos a uma confusão, e esta é a forma de a resolvermos.

61 PI:NA, 42.

62 Ibid. Itálico meu.

“Os critérios de sucesso para o uso de uma representação perspícua são estritamente relativos a situações particulares. A justeza deve ser julgada em relação à eliminação do não saber para onde ir de uma pessoa particular numa situação particular [...] a sua utilidade é julgada principalmente pelos efeitos que tem ou não na alteração do modo como olhamos para [e.g.] ‘a nossa linguagem.’”63

E também em Bouwsma encontramos a mudança de perspectiva como condição necessária do método. Mas para Bouwsma isto não é o fim: há uma consequência que se deve seguir desta; deve existir cura. Poderíamos pensar que “cura” e

“mudança de perspectiva” são duas formas de dizer a mesma coisa, ou até que

“eliminação do não saber para onde ir de uma pessoa particular numa situação particular” é uma forma de cura. A diferença é que Baker pressupõe a continuação do trabalho e vê nisso um ganho, enquanto que Bouwsma parece só ver a liberdade como o prémio64:

“É a arte da cura. [...] Chamemos-lhe terapia intelectual de um certo tipo.”65

“A ideia é de que se o [teu] pensamento é dominado neste caso por uma analogia enganadora, então pode ser reacertado por uma analogia condutora.

Se a segunda analogia também nos desvia, é claro que não se ganhou muito.

63 Ibid., 43.

64 Num ensaio tardio apresenta a liberdade como motor da obra de Nietzsche, e o constante desafio e choque com a sociedade como o preço da liberdade. Embora com outras ferramentas, acaba por ter o mesmo fim.

65 BBB, 183.

Mas enquanto se tiver consciência do que é a analogia e daquilo para que serve, deve funcionar.”66

A finalidade do trabalho deve ser o abandono da ideia enganadora (misleading.) Uma boa analogia não tem outro valor senão o de nos tirar do mau caminho. Não é uma simples mudança de perspectiva por si só, não é só a vantagem de ver novas coisas, mais coisas; é sim, a de abandonar as más, de purgar.67

Viu-se acima como Bouwsma admite que o tratamento dos problemas filosóficos não é, tanto no seu trabalho como no de Wittgenstein, um tratamento típico da filosofia. No entanto, Bouwsma insiste que os problemas típicos não são para desprezar. Se existe fundamentalmente uma vontade de diluir os problemas filosóficos, qual é a importância das questões antigas? Qual é a importância de reavivar velhos problemas? É missão? Na verdade, esta pode ser uma forma de se relacionar com a filosofia. Mesmo sendo este o programa oficial de Bouwsma, de abandono, parece ainda assim haver alguma coisa de positivo no contacto com a filosofia, e que inevitavelmente tem impacto na vida. Acerca da leitura de Nietzsche, Bouwsma pergunta aos especialistas: “não mudou a tua vida?”68

Gostava de acabar esta exposição com um parágrafo que me parece resumir bem o trabalho do seu método:

66 Ibid., 197.

67 Se Baker propõe, na nota 20 deste ensaio, que Wittgenstein possa estar a aderir a um certo tipo de relativismo, a visão de Bouwsma difere por ser sempre negativa – ser sempre abandono. Podemos, ainda assim, perguntar se rejeitar toda e qualquer coisa não será igual a aceitar tudo. A diferença será explorada no terceiro capítulo quando falarmos de fé. Se Bouwsma for relativo por ser negativo, Baker é-o por ser cumulativo.

68 Without Proof or Evidence, p. 122.

A mosca que saiu da garrafa-armadilha percebe como é que entrou, dado que a condição para conseguir sair é que perceba isso. E agora pode voar dentro e fora quando quiser. Para ela já não é mais uma garrafa-armadilha. Pode entrar e sair e apreciar a estrutura da garrafa. Uma garrafa-divertimento, então? Sim, até que encontre uma nova garrafa com uma abertura diferente.

Vigilância eterna é o preço para voar em liberdade. 69

Se eu ler um determinado enunciado à luz de uma analogia, perceberei melhor o enunciado (“voar dentro e fora”) e ele não dominará o meu pensamento. Resta saber se alguém fica preso desta forma a uma teoria. Certo é que na maior parte das vezes se fala e se pensa com base em analogias.

69 “That fly that was let out of the fly-bottle understands how he got in there, since the condition of his being let out is that he should understand that. And now he can fly in and out as he likes. It is no longer a fly-bottle for him. He can now buzz in and out enjoying the structure of the bottle. A fun-bottle, then?

Yes, until he finds himself in another bottle with a different opening. Eternal vigilance is the price of buzzing freely.” BBB, 186. Itálico meu.

BBB, 197: “Enquanto se tiver consciência do que é a analogia e daquilo para que serve, deve funcionar.” “But as long as one is well aware of the analogy and what it is for, it should do its work.”

Aprendizagem

Finalmente, falta perceber o que é que se pode dizer sobre aprendizagem:

sobre como Bouwsma aprendeu e ensinou o método. Nalguns momentos, mostra a sua dificuldade em falar da reprodução (ou até imitação) do trabalho de Wittgenstein:

“Acerca da dificuldade em fazer aquilo que o autor [Wittgenstein] faz, inventar tais engenhos, quase não sei o que dizer. Se tiveres algo de poeta poderás, é certo, aprender de poetas, embora nem isto garanta que vá ser fácil escrever poemas. E se não tiveres nada de poeta então bem podes gostar de poemas, não conseguirás fazer como os poetas mesmo com ou sem dificuldades.”70 Esta citação pode parecer estranha se tivermos em consideração os relatos das aulas – conhecido por ser imensamente criativo e prolífero na produção de exemplos.

Apesar disso, Bouwsma não está aqui preocupado com a sua imitação de Wittgenstein, mas sim em como ensinar alguém a fazê-lo. É numa outra analogia sobre aprendizagem que mostra alguma esperança:

Ao ensinar alguém a usar as mãos, em carpintaria por exemplo, o aluno observa como o professor agarra nas ferramentas e aquilo que faz com cada uma. Aprende ao fazer o que faz o professor. O professor também observa o que o aluno faz e corrige-o. É claro que o aluno percebe que está a construir uma casa e porque é que faz o que faz. Ninguém teve de lhe dizer o que é que carpintaria é. Não foi ele que foi ter com o carpinteiro e lhe disse, “ensine-me

70 BBB, 193.

a ser carpinteiro”? Quão diferente é com estes alunos! Podiam não ter ideia nenhuma de como era a arte que ele lhes ia ensinar e talvez nem soubessem que lhes ia ensinar uma arte. [...] Então, ao contrário do carpinteiro, não teve somente que lhes ensinar uma arte com a qual eles estavam à vontade, mas teve que os introduzir a uma arte de que nunca tinham ouvido falar e da qual nunca tinham sentido falta.” 71

Este passo é duplamente importante; por aquilo que diz e pela forma como o mostra a trabalhar com uma analogia – observa o novo caso a partir de um contexto conhecido, familiar e comummente aceite. A característica particular desta arte (do método filosófico) torna-se visível quando se distancia do caso análogo da carpintaria. E a arte é particular, porque aqueles que vão aprendê-la não sabem sequer da sua existência (nem o próprio professor estaria totalmente seguro de a conseguir mostrar.)72

Ainda no mesmo parágrafo Wittgenstein aparece como “o autor, o inventor, o primeiro professor [desta arte].” Qualquer pessoa que venha depois de Wittgenstein não estará já neste lugar, vem depois do inventor e depois de muitos professores.

Terá toda a tradição da prática de Wittgenstein assim como daqueles que o seguiram. E tem, mais ainda, os caminhos e processos de cada uma dessas pessoas para o ajudar no seu caminho, assim como o terreno no qual se pratica (o resto da

71 BBB, 195-196. Itálico meu.

72 Nas conversas com Wittgenstein encontra-se um momento claro de falhanço pelo próprio Wittgenstein: “e a discussão terminou. ‘Lamento muito.’” Conversas com Wittgenstein p. 70.

Bouwsma propõe, no fim deste ensaio, que Wittgenstein cometa alguns erros no Blue Book, mas que esses erros só melhoram a pedagogia do método. Perceber como alguém falha ajuda a perceber como se acerta.

filosofia). Deste modo, a história da filosofia está dividida entre as questões clássicas (com teorias) e a filosofia Wittgensteiniana que parte da análise destas questões, que quando produzida também entra para o catálogo da história.

Baker parece estar de acordo com isto,73 mas com uma diferença: oferece o terreno de toda a história da filosofia como casos de diferentes representações perspícuas: “De facto, tanto a ‘concepção Agostiniana da linguagem’ como a proposta de Wittgenstein sobre o significado da palavra como uso na linguagem são formas específicas de representar a ‘nossa gramática’ ou formas particulares de olhar para ela.74 Percebe-se, por isso, que a grande diferença é que para Bouwsma as questões são importantes porque é a partir delas que se tem de trabalhar – dou ênfase à palavra “tem,” a análise por parte do estudante é uma necessidade para Bouwsma, “agora faz tu.”75 Para Baker basta que sejamos alguém que gosta de poesia, mas que não tem jeito, basta que sejamos observadores para podermos experimentar; o trabalho que nos é pedido é o mínimo de predisposição para aceitar a mudança exigida por cada nova teoria que encontramos. Os dois autores, ao apoiarem-se numa ideia nova de filosofia, demonstram a necessidade de

73 PI:NA, 33. “Embora não exista um só método que possa ser aplicado mecanicamente para dissolver todos os problemas filosóficos, há uma estratégia geral aparente em todas as terapias, e a possibilidade de a dominar e a transferir para novos problemas dá corpo à convicção de que o tratamento certo de cada problema ilumina o tratamento correcto de todos (Z §465).”

74 Ibid., 42. “Indeed, both ‘Augustine’s conception of language’ and Wittgenstein’s proposal to view the meaning of a word as its use in the language are specific forms of representing ‘our grammar’ or particular ways of looking at it.”

75 BBB, 147 “É claro que estes alunos têm de se exercitar na prática desta arte.”

predisposição do interlocutor para se deixar convencer: do lado do ouvinte – predisposição; do lado do orador – persuasão76.

Contudo, aprender a fazer filosofia desta forma não será como aprender uma teoria que se pode repetir. Uma descrição grosseira da diferença pode ser feita usando o caso de um autodidacta: um autodidacta pode confirmar se aprendeu uma teoria; pode reescrevê-la e compará-la por si à original. A forma de fazer filosofia de que se falou aqui parece pressupor um mestre, alguém que corrija a tentativa do aluno.77 Isso traria o problema de perceber como é que Wittgenstein aprendeu, ou mesmo como é que Bouwsma aprendeu se assumirmos que já fazia o mesmo trabalho antes de conhecer Wittgenstein.

Esta descrição da forma de fazer filosofia que Bouwsma ensinou (wittgensteiniana) ainda não se distingue de fazer filosofia de forma geral; mesmo que não se trate de ensinar a reproduzir teorias, pode-se ensinar alguém a construir teorias. A diferença está no final desta última ideia, nomeadamente quando Bouwsma diz, “da qual nunca tinham sentido falta.” Pois as pessoas que defendem uma teoria, ou escrevem sobre uma teoria, têm normalmente uma vida desligada dessa teoria; mais que não seja porque as teorias metafísicas ou epistemológicas com que Bouwsma se preocupava não têm nenhuma implicação directa na vida do dia-a-dia (um filósofo idealista e um filósofo materialista vão da mesma forma ao

76 A persuasão terá uma muito maior importância na forma escrita. À falta de se poder confirmar se o interlocutor está a acompanhar o raciocínio – com respostas suas ou pela sua expressão – o texto terá de estar de tal forma bem montado para que possa suprir a necessidade de adaptações que só são possíveis em presença.

77 Das conversas que Bouwsma teve com Wittgenstein ficaram também registos de momentos de correcção e de aprendizagem. Cf. Conversas com Wittgenstein, p. 50.

No documento Aprender a não perceber (páginas 33-52)

Documentos relacionados