• Nenhum resultado encontrado

Leituras em rede com Ana C.

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Leituras em rede com Ana C."

Copied!
145
0
0

Texto

(1)

LEITURAS EM REDE COM ANA C.

Dissertação submetida ao Programa de Pós Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do grau de Mestre em Literatura.

Orientador: Prof. Dr. Jorge Wolff.

Florianópolis 2018

(2)

Silva, Berenice Ferreira da

LEITURAS EM REDE COM ANA C. / Berenice Ferreira da Silva; orientador, Jorge Hoffmann Wolff, 2018.

145 p.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e

Expressão, Programa de Pós Graduação em Literatura.

Inclui referências

1. Literatura. 2. Literatura brasileira. 3. Ana Cristina Cesar. 4. Paula Glenadel. 5. Rede. I. Wolff, Jorge H. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Literatura. III. Título.

(3)
(4)
(5)
(6)
(7)

crescemos e nos (des)construímos como e com ela”, disse um amigo, um irmão. Mesmo distante da vida acadêmica, trata-se de um interlocutor presente, íntimo e querido: à você, Josi, amor e gratidão. À minha mãe, que pouco compreende tudo isso mas nunca me negou seu apoio incondicional – também aos demais familiares, meu amor sempre. À Ju, com quem convivo há algum tempo – e cuja relação me faz confrontar (e talvez até contradiga) o que escrevo: das vezes que não soube me abrir às DRs e simplesmente me fechei na conchinha do individualismo –, meu amor e respeito por sua força, paixão e desejo pela poesia e pela vida. Ao acaso, que me aproximou do Sérgio, e ao Sérgio, que me trouxe Hélène; que me falou de abismos e de cruzar abismos; que disse que somos todos “sacos de tripas” – antes da Adélia Prado; que me fez querer recomeçar a (me) escrever; que “con toda palabra”, afeto, amizade e parceria tornou-se interlocutor definitivo do que se vai ler. Às demais amigas e amigos de “falação”, poesia, música e afetos: à Renata e à Dudinha (desde algum tempo, pelas aventuras culinárias, as cantorias e as tagarelices – acadêmicas e não); à Ariele; à Christy; à Marina; ao Ivan; à Luisa, ao Paulo; à Duda; à D. Valdeci... Enfim, a todos os outros que transitam entre a memória e o esquecimento: porque os vestígios dos afetos não se medem com o tempo nem se reduzem aos nomes. À UFSC e ao Programa de Pós-graduação em Literatura, incluindo os professores, a coordenação e a secretaria, que me proporcionaram a oportunidade bem como maneiras de pensar os encontros possíveis na e pela literatura. Ao CNPq, cujo financiamento da pesquisa por meio de bolsa de estudos garantiu minha subsistência durante a realização desta. Ao Joca, orientador da pesquisa, pela paciência de sempre e parceria estabelecida desde o PIBIC, incluindo os agradáveis encontros fora da universidade. Por fim, aos encontros e choques vividos durante essa experiência acadêmica com a representação discente (gestão Navilouca); os eventos acadêmicos promovidos e proporcionados neste/por este programa; os grupos de estudos com colegas do curso; os encontros de bares (sempre necessários); os saraus, encontros, viagens e demais “aventuras e confusões” com a Revista Cabra, o Coletivo Abrasabarca e o Programa Quinta Maldita, experiências que levaram (e continuam levando) a poesia a outras dimensões, movimentos e contextos, reafirmando a potência do corpo e da voz para além da palavra. À estes (e a todos os “outros”), gratidão.

(8)
(9)

Frente a frente, derramando enfim todas as palavras, dizemos, com os olhos, do silêncio que não é mudez.

E não toma medo desta alta compadecida passional, desta crueldade intensa de santa que te toma as duas mãos.

(10)
(11)

destes com outros textos, incluindo Rede, de Paula Glenadel, o presente trabalho tem por objetivo refletir acerca dos encontros e choques presentes na cena da escritura destas poetas. Tais encontros e choques demandam um gesto de “leitura espectral”, já que observamos nessa rede de vozes e máscaras a encenação de um desejo de contato com os outros, esses outros que habitam e rondam a/na cena da escritura e da leitura. Esse gesto (político) de leitura afeta ainda as percepções acerca do tempo e das gerações, no limite, da tradição, que se coloca como um espectro retornante, do qual é preciso sempre falar e escutar vozes, rearmando questões pendentes.

Palavras-chave: Literatura brasileira. Ana Cristina Cesar. Paula Glenadel. Rede.

(12)
(13)

de estos con otros textos, incluyendo Rede, de Paula Glenadel, el presente trabajo tiene como objetivo reflexionar acerca de los encuentros y choques presentes en la escena de la escritura. Tales encuentros y choques demandan un gesto de “lectura espectral”, puesto que observamos en esa red de voces y máscaras la puesta en escena de un deseo de contacto con los otros, estos otros que habitan y rondan la/en la escena de la escritura y de la lectura. Tal gesto (político) de lectura afecta aún las percepciones acerca del tiempo y de las generaciones, en el límite, de la tradición, que se coloca como un espectro retornante, del que hay siempre que hablar y escuchar voces, rearmando cuestiones pendientes.

Palabras-clave: Literatura brasileña. Ana Cristina Cesar. Paula Glenadel. Rede.

(14)
(15)

2. LEITURAS ESPECTRAIS: MOVIMENTOS “HACIA EL

OTRO” ... 31

2.1. “É para você que escrevo” ... 39

3. ANA C. E PAULA GLENADEL: LEITURAS EM REDE ... 59

4. ENSAIANDO UMA “QUESTÃO PENDENTE” ... 93

4.1. O riso e o grito: excessos inquietantes ... 109

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS... 133

(16)
(17)

1. INTRODUÇÃO

Ainda uma vez, Ana Cristina Cesar. Voltar a este nome, uma vez mais, pode soar a tarefa fácil, repetitiva ou motivada por puro afeto. Por um lado, as páginas que seguem podem dar a ver tais impressões, por outro, é possível que pouco reste delas, afinal, a tarefa da pesquisa pode ser qualificada como qualquer coisa menos fácil, e nela, muitas vezes, o afeto se perde – ou se (re)inventa. Quanto à repetição, mais do que voltar a Ana Cristina Cesar e aos seus textos, trata-se, talvez, do movimento inverso: é este nome (entre tantos outros) que sempre retorna, embora a poeta faça parte de um momento relativamente recente da literatura brasileira.

Ana Cristina Cesar é um nome que, hoje, dentro ou fora do espaço acadêmico, dispensaria apresentações.1 No entanto, ao evocá-lo

uma vez mais, é preciso apresentá-lo. Nascida em 1952, no Rio de Janeiro, Ana Cristina Cruz Cesar envolveu-se desde muito jovem com a poesia. Crescida num ambiente intelectualmente fecundo, além de poeta, foi tradutora, ensaísta e professora. Em se tratando de publicações, sua produção mais intensa ocorreu entre as décadas de 1970 e 1980, sendo vinculada à “Poesia marginal”, ainda que sua relação com esse “movimento” tenha suas particularidades, como se observa, por exemplo, na leitura de Flora Süssekind em Literatura e vida literária. Em decorrência da depressão, doença com a qual a poeta convivia há algum tempo, Ana Cristina morre em 1983, aos 31 anos de idade.

O suicídio da poeta é um tema que, entre outros, põe em risco, muitas vezes, a leitura de seus textos, no sentido de se tornar uma “armadilha interpretativa” para os leitores e/ou estudiosos de seu trabalho, como lemos na cena “XIV – A galeria subterrânea”, de Rede: quando o autor está desaparecido, morto, tende a se tornar mito e a valorizar a obra. Tais riscos foram abordados em importantes análises, como na de Flora Süssekind, no ensaio “Hagiografias” (2007), e na de Luciana Di Leone, em Ana C.: as tramas da consagração. Esta, em sua dissertação de mestrado, defendida em 2007 e publicada em 2008, faz um mapeamento das edições póstumas além das produções críticas e acadêmicas em torno da poeta, ou do nome, Ana Cristina Cesar. E é a

1 Entre as biografias existentes, destacam-se o “perfil biográfico” Ana Cristina César: o sangue de uma poeta, publicado em 1996 por Ítalo Moriconi, e a recente Inconfissões: fotobiografia de Ana Cristina Cesar, organizada em 2016 por Eucanaã Ferraz.

(18)

esta reflexão fecunda e fecundante que daremos especial atenção neste trabalho, em diálogo com o que propõe também a filósofa francesa Hélène Cixous, entre outras vozes que (se) atravessam (nesta) esta “leitura em rede”.

Quando conheceu a obra de Ana C., ainda na Argentina, Di Leone explica que se interessou em pesquisar a escritora brasileira com outros temas em mente. Mas, ao vir para o Brasil cursar seu mestrado, deu “de cara com o mito” (DI LEONE, 2008, p. 14), o que lhe fez rever seu projeto de pesquisa. Em 2006, num evento em Buenos Aires, Di Leone ouve a fala de Flora Süssekind sobre as leituras hagiográficas feitas pela crítica em relação a alguns poetas brasileiros dos anos 70: “Flora colocava o problema que me preocupava e, de alguma forma, me autorizava a pensar em mim e em nós como construtores de mitos” (Ibidem, p. 15). A partir disso, Luciana passa a problematizar essa “figura mítica”, direcionando um olhar crítico tanto à elaboração das edições póstumas da obra da poeta carioca quanto à produção crítica e acadêmica em torno desse nome, e ela o faz “para refletir sobre as armadilhas do congelamento de figuras do passado ou da criação de ilusão de verdade que esses processos encerram” (Ibidem, p. 17).

Nos últimos anos percebe-se, entretanto, especialmente no meio editorial, entre outros espaços culturais, artísticos e midiáticos, que essa “figura mítica” de Ana C. continua vigente. Recentemente, em 2016, a 14ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) elegeu Ana Cristina Cesar como poeta homenageada da festa. Tal escolha repercutiu de modos diversos na crítica jornalística e acadêmica: “Escolha de Ana Cristina Cesar é marca do desprestígio da literatura”, diz o título do artigo de Felipe Fortuna,2 que questiona a opção da Flip partindo da

ideia de “gentrificação” em torno da poeta e de sua obra, já que “a construção da figura literária de Ana C. é toda póstuma” e “tem sua posteridade tratada por amigos e admiradores”. Para ele, essa gentrificação passa também pelas “herdeiras” de Ana C.,3 poetas

2 Artigo publicado em 29 de Junho de 2016 no caderno “Ilustrada”, da Folha de

S. Paulo. Versão digital disponível em:

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/06/1786675-escolha-de-ana-cristina-cesar-e-marca-do-desprestigio-da-literatura.shtml. Acesso em: 15 jun.

2017.

3 Dias antes da publicação do artigo de Felipe Fortuna, a poeta Angélica Freitas expõe um poema inédito em homenagem a Ana Cristina Cesar no caderno “Serafina”, também da Folha de S. Paulo. Os primeiros versos de “uma das

(19)

mulheres da atualidade, e por leituras ligadas aos estudos de gênero. Por sua vez, em entrevista a Maurício Meirelles,4 o professor e crítico

literário Sérgio Alcides afirma: “Não tenho dúvidas que, do ponto de vista crítico, a homenagem é justíssima. Mas não tenho a ingenuidade de achar que foi o ponto de vista crítico que determinou a homenagem”, embora, segundo Alcides, tal escolha possa “dar rendimento crítico para a obra dela”. A respeito da crítica de Felipe Fortuna, publicada dias antes, Alcides afirma que é uma ilusão achar que a literatura de Ana Cristina é pop, já que se trata de uma “poesia difícil”, mas de “aparência” fácil.5

É interessante observar que, a despeito dos trabalhos já realizados em torno dessa temática da consagração da poeta, tal tema retorna em contextos de bastante visibilidade midiática. Além da Flip, no início de 2017, a exposição “À mercê do impossível – Ana Cristina Cesar”, realizada na Caixa Cultural do Rio de Janeiro, relembrou a vida e a obra da poeta, em homenagem aos 65 anos que completaria neste ano. Entre fotografias, textos e vídeos do acervo pessoal de Ana C., a exposição incluiu até um espaço kids. Ainda, outro exemplo dessas “aparições” de Ana C. vê-se no documentário Bruta aventura em versos, de Letícia Simões, lançado em 2011, no qual uma vez mais percebe-se um trabalho feito por “admiradores” da poeta. O documentário cita também outros trabalhos realizados nos últimos anos em torno do texto de (e do nome) Ana C., como a peça de teatro intitulada “Um navio no espaço ou Ana Cristina César” (2010) e o espetáculo de dança “Tudo que eu nunca te disse” (1997), que, segundo o depoimento de Marcia Rubin, bailarina e

mais jovens / viúvas de ana c.” dizem: “ana c. me salvou de ser técnica em eletrônica / aos dezesseis”. Poema publicado em 26 de Junho de 2016. Versão digital disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/serafina/2016/07/1785342-

leia-poema-inedito-de-angelica-freitas-em-homenagem-a-ana-cristina-cesar.shtml. Acesso em: 15 jun. 2017.

4 Artigo publicado em 03 de Julho de 2016 no caderno “Ilustrada”, da Folha de

S. Paulo. Versão digital disponível em:

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2016/07/1787695-para-critico-literario-poesia-pop-de-ana-cristina-cesar-e-ilusao.shtml. Acesso em: 15 jun. 2017.

5 Ainda sobre as repercussões da homenagem a Ana Cristina Cesar na Flip, o Nº 120, de Fevereiro de 2016, do Suplemento Pernambuco traz “Um ‘manual’ para entender as ‘crises’ que marcam a obra da homenageada da Flip 2016”. Versão

digital disponível em:

https://suplementopernambuco.com.br/images/pdf/PE_120_web.pdf. Acesso

(20)

coreógrafa do espetáculo, trata-se de uma tradução do texto em movimento.

Nesse contexto, lembremos a pesquisa de mestrado de Ana Cristina Cesar, publicada em 1980, sob o título Literatura não é

documento, na qual a poeta analisa alguns filmes documentários

brasileiros produzidos entre as décadas de 1940 e 1970, cujos temas são o autor literário e/ou obras literárias. Nas palavras de Jorge Wolff, trata-se de uma análitrata-se que diz respeito à maneira “Como trata-se constrói uma certa imagem do país, com base em sua produção cultural” (WOLFF, 2013, p. 332). Assim, paradoxalmente, Bruta aventura em versos poderia figurar na lista de alguns dos filmes que Ana Cristina criticava à época, visto que neste documentário há traços de uma “narrativa hagiográfica”.

Além das “aparições” de Ana C. brevemente elencadas acima, há ainda o espaço editorial, que tem investido nos últimos tempos em edições e reedições da obra da poeta carioca. Um exemplo disso é a antologia Poética, lançada em 2013 pela Companhia das Letras, a qual reúne os livros de Ana C. publicados em vida além de algumas edições póstumas. Sobre essa antologia, Sérgio Alcides escreve, em 2014, um provocativo ensaio-resenha6 em forma de carta. Nessa “carta”, destinada

a “L.”, Alcides fala de uma Ana C. que é “figurinha fácil da timeline de muita gente boa”. Enfatizando a imagem do rosto da poeta na capa desta edição, Alcides destaca que “Na era de sua reprodutibilidade digital, ela não precisa de Andy Warhol para ressurgir mil vezes, colorizada ou não, representando muito mais que uma pessoa”, e isso, somado aos dados biográficos da poeta, “basta para fazer da foto uma espécie de ícone”. A problemática, entretanto, é que “A disputa pelo significado desse ícone é uma armadilha para Ana Cristina. Tudo isso facilita muito que ela seja adorada (e consumida), mas dificulta um pouco que ela seja lida”.7

6 Esse texto encontra-se publicado no livro Armadilha para Ana Cristina e outros textos sobre poesia contemporânea, lançado em 2016 sob a organização de Sérgio Alcides. A versão (digital) aqui utilizada encontra-se na página do Instituto Moreira Salles (IMS). Disponível em:

http://blogdoims.com.br/armadilha-para-ana-cristina-por-sergio-alcides/. Acesso

em: 15 jun. 2017.

7 Nas primeiras páginas de Espectros de Marx lê-se: “A vida de um homem [sic], única assim como sua morte, sempre será mais do que um paradigma e outra coisa que não um símbolo. E é isto mesmo que um nome próprio sempre deveria nomear” (DERRIDA, 1994, p. 7).

(21)

Apesar dessas “armadilhas biográficas”8 que ainda hoje cercam o

nome Ana C., é preciso reconhecer, todavia, que sua poesia tem circulado nos mais diversos espaços. De leitura de vestibular a festas literárias internacionais, de teses de doutorado a espaço kids, desde 26 poetas hoje, antologia organizada por Heloisa Buarque de Hollanda em 1976, Ana Cristina é cânone.9 Se ela é pop ou não (em épocas em que

até o papa é pop), e se isso deve ser levado em conta na leitura de seus textos, talvez seja outra questão a ser pensada. O fato é que a poesia de Ana Cristina Cesar continua circulando, assim como a de Paulo Leminski, Waly Salomão, Glauco Mattoso entre outros poetas que eram considerados “marginais” há alguns anos e hoje são “figurinhas fáceis da timeline de muita gente boa”. Por outro lado, a divulgação da poesia era algo que também estava no horizonte desses poetas, como se observa desde os saraus que se realizavam com um grande público no Parque Lage10 e/ou na venda dos “livrinhos” produzidos de maneira

independente à mesma época.11 No entanto, a posterior associação

desses poetas (ou dos tutores de seus arquivos) com as editoras promoveu outro tipo de visibilidade a eles, e isso influencia, atualmente, na maneira como essa poesia é recebida, lida, ou, no limite, consumida, já que tem aparecido com mais frequência nas vitrines das livrarias.12

De certa forma, a acessibilidade e a divulgação da literatura, especialmente da poesia, é algo a ser comemorado. Por outro lado, a circulação e a visibilidade da poesia envolvem modos de produção e

8 Já em 1985, na primeira edição de Literatura e vida literária, Flora Süssekind observava que no texto de Ana C., assim como em outros poetas da época, “Não há pactos biográficos ou geracionais”, o que ampliaria “a distância de um leitor ávido por intimidades e identificações” (SÜSSEKIND, 2004, p. 130).

9 Palavras de Heloisa Buarque de Hollanda em um debate promovido pelo IMS, em 2012, quando da comemoração dos 60 anos que Ana C. completaria naquele ano. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=mpE3v_wJJUk. Acesso em: 15 jun. 2017.

10 Heloisa Buarque também relembra essa questão no debate já citado.

11 Em A máquina performática, Gonzalo Aguilar e Mario Cámara comentam: “a atuação no espaço público foi um componente importante para muitos dos poetas que participaram. Seria possível citar como exemplo a venda de livros artesanais nas praias e em pontos-chave da Zona Sul do Rio de Janeiro, ou os encontros poéticos no mítico Circo Voador” (AGUILAR; CÁMARA, 2017, p. 83).

12 A relação entre a “poesia marginal” e o mercado também é observada por Flora Süssekind em Literatura e vida literária.

(22)

recepção que, atualmente, exigem uma leitura atenta a esses novos meios de acesso.13 De todo modo, é importante lembrarmos que o

movimento de institucionalização dos poetas ditos marginais começa já nos finais da década de 1970, chegando ao extremo das atuais antologias “fosforescentes”.14 Naquele contexto de abertura política, após o período

de ditadura militar, a “marginalidade” dos poetas já começava a ser afetada, e Lucina faz uma análise que resume bem essa mudança:

Assim, paradoxalmente, 26 poetas hoje deu visibilidade e lançou as bases da construção da geração, mas também foi sintomática de um estágio de institucionalização daquilo que tinha na não-institucionalização sua característica mais preciosa. Certamente, o surgimento deste livro é possível dada a mudança do contexto histórico: a gradual abertura política e a absorção, pelo mercado e pela academia, dos comportamentos ‘desbundados’, combinadas com um esgotamento interno do “projeto” marginal – cujos integrantes, no final da década de 70, começaram a se dispersar, principalmente o núcleo mais ativo da Nuvem Cigana, assim como os coletivos editoriais: Folha de Rosto, Vida de artista etc. (DI LEONE, 2008, p. 61 – grifos da autora)

Antes disso, retomando o ensaio “O poeta fora da república”, publicado por Ana Cristina Cesar em 1977, no jornal Opinião,15 com a

colaboração de Ítalo Moriconi Jr, Flora Süssekind também observa a relação entre poesia e mercado:

13 Em A máquina performática encontra-se uma leitura que se atenta (também) a essas questões, afinal, “A instituição continua estabelecendo modos de produção, circulação ou recepção” (AGUILAR; CÁMARA, 2017, p. 9). 14 Vide, por exemplo, as antologias publicadas pela Companhia das Letras nos últimos anos, como Toda Poesia (2013), de Paulo Leminski, Poesia Total (2014), de Waly Salomão, e Poética (2013), de Ana Cristina Cesar.

15 Escritos no Rio reúne uma coleção de ensaios e resenhas publicados por Ana C. em jornais e revistas durante a década de 1970 e inícios de 1980, e integra também a antologia publicada pela editora Ática, em 1999, intitulada Crítica e Tradução. Tal antologia foi reeditada nos mesmos moldes “fosforescentes” da antologia Poética, em 2016, pela Companhia das Letras.

(23)

Ana Cristina e Ítalo tiveram a inteligência de perceber, ainda em 1977, sob o impacto do sucesso da antologia 26 poetas hoje, publicada por Heloísa Buarque no ano anterior, as ambigüidades com que passaria a se defrontar a partir de então a opção marginal. Entre o ‘trampolim’ para uma grande editora e a persistência num esquema alternativo de produção (SÜSSEKIND, 2004, p. 122).

Assim, acerca dessa questão, em se tratando de Ana Cristina Cesar, cabe ainda a resposta de Luciana Di Leone:

O que se dá é uma troca entre o mercado e a potência do texto, troca que se insere num contexto cultural bem predisposto a receber um tipo de escrita na qual a primeira pessoa volta a aparecer. As edições com fotografias fizeram com que os poemas – que já questionavam os problemas do sujeito e da intimidade, estou cansada de falar de mim, trabalhando poeticamente sobre gêneros íntimos como o diário e as cartas – fossem associados a um rosto e a uma biografia, e se adequassem ainda mais à questão dominante (DI LEONE, 2008, p. 38 – grifos da autora).16

Aliás, essa “troca” entre o mercado e a potência do texto é o que se observa também, em alguma medida, nas duas antologias organizadas por Manoel Ricardo de Lima, intituladas A nossos pés – a primeira publicada em 2008 e a segunda em 2017. No prefácio à segunda edição lemos que a intenção da “conversa” a que se propõe tal antologia é tentar “algum arejamento diante da poesia de Ana Cristina Cesar” (LIMA, 2017, p. 8), o que parece encontrar eco entre os 48 poemas que

16 Sobre os “diários poéticos” de A teus pés Ana C. afirma: “Existem muitos autores que publicam seus diários mesmo, autênticos. Aqui não é um diário mesmo, de verdade, não é meu diário. Aqui é fingido, inventado, certo? Não são realmente fatos da minha vida. É uma construção. [...] Se você vai ler esse diário fingido, você não encontra intimidade aí. Escapa... [...] é [esta], na verdade, a intenção do texto. [...] A subjetividade, o íntimo, o que a gente chama de subjetivo não se coloca na literatura” (CESAR, 1999, p. 259).

(24)

integram o livro. Para citar um, o poema de Demétrio Panarotto parece encenar uma resposta ao título do livro – A nossos pés, – “não,” – “aos pés de quem”, diz o primeiro verso do poema (Ibidem, p. 30). A ausência de pontuação (que interroga ou afirma) deixa em aberto o sentido em relação a esse “quem” ao mesmo tempo em que desestabiliza o pronome “nossos” estampado na capa do livro. Por sua vez, o título do posfácio, “A multidão desejante e o chiclete no pé”, de Luciana Di Leone, soa como uma provocação à “consagração” que (novamente) ronda o nome Ana C. bem como à própria antologia em questão.17

Partindo de um texto de Antigos e soltos, Luciana escolhe – o que, aliás, já havia feito em sua dissertação de mestrado – “Preferir as coisas aos nomes. Mas ainda preferir o poema e seu lugar paradoxal. E ainda ter a irônica consciência de que essas opções não são totalmente dicotômicas, pois entre as coisas que atravancam a página e o poeta, é necessário colocar um chiclete que veda e gruda” (Ibidem, p. 91). E continua:

Um poema pode ser um chiclete grudado no pé das multidões desejantes. Só quem anda e peca, só quem lê e plagia, só quem responde a uma demanda, sabe do incômodo e das potências de um chiclete no sapato.

Este A nossos pés, poderíamos dizer, traz uma multidão desejante de poetas que, longe de fazer uma homenagem monumental, parece lidar com [a] poesia de Ana C., e com a proposta do organizador Manoel Ricardo de Lima, como se lida com um chiclete no pé (ou com esses mosquitos que não largam!). Lidam do jeito que dá e dos jeitos mais variados (DI LEONE In LIMA, 2017, p. 91).

Dessa forma, não obstante a provocação – e o desabafo, por assim dizer –, Luciana afirma no final do texto que a tentativa de “correspondência e convívio” com os poemas de Ana C. nesta antologia “não silencia os atritos – pelo contrário, os expõe”, e “este conjunto díspar também deixa expostos os pés da própria ideia de coleção, de antologia e de homenagem para que o leitor reflita politicamente sobre

17 Neste posfácio Luciana também comenta o “incômodo de alguns” em relação à escolha de Ana Cristina Cesar como escritora homenageada da Flip em 2016.

(25)

os modos de se juntar” (Ibidem, p. 93) e, acrescentamos, os modos de se usar os nomes, de colocá-los em circulação – como o faz Bernardo Carvalho ao nomear “Ana C.” uma de suas personagens no romance

Teatro (1996).

Assim, a questão do “ícone”, colocada por Alcides, vai ao encontro das leituras de Süssekind e Di Leone em relação ao “mito” que se tornou Ana C. “A procedência romântica desse ideal não poderia contrastar mais com a poética de Ana Cristina Cesar, como você não deixará de notar, se chegar a ler o livro”, provoca Alcides, sugerindo que o consumo dessa “imagem” de Ana C. sobrepõe-se à leitura de seus textos. Ou, ainda, que o “consumo” desses textos continua sendo problemático, seja no âmbito acadêmico ou fora dele.

Talvez sua tarefa, L., seja tentar ajudar a poeta a realizar o desejo que ela expressa em Luvas de pelica: “falar não me tira da pauta; vou passar a desenhar; para sair da pauta”. A “pauta” é a armadilha. Desarmá-la requer uma leitura, uma dedicação. L., my dear, você ainda está aí? (ALCIDES, 2014 – grifos do autor)

Se o destinatário de Alcides, “L.”, é o leitor “singular e anônimo” que o texto de Ana C. “exige”, para relembrar o conhecido ensaio de Silviano Santiago,18 o presente trabalho pretende colocar-se neste lugar

de leitura, evitando as armadilhas interpretativas (biográficas e/ou hagiográficas) já bastante observadas em diversos trabalhos críticos e acadêmicos, sem deixar, entretanto, de “conjurar” uma vez mais o texto de Ana C. Porque todo texto, seja ele o oficial ou o alternativo, permite possibilidades de leitura: “as partículas não-lidas [que] esperam um olhar que as acorde” (DI LEONE, 2008, p. 32). E, no caso de Ana C.,

[...] as tramas que o pesquisador pode traçar no seu percurso por esse, como em todo arquivo, são variadas. Isto significa, então, que tanto as edições póstumas quanto os estudos feitos sobre a figura de Ana podem ser considerados narrativas possíveis desse arquivo, e as imagens de Ana que

18 SANTIAGO, Silviano. “Singular e anônimo”. Nas malhas da letra: ensaios. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. (Publicado originalmente na Folha de S. Paulo em 1984).

(26)

dessas narrativas se desprendem serão diferentes segundo as intenções que dirigem cada leitura em particular (DI LEONE, 2008, p. 30 – grifo da autora).

Assim, “as tramas da consagração de Ana C., os discursos que se tecem e se entrecruzam ao redor dessa figura, se revelaram momentos do meu próprio olhar, se revelaram as tramas da minha procura de um lugar de enunciação” (Ibidem, p. 16), lugar este que também procuramos aqui, dez anos depois.

Se a procura por um “lugar de enunciação” envolve algumas “intenções”, sejam elas particulares e/ou coletivas, quando se trata da abordagem de textos literários há uma “intenção” que nos parece imprescindível: aquela que envolve um gesto de “leitura espectral”,19 porque os “fantasmas” estão sempre rondando e sempre terão algo a dizer. Em outras palavras, um texto nunca se esgota, pois, como os espectros, cujas idas e vindas são incontroláveis, ele é como “um fantasma que continua a falar” (DERRIDA, 1994, p. 51). E a esses “espectros intempestivos [que] não convém expulsar, mas escolher, criticar, manter perto de si e deixar voltar” (Ibidem, p. 119). Logo, lidar com “espectros intempestivos” envolve uma disposição em relação ao encontro com o outro, esse outro espectral que não está necessariamente atrelado a uma identidade. Aliás, em Hamlet, o fantasma do rei (morto) é visto com desconfiança por Horácio, o erudito, a quem se pede que fale com o fantasma, mas a quem o fantasma não responde. Sobre isso, Derrida faz uma reflexão muito pertinente quanto ao scholar, o intelectual que, em sua racionalidade, não sabe (ou não quer) se relacionar com os espectros. Assim, é no sentido de evitar esse gesto do

scholar que propomos aqui um gesto de “leitura espectral”, um

movimento de leitura que (in)tenta um movimento “hacia el otro”, o que pode ser percebido desde alguns poemas, ensaios e falas de Ana C. – nos quais esse outro nem sempre pode ser identificado, mas, ainda que de forma espectral, está ali, habita o texto e, muitas vezes, tem voz –,

19 Essa expressão encontra uso em diversos campos do conhecimento, desde a biologia, química, física, medicina, tecnologias etc. Não nos ativemos ao estudo de todos estes usos, mas, em alguma medida, o uso do termo “espectro” terá sempre uma relação com o que flui/aparece/retorna de um objeto visto/analisado.

(27)

além de algumas proposições crítico-teóricas, como as de Hélène Cixous, Jacques Derrida, Luciana Di Leone, entre outros.

Assim, a imagem da “rede” surge como pano de fundo para as discussões que se propõem a seguir: sem origem nem fim, propomos “puxar fios” nessa rede de textos, e nesse gesto o tempo também se desloca, ou seja, as vozes e os textos, ou as vozes dos textos, como os espectros, soam intempestivamente, entrelaçando passado, presente e futuro de maneira desordenada, afinal, “época alguma é contemporânea de si mesma” (DERRIDA, 1994, p. 152), e “Antes de saber se se pode fazer a diferença entre o espectro do passado e o do futuro, do presente passado e do presente futuro, é preciso, talvez, se perguntar se o efeito

de espectralidade não consiste em frustrar essa oposição, até mesmo

essa dialética, entre presença efetiva e seu outro” (Ibidem, p. 60 – grifos do autor).

Portanto, dialogando com Alcides, ousamos responder que “sim, ‘L.’ ainda está aqui” em busca de um olhar que desperte outras nuances no texto de Ana C. para além da armadilha interpretativa “biográfico-geracional” que, no limite, se prende à representação e à expressão de um sujeito e/ou de uma época. Nesse contexto, o leitor “singular e anônimo” também se desloca: por não se tratar de um leitor “pessoal” que figura no texto de Ana C., no sentido da representação do “sujeito” leitor, trata-se de uma cena da escritura na qual esta categoria também é “posta em jogo”. Em outras palavras, trata-se do leitor enquanto “gesto”, para retomar o que propõe Giorgio Agamben no ensaio “O autor como gesto”: “O lugar – ou melhor, o ter lugar – do poema não está, pois, nem no texto nem no autor (ou no leitor): está no gesto no qual autor e leitor se põem em jogo no texto e, ao mesmo tempo, infinitamente fogem disso”, porque “autor e leitor estão em relação com a obra sob a condição de continuarem inexpressos” (AGAMBEN, 2007, p. 62-63). E tal gesto de leitura pode ser observado em diversas outras análises.

Para citar algumas, além das “tramas” tecidas por Luciana Di Leone, a importante tese de doutorado de Maria Lúcia de Barros Camargo, defendida em 1990, intitulada Atrás dos olhos pardos, é ainda uma referência para o leitor de Ana C., assim como a análise crítica dos cadernos e rascunhos que Flora Süssekind realiza em Até segunda

ordem não me risque nada, na qual o texto poético de Ana C. é

observado a partir da “arte da conversação”, o que, de certa forma, está no horizonte deste trabalho. Ainda, diversos outros trabalhos, como os ensaios de Marta Peixoto e Beatriz Resende no livro Vozes femininas:

(28)

gêneros, mediações e práticas da escrita, organizado por Flora

Süssekind, Tânia Dias e Carlito Azevedo em 2003,20 abordam aspectos

da poesia de Ana Cristina Cesar que mobilizam esse arquivo (e esse nome) a partir do texto, muitas vezes em diálogo com outros textos, observando o “teatro da intimidade”, o uso (às vezes subversivo) dos gêneros literários e da tradição, entre outros aspectos.

Há ainda uma questão que “assombra” muitas dessas leituras da poesia de Ana Cristina Cesar e que pretendemos retomar aqui. Trazer essa questão uma vez mais à tona talvez seja colocar o pé (quiçá os dois) outra vez na armadilha biográfica, mas correremos o risco por entendermos que esta é, ainda, uma “questão pendente” que pulsa e que “grita” nos textos de Ana C.: trata-se da discussão acerca do “feminino na literatura”. Tal questão aparece também na cena da escritura de outros poetas, escritores e pesquisadores, como Luciana Di Leone (em textos mais recentes), Paula Glenadel, Hélène Cixous e Clarice Lispector, as quais também são “evocadas” nessa “leitura em rede” para uma discussão acerca deste tema. Porém, cuidamos de ter sempre em vista que “Ler é meio puxar fios, e não decifrar”; é “Uma constelação...” (CESAR, 1999, p. 264), conforme afirma Ana C. numa conversa realizada durante um curso ministrado por Beatriz Resende, em 1983;21

e na cena da escritura os sujeitos não se definem: “Acho que existem várias maneiras de você lidar com esse problema de que o texto é texto. Existe, de repente, uma consciência trágica: texto é só texto, nada mais que texto. Que tragédia!” (Ibidem, p. 266).

Ora, texto é só texto, mas ele é também um espaço de encontro com os outros, ali onde opera a potência da imaginação, da invenção. É nele e a partir dele que se pode pensar e criar novos mundos, novas maneiras de pensar, de falar e de viver. E pensar o que há de feminino na linguagem/na literatura implica pensar uma outra “economia” das/nas relações, no limite, implica contar uma outra história, questionando a história vigente, como o faz Hélène já em 1975: “Toda historia es inseparable de la economía en el sentido estricto de la palabra, de un

20 Os textos de Marta Peixoto e Beatriz Resende intitulam-se, respectivamente, “Sereia de papel: Ana Cristina César e as ficções autobiográficas do eu” e ‘“Ah, eu quero receber cartas’: a correspondência de Ana Cristina César”.

21 Esse “Depoimento de Ana Cristina Cesar” encontra-se transcrito na antologia Crítica e Tradução. A versão digital, em áudio, encontra-se, entre outros áudios, na página do IMS. Disponível em:

(29)

cierto tipo de ahorro. Relación del hombre con el ser-hombre, con su conservación. Esta economía, entendida como ley de apropiación, es una producción falocéntrica” (CIXOUS, 1995, p. 37). Logo, empreender um movimento “hacia el otro” rearmando essa “questão pendente”, seja no espaço da literatura, da filosofia, da crítica ou da vida, para Cixous, e também para Di Leone, envolve uma “abertura” ao outro que passa pela elaboração conceitual de um corpo que se abre e se deixa contaminar por outros corpos, tal como um corpo feminino.

Desse modo, partindo dessas relações possíveis, entendemos que “‘Ana C.’, esse objeto – sujeito –, é uma rede, um arquivo” (DI LEONE, 2008, p. 22). Logo,

A relíquia ou lembrança – no caso de Ana C., os poemas que ficaram e seus documentos – só podem deixar de ser uma mera referência a uma pessoa ou experiência morta através de um olhar que as acorde, que as reintegre ao uso. Tirar os poemas da vitrine póstuma. Escutar o palrar dos signos, as ressonâncias dos restos, fazer delas o nosso canteiro e não um altar. Que a relíquia dê lugar a uma outra vivência, e não seja o mero eufemismo. Reviver. Dialetizar o passado a partir dos restos. Partir, então, para os escritos que tentaram percorrer esse caminho em obras, sob o signo Ana C. (DI LEONE, 2008, p. 58)

Afinal, “Ana C. é uma série de discursos e mais um pouco”; logo, “quem é, de fato, Ana C. não podemos nem queremos saber. O centro da pergunta se deslocou: já não está em Ana C., mas em nós. Que leitores podemos e queremos ser?” (Ibidem, p. 108 – grifo da autora). Portanto, é visando dar continuidade a essa pergunta que empreendemos uma leitura de alguns textos da poeta carioca colocando-os em diálogo com outros textos nessa leitura em rede com Ana C.

(30)
(31)

2. LEITURAS ESPECTRAIS: MOVIMENTOS “HACIA EL OTRO”

E mais não quer saber / a outra, que sou eu, / do espelho em frente.

Ana Cristina Cesar

O gesto (político) de pensar as relações com o outro no espaço da escritura (e além dela), considerando os possíveis encontros e choques que decorrem dessas relações, tem sido tema de diversas discussões crítico-teóricas desde algum tempo. Ao questionar a “economia” da dialética hegeliana, no ensaio “La joven nacida”, que integra a coletânea intitulada La risa de la medusa: Ensayos sobre la escritura,22 Hélène

Cixous afirma que “Todos los grandes teóricos del destino o de la historia humana han reproducido la lógica del deseo, la más común, la que frena el movimiento hacia el otro en una representación patriarcal, bajo la ley del Hombre” (CIXOUS, 1995, p. 36 – grifos meus). Isso porque, na lógica dialética, a filósofa francesa afirma que “Es necesario que exista lo proprio y lo impropio, lo limpio y lo sucio, lo rico y lo pobre, etc.” (Ibidem, p. 24). E questiona:

¿Qué es el “Otro”? Si realmente es “el otro” no hay nada que decir, no es teorizable. El otro escapa a mi entendimiento. Está en otra parte, fuera: otro absolutamente. No se afirma. Pero, por supuesto, en la Historia, eso que llamamos “otro” es una alteridad que se afirma, que entra en el círculo dialéctico, que es el otro en la relación jerarquizada en la que es el mismo que reina, nombra, define, atribuye, “su” otro. Y con la terrible simplicidad que ordena el movimiento erigido en sistema por Hegel, la sociedad se propulsa a mis ojos reproduciendo a la perfección el mecanismo de la lucha a muerte: reducción de una “persona” a la posición de “otro”, maquinación inexorable del racismo. Es necesario que exista el “otro”, no hay amo sin esclavo, no hay poder económico-político sin explotación, no hay clase dominante sin rebaño subyugado, no hay “francés” sin moro, no hay nazis sin judíos,

(32)

no hay Propiedad sin exclusión, una exclusión que tiene su límite, que forma parte de la dialéctica. Si el otro no existiera, lo inventaríamos. Por otra parte, es lo que hacen los amos: se hacen los esclavos a medida. Con una exactitud perfecta. Y montan y alimentan la máquina de reproducir todas las oposiciones, que hacen funcionar la economía y el pensamiento (CIXOUS, 1995, p. 25 – grifos da autora).

Por sua vez, num artigo publicado em 2015,23 Luciana Di Leone

observa que o “viés relacional” presente em algumas produções contemporâneas reverberam também no espaço da crítica, o que teria a ver com “algum tipo de relação, marcada pelo endereçamento, o ir ao encontro de um Outro, um encontro que implicaria o poder de afetar e ser afetado” (DI LEONE, 2015, p. 214). Partindo da “economia dos afetos” de Spinoza, e de sua retomada por Deleuze, Luciana afirma que “o afeto se dá como resultado de uma relação, dos efeitos de um corpo sobre outro em variação contínua, de uma mútua modificação” (Idem – grifo da autora), embora o afeto em si não seja identificável, senão seus vestígios.

Mas “quem” seria esse outro? Na última página de Até segunda

ordem não me risque nada, Flora Süssekind destaca duas anotações de

Ana Cristina Cesar num dos “cadernos pretos” que dialogam entre si: “Espelho buraco na parede” e “Teu retrato, buraco na parede”. Tais anotações (que podemos chamar de versos) são lidas por Flora como “a imagem-em-abismo” de um sujeito descentrado. Por sua vez, essa imagem nos remete uma vez mais à conhecida afirmação do poeta Arthur Rimbaud, na carta enviada a Georges Izambard: “EU é um outro”.24Assim, tanto “Teu retrato” quanto “Meu retrato” (no espelho) é

“buraco na parede”, porque se é possível empreender um movimento “hacia el otro”, na tentativa de cruzar o abismo que se coloca entre os elementos de uma relação, deparar-se com o outro (ou com o “mesmo”)

23 LEONE, Luciana di. “Siempre fui buena para los números: poesia, afeto e economia para Nurit Kasztelan”. Crítica Cultural – Critic, Palhoça, SC, v. 10, n. 2, p. 213-221, jul./dez. 2015.

24 Conforme tradução publicada no vol.8 (2006) da Revista Alea: Estudos

Neolatinos. Versão digital disponível em:

(33)

é encarar outro abismo: “Só meus retratos é que fotografam um abismo? um abismo. Um abismo de nada. Só essa coisa grande e vazia: um abismo” (LISPECTOR, 2009, p. 25). Em outras palavras, lidar com o “quem”, em literatura ou na vida, é lidar com abismos, com o desconhecido – “Tudo começa pelo abismo” (DELEUZE, 2015, p. 193). Apesar disso, entendemos que é preciso o gesto de pensar e escrever/narrar esse movimento até o outro, seja ele quem for,25 ainda

que “lo que va del uno al otro sólo es un beso, una frase de felicidad, de infelicidad, porque en todo lugar hay abismo y cima, nada llano, nada templado” (CIXOUS, 1995, p. 64).

Portanto, pensar um gesto de “leitura espectral” a partir da premissa “EU é um outro” – dado que “eu” e “outro” são abismos –, é suspender a relação dicotômica entre “eu” e “outro” em nome de um “quem” sem identidade. A reinvindicação da imagem do espectro surge, assim, como ferramenta para pensar o ser descolado das noções de identidade, de representação e de origem, já que este é efeito de um desajuste do tempo e das referências corpóreas às quais estamos habituados.26 Logo, uma “leitura espectral” envolve uma tentativa de

25 Numa resenha sobre o livro O vendido, de Paul Beatty, publicada na Folha de S. Paulo, Bernardo Carvalho afirma: “O outro depende de uma disposição radical para o que é inesperado, impensável, incompatível e às vezes indesejável, para um constante alargamento do entendimento do mundo”; ainda, “Aí está o potencial de resistência da literatura. Não é um processo fácil nem sem esforço [pensar o outro], o que explica a tendência natural de preferirmos os consensos às exceções, o mesmo ao outro”. Versão digital disponível em:

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/bernardo-carvalho/2017/08/1907188-o-outro-depende-de-uma-disposicao-radical-para-o-que-e-inesperado.shtml.

Acesso em: 15 dez. 2017.

26 Essa proposição baseia-se no que afirma Derrida em Espectros de Marx: “(ora, o que é o estar aí de um espectro?, Qual é o modo de presença de um espectro, essa é a única questão que gostaríamos de formular aqui)” (DERRIDA, 1994, p. 58 – grifos do autor). Ainda, “Qual é o tempo e qual é a história de um espectro? Há um presente do espectro?”; e um possível caminho para desenvolver essas questões passa pela seguinte reflexão: “Antes de saber se se pode fazer a diferença entre o espectro do passado e o do futuro, do presente passado e do presente futuro, é preciso, talvez, se perguntar se o efeito de espectralidade não consiste em frustrar essa oposição, até mesmo essa dialética, entre presença efetiva e seu outro” (Ibidem, p. 60 – grifos do autor). Em suma, pensar a imagem do espectro envolve lidar com o tempo de maneira não progressiva e afastar-se das relações dicotômicas, porque “(o fantasma é um ‘quem’, não se trata do simulacro em geral, ele possui uma espécie de corpo,

(34)

afastamento das taxonomias, afinal, “O discurso identitário revela sua ambiguidade, sua fragilidade e sua contradição quando nos damos conta do escopo semântico de ‘outro’, que abarca tanto o excluído como o inimigo, tanto a vítima como o algoz. Tudo depende do lugar onde estamos”, conforme conclui Bernardo Carvalho em sua resenha ao livro de Paul Beatty.27 Por sua vez, Luciana Di Leone conclui que um

“vínculo espectral” desmonta a dicotomia e a lógica, já que um espectro é a imagem da “presença da falta”, tratando-se, portanto, de um outro outro.

Ora, em Ana C., como veremos, o outro nunca é apenas um: ora pode ser o leitor; ora “meu filho”, “minha filha”, etc.; ora outros textos. O interlocutor é muitos e está sempre ali, espectralmente, “assombrando” o texto. Logo, pensar uma alteridade que não se afirma, já que “EU é um outro” e ambos são “buracos na parede” (abismos), é o que se propõe nesta (outra) leitura da poesia de Ana C., na qual também observamos vestígios de um desejo de encontro com o outro, já que a interpelação é uma “imagem” insistente em seus textos, conforme observa Flora Süssekind ao ler nos poemas da poeta carioca uma “poesia em vozes”, uma “arte da conversação”, em Até segunda ordem

não me risque nada. Entretanto, essas vozes que “conversam” no texto,

esses outros, não se tratam (na maioria das vezes) de interlocutores explícitos, com uma identidade definida, podendo ser este lugar ocupado (ou não) pelo leitor. Em Correspondência Completa, por exemplo, há indícios de um leitor desejado. Nesse texto, o leitor é incluído na cena da escritura, personificado nas “personagens” “Gil e Mary”:

Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor. Ele lê para desvendar mistérios e faz perguntas capciosas, pensando que cada verso oculta sintomas, segredos biográficos. [...] Já Mary me lê toda como literatura pura, e não entende as referências diretas (CESAR, 2013, p. 50).

Para Silviano Santiago28, o destinatário dessa “carta-poema”,

“My dear”, é o leitor “singular e anônimo”, para o qual se colocam duas mas sem propriedade, sem direito de propriedade ‘real’ ou ‘pessoal’)” (Ibidem, p. 63).

27 Vide nota 25.

28 SANTIAGO, Silviano. “Singular e anônimo”. Nas malhas da letra: ensaios. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

(35)

“exigências”: não reduzir o texto a uma única leitura ou a um único sentido/interpretação, e não ler a poesia só como vida ou literatura. Ou seja, nem Gil nem Mary: o leitor (de Ana C.) deve estar atento às

contaminações entre vida e literatura. “Gil está sempre jurando ou me

fazendo jurar” (CESAR, 2013, p. 50), e quem jura, jura dizer a verdade. Mas o sujeito do poema alerta: “Não fui totalmente sincera” (Ibidem, p. 48). Dessa forma, ao incluir o leitor29 nessa “carta-poema” – que não

deixa de ser também um ensaio crítico, se considerado o “pensamento” que ali se coloca a respeito dos modos de ler a literatura – percebe-se um gesto de Ana C. no sentido de promover um encontro entre o texto e um interlocutor, afinal, “a linguagem poética existe em estado de contínua travessia para o Outro” (SANTIAGO, 2002, p. 61).

Na conversa ocorrida durante o curso ministrado por Beatriz Resende, em 1983, Ana C. comenta e responde algumas questões acerca da então recente publicação de A teus pés, em 1982. E acerca da carta, a poeta afirma:

Que tipo de texto é a carta? Carta é o tipo de texto que você está dirigindo a alguém. Você está escrevendo carta não é pelo prazer do texto, não é um poema que você está produzindo, não é uma questão que você está levantando dentro da literatura, não é uma produção estética necessariamente (CESAR, 1999, p. 257).

Entretanto, Correspondência Completa não é “apenas uma carta” que contém “rasgos de verdade”: trata-se de poesia; trata-se de literatura.

Bom, e a literatura? Quando você faz poesia, quando você faz romance, quando alguém produz literatura propriamente, qual é a diferença em relação a esses gêneros? Você está escrevendo para todo mundo? Do ponto de vista pessoal, do ponto de vista de como é que nasce um texto, você, quando está escrevendo, o impulso básico de você escrever é mobilizar alguém, mas você não sabe direito quem é esse alguém. Se você

29 Novamente: lemos esse leitor a partir de seu “ter lugar” na cena da escritura, conforme proposto por Agamben.

(36)

escreve uma carta, sabe. Se você escreve um diário, você sabe menos. Se você escreve literatura, o impulso de mobilizar alguém – a gente podia chamar de o outro – continua, persiste, mas você não sabe direito, e é má-fé dizer que sabe. [...] A gente não sabe direito para quem a gente escreve. Mas existe, por trás do que a gente escreve, o desejo do encontro ou o desejo de mobilização do outro. [...] no trabalho literário, no trabalho de construção estética, esse alguém se perde de certa forma (CESAR, 1999, p. 258 – grifos meus).

Esse “alguém” que “não se sabe direito quem é” remete ao que propõe Giorgio Agamben a respeito do destinatário da poesia. No ensaio “¿A quién se dirige la poesía?”,30 o filósofo afirma que esse destinatário

não é uma pessoa real, mas uma “exigência”; e, ainda, o verdadeiro destinatário da poesia não está habilitado para lê-la, porém, o poema exige ser lido, embora permaneça sempre ilegível.31

O gesto de “conjurar” o outro pode ser também observado de maneira bastante estimulante em Espectros de Marx. Neste livro, Jacques Derrida está lendo um certo Marx, porque “há mais de um, deve

haver mais de um” (DERRIDA, 1994, p. 30 – grifos do autor). A partir

de Hamlet, e de sua fala “The time is out of joint” (“conjurada”, antes de Derrida, pelo próprio Marx (e Engels) no Manifesto do Partido

Comunista), Derrida propõe reflexões sobre o tempo e a história num

gesto ético-político que parte da imagem do espectro. A referência a um ser espectral dá-se primeiramente em relação ao fantasma do rei (pai de Hamlet), mas também a Marx (um certo Marx), e, ainda, ao comunismo (entre outros nomes e conceitos evocados). Nesse sentido, Derrida apresenta o espectro como uma “presença viva”, pois ele “é sempre um retornante” (Ibidem, p. 27). Ainda, o espectro implica uma

30 Texto publicado originalmente na revista New Observations, N. 130, 2015. 31 Em Espectros de Marx, a partir de Blanchot, Derrida também propõe uma reflexão acerca da “exigência”: “Ela não pode estar sempre presente, ela pode ser, apenas; se existe uma exigência, esta não pode ser senão possível, deve mesmo permanecer no talvez para continuar sendo exigência. Sem o que voltaria a ser presença, ou seja, substância, existência, essência, permanência” (DERRIDA, 1994, p. 52 – grifos do autor). Logo, na presente leitura, buscamos lidar com os sujeitos enquanto “possibilidades”, isto é, deslocados de uma identidade estável, “permanente”.

(37)

“intangibilidade tangível de um corpo próprio sem carne, mas sempre de

alguém como algum outro. E de algum outro que não nos adiantaremos

em determinar como ego, sujeito, pessoa, consciência, espírito etc.”, pois este “compartilha [...] mais de uma feição” (Ibidem, p. 22 – grifos do autor).

É assim que se coloca o interlocutor no texto de Ana C. Por sua vez, é também assim que se pode estabelecer uma relação com o nome Ana C. (e seu texto), o qual evoca uma “série de discursos” (DI LEONE, 2008); “mais de uma feição”. Giorgio Agamben, em Ideia da prosa, afirma que “é precisamente a ausência de um objecto último do conhecimento que nos salva da tristeza sem remédio das coisas” (AGAMBEN, 1999, p. 47), ou seja, definir respostas para perguntas como “quem escreve?” e “para quem se escreve?”32 implicaria encerrar

questões que devem estar sempre abertas à imaginação.33 E conforme

propõe Silviano Santiago,

Que seria do poema se todos (a fraternidade dos leitores) endossássemos uma única leitura para sempre? Haverá forma mais profunda e radical de pensamento fascista? É este o problema capital que todo poema coloca emblematicamente: como compor com o singular e anônimo o coletivo, sem se recorrer à uniformização, sem se valer da indiferenciação? Como constituir uma comunidade onde reine a justiça sem amassá-la? Para tal é preciso que apenas a imaginação fique no lugar singular e anônimo do poder (SANTIAGO, 2002, p. 67 – grifos meus).

Derrida também propõe uma reflexão a respeito do “pensamento fascista” quando comenta a noção de “escamoteação”, ou seja, o gesto daqueles “que querem defender a propriedade e a integridade de seu interior: o corpo próprio, o nome próprio, a nação, o sangue, o território e os ‘direitos’ que aí se fundam” (DERRIDA, 1994, p. 195), enquanto

32 Em O cartão-postal Derrida questiona: “Quem escreve? Para quem? E para enviar, destinar, expedir o quê?” (DERRIDA, 2007, p.11).

33 No conto “O ovo e a galinha”, de Clarice Lispector, lê-se: “entender é a prova do erro”; e, ainda, “A lei geral para continuarmos vivos: pode-se dizer ‘um rosto bonito’, mas quem disser ‘o rosto’ morre; por ter esgotado o assunto” (LISPECTOR, 1999, p. 47-48).

(38)

“O oferecimento consiste em deixar: deixar ao outro o que lhe cabe de propriedade” (Ibidem, p. 45). No exórdio do livro, Derrida afirma:

É preciso falar do fantasma, até mesmo ao fantasma e com ele, uma vez que nenhuma ética, nenhuma política, revolucionária ou não, parece possível, pensável e justa, sem reconhecer em seu princípio o respeito por esses outros que não estão mais ou por esses outros que ainda não estão aí, presentemente vivos, quer já estejam mortos, quer ainda não tenham nascido. Justiça alguma [...] parece possível ou pensável sem o princípio de alguma responsabilidade (DERRIDA, 1994, p. 11-12 – grifos do autor).

Logo, essa responsabilidade para com o outro pode ser pensada em relação aos nomes e textos que se conjuram tanto no espaço da escritura como no ato da leitura, afinal, leitor e escritor se colocam na “singularidade de um lugar de fala, de um lugar de experiência e de um lugar de filiação, lugares e laços a partir dos quais, unicamente, podemos nos dirigir ao fantasma” (Ibidem, p. 28). Em outras palavras, é nisso que consiste o gesto político de um leitor (e também de um escritor): fazer viver os espectros. Trata-se, portanto, de conviver com “certos outros que não estão presentes”, isto é, “aprender a viver com os fantasmas, no encontro [...]. Não melhor, mais justamente. Mas com eles. [...] E este estar-com os espectros seria também [...] uma política da memória, da herança e das gerações” (Ibidem, p. 11 – grifos do autor). É isso que buscamos observar no texto de Ana C.: ao trazer diversos interlocutores à cena da escritura, como a tradição, a cultura

pop etc., a poeta “conjura” seus fantasmas e trama uma conversa com

eles. Por sua vez, a leitura de Derrida reafirma a potência desse gesto, pois ao evocar os espectros de Marx e os espectros do Marx, considerando todo o peso histórico que tais nomes carregam, percebe-se uma vez mais que são inumeráveis as relações que se podem estabelecer com um texto (e com um conceito; e com um nome).

Assim, para o leitor que se pretende “responsável” e “imaginativo”,

[...] é apenas após um longo período de convivência séria com os nomes, as definições e os conhecimentos [a esfera da potência] que se produz na alma a centelha que, inflamando-a,

(39)

marca a passagem da paixão à realização (AGAMBEN, 1999, p. 54).

A esfera da potência é, portanto, o espaço que se abre à imaginação, à criação. Em outras palavras, a esfera da potência “gesta” um acontecimento. Dessa forma, “aquele que estuda encontra-se no estado de quem recebeu um choque e fica estupefato diante daquilo que o tocou, incapaz, tanto de levar as coisas até o fim, como de se libertar delas” (Idem). Ou seja, lidar com Ana C. como Derrida, em sua leitura, lida com Marx (e com o comunismo), implica “ler, reler e discutir” sempre (com) os “espectros”, estejam eles no próprio texto ou rondando em torno dele. Em outras palavras, ler Ana C. implica estar em “correspondência completa” com esses “outros” envolvidos na cena da escritura, porque a potência do “encontro” é sempre inacabada, sempre em devir, sempre aberta à imaginação, à criação. E como lemos num dos instigantes ensaios de Aos nossos amigos, “Ninguém poderá dizer aquilo de que um encontro é capaz” (COMITÉ INVISÍVEL, 2015, p. 37). 2.1. “É para você que escrevo”

Em “La joven nacida”, Hélène Cixous afirma que

[…] escribir es trabajar; ser trabajado; (en) el entre, cuestionar (y dejarse cuestionar) el proceso del mismo y del otro sin el que nada está vivo; deshacer el trabajo de la muerte [do outro], deseando el conjunto de uno-con-el-otro, dinamizado al infinito por un incesante intercambio entre un sujeto y otro; sólo se conocen e se reinician a partir de lo más lejano – de sí mismo, del otro, del otro en mí.

Y no se produce sin riesgo, sin dolor, sin pérdida, de momentos de sí, de conciencia, de personas que se ha sido, que se superan, que se abandonan. Y no se produce sin un gasto, de sentido, de tiempo, de orientación (CIXOUS, 1995, p. 47 – grifos da autora).

Pensar a relação com um outro espectral, com um outro outro, fora da lógica dicotômica “eu/outro”, envolve, portanto, algumas perdas, a começar pela estabilidade de identidades. Mas essas perdas, embora remontem uma “economia dos afetos”, podem ser pensadas para além

(40)

das noções de “bom” e de “mau”, de “causa” e de “resultado”, pois “Os afetos só são definíveis na sua circunstancialidade e contingência, sem consistência substancial ou ontológica, eles se apresentam enquanto prática, como uma coreografia na qual os corpos se dispõem, se organizam e moderam, isto é: enquanto uma economia” (DI LEONE, 2015, p. 215); mas nessa economia das relações não se pode calcular ou prever essas perdas e/ou ganhos, nem quando ocorrerá e o quanto isso afetará as relações, já que o tempo dos afetos é outro, pois se dá “no instante em que já não mais há equilíbrio nem racionalidade, e ainda

não se deflagrou o caos do desequilíbrio” (Ibidem, p. 217 – grifos da

autora).

Não retomaremos aqui a discussão dos conceitos de “economia” e “oikonomia” que Luciana desenvolve a partir de Spinoza, Agamben, Bataille, entre outros autores. Interessa-nos, no entanto, pensar essa “coreografia dos corpos”, isto é, a relação entre os corpos que envolve o gesto de abrir-se ao “contato”, ao “contágio”, à “contaminação” do/pelo outro, como o faz, entre outros, Roberto Esposito, em Communitas, conforme explica Di Leone.34 A partir da análise de alguns poemas de

Nurit Kasztelan, Luciana afirma que “os paradoxos” nessas relações de contato – que envolvem o “vínculo espectral” – também são “um tipo de economia”, na qual “Economia e poesia poderiam ser pensadas como práticas infantis, como prática de montagem de restos” (DI LEONE, 2015, p. 219). Logo, “Perda e aquisição são, então, noções evidentemente relacionais, e como tais, de contato” (Idem). E para pensar essas relações de contato no texto propomos, a seguir, a observação de alguns poemas de A teus pés, último livro publicado por Ana Cristina Cesar, em 1982, o qual, além de poemas inéditos, reúne também os poemas publicados anteriormente em edições independentes.35

34 Nesse contexto, lemos no ensaio “La loi du genre” outra abordagem acerca da “contaminação” entre gêneros, tanto em relação aos textos quanto em relação aos corpos (gêneros sexuais): “Los géneros pasan de uno a otro. Y no se nos puede prohibir creer que entre la mezcla de género como locura de la diferencia sexual y la mezcla de géneros literarios hay alguna relación” (DERRIDA, 1980, p. 20).

35 O enfoque em nossa leitura é o livro A teus pés, no entanto, não deixaremos de “evocar” eventualmente outros poemas que fazem parte das edições póstumas.

(41)

Há duas questões iniciais que se colocam já na capa deste livro: quem estaria aos pés de quem? Ainda, estar “aos pés” de alguém implica um espaço, um espaço de encontro; e esse encontro envolve certo nível de intimidade. Logo, já no título do livro podemos dizer que há manifesto um desejo de encontro com um outro, seja ele quem for. A segunda questão é que a própria publicação, diferente das primeiras, que se deram de forma independente, aparece num lugar de transição, de passagem: da produção dita “marginal”, independente, à publicação “oficial”.36 E entre os poemas que compõem o livro, estão também os

que já haviam sido publicados anteriormente em “livrinhos” artesanais, com ou sem algumas alterações. Ou seja, há aí um transitar de um espaço a outro, de um contexto de produção e divulgação literárias a outro, assim como as vozes e os interlocutores, que transitam nos e entre os textos.37

Fiquemos, portanto, “aos pés” de alguns poemas nos quais se percebe a “presença espectral” de diversos interlocutores, ora explícitos e nomeados, ora implícitos. Entretanto, cabe dizer que lemos tais interlocutores, nomeados ou não, deslocados das suas referências “reais”, pois mesmo que tais referências sejam “detectáveis”,38 lemos

tais textos como um espaço onde “a intimidade era teatro” (p. 120). Ainda, tais referências se dão pela presença de fragmentos de outros textos e/ou diálogos explícitos e implícitos com estes, como observa de maneira bastante interessante Maria Lúcia de Barros Camargo em sua tese de doutorado, especialmente no capítulo IV, “Vampiragens” (CAMARGO, 2003, p. 141-211); no entanto, estas são observadas como fatos “sempre transformados pela linguagem que os poetiza” (Ibidem, p. 256). Assim, a intimidade encenada com e pelos interlocutores que

36 A teus pés foi a primeira publicação da poeta por uma editora (Brasiliense), e junto aos primeiros, Cenas de Abril (1979), Correspondência Completa (1979) e Luvas de Pelica (1980), encontra-se na antologia Poética (2013), que apresenta os livros em ordem cronológica e fragmentada, isto é, A teus pés, nesta antologia da Companhia das Letras, contém apenas os poemas inéditos. A referência utilizada aqui é esta antologia, por isso, ao citarmos os poemas, optamos por referenciar apenas as páginas onde se encontram – os grifos são meus.

37 São diversas as imagens nos poemas deste livro que se relacionam à ideia de passagem, de movimento, de transição, como “navios”, “barcos”, “cais”, “escadas”, “pontes” etc.

38 O “índice onomástico” que consta no final do livro é um dos caminhos de leitura nesse sentido, mas não percorreremos por ele.

Referências

Documentos relacionados

Consoante à citação acima, destaca-se mais uma vez a contraposição de Pascal em relação ao racionalismo hegemônico no século XVII, pois, enquanto os filósofos implicados

De qualquer forma, mais próximo de um romance divido em capítulos independentes do que em contos, Beatriz retoma um Tezza pouco inovador no estilo e no tema

A essa capacidade liga-se a idéia de impossível como possibilidade, coisa que o diabo da autonomia piagetiana, na verdade heteronomia, não abriga, nem pode realizar.. “O destino

Neste sentido, considerando esta problemática, esta tese tem por objetivo geral analisar o discurso de divulgação do Esperanto, proferido por Zamenhof ([1900] 1998),

(ética profissional, ética política, ética econômica) Os problemas da ética não são imutáveis: eles.. acompanham as mudanças de costumes e as variações

As molduras de gesso são elementos pré-fabricados, comprados já prontos, feitos em gesso, que são utilizados para cobrir os encontros, como é o caso das molduras para cobrir a

O que ele pedia era o poético, o delicioso, o vago; uma mulher bela e vaporosa, delgada se fosse possível, em todo o caso vaso de quimeras, com quem iria suspirar uma vida mais do

Têm potencial para brotos, as vagens macias podem ser usadas como verduras e as folhas têm usos similares à couve.. Boa fonte de energia, proteína, minerais e