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Museu da Imagem e do Som de São Paulo. Projeto Memórias do Vale do Paraíba 79

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Academic year: 2021

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Museu da Imagem e do

Som de São Paulo.

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QUISSAK JR.

Maria Leopoldina; Aldir Menezes Filho Coordenação José Luis de Sousa

Entrevista com o artista plástico Ernesto Sérgio Quissak, Quissak Júnior. Dia 22 de julho de 1982, na residência do artista à rua Rangel Pestana, 122, Guaratinguetá, São Paulo. Participam da entrevista a arquiteta Maria Emilia Leolpodina e o universitário Aldir Menezes Filho, coordenação José Luis de Souza.

Antes de passarmos a palavra aos en-trevistadores, gostaríamos que você fizesse sua autobiografia e falasse um pouco da sua infância, das coisas de Guaratinguetá. Elas se retratam nas obras e tudo mais...

Ernesto Sérgio Quissak Júnior

É um prazer tê-los aqui comigo e não se trata de um cumprimento formal, trata-se de um reconhecimento sincero por aqueles que veem aqui com a finalidade de incluir meu modesto depoimento às centenas, aos milhares de depoimentos que estão no

Museu da Imagem e do Som, assegurando

a memória das coisas da nossa cultura para a sociedade vindoura. para os jovens de amanhã, para os novos tecedores de auroras. para os novos sonhadores etc.. E talvez seja o Museu da Imagem e do Som um local que armazene, como um cofre sagrado, coisas reveladoras, estimuladoras, inspiradoras para a sociedade do amanhã.

Mas a pergunta que você me faz a res-peito da minha infância, uma espécie de au-tobiografia, é uma coisa horrível, é uma po-sição horrível em que eu fui colocado: fazer uma autobiografia, uma síntese biográfica, uma ameaça de biografia, principalmente a respeito da infância. Mas, eu, de certa for-ma, me sinto um tanto à vontade, porque é uma parte da minha vida em que não há comprometimento de ordem hierárquica, em que não se fala da vaidade, de coisas assim, pois se trata da infância, um período sagrado da nossa vida.

A minha infância toda transcorreu aqui em Guaratinguetá, na rua Sete de Setembro, 198. Trinta anos depois, eu dediquei uma série de trabalhos meus ao pequeno ninho 198, com recordações da casa onde morei. A Rua Sete de Setembro e as ruas vizinhas, a rua Padre Feijó, a rua Duque de Caxias, eram todas de terra e era costume, todos os dias, vermos as boiadas passarem a cami-nho da estação, onde os bois seriam embar-cados. Jogávamos bola, futebol com bola de meia como acontece em todas as cidades do interior. Isso era comum. E também sonhá-vamos. Um dia eu sonhei (estando lendo gibi) que era super-homem. Subi na caixa d’água da minha casa e gritei: Shazam! E dei um salto - direto para o hospital.

Os sonhos meus eram assim, eram so-nhos um pouco absurdos para quem se via, de certa forma, comprimido, com um mundo que não correspondia à verdadeira essência do que se passava na minha men-te ainda em formação, mas menmen-te pensan-te. E, éramos pobres, bastante pobres. Meu pai era professor secundário, pintor, escri-tor, poeta, jornalista, mas pensava em tudo. Na vida, encontrou tempo para tudo, me-nos para ganhar dinheiro. Meu sonho era ter uma bola de couro, uma bola número 4 de couro e a infância ia transcorrendo e eu jamais ganhei essa bola de couro. Vinha sempre uma bolinha de borracha, com uns cinco centímetros de diâmetro, mais ou me-nos, no Natal. Era uma decepção - e junto o almanaque do gibi, o almanaque do Globo

Juvenil.

Era congregado Mariano. Minha mãe obrigava-me a ir à missa sistematicamente, a confessar todas as semanas e eu pintava, incrivelmente pintava. No meio disso tudo aí, eu pintava. Tenho impressão até que de fraldas já estaria pintando; não porque eu tivesse talento ou meu pai alimentasse al-gum sonho para mim de ser seu continua-dor, mas para não encher a paciência, para ficar quieto no canto. Ele me empresta-va seu resto de material e eu ficaempresta-va ali no canto, a cobrir de cores tampas de caixas de sapato. A minha infância transcorreu de forma rotineira como todas as crianças

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QUISSAK JR.

aqui de Guaratinguetá. Eu era, nada mais

nada menos, do que uma pessoa sem dotes especiais, sem talentos especiais, sem nada de especial.

Eu era vizinho do lado direito dos Paula Santos, uma família importante, e os vizinhos todos se davam muitíssimo. Era comum o cumprimento, o bom dia, o boa tarde. Todos se conheciam pelos nomes e qualquer molecagem, consequentemente, que fizéssemos, já estaria, logo, na nossa casa, porque todos se conheciam. Afinal de contas, era uma cidade pacata, uma vida pacata. Mas mamãe era rigorosa e se eu fizesse qualquer coisa que fugisse aos cânones da época, apanhava para valer. Engraçado, essa questão tempo e espaço, como as coisas são diferentes. Hoje, tenho cinco filhos e vejo como cuido deles e como era cuidado naquela época por volta de 1938, 1940, 1942. Como disse, minha mãe era rigorosa e eu apanhava para valer. Não que fosse desamor da minha mãe, mas era uma coisa comum naquela época, um tratamento desse jeito. Colocava-se a pessoa debaixo de cinta mesmo ou debaixo de vassoura.

Era estudante na antiga Escola Normal Conselheiro Rodrigues Alves e em casa a ordem do dia era sempre a mesma: estudar para sempre tirar o primeiro lugar e eu estudava desesperadamente para tirar sempre o primeiro lugar. Mas a verdade é que eu nunca o consegui. (ele ri) E eu era um bom estudante. Meus professores ficaram marcados no meu coração. Lembro-me que, em 1965, quando tive o primeiro chamado êxito na vida artística, foi feita uma homenagem para mim e quando foram comunicar a homenagem para mim e para os meus, eu fiz um único pedido: que estivesse presente minha professora do primeiro ano primário, dona Palmira Paula Santos. Ela lá esteve e fiquei muitíssimo emocionado com isso.

No mais, eu ficava a testemunhar meu pai pintando, meu pai poetando, meu pai falando de coisas antigas. Ele era um ver-dadeiro armazém, ele não era um Museu da Imagem e do Som, mas era quase isso, de forma ambulante. Tinha uma memória

fantástica e normalmente falava à hora das refeições. Hoje não, hoje cada um almoça, janta numa hora diferente, mas naquele tempo a família toda deveria estar rigoro-samente reunida naquela hora. Ouvíamos relatos profundamente reveladores e eu os tenho guardados até hoje, a respeito de uma infinidade de coisas.

Meu pai era um homem maravilhoso, um homem extraordinário. Ainda há poucos dias fui ao cemitério: eu não resisto a isso, não por questão de morbidez, mas por questão realmente de saudades. Não consigo resistir à ideia de ir lá visitá-lo, porque eu não suporto as saudades, não suporto o fato dele estar morto. Sempre necessito da presença dele, ele me faz muita falta como um grande amigo, e como os amigos de uma forma geral fazem falta! Nas férias, eu ia ou para fazenda da minha irmã, a velha fazenda do Taquaral. Era uma fazenda de mil e quatrocentos alqueires, hoje reduzida a pequenos sítios, adentrava até o Estado de Minas. Ou, se não, ia para a fazenda dos parentes da minha mãe, lá na cidade de Queluz. Gostava muito de andar a cavalo, da liberdade que encontrava na fazenda e tudo o mais. Eu sei que, de certa forma, não faltaram elementos que ficaram fixados na minha mente e posteriormente foram registrados na minha obra. Ponto final. Eu era um menino comum.

Entrevistador

Gostaria, nas diversas vezes que estive aqui e conversamos principalmente sobre a obra do teu pai, sempre que saía lamentava não ter trazido um grava-dor e uma fita para registrar um pouco do muito que você dizia, das coisas, da viagem feita para o Rio. A gente queria também poder ter, nessa primeira gra-vação, - eu tenho certeza que será feita em duas ou três vezes o seu depoimen-to - um pouco sobre a história do teu pai, sobre o trabalho dele como fotó-grafo, como artista, como poeta, como amigo de uma forma geral.

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QUISSAK JR.

Quissak

Eu estaria comprometido, ao falar es-pontaneamente sobre meu pai, eu estaria comprometido porque o afeto, o amor me impediriam de ser absolutamente imparcial. Eu não sou de ler ou de premeditar coisas, mas prefiro ler alguma coisa que foi publi-cada por ocasião da morte dele e o faço com muito prazer e devo pedir desculpas, àque-les que vierem a ouvir esse depoimento, por fazê-lo dessa forma. Suponho que, como se disse numa conferência de um grande mestre que escutei no passado: o homem constroi muitas coisas, o homem modifica a superfície do planeta, porém, a memória humana é curta e os grandes esforços são esquecidos. Vou ler o que está escrito aqui, modificando alguma coisa.

Papai nasceu em Guaratinguetá, no dia primeiro de abril de 1891. Fez seus

estudos no Grupo Flamino Lessa, daqui de Guaratinguetá. Aos doze anos, foi para o Rio de Janeiro e se manteve como aluno livre de João Batista da Costa, um grande pintor da época, Rodolfo Amoedo. Convivendo, naquela capital, com Emílio de Menezes, Olavo Bilac, Luís Pistarini, Nazaré Menezes, Agripino Grieco e muitos outros intelectuais. Daí se originaram as atividades literárias e artísticas a que ele deu cumprimento no decorrer da vida. Era considerado, pela crítica da época, o maior artista daqui da região do Vale do Paraíba. Era expositor assíduo dos salões oficiais brasileiros e criador dos salões de arte, no nosso interior, do nosso interlande.

Hoje proliferam salões de arte em todas cidades do interior do país. Papai foi pio-neiro na criação desses salões de arte e seu nome ficou registrado em várias enciclopé-dias, em vários livros, que tratam do assun-to. Ele granjeou prêmios, recompensas por sua vida artística, porém, jamais ganhou dinheiro. Foi presidente da Instrução

Ar-tística do Brasil, vice-presidente do Grêmio Carlos Gomes e correspondente de

inúme-ras associações artísticas. Estimulou a ati-vidade teatral. Ainda me lembro, pessoal-mente: do lado da matriz de Santo Antônio

daqui de Guaratinguetá havia um edifício que tomava quase um quarto do quarteirão, onde estava instalada a Sociedade Operária

Guaratinguetaense e havia um grande

sa-lão com palco e tudo ... Eu me lembro que meu pai me levava lá,à noite, para assistir os ensaios de teatro, que ele dirigia. Os atores eram todos operários de nossas fábricas.

Entrou para o magistério em 1918 e aca-bou por apaixonar-se por esse mesmo ma-gistério e chegou a resultados surpreenden-tes, que o levaram a integrar-se, totalmente, nas questões do ensino e da educação. Foi professor de modelagem da antiga Escola

Normal de Guaratinguetá e, na época em

que era Secretário de Educação o saudoso professor Sudio Minuti foi, por este e por Lourenço Filho, reconduzido ao magistério, no cargo de professor de Desenho Pedagó-gico. Há também um aspecto interessante: a disciplina Desenho Pedagógico fora criada naquela época e papai foi o primeiro pro-fessor de Desenho Pedagógico, no Brasil, oficialmente nomeado. Depois da reforma de Fernando Azevedo, passou a lecionar também Desenho Geral e dedicar-se a di-versas teses referentes ao ensino rural.

Por diversas vezes, foi convidado pelo Secretário de Educação para fazer parte das bancas examinadoras de concursos para o ingresso no magistério secundário e normal do Estado, sendo levado à presidência das mesas, por várias vezes. Era um trabalhador incansável, muito idealista e fundou, com o professor Francisco Cirino e seus companheiros de banca, o Curso e Aperfeiçoamento de Desenho Pedagógico, em funcionamento no antigo Instituto

de Educação Caetano de Campos, da

Capital. Suas atividades de educador não foram adstritas ao campo escolar, mas às educacionais, de modo geral.

Caracterizando desprendimento e isen-ção de interesses materiais, fundou grêmios estudantis, motivando e integrando os es-tudantes nas atividades culturais, dentro de um ideal pleno de espírito comunitário, chegando a sacrificar-se a ponto de ocupar, por eleição e em um só ano, cinco presidên-cias de entidades culturais em

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Guaratingue-QUISSAK JR.

tá. Foi ainda fundador do Núcleo Municipal

da Associação Brasileira de Escritores e da Casa de Cultura de Guaratinguetá, da qual

era presidente, ao falecer.

Em toda sua vida, diz aqui o texto, o motivo financeiro nunca encontrou guarida. Toda sua experiência e esforço foram sempre doados a todos, na ânsia incontida e bem servir à Pátria - sem patriotismo afonsocelciano. Na direção do Colégio Estadual Escola

Normal Conselheiro Rodrigues Alves, de

Guaratinguetá sacrificou-se de todas as formas para que esse estabelecimento fosse, de fato, um exemplo de eficiência e não descansou enquanto não o viu transformado em Instituto de Educação. Foi ele quem transformou a Escola Normal em Instituto

de Educação, porque era uma das quatro

escolas mais antigas do Estado de São Paulo, Eram quatro, e exatamente recebiam o nome de presidentes, essas quatro escolas. O

Instituto de Educação, há anos atrás, estava

comemorando seus setenta e cinco anos. Tenho impressão de que nós estamos para perto dos oitenta anos. Aposentado, após trinta e poucos anos de serviços prestados ao Estado, aceitou o cargo de Diretor do Ginásio

Nogueira da Gama, de Guaratinguetá, cargo

esse em que se encontrava, quando foi colhido pela horrível moléstia que o levou.

Apesar de eu trabalhar com arte, eu não estou muito a fim de falar de mim mesmo e de arte e dessas coisas; estou a fim de falar a respeito de coisas humanas. Papai sabia que ia morrer de câncer. Sabia. No aniversário dele, dois anos antes de falecer, foi rezada uma missa na matriz de Guaratinguetá. A igreja estava repletissima e ele estava lá na frente, eu estava do lado dele, e olhando para trás com curiosidade pela enormidade das pessoas que tomavam conta do templo, via que todas estavam chorando, porque todas sabiam do que ele sofria, menos ele. Ele não derramou uma lágrima. Morreu firme e vertical. Até o último instante, manteve o sorriso e a bondade nos lábios.

Aos cinco de novembro de 1960, faleceu, mantendo até os últimos dias a paciência, a resignação, o desprendimento que o caracterizaram durante toda a sua profícua

existência.Foi pintor, artista, professor, verdadeiro educador e deixou isso como testamento, pois não poderia deixar coisa alguma, bem material algum, porque não os possuía. Ele queria deixar um testamento, não para a família, mas para todos e no leito de morte, redigiu um testamento e vou ler o testamento dele, porque esta é uma oportunidade única - e que o Museu me desculpe - de poder estender o testamento dele para aqueles que virão. O testamento de Ernesto Quissak:

Seu pensamento é falho ao meu respeito. Sou multimilionário me acredite. Possuo tudo que de bom existe e a tudo quanto é belo estou afeito. Abra seus olhos, veja o sol que lá no alto brilha: é meu. Veja o rio a correr entre campinas, os cafezais em flor, a noite enluarada, o mar a se atirar contra os rochedos a lutar, a lutar. Veja o dia morrendo, o poente em fogo, a estrela matutina e Vênus a brilhar. No beiral desta casa as velhas trepadeiras e por entre as folhagens mil pássaros em festa. Veja as crianças brincando, lindos enfeites na terra e os velhos, bem velhinhos de cabelos brancos como saudade personificada, passando pela nossa porta. A agitação do dia, o silêncio profundo da noite. Já viste tudo isto? Já sentiste tudo isto? Pois tudo me pertence. É o meu tesouro, meu grande capital. O imenso capital dado por Deus, através dos sentidos que me deu, de um coração sem mágoas nem rancor, desta alma sequiosa de beleza, desta vida voltada para o bem, voltada para o amor. É como vê, minha amiga, uma riqueza sem par, que vem de longe, milenar, alegre, pura, florida. Que Deus

ao me ver morrer, lhe dará com

a própria mão, numa singela escritura na forma de um coração.

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QUISSAK JR.

O estilo é acadêmico. A vida de meu pai foi acadêmica e o mundo posterior que ele não viu foi um mundo de grandes transformações e de modernismos. Mas hoje soube pelo meu colega Mário Gruder, que se desenvolveu nos Estados Unidos um movimento de retorno ao passado, às verdades do século anterior e uma reanálise completa daquilo que pejorativamente nós chamamos de acadêmico e os jovens chamam de quadrado, careta. Lá nos EUA, atualmente, estão ressurgindo todos os grandes nomes que foram massacrados pela crítica governóide. Aqui no Brasil, espero que seja feito o mesmo para consagrar e fazer justiça aos grandes mestres do passado que tivemos: Meirelles, Pedro Américo, Rodolfo Amoedo, Eliseu Visconti e assim centenas e centenas de outros. Antonio Parreiras e Oscar Pereira da Silva etc..

Há necessidade de se reanalisar, pro-fundamente, estes aspectos de conceitos dogmáticos que são criados, em determi-nada época, e que parecem ser verdades eternas em que nossa visão parece que vai do lóbulo occiptal à ponta do nariz e não enxergamos coisa alguma, vemos tudo de-formado. após essa reanálise, iremos verifi-car, realmente, onde estão os valores. Onde estão aqueles verdadeiros homens que se constituíram nos pilares que deram susten-tação à formação e manutenção da eventu-al glória da nossa nacioneventu-alidade, em termos de Brasil.

Conforme já havia lhe dito, da última vez em que estive aqui em sua casa, é muito mais interessante - do que se documentar a vida e obra numa gravação de depoimento -, realmente, gravar os pensamento e as ideias, o lado humano das coisas e tudo mais. A vida, os trabalhos, seus quadros e tantos catálogos que estão nas críticas especializadas dos jornais, que estão nos livros. Eu gostaria que você se estendesse um pouco a respeito do trabalho de seu pai como fotógrafo.

O professor Bardi, que é o Presidente do Museu de Arte de São Paulo, esteve cer-ta época, aqui, em casa e tivemos uma lon-ga conversa. Foi uma tarde agradabilíssima, ele tomou contato com a obra fotográfica

de meu pai e fez questão de levar para o

Museu todo o material de que eu dispunha,

para que lá permanecesse no acervo. Re-almente, nas declarações que fiz anterior-mente, não toquei nesse aspecto que foi, na verdade, na maior parte da vida de meu pai, seu verdadeiro ganha pão. Era fotógrafo e foi um dos pioneiros, naquela época, a usar chapas fotográficas de vinco. Existem fa-tos muito curiosos, mas inicialmente devo dizer como é que ele se transformou em fotógrafo, numa época em que a tecnolo-gia não existia e não era fácil o acesso ou o domínio das máquinas fotográficas, ver-dadeiros trambolhos, enormíssimas e que dependiam mais dos cronômetros que es-tavam mais na mente do indivíduo do que propriamente na intrincada aparelhagem.

Papai, quando menino, com oito ou nove anos de idade, residia em Aparecida, terra da nossa Padroeira e, já naquela época, no limiar do século, no limiar de 1900, já os romeiros chegavam à Aparecida em profusão, e o ganha pão do papai era carregar as malas para eles, embrulhos, cestas, pacotes dos romeiros. Era isso que ele fazia.

Era filho de uma família númerosíssima: eram muitos os irmãos e minha avó, mãe de meu pai, era parteira e foi a única parteira nesse trecho de Guaratinguetá/Aparecida. Praticamente, portanto, não existe família, desta região, até hoje, que não tenha tido um dos seus elementos nascidos nas mãos de minha avó, Dona Zefa.

Certo dia apareceu em Aparecida um fotógrafo para cumprir um contrato feito com o Governo Federal. Não havia naquela época, logicamente, levantamento aero-fotográfico. Então, era necessário que a coisa fosse feita no pé dois, ou seja, andando ou em lombo de mula. E era necessário, uma retificação do traçado da estrada de ferro Central do Brasil e documentar a topografia de toda essa região. Foi contratado, então, um fotógrafo português de Barcelos, cujo nome e sobrenome era francês, mas ele era português legítimo, chamado Augusto Socazo. Ele estava à cata de um garoto que carregasse a chamada tralha para ele. O

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QUISSAK JR.

garoto foi meu pai. Meu pai, então, entrou

por esses cafundós todos, carregando a tralha de Augusto Socazo e no final das contas acabou aprendendo a fotografar.

Depois de anos de trabalho, quando foi encerrado o contrato, o compromisso, Augusto Socazo voltou para Portugal. Mas, nesse meio tempo, ele fez tamanha amizade com meu pai, que resolveu deixar-lhe uma lembrança. Foi uma lembrança preciosa: deixou todo o seu material; deixou os cava-letes, as máquinas fotográficas e como sa-ber fotografar. Essa foi a lembrança maior. Assim meu pai nasceu como fotógrafo, aos doze anos de idade. Nos traços biográficos anteriores, sobre os quais já falei, ele foi para o Rio de Janeiro aos doze anos de ida-de, com o intuito de ser fotógrafo. Imagine, nessa idade! Mas ele não conseguiu fazer nada como fotógrafo, no Rio de Janeiro.

Chegou a engraxar sapatos na antiga Cinelândia. Há um fato curiosíssimo: surgiu um companheiro para engraxar sapatos, que falava extremamente bem, tinha uma mente privilegiada e tornou-se um companheiro extraordinário do meu pai e chegou a convidá-lo para morarem juntos na casa de um dos grandes intelectuais do Rio de Janeiro, do qual eu não me lembro o nome agora. Pois bem, esse rapaz, nascido em São Bento do Sapucaí, que se tornou grande amigo de papai naquela época, veio a ser, posteriormente, um homem que quase teve a nação na mãos, chamado Plínio Salgado. Posteriormente, quando, por vários motivos, papai voltou para Guaratinguetá, instalou seu ateliê de fotografia.

Era casado duas vezes e, à época da sua primeira esposa, da qual teve três filhos, instalou seu ateliê de fotografia. Já quando do segundo casamento, à epoca em que eu nasci, tinha se despedido da sua vida de fotógrafo. Foi quando apareceu um senhor em nossa casa e disse, com muita dificuldade e pouquíssimas palavras, se o papai permitiria que ele se estabelecesse aqui em Guaratinguetá. Notem o respeito que havia: naquela época se pedia licença para se estabelecer num lugar, para fazer uma eventual concorrência. Esse homem

chamava-se Emille Schellemberg, um alemão que acabava de chegar da Europa. O papai falou: com o maior prazer, eu não só permito como entrego toda a minha clientela a você.

Mas, durante a época, em que o papai foi um dos pioneiros da fotografia, chegou a fotografar coisas curiosíssimas. Não sei se em 1912 ou 1913, houve a notícia de que algo de extraordinário iria acontecer, algo de fantástico, o primeiro reid do mais pesado que o ar iria desenrolar-se sobre o céu do Vale do Paraíba, num voo - São Paulo, Rio de Janeiro - por Eduardo Chaves. Papai levou sua máquina fotográfica enorme, de madeira; levou-a para o descampado onde, segundo constava, Eduardo Chaves, Edu Chaves iria reabastecer seu avião e ele conseguiu fotografar Eduardo Chaves chegando, pousando em Guaratinguetá, em determinado rincão de nosso solo.

O que existe de curioso no espetáculo? Quando meu pai era diretor do Instituto de Educação, foi a um banquete, almoço festi-vo na Escola de Especialistas de Aeronáuti-ca na nossa cidade e, num determinado mo-mento, resolveu fazer uso da palavra e disse que em 1912 ou 1913 havia fotografado, exa-tamente no mesmo lugar, onde hoje está instalada a Escola de Aeronáutica, o pri-meiro pouso do mais pesado do que o ar na América do Sul. Todos riram dele. Então, ele doido da vida, saiu do banquete, foi à minha casa, foi lá no fundo do quintal, onde tinha um quartinho, em que guardava os negati-vos, pegou a chapa fotográfica e voltou ao banquete ainda em tempo e mostrou para todos a chapa fotográfica, demonstrando essa estranha coincidência, esta magia do tempo em que exatamente onde a Escola de

Especialistas da Aeronáutica está instalada

hoje, foi o local em que se desenvolveu esse episódio de certa forma de grande impor-tância para a história.

A obra dele está lá, guardada nos arquivos do Museu de Arte de São Paulo a pedido do professor Bardi, de forma limitada, porque a totalidade das chapas fotográficas que eram milhares e que estavam nesse quartinho no fundo do quintal, fui eu e mais alguns

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QUISSAK JR.

moleques da rua, do bairro, os responsáveis pela destruição, porque nós vivíamos em cima dos muros dessa casinha e as paredes caíram e quando caíram, simplesmente moeram todas as chapas fotográficas, aos milhares. O que é lamentável, quer dizer, já comecei sendo criminoso muito cedo.

É de se compreender que até hoje eu me mantenho como o homem menos viajado que existe. Até o Clarivaldo Prado Valadares uma vez chamou-me de O Recluso

de Guaratinguetá e eu me mantenho como

recluso até hoje e amo profundamente esta cidade, da qual me orgulho de ter feito o pavilhão. Amo o Vale do Paraíba que é abençoado com dois limites maravilhosos - a serra do Mar e a serra da Mantiqueira -, por onde os bandeirantes passaram, saíram para conquistar nosso território, assegurar a posse territorial das nossas fronteiras; berço do café que foi a nossa grande riqueza, berço de inúmeras personalidades que se constituíram em verdadeiros monumentos humanos para a história da Pátria e... Se esses motivos são significativos para eu me manter até hoje recluso em Guaratinguetá, vou confessar para você uma coisa que talvez possa ferir alguns, embora minha intenção não seja de ferir quem quer que seja.

Eu não fiquei por esses motivos; fiquei simplesmente porque aqui morava também um povo simples, gente simples, com há-bitos simples. com costumes e rituais sim-ples e os gestuais estavam nas nossas fes-tas populares. Sob a influência de meu pai, a minha pintura tinha traços praticamente acadêmicos. Aliás, eram obras péssimas, da pior qualidade como obras acadêmicas. Ninguém é bom juiz em causa própria, mas eu me esforço para desmentir essa máxima. Eram realmente ruins minhas obras, mas eram esforçadas, frutos de esforço. Não me limitava a pintar naturezas mortas, cheguei a pintar tipos populares, moleques de rua. A primeira vez em que entrei num salão ofi-cial de artes foi com uma cabecinha que eu chamo de Cabeça de Moleque, feita em 1953 e que é marca, porque estamos próximos a maio de 1983, quando eu completarei 30 anos de pintura. Um dos marcos da minha

vida como pintor é uma cabecinha de mole-que de rua, com seu boné.

A influência do papai sobre o meu trabalho foi grande, mas nossas brigas também eram homéricas, porque eu intuía que havia alguma coisa a mais, que havia a latitude do criar, mas eu não sabia como amparar-me, como sentir-me motivado para poder ter essa sensação de deslumbramento. Após cada discussão, sempre voltávamos ao começo e eu estava sempre sob a influência dele. Tanto assim. que praticamente mantive esse respeito, apesar das brigas, até o dia da morte dele. Inclusive, em muitos depoimentos que fiz em minha vida, está escrito que eu comecei a criar no dia em que meu pai morreu. Não vai aí nenhum desrespeito para com ele, mas a própria morte dele foi um instrumento de altíssima inspiração para mim, para eu poder descobrir a diferença entre pintar e criar.

Minhas obras daquele tempo ou desde quando pequeno, foram feitas em tampas de caixa de sapato, em tampinhas de caixa de charuto - que eram muito comuns naquela época - e eventualmente em telas que eram mais sofisticadas. Eu não iria pintar em tela, que era uma coisa muito cara para nós, quando eu mal sabia dar trato às tintas, trabalhar com pinceis. Mas já estava caracterizado um grande amor meu pela pintura, um grande amor pela arte. Produzi bastante, produzi até demais e eu não era profissional, era um amador. Minhas obras eram dadas de presente, simplesmente. De quando em vez me aparece, em alguma exposição, alguém com uma obra aí da minha pré-história, querendo que eu assine e eu digo: mas se eu assinar vou tirar a autenticidade desse trabalho; esse trabalho, nessa época, eu não assinava. Porém, para tranquilizar o possuidor da obra, eu assinava atrás, autenticando a obra.

Eu autentico, eu avalizo minhas obras daquela época e tenho razões para isso. Não acredito na pessoa que começa bem ou que começa mais ou menos porque, dados os meios de comunicação e as facilidades que a educação propicia e a vasta bibliografia

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QUISSAK JR.

existente, é fácil para a pessoa somar,

dividir, multiplicar, e fazer alguma coisa mais ou menos, um certo café com leite, uma certa coisa morna e começar mais ou menos. Acho que o verdadeiro itinerário do homem é começar mal, é começar virgem. Ele é virgem, nada sabe, é um ignorante, está estreando no mundo, tudo para ele é fonte de surpresa, é a primeira vez que vê. Então tem que começar mal e se quiser ser singular, se quiser ter personalidade, se quiser ser ele, se quiser produzir alguma coisa que tenha marca registrada e seja um depoimento digital e pessoal para a posteridade, então tem que obedecer à real natureza, à sua real natureza. Então deve começar aos tropeções e mal e foi assim que eu comecei: aos tropeções e mal.

Se por ventura, algum dia, descobri outras coisas e consegui dar certo desenvolvimento ao nível do meu trabalho, foi dentro das latitudes internas do meu espírito, como filho do Pai, ou seja, como filho de Deus. Não é a religiosidade dos tempos de Congregação Mariana que vem à tona para eu fazer uma afirmativa desse tipo, porque eu tenho convicção absoluta. Eu não tenho religião, eu sou hoje inteiramente religioso, tenho profunda convicção que o espírito do Pai é Aquele que empresta vida e se traduz em matéria, dentro da infinitude do universo que é o anti-limite do Pai. Somos seus filhos, somos a singularidade que emana dele, somos o pó que se transformou num ser bípede, pensante e temos que ser dignos desse Pai. Temos que nos inspirar Nele e quando nos inspiramos Nele, nos inspiramos em qualquer outra coisa, até mesmo os mistérios que existem na poeira, sob nossas sandálias cansadas. É daí que brota, que pode brotar alguma coisa, que pode brotar a arte.

De certa forma, minha vida foi um longo caminho, mas um longo caminho que eu percorri não com tristeza, que percorri com muita alegria e inteiramente dedicado a meu semelhante. Porque em toda a minha obra existe a máxima, ou seja, a dedicatória - máxima para mim: ao

homem, suprema finalidade. Eu nunca fui

um possível artista dedicado a documentar determinadas coisas. Quero documentar o espírito humano, os instantes preciosos em que o ser humano está em contato, sem saber, com o Absoluto, com o Todo. Ele está num processo de comunhão com o Todo, é isto que eu documento. Quero enaltecer a figura do homem, sou um humanista por excelência, cultuo o homem. Não me apego ao transitório, me interessa o Absoluto que existe no homem. Se não fora este motivo, deixaria de ser pintor, deixaria de tratar com as tintas, porque eu não encontraria motivação suficiente para dar continuidade a meu trabalho.

Entrevistador: Em seus últimos

traba-lhos tenho notado muito a presença da sua fa-mília: seus filhos, sua esposa; eu queria ouvir um pouco sobre isso.

Minha esposa chama-se Vilma, minha mulher, minha companheira, minha amiga. Eu tenho cinco filhos de Vilma: Ernesto, Wagner, Carla, Sérgio e Cláudio. Contando comigo, somos aqui sete, gosto muito de números. Estive presente a todos os partos da minha mulher e ajudei até em alguns e pintei meus filhos até mesmo quando nasceram. Porquê? Não sou um retratista. Não estou enclausurado de forma tal, a ver como única realidade minha família, isto seria um absurdo. Amo as famílias. A família é o núcleo de sustentação, a célula de sustentação, como a natureza se estrutura de uma forma tal, em que existem as células antes de haver os átomos. Antes de haver os elementos que estão dentro dos núcleos dos átomos - os elétrons, os prótons e os nêutrons - existem as células, o agrupamento de células, então existe a família. É o ninho, onde se cultivam o amor, a vida, o exemplo, a educação, a maneira de se dar os passos para sair-se do ninho, para sair de casa, que nem o pequeno periquito que nasceu aqui em casa, há questão de alguns dias, e que está tentando sair do seu ninho dentro de um viveiro, onde seus pais esperam ansiosos que ele saia e abra as asas e possa voar.

Acredito na família. Não é pela questão: Deus, família, liberdade. Não são aqueles

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QUISSAK JR.

ditos de caráter político e nada mais. É apenas uma coisa de caráter social, de caráter humano. Não posso pintar a humanidade, eu amo a humanidade, eu choro pela humanidade, eu rio com a humanidade. Todo o meu epitélio sofre, vibra com tudo que possa acontecer com a humanidade. Minha paixão é tanta, que eu prefiro nem sair de casa, por não poder tê-Ia toda, me aproximar todo dela, poder representá-Ia. Não tenho meios, sou medíocre a ponto de não poder traduzir em desenho e pintura a enormidade de sentimentos, que tenho com relação à humanidade. Mas, em escala minúscula, em escala primária, eu tento fazê-lo com a parcela da humanidade que vive comigo. Eu não estou pintando minha mulher, não estou pintando meus filhos, eu estou pintando a parcela da humanidade, que vive comigo.

Quando estou pintando, por exemplo, uma cena de maternidade, a pessoa leva-a para casa e diz: que beleza, que cena maravilhosa, como Quissak pinta a maternidade! Passam um dia, dois, chega lá uma certa segunda-feira, de um certo mês ou de um certo ano, conforme a argúcia e a delicadeza do espírito do possuidor da obra, então, repentinamente, ele diz: olha! Quissak nos pregou uma peça; pensávamos que trouxemos para casa uma maternidade e não é verdade, o que é que trouxemos? O que eles levaram para casa? O que eles levaram para casa foi uma parábola.

Nós queremos a paz, todos querem a paz, todos querem a união, todos querem a fraternidade e não sabem como buscar o exemplo para se estruturar em termos de paz, em termos de harmonia, em termos de tranquilidade e grandeza. Porque a verdadeira grandeza só pode germinar num campo que seja fértil de paz, de compreensão e de harmonia. A mãe é um ser. Quando ela gera outro ser, ela que era uma, singular, se dualizou, tornou-se duas. A coisa que era uma tornou-se duas. É o verso irmanado que nos une, é o sentido etimológico daquilo que nos circunda, o universo: unidade que se pluraliza, unidade que se derrama, unidade que se pluraliza

de maneira tal que podemos chegar a determinadas conclusões: que a unidade sem a diversidade é o caos, é a insolvência, é o nada.

Não podemos pretender essa unidade sem diversidade, porém, a diversidade sem a unidade é a desordem, é igualmente o mesmo caos. Por essa mesma razão, o sentido etimológico da palavra universo traduz que a única maneira de podermos sobreviver é dentro das leis sapientíssimas da própria natureza: unidade com diversidade ou diversidade com unidade. Essa parábola está escondida na maternidade. Um ser tornou-se dois e, apesar de ter-se tornado dois, continua um, pelos vínculos do afeto, pelos vínculos do amor. pelos vínculos do respeito, pelos vínculos, sutilíssimos da aproximação de dois espíritos que se amam. É a parábola da paz. Por isso esses trabalhos pertencem a uma série chamada Unos. Eu não pinto maternidades, eu pinto a paz.

Aldir Menezes Filho: Você falou, durante a entrevista que, em 1965, teve o seu primeiro sucesso no meio cultural. Gostaria de saber um pouco a respeito disso.

E também queria que você falasse do seu ingresso no meio artístico, cultural.

A pergunta sugere ou dá a impressão de quando eu consegui entrar na maçonaria ou coisas assim (risos). Mas. de qualquer forma, como se trata de um documentário a gente tem que responder. Morávamos Vilma, eu e as crianças, na rua Visconde, no número 465, em frente à Vila Alves e nossa casinha era muito pequena, cabia toda nessa sala, onde nós estamos. Como disse - já a muitos - atrás havia um morro enorme, quando chovia a água entrava pelos fundos da casa e levava tudo que encontrava no caminho e como os filhos eram muitos, então no chão eram quadros, nas paredes eram quadros e os barbantes unindo as paredes opostas sustentavam fraldas. Eram fraldas em quantidade, porque os filhos foram nascendo um após outro. Foi nessa casa da qual eu guardo muita saudade e

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QUISSAK JR.

que se eu pudesse compraria, apenas pelas

saudades que tenho dela e pelo que foi feito dentro dela. Eu gostaria de ter essa casa exclusivamente por essa questão de amor, de saudades. Porque? Porque naquela época, foi lá dentro que consegui imaginar, mentalizar, criar o que produzi, talvez até hoje, de mais significativo na minha obra.

Foi tudo de roldão, até os móveis. Vendi tudo que tinha, o pouco que tinha, os móveis, radinho de pilha, meus livros, para poder comprar material para fazer as obras. Porque eram obras enormes, obras monumentais, obras de vários metros cada uma e lá eu compus então três conceitos. Um conceito a respeito do desenho: que não se desenha apenas com o pincel, com o lápis. Desenha-se também cortando. Uma pessoa pode desenhar fazendo movimentos no ar com o próprio corpo, com a própria mão. Ela cria desenhos. Estabeleci um novo conceito de desenho e expus esses novos desenhos, essas novas criações. Naquela época em que o taxismo e o abstracionismo dominavam as bienais, eu queria chamar a atenção para um novo conceito de pintura, para o real conceito de pintura, para o real conceito de cor, para o real conceito de forma. É um assunto muitíssimo amplo, não tem como sintetizar. Somente poderia dizer o seguinte: que é um erro pensar-se que o negro é uma cor mórbida, ou seja, é uma anti-cor, é uma cor mórbida. Não é.

Se nós subirmos algumas centenas de quilômetros, ali, em pleno meio dia, estaremos na noite mais profunda. Quer dizer, a luz, na sua plenitude, ela, além de ser invisível, é negra. Ela contém todas as cores. Por isso pintei telas monumentais de negro e coloquei como temática o círculo, porque o círculo é a presença absoluta, é a forma em toda sua nobreza, é a equidistância absoluta do desenvolvimento do movimento, é o equilíbrio puro. A natureza sintetiza as estrelas, os planetas, os satélites, as moléculas, os átomos em formas circulares. O circulo é o exemplo típico da nobreza da forma e o negro, o exemplo típico da nobreza da cor, por isso uni os dois e compus minhas pinturas.

Quis dizer que a estrutura não é apenas aquilo que é acabado, aquilo que é construído em termos tridimensionais, volumétricos, mas é aquilo que pode ser, eventualmente bidimensional, mas que produz uma reação tridimensional, pluridimensional. A reação diante de um determinado trabalho, às vezes feito com os materiais mais insólitos, até com o próprio lixo, como eu fiz, disso resultam emoções profundas, pluridimensionais.

A emoção é que é escultórica. De nada adianta, portanto, eu pensar em construir esculturas em mármore, num trabalho árduo de muitos anos. Eu nada acrescentaria. É necessário que o homem compreenda seu próprio ambiente, movimente o próprio corpo no meio ambiente e sinta aquilo de forma escultórica e dinâmica. Então, por essa razão, eu construí esculturas também diferentes, com ideias diferentes. Enchi uma carreta com quinze trabalhos e os enviei para a Bienal de São Paulo, na época extremamente rigorosa - era o auge da época do rigor das Bienais, da grandeza das Bienais: a VIII Bienal de 1965, e fui aceito na plenitude da minha obra.

Foi a primeira vez, na história das bienais - tanto envolvendo a Bienal de Tóquio, de Paris, de Veneza, de São Paulo - a primeira vez que um praticante das artes entrava com toda sua obra em três setores distintos dentro de uma mostra. Era a primeira vez, simplesmente isso. Foi assim que entrei no mundo artístico. Entrei de forma escandalosa, então me chamavam

O caso Quissak. Não acreditavam que

existisse um indivíduo que pudesse produzir tudo aquilo. Imaginavam até que vários artistas tivessem se reunido para produzir aquilo e criar um golpe escandaloso na Bienal. O que não era verdade.

As ideias brotaram dentro de mim. Transferi para o plano da realidade essas ideias e as registrei e fiz com que elas per-corressem um itinerário através da Bienal de São Paulo.

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QUISSAK JR.

Entrevistador: 1965, foi um ano depois da

instalação da ditadura militar; isso, na época, teve alguma influência no seu trabalho? Na época ou mais tarde.

Os pensadores antigos diziam: o ho-mem é um animal político por natureza. Ele é político quando dá o seu primeiro grito - o seu primeiro choro reclamando - que quer dizer fome. Tudo tem sentido político. A palavra política é muito mais ampla do que simplesmente supomos, ela não fala apenas dos governantes, dos que ocupam o poder. A palavra política avança até sobre o comportamento dos filhos diante dos pais, comportamento da sociedade, das comuni-dades, dos clubes, no relacionamento entre duas pessoas. A palavra política é extrema-mente ampla.

Dentro desse sentido, meu trabalho é político. Ele fala de coisas fundamentais: da liberdade, da paz. Há dois dias atrás, eu estava com um queridíssimo amigo que foi meu companheiro quando lecionei - porque eu lecionei por 17 anos geometria descritiva e desenho pedagógico. Esse companheiro meu, cujo nome eu externo com o maior prazer, professor Afonso Gomes de Carvalho, então professor emérito de português, de línguas. Este professor estava dizendo que é um pesquisador da verdade, um homem que busca a verdade e eu, sabendo que ele possui um talento extraordinário e jamais se aventurou a escrever qualquer coisa, falei da obrigação que ele tinha de escrever alguma coisa, mesmo que fosse após a aposentadoria. Eu lhe disse: porque você não escreve um livro, eu posso até sugerir o título para você: O Peregrino da Verdade, ou se você quiser ser mais medieval: Aventuras

e desventuras de um Peregrino da Verdade.

A verdade é o que me interessa, a verdade é o que me obceca. Esta verdade se encontra nas entranhas do ser humano, nos mistérios do ser humano. Aqui mesmo, diante de mim, está uma frase publicada num anuário de arte internacional de Paris, em 1980, onde eu escrevi e foi publicado:

Que de um mundo de sombras, o homem possa reunir fragmentos de luz e com eles

reconstruir suas asas e suas vestes. Essa frase

não é literária. Que de um mundo de sombras. Espero que não haja sombras no amanhã, que o homem possa reunir fragmentos de luz.

E com eles reconstruir suas asas e suas vestes.

Essa é a real dimensão humana. O homem não é um ser que rasteja horizontal e tímido; ele é feito à imagem e semelhança do Todo, ele participa da onisciência, da onipresença, da onipotência.

Se ele fecha os olhos e pensa, peregrina por caminhos infindáveis e pode reunir ou reconstruir suas asas, suas vestes, recontactar seu cordão umbilical que, por arbítrio e presunção, ele cortou e unia a sua efetiva dimensão ao Pai, a Deus e justificava e motivava sua vida. Ele cortou-o por presunção, julgando que, à revelia das leis do universo, repito, à revelia das leis do universo, ele pudesse caminhar, pudesse fazer alguma coisa. Ele cortou o cordão umbilical. Que ele recontacte esse cordão umbilical! Isso é política. É política no plano cósmico, no plano mesquinho, rastejante, rasteiro como nós a compreendemos nos dias de hoje. Meu trabalho é político.

Entrevistador: Você chegou a conhecer pessoalmente Di Cavalcante, manteve alguma relação com ele?

Eu tive alguns contatos com Di Cavalcante e realmente não poderia deixar de tê-los. Um grande mestre de nossa cultura, da nossa arte e uma figura humana admirável. Eu tive contato com ele várias vezes. Foi num momento em que estávamos completamente afastados e ainda não tínhamos iniciado o nosso relacionamento, foi que ele, em visita ao Museu de Arte Moderna de São Paulo , ao MAM - que teve como diretora executiva a minha queridíssima amiga Dinah Lopes Coelho - foi que ele, em visita ao panorama atual da arte brasileira, disse uma coisa, que vou desdizer:

Quissak é realmente um grande artista.

Confesso a você o seguinte: eu ainda estou na fase do aprendizado, estou aprendendo. Eu peço a Deus que ele me conceda saúde

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QUISSAK JR.

para eu continuar a aprender e eu me exulto,

sou feliz por ser um permanente aprendiz.

Entrevistador: Quissak, falando sobre o seu pai você disse que a partir da morte dele seu processo e trabalho passou por um divisar de águas. Falando sobre a Bienal de 65, você coloca a descoberta de certos conceitos e passa a trabalhar em cima deles. Com esses elemen-tos, você classificaria o desenvolvimento de seu trabalho em etapas estanques ou seria alguma coisa mais ou menos linear?

Quando da morte de meu pai - em 5 de novembro de 1960-, é lógico que no dia se-guinte eu não iria pintar. Foi um longo pro-cesso de meditação e não pelo fato dele ter morrido - a associação não deve ser feita exatamente nesse ponto e sim pelo fato de eu ter testemunhado seu viver, sua nobre-za no sofrer durante cinco anos, que me fez compreender muito dos mistérios humanos e isto então me inspirou, motivou-me, fez com que eu tentasse não só poder cumprir a minha peregrinação - eu não gosto de ser chamado de pintor, prefiro ser chamado de poeta-; a minha peregrinação de poeta, mas poder também, de certa forma, agradecer o muito que meu pai fez por mim; procurar honrá-lo, tentar ser seu continuador.

Quando chegou 1955, estava perfei-tamente amadurecido meu pensamento e dentre as obras que fiz, as esculturas eram todas homenagens: uma delas era uma ho-menagem ao meu pai morto. Posso tentar descrevê-la: era uma peça negra de uns três metros de altura; havia um círculo enorme, acima desse círculo um pedaço de engrena-gem de uma antiga máquina que lembrava a existência do sol; um pedaço de corrente de bicicleta saía do centro desse sol e um círculo inteiro de ferro, como um pêndulo, marcava as horas da eternidade, balançan-do. Fincado sobre isso estava um cavalete enorme de ateliê mesmo, que foi feito pelas mãos do meu pai, que não podia nem com-prar um cavalete, por isso ele fez o seu - e este cavalete, com todas as marcas, com to-dos as suas impressões digitais foi fincado

em relevo sobre o conjunto de coisas, e lá no ponto de encontro entre a corrente e o sol, havia uma rosa branca e escrito nela:

homenagem ao meu pai morto e fixado no

ca-valete, o testamento dele.

Com relação à obra, como a poesia nas-ceu em mim a partir de 1960, quando ela foi amadurecendo até resultar nesses traba-lhos e os trabatraba-lhos posteriores que eu vim a fazer até poucos anos atrás, existe uma unidade absoluta. A diferença é apenas vi-sual, apenas na aparência, porque na essên-cia continua sendo a mesma coisa, a mesma preocupação: o homem. Não existe outra preocupação. Toda minha obra é diversifi-cada. Lembrem-se do que disse a respeito da palavra universo? Ela é diversificada, mas é una, por causa do referencial: o ho-mem.

Entrevistador: Você já falou a respeito de seu percurso da infância aos nossos dias e eu queria deixar registrado, nesse percurso, alguns nomes e algumas lembranças relativas a amigos.

Quissak:

Não foi à toa que uma das minhas esculturas da VIII Bienal era uma homenagem aos meus amigos. Eles foram muitos. Lembro-me perfeitamente dos amigos de infância, dos amigos de juventude. Sem dúvida, foram muitos. Mas eu gostaria aqui, não de falar dos amigos sociais, não dos amigos que todos conseguimos ter ao longo de nossas vidas. Eu gostaria de falar de alguns anônimos, porque à época eu também era um anônimo aqui da região, do Vale do Paraíba. Em Guaratinguetá, eram poucos os que pintavam. À época de meu pai, tinha o João Dora, o Jacques que era pintor de letreiro, pintava Casas Pernambucanas, Casa Mihe etc.. Os artistas amigos de meu pai eram pouquíssimos, eram dois ou três.

À minha época, não os encontrei em Guaratinguetá, fui encontrá-los em Tabauté. Havia o João Santos, um rapaz que morava debaixo de um viaduto na Dutra, pois não

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QUISSAK JR.

tinha condições de ter uma moradia. Um pintor talentosíssimo, com uma pintura aparentemente primitiva; era uma pintura que mais se aproximava a Gauguin. Uma coisa puríssima, formidável! Havia o Lúcio Moreira, o Régis Machado, o Zezito - um escultor, José Demétrio e havia o Anderson Fabiano. Todos de Taubaté . Eu era mais próximo do Anderson, quase que semanalmente eu me deslocava de Guaratinguetá e ia lá para conversar com ele. Fazia a viagem de ônibus, voltava de madrugada, de trem e conversávamos muito. O Anderson foi um dos injustiçados desse Vale do Paraíba, do mesmo jeito que João dos Santos continua sendo injustiçado.

Hoje, tenho companheiros, artistas aqui da região. Em Guaratinguetá mesmo, existem vários que surgiram com o decorrer dos anos. Um deles que há muitos anos mantém conversas comigo, tento auxiliá-lo na medida do possível, como Boanerges Pereira Leite, um escultor que está fazendo obras maravilhosas. Mas, voltando ao Anderson, eu me lembro que um dia fui dormir na casa dele, mas a casa era tão pobre, que fui dormir sobre um colchão nu e caiu uma lagartixa do telhado em cima da minha cara, eu não me esqueço desse dia.

Foi lá que aprendi a comer salada de broto de bambu e coisas assim. Pois bem, o Anderson é um grande injustiçado, eu desejo fazer o registro do nome dele aqui, nesse depoimento para que algum dia se possam prestar as devidas homenagens ao trabalho que ele desenvolveu. Alias, Anderson morreu também de câncer e o único que se lembrou dele ao morrer foi Lourenço Diateli. Diateli escreveu uma crônica tocante com o título: No nosso céu menos cores. E assim são os amigos, eles se vão, todos nós iremos um dia. Mas o que perdura é o sentido de amizade, a falta que cada um faz, cada um é insubstituível. Realmente, para a classe dos pintores quando um dos pintores, um dos artistas morre, um dos poetas morre, realmente o título é correto: No nosso céu

cada vez menos cores.

Entrevistador: Eu estava lembrando.

Quando você falava em Taubaté, daquele epi-sódio da figureira que fez um trabalho muito bonito e que você perguntou o nome ...

Essa figureira à qual você faz referência é a dona Benedita. Dona Benedita morava num casebre de um só cômodo. Já era ido-sa e tinha um companheiro muito jovem e muito ébrio e que pegava as suas figuras, feitas com muito talento, e levava para a praça do mercado para vender por vinte mil réis, naquela época, ou vinte cruzeiros. O próprio professor Bardi quando viu uma Santa Ceia aqui em minha casa, feita por dona Benedita, ficou fascinado e fez ques-tão que eu integrasse essa peça à mostra do potencial artístico aqui do Vale - Ação, Arte

do Vale do Paraíba.

Certo dia fui à casa de dona Benedita e, de repente, vi lá no canto uma escultura que está aqui quase na minha frente, que eu achei maravilhosa. Disse pra ela: Dona Be-nedita, vou levar essa obra pra mim. Quan-to a senhora quer por essa obra? Comprei a obra dela, mas voltei atrás e falei: Dona Benedita qual o nome que a senhora daria a essa obra? Dona Benedita, sem instrução alguma, sem sequer um curso primário, falou assim: Judite com a cabeça de

Holo-fernes. Recebi um impacto extraordinário,

porque um tema desta ordem voar pelo espaço, pelo tempo e chegar imaculado à mente de uma pessoa completamente in-culta e ser cristalizado e imortalizado pelo talento dessa pessoa, em pleno século XX, é uma verdadeira magia.

Esta é a magia da cultura e quando pensamos que essa magia só pode aconte-cer com os grandes, cometemos um grande erro. Sou totalmente contra os arquétipos, assim como sou totalmente contra os cli-chês. Os arquétipos definem aqueles que, por determinadas providências, peregrina-ram com êxito horizontal pela vida e os cli-chês são aqueles que se comportam numa legítima coreografia, onde não falta o vinco na cueca e a foto deles é 3x4.

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QUISSAK JR.

Entrevistador: Quissak, há minutos atrás

você disse que prefere ser chamado de poeta ao invés de pintor. Eu estava me lembrando tam-bém de uma de nossas conversas, em que você havia me falado daquela fase, em que você não conseguia pintar, e passou a escrever poemas.

Não se trata propriamente de uma justificativa, se trata de um remendo. Na verdade, eu não vejo o homem como a acadêmica classificação nos legou: o escultor, o pintor, o gravador, o desenhista etc.. Trata-se apenas de uma técnica, onde um trabalha a peso de martelo ou de fundições ou de modelagem, com as mãos cansadas. Outro trabalha com pinceis, outro trabalha com lápis, com nanquim. São técnicas, mas no fundo a matriz, a fonte geradora é a poesia; a poesia adentrou por uma linha de montagem e saiu transfigurada, com diversas aparências. Mas na raiz de tudo, na raiz da arte, existe a poesia; por essa razão, prefiro poetar a pintar.

É uma pena que nossos poetas tenham ido tão cedo, porque é altíssimo o preço de fazer poesia. Você também falou de uma época, em que eu não estava pintando ou pintava pouco e tentava escrever algumas coisas em forma de poesia. Tenho uma delas aqui, mas como se trata de algo longo, vou entregar para você o original e você dê a ele, original, o destino que julgar conveniente. Vou tentar ler alguns pedacinhos. Mais adiante na página 5 existe uma dedicatória:

“Dedico o presente trabalho aos milhões de homens, mulheres e crianças que esparsos, pelo mundo de hoje, sobrevivem no mais completo abandono, cercados de miséria, atormentados pela desesperança e pela fome, vítimas maiores da imperdoável indiferença e cegueira do mundo contemporâneo. Dedico-o de forma especial, aos jovens que também se contam aos milhões, esmagadora maioria da humana população, que nos rodeia. Que eles possam ter consciência da dramaticidade do momento histórico em que vivemos. Que possam, dentro de

poucos anos, assumir as rédeas do amanhã, fazendo surgir dos escombros e ruínas da humanidade desumana, uma Nova Aurora. Que sejam os precursores de novo ciclo de civilização, que inevitavelmente se avizinha. Finalmente, peço vênia para dedicá-lo àqueles que, com rara compreensão, e tão bondosamente repartem comigo no aconchego do lar o supremo privilégio da vida, por mais alto que seja seu preço: à minha esposa Vilma e aos nossos filhos: Ernesto, Wagner, Carla, Sérgio e Cláudio. Que o mundo que os espera pertença a homens renascidos, em que reine a paz, compreensão e a mais justa fraternidade, livre para sempre da cegueira fratricida.

O poema propriamente dito tem o tí-tulo de A oficina do Deus homem. E, à se-melhança de milhares e milhões de oficinas que existem por aí, abriga o esforço huma-no de tantos. Pretendo comparar a pequena oficina, a micro-oficina, a diminuta oficina, a caricata oficina, à grande oficina, que está em volta. Estabeleço o elo de união entre a micro-oficina e a macro-oficina e justifico o porquê do trabalho, da operosidade, do sonho, do medo, do encantamento e da es-perança. Começa com a descrição do que existe lá.

Entrevistador: Gostaria de ouvir um pou-co mais do que você tem a dizer, no campo da re-humanização da arte.

A re-humanização da arte foi um movi-mento que eu criei a partir da X Bienal e que tem sido meu agente motivador, até os dias de hoje. Registrei em vários textos, em de-zenas de textos, coisas relativas à re-huma-nização da arte, mas tenho aqui apenas dois deles. E não vou falar, prefiro ler para que possa ser mais sintético. Então aqui está um texto elaborado em 1970.

(Quissak lê o texto, que não vamos transcrever, pois aparecerá, integralmente, nesta obra).

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QUISSAK JR.

Entrevistador: Quissak, sem sair do

terre-no da re-humanização da arte, mas ainda terre-no terreno das ideias, eu gostaria, aliás nós gosta-ríamos de poder ouvir um pouco mais dos frag-mentos das tuas ideias.

Bem, numa pesquisa que foi feita pelas alunas do curso de história da arte do pro-fessor Afonso, de São Paulo, na página 63, ao final do depoimento, eu digo o seguinte:

Portanto, não posso finalizar o meu depoimento convictamente de arte sem que o mesmo seja fundamentalmente sobre o homem todo Deus. Com a maior humildade, mas sem subserviência, com a sinceridade que solenemente avalizo com a inteireza da minha vida voltada ao homem e à arte. Com o estímulo da minha crença no poder da criatividade, sabedor do quão infinitamente limitado sou. Consciente que não sendo consumidor de cultura e consequentemente não sendo culto pelas vias dos conceitos ortodoxos; consciente que a tentação de criar é ousadia que se impõe pois que tange a seara dos princípios. Com os riscos naturais da minha própria limitação de recursos, seria inepto se chamasse para dar sustentação às minhas ideias muletas estranhas.

Consciente que devo caminhar pelos meus próprios passos, mesmo que timida-mente e em quedas sucessivas, afirmo: de-dico-me à arte, sublime meio de fazer valer minhas ideias a respeito do homem. Não sou adepto de um culto a um perfeccionis-mo e auto-suficiência estéticos, em que o primor e exatidão técnicos formais e arte-sanais eliminem a essência e a ideia. Estou certo que as . ciências, religiões, política e governos deveriam - e mais cedo ou mais tarde isso acontecerá, pois não depende do arbítrio de quem quer que seja, simples-mente acontecerá como decorrência natu-ral e irrecusável - deveriam, repito, elimi-nar seus pontos divergentes em busca de uma harmonização; fugindo aos dogmatis-mos radicais frutos do egoísmo e cegueiras humanas que passassem a analisar o todo como um todo, em 360 graus, que jogas-sem fora as suas presunçosas e descabidas vestes falsamente coloridas como

finalida-des e as caracterizassem, humildemente, como meios em nome e em favor do único merecedor da suprema condição de finali-dade: o homem singular e universal.

Cumprido um itinerário antropológico escritural, social e histórico, com toda a óbvia coreografia do escalonamento em progressão pela imposição biológica, transcendente e coletiva, verificamos que o chamado peso da luta diária pela vida aumentou muitíssimas vezes de peso e que transformados nas suas próprias vítimas, os homens, após tão longa escalada, encerrada a fase da superação seletiva, atônitos flagram-se diante da própria estupidez, quando já não sentem o significado da própria vida.

Pois bem, dá-lhe um porquê e uma fina-lidade de fato e de direito ao homem, é dá--lhe, em ultima análise, um porque à vida. Agonizar num mundo estranho, alienígena no seu próprio planeta não é certamente o destino humano. Cumpre, mesmo que tar-diamente, que ele prove consigo mesmo ou com fatos, o contrário: renascer. O seu re-nascimento dar-se-á quando, por decorrên-cia de um engrandecimento interior, abrir mãos dos sucessivos epitélios, da aparên-cia, vaidade, egoísmo, cegueira dogmática, individualismo, hedonismo etc.. Roupagens diversificadas a camuflar o culto anti-ho-mem, anti-todo agentes conjugadores da primeira pessoa do singular.

Cumpre que o individualismo seja tituído pelo coletivismo, que o eu seja subs-tituído pelo nós. Só o renascimento do eu singular levará o homem à consciência do coletivo. O individualismo tem sua raízes fasciculadas presas ainda no estágio sub-hu-mano. Somente uma ética suprema e coletiva poderá ser adotada a harmonizar a desordem e o caos humanos, desde o plano íntimo até o social e econômico do mundo contempo-râneo. Demasiadamente baixo é o mínimo ético do mundo que testemunhamos para sustentá-lo. Não há outra saída a não ser ge-neralizar tal conceito, pois que diz respeito às múltiplas searas das atividades e reatividades humanas; correspondendo, em última análi-se, como efeitos negativos plurais, evidências irrecusáveis que implicam no reconhecimen-to de causa única.

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QUISSAK JR.

Os males não estão evidentemente

nas atividades humanas que, como já afirmei, são apenas meios. As causas estão no homem. Seria uma enorme tolice pretender a remoção de uma atmosfera de tão ampla negatividade atuando sobre os efeitos. Cumpre-nos atuar sobre a causa, a modificação e a mutação de novos dogmas e critérios para reger os destinos do mundo científico, econômico, político cultural, social, religioso ou artístico que seja, soam para mim como brincadeira imatura, inconstante e leviana. Minha ingenuidade assim estabelecida, quase que ludicamente, corresponde pela sua repetição na evidência de um hábito multissecular e que o retrospecto histórico nos prova não conseguiu levar a humanidade ao seu ideal caminho, nem tampouco estabelecer, após milênios, a tão ansiosa, esperada unidade humana.

Faço questão de mais uma vez repisar, que meu pensamento não divaga fazendo tais considerações por terrenos aparentemente estranhos à arte; desde que ele é a testemunha mais eloquente do homem e dos tempos e, a bem da verdade, a única manifestação de ordem superior que resta após a erosão, o desgaste e o esquecimento dos séculos. Cumpre-me, por destinação óbvia, tratar daquilo que me é mais familiar pois faz parte da própria gênese: o homem. Foi ela que vestiu o planeta e, apesar dos milênios e dos descaminhos, a única que se manteve fiel à sua condição primeira de manifestação positiva.

Dentro desse sentido, por mera questão de direito natural, deve a arte continuar a cumprir a sua natureza e função histórica e transcendente, daí o fato de ser a vanguardeira do espírito humano manter-se manter-sempre como chama viva a defendê-Io, mostrando mais uma vez - se necessário for, e necessário é - que o homem deve colocar de lado sua presunção e egoísmo dogmático e outras. E com a mais profunda e solene humildade reconhecer o seu descaminho e ganhar, por livre opção, o merecimento à sua plena verticalidade.

A arte trata do indizível. Só o crivo do tempo nos permitirá detectar o que ela quis dizer. Num mundo de negação, sobrevive ainda o artista a salvaguardar a crença e verticalidade humanas. Se somos beneficiados neste imenso testemunho não nos bastaria apenas a confortável posição de beneficiários dos seus aspectos menores, mas sim beneficiários da sua mensagem maior. Exatamente à arte, curiosamente sempre colocada como uma atividade marginal, caberá função maior na época em que vivemos, quando os fracassos forem múltiplos e o naufrágio quase total. Sobrevivente da falência humana ela cumprirá, estou certo, de forma superior, o destino que lhe é reservado. Poderá restabelecer a consciência e humildade humanas.

Para que tal aconteça, mesmo que plurivalente, deverá manter-se fiel à sua natureza; cega e surda àqueles que decretam o seu fim. Respeitosamente sorrio dos teóricos da estética que veem na arte finalidade e a ela atribuem uma arrogância que não posso aceitar. Dentro de um histerismo perfeccionista o ânimo de tais teóricos não faz outra coisa que esconder a validade episódica daquilo que tão bem defendem.

Igualmente, certo estou que muitos poderão sorrir das afirmações que faço, mas estou certíssimo que não será a contestação artesanal e dogmática, aleatória, lúdica, leviana e falsamente libertária que irão servir à ideia. É necessário, não porque eu diga, evidentemente, mas porque é, que a arte seja simples. Ser simples é o silêncio, um pedaço de grama ou um sopro na vida. Somente assim a ideia prevalecerá e sobreviverá ao culto da forma. Requintar e enaltecer apenas a forma é privá-Ia por correspondência da ideia. Que cada obra de arte poética, escultórica, literária, arquitetônica ou pictórica seja uma manifestação de simplicidade, aprisionada com a força da perenidade a sugerir dinâmicas e transmutações, obras definitivamente positivas. Assim foi a arte de ontem e assim será a arte do amanhã que

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fluirá do novo homem livre da sua condição de clichê que o reduziu a uma dimensão de 3x4, mas igualmente livre da sua eventual condição de arquétipo, curiosa imagem daqueles que peregrinaram com êxito episódico e convencional na linearidade do conhecimento da superfície da informática vazia e nula que teimaram colecionar.

O novo homem independerá de hierarquias horizontais, será simplesmente vertical, renascido. A arte do amanhã será um reflexo deste homem que cumpriu o itinerário da vida, da forma à ideia, da inconsciência à consciência, da matéria ao espírito, do episódico ao eterno, do corpo à coroa da grande unidade.

Esse é mais um fragmento das minhas ideias que espero, como sementes, possam germinar algum dia em algum canteiro. Não estarei aqui para testemunhar. Trabalho apenas nesta esperança.

Entrevistador: Depois dessa viagem ma-ravilhosa e cheia de emoção através de sua poesia, das suas ideias em relação à re-huma-nização da arte e do seu pensamento, enfim, eu gostaria de, com a mesma poesia, você pudesse trazer para o nosso depoimento algumas pala-vras sobra a cidade de Guaratinguetá: as ideias,

os conceitos para que pudéssemos encerrar

essa parte do depoimento ...

Um certo dia eu escrevi um texto chamado Ave Caída, por ocasião dos 75 anos de criação, de fundação do Instituto

de Educação Conselheiro Rodrigues de Barros e eu falava de um pardal que havia

caído sobre minha mesa e ali, tremendo, morreu e os alunos estavam indiferentes ao pássaro. Como eu disse, construí, baseado nesse acontecimento, o poema Ave Caída e ao final, digo que a ave não era um pardal era uma garça. Guaratinguetá possui como símbolo uma garça que espero nunca possa cair, possa sempre voar com as asas brancas, cortando os espaços, cumprindo com uma antiga província que já vai para quase quatro séculos de existência, seu papel histórico, seu papel social, seu papel cultural. Mesmo através de esforços anônimos.

Mas já que você falou em poesia eu preferia falar de lenda, não propriamente de poesia. A garça que corresponde ser a ave sagrada do antigo Egito era chamada Íbis e assim era cultuada, como sendo uma entidade divina, pelos antigos egípcios. Existe uma lenda que fala que ao limiar dos novos tempos uma branca ave alçaria voo das bandas do sul em direção ao norte... A única cidade que tem o nome desta ave, sagrada no antigo Egito, é nossa Guaratinguetá. E se eu falei no início do nosso depoimento, se eu falei de sonhos de criança, intraduzíveis, indizíveis, elaborados em noites mal dormidas sobre camas patentes faixa azul, continuando como criança a sonhar, a meditar eu desejo para essa nossa Guaratinguetá, eu desejo esse destino: que algum dia, por algum motivo, algo surja nessa terra, não sei quando, da forma mais livre, da forma mais pura e possa levar para o hemisfério norte, as chamadas velhas civilizações ..., aliás poderia acabar um preconceito porque desde o curso ginasial tenta-se provar a falsidade da autoctonia do homem brasileiro, acredito que antigas civilizações são as nossas aqui da América do Sul por todos os motivos, mas isso seria motivo para uma palestra de horas.

Mas, de qualquer forma, dentro dos conceitos acadêmicos que existem que definem as nações do hemisfério norte como as velhas nações, que elas pudessem receber a contribuição positiva que pudesse emanar dessa nossa pátria brasileira e porque não de Guaratinguetá? Porque não de alguém que talvez ainda esteja para nascer ou de alguns que ainda estejam para nascer? Esses votos são feitos não em nome da lógica, são feitos em nome do amor, do amor que tenho por essa terra, da qual me fiz um pavilhão.

Essa terra quando ainda tinha suas ruas de terra - perdoem-me a repetição do termo - e ouvíamos à porta de nossas casas, o ranger da roda dos carros de boi, deu à pátria brasileira um presidente, um dos grandes presidentes que nosso país teve, quando ela era muito menor. Ela deu um santo: Frei Antônio de Santana Galvão, que

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QUISSAK JR.

criou o Convento da Luz e foi um educador

de São Paulo. Ela deu grandes personagens, portanto, não é de todo inútil sonhar, é bom sonhar. Se fôssemos pensar apenas na realidade tal qual ela é, crua e desnuda, nós nos desencantarmos, perderíamos até mesmo a esperança e então, não por mim que estou a tentar emprestar algum conteúdo a este depoimento, mas em obediência a uma antiga e velha dívida, eu mantive e mantenho a minha fidelidade a este berço amigo que é a minha cidade de Guaratinguetá.

Aí se escondem as razões pelas quais eu daqui não saí, para poder dar cumprimento a uma promessa, a uma promessa que nunca declinei, que nunca contei: a promessa de tentar realizar os sonhos que meu pai não pode realizar. Tudo que disse, eu faço em homenagem à sua memória. Mas também me permito fazer em homenagem a Guaratinguetá, em homenagem ao Vale do Paraíba, em homenagem à terra paulista e, acima de tudo, em homenagem à terra brasileira. Que a terra brasileira possa ser aquela que será fonte de exemplo para as demais nações no novo ciclo de civilizações que certamente virá. Este é o meu sonho.

Disse anteriormente que não gostava de ser chamado de pintor, mas sim de poeta. Desejo agora confundir-me com os anônimos, com os cantadores, com os figureiros, com os praticantes de arte de todos os gêneros, das danças folclóricas, das crenças populares, dos rituais populares. Desejo também tornar-me anônimo e desejo e anseio que todas as palavras que disse sejam ditas, tendo sido ditas em nome deles. Que eles possam reviver de alguma forma, que eles possam renascer de alguma forma. Se há algo que eu possa fazer para contribuir para que tal aconteça, pela primeira vez nesse depoimento eu cito meu nome: a eles, Quissak Júnior oferece toda a sua gratidão e o seu mais profundo reconhecimento e amor.

Entrevistador: Eu queria aproveitar então

e agradecer em nome do Museu da Imagem e do

Som este momento de memória, de lembrança,

de ideias, e já de forma antecipada pedir para poder voltar mais vezes para falarmos um pouco mais de suas ideias e de outros temas...

O nosso agradecimento em nome do Museu

e em meu próprio, ao Quissak e à colaboração de Maria Emilia, Isabel Gondim e Zé Luís Medeiros Filho.

Quissak:

Bem, no início, eu tentei agradecer a honrosa presença do Zé Luís, o Medeiros e da Maria aqui na minha casa, no meu lar, mas pensei que no transcorrer deste de-poimento tanto o José Luís e muito mais o Medeiros e a Maria falariam. Eles vieram como uma trilogia que se manteve muda e eu agradeço por isso. Eu agradeço porque eu muito falei e quem muito fala muito erra. Então aos eventuais futuros leitores deste depoimento eu digo: que seja levado mais a sério, como mais e profundamente signifi-cativo, o silêncio da Maria, do Medeiros e do José Luís, do que propriamente as minhas palavras. Muito obrigado.

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