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PEREJIVÂNIE (VIVÊNCIA), AFETOS E SENTIDOS NA OBRA DE VIGOTSKI E NA PESQUISA EM EDUCAÇÃO

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ISSN 2176-1396

VIGOTSKI E NA PESQUISA EM EDUCAÇÃO

Eliana de Sousa Alencar Marques1 - UFPI Grupo de Trabalho- Psicologia da educação Agência financiadora: não contou com financiamento

Resumo

O texto apresenta reflexões acerca das ideias presentes na obra de Lev S. Vigotski que envolve a relação entre perejivânie (vivência), afetos e sentidos e que colaboram com a compreensão em torno do processo histórico de constituição do humano, no caso específico dessa pesquisa, de professores e alunos e de práticas educativas que resultam em experiências bem sucedidas. O objetivo do texto, portanto, é analisar a categoria Perejivânie (vivência) e sua importância na explicação do desenvolvimento do psiquismo humano que justifique sua utilização em pesquisas educacionais. A pesquisa que deu origem ao texto fundamentou-se nos textos pedológicos de Vigotski (1996, 2009) e nos textos de Espinosa no qual se discute a origem e a natureza dos afetos (2007, 2008). Além dessa fundamentação, as análises apoiam-se em resultados de pesquisa de doutoramento realizada entre os anos de 2011 e 2014 e que foi intitulada “O sócio-afetivo mediando a constituição de práticas educativas bem sucedidas na escola”. Os resultados dessa análise apontam para a importância dessa categoria no avanço do campo científico, sobretudo, para o campo da educação, e ainda que fazendo uso dessa categoria é possível avançar nas explicações sobre como professores e alunos na relação com o meio social vivem situações afetivas que são determinantes para o desenvolvimento de suas consciências e, consequentemente, para o futuro dos processos educativos dos quais fazem parte. Os enxertos da pesquisa analisados apontam para a possibilidade real de utilização da categoria perejivânie e seu potencial heurístico no desenvolvimento de pesquisas, desde que estas partam do pressuposto de que homem e mundo se constituem dialeticamente.

Palavras-chave: Perejivânie (vivência). Afetos. Sentidos. Pesquisa em educação.

1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Piauí. Professora do

Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Piauí. Vice-coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação na Psicologia Sócio-Histórica. esalencar123@gmail.com

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1 Introdução

A Psicologia Sócio-Histórica idealizada por Vigotski (2009) e seus discípulos, representa um projeto de ciência psicológica fundamentada nos princípios do Materialismo Histórico e Dialético. Com base nesses princípios, Vigotski se propõe a explicar o desenvolvimento do psiquismo humano partindo da tese de que o homem é um ser sociohistórico constituído pela mediação da sua relação com o mundo.

A adoção dessa concepção de homem implica analisá-lo no seu processo histórico de constituição e desenvolvimento, ou seja, estudá-lo na sua relação dialética com o mundo e com os outros homens. A Psicologia Sócio-Histórica propõe, para realização dessa análise, categorias que explicitam as mediações pelas quais homem e mundo se constituem. Dentre essas categorias, escolhemos analisar perejivânie (vivência) por considerarmos que esta, ao lado de afetos e sentidos , assume importância central na explicação da constituição histórica do homem. E o que vem a ser perejivânie? Qual sua importância na explicação do desenvolvimento do psiquismo humano? Como essa categoria poderá ser utilizada em pesquisas educacionais?

A categoria perejivânie (vivência) ainda pouco estudada no Brasil é apontada por Vigotski nos textos pedológicos como a unidade capaz de explicar o desenvolvimento da consciência humana na relação com o meio social. Considerando essa explicação do autor, desenvolvemos a seguinte ideia nesse texto: pesquisas que se propõem a investigar os processos de constituição histórica de professores e das práticas educativas desenvolvidas por esses profissionais poderão fazer uso dessa categoria. Portanto, o objetivo desse texto é discutir acerca do valor heurístico da categoria Perejivânie (vivência) idealizada por Vigotski, e sua utilização no desenvolvimento de pesquisas em educação. Faremos isso por meio da discussão acerca do conceito de perejivânie (vivência) e da sua relação com a produção de afetos e sentidos, em seguida nos deteremos em esclarecer o contexto em que essa categoria aparece na obra de Vigotski, bem como, seu lugar na obra desse teórico. O último ponto de discussão será a utilização dessa categoria no desenvolvimento de pesquisas em educação que tratam da formação de professores e práticas educativas.

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2 O que vem a ser Perejivânie (vivência) na obra de Vigotski

De acordo com Toassa (2011, 2010) Perejivanie é a tradução em português do termo russo переживание. Deriva do par de verbos russos perejit e perejivát, ambos originários do verbo jit (viver). Segundo a autora, trata-se de um termo de difícil tradução que aproxima-se do verbo alemão “Erlebnis” que significa viver, presenciar, experimentar, sofrer, suportar, aguentar.

Ainda segundo Toassa (2011,2010), os verbos russos se agrupam em pares de significado praticamente idênticos, diferenciando-se pelo seu aspecto: perfectivo e imperfectivo. O verbo perjivát e o substantivo perejivânie indicam, portanto perejivâniede conteúdo de finalização incerta, seja sua ocorrência habitual ou não. A inconclusão é, portanto, um aspecto ineliminável desses vocábulos. Em nossa língua, a palavra vivência é a tradução mais adequada. Perejivânie e experiência? Qual a diferença?

Para entender o sentido de perejivânie na obra de Vigotski é preciso diferenciar perejivânie de experiência. Experiência diz respeito a situações pelas quais o indivíduo passa e que nem sempre impactam seu desenvolvimento. Podemos passar por várias experiências ao longo da vida e muitas delas simplesmente são apagadas da nossa memória, ou tem pouco ou nenhuma importância no processo histórico de nosso desenvolvimento. Ao passo que vivenciar, ou seja, Pere-jivat significa “passar por meio da vida, estar em caminho permanente, em busca, sempre morrer e nascer, estar no processo de reformulação de si mesmo, no fluxo da vida. Ao contrário, se não vivenciar - perejit, isso significa não viver. (JEREBTSOV, 2014, p. 21).

Para Vigotski (2010), a perejivânie sempre remete a algo que impacta o sujeito, que o transforma, que o modifica e portanto, modifica sua relação com dada realidade. Quando passamos por situação de perejivânie (vivência), nada mais continua igual, nossa atitude muda em relação a situação vivida. Passamos a ter outra relação com o objeto pelo qual fomos afetados na situação social. Por essa razão perejivânie é compreendida por Vigotski como a unidade que melhor expressa a relação afeto/intelecto. A compreensão de Vigotski acerca de perejivânie como unidade que melhor expressa a totalidade afeto-intelecto reflete a influência das ideias de Espinosa2 sobre o pensamento do soviético.

2 Baruch de Espinosa foi um filósofo do século XVIII, famoso pela sua obra magna Ética. Nesta obra o autor discute sobre a força nos afetos

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Segundo Espinosa (2007, 2008), na sua relação com o mundo, o homem deixa marcas no mundo, ao mesmo tempo que também sofre as marcas impressas em seu corpo e mente, isto é, sofre afetações ao mesmo tempo que também produz afetações. Essas afetações têm a possibilidade de aumentar ou diminuir nossa capacidade de pensar e agir, porque para esse filósofo, não há separação entre corpo e mente.

O aumento da capacidade de agir e pensar são condições necessárias para o homem sair da condição de passividade e entrar em atividade. Com a capacidade de pensar e agir aumentadas, passamos a compreender mais claramente as coisas, ter mais clareza acerca do que constitui o real, e temos a possibilidade de agir ao invés de ser submisso às forças externas. Em síntese, significa agir com mais consciência. Portanto, para Espinosa, intelecto (consciência) e afeto (aquilo que se produz na relação com o real) se constituem. Essa ideia é fundamental para entender o valor de perejivânie na obra de Vigotski.

Na língua portuguesa o termo perejivânie é o mais adequado porque situações de perejivânie sempre implicam emoções, “as vivências, na língua russa, não são experiências indiferentes. Envolvem necessariamente qualidades emocionais, sensações e percepções, acarretando uma imersão do sujeito.” (TOASSA, 2011, p.34/35).

Sobre o contexto de surgimento dessa categoria, perejivânie aparece pela primeira vez no trabalho de crítica literária “A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca”, escrita por Vigotski, em 1915/1916. Em Psicologia da Arte 1915-1922 – apresenta seu método analítico-objetivo da reação estética (perejivânie estética). Nessa obra, perejivânie serve para explicar os processos psicológicos desencadeados pela arte. Com relação à Psicologia Sócio-Histórica, perejivânie toma acento quando Vigotski (2004, 1996) se propõe à explicação acerca do desenvolvimento do psiquismo humano.

De acordo com o soviético, o desenvolvimento do psiquismo humano marca o inicio de etapa superior do desenvolvimento do homem; etapa em que as leis gerais que vão determinar o seu curso e desenvolvimento não serão mais as leis biológicas, mas sim, as leis sócio-históricas. Nesse processo, a atividade representa a condição fundamental para o desenvolvimento da forma superior do psiquismo, que é a consciência humana. Portanto, a consciência encontra na atividade humana a condição de desenvolvimento e transformação. Isso significa que a consciência humana tem natureza sócio-histórica. Com essa explicação, Vigotski formula a tese de que a história deveria tornar-se “o princípio diretor da edificação da psicologia do homem.”(LEONTIEV, 1978, p. 153).

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O desenvolvimento histórico da consciência humana mediada pela atividade desencadeia na produção de significados e sentidos. Em outras palavras, em atividade, o homem se apropria da realidade e produz significações sobre ela. Essas significações medeiam suas ações, operações e tarefas. Por isso que a consciência humana, segundo Vigotski, pode ser estudada pela atividade, pois, a atividade é a consciência em movimento que se objetiva por meio da atividade, que pode ser prática ou psíquica. E o que são essas significações? Os significados e sentidos produzidos na consciência sobre a realidade objetiva e, que, ao ser internalizada, passa a constituir nossas ideias, representações, sentimentos, compreensões, imagens, expectativas, frustrações, etc, em outras palavras, passa a constituir nossa realidade subjetiva. A realidade objetiva e subjetiva, portanto, são produzidas em função das experiências humanas. Considerando que tudo pelo qual passamos ao longo da vida é subjetivado e damos o nome de experiência, como estas se transformam em vivência?

Os significados e os sentidos medeiam a transformação de experiências em vivências à medida que levam à produção de sentidos que alteram a forma do homem relacionar-se com a realidade. As vivências são fonte de afetos, portanto, medeiam a produção de sentidos que constituem modos particulares de ser pensar e agir dos homens. Os sentidos, portanto assumem importância fundamental na constituição da subjetividade humana, representam a sua unidade essencial e constitutiva, pois é a unidade que explica o desenvolvimento emocional como resultado de convergências e confrontos vivenciados nas relações sociais. São os sentidos produzidos em atividade que vão determinar se uma situação social produz experiência ou vivência.

Segundo Vigotski, a categoria perejivânie ajuda a explicar que o desenvolvimento da consciência é processo, ao mesmo tempo, racional e afetivo; ligado à vida real das pessoas, ou seja, à própria existência. As vivências englobam tanto a tomada de consciência quanto a relação afetiva com o meio e da pessoa consigo mesma, pela qual se dispõem, na atividade consciente, a compreensão dos acontecimentos e a relação afetiva com eles. (VIGOTSKI, 2010 ).

Elencamos quatro pontos chaves para entender a categoria perejivânie em Vigotski: 1) As vivências se manifestam na qualidade de principal característica da situação social de desenvolvimento; elas refletem a unidade do “interno” e do “externo” no desenvolvimento humano; 2) As vivências refletem a unidade afeto-intelecto; 3) As vivências são uma unidade (indicador integrativo) de análise da consciência e do desenvolvimento da personalidade, ou

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seja, com ajuda do conceito de perejivânie Vigotski tenta explicar as mudanças da personalidade como uma unidade completa, envolvendo muitas funções psicológicas ao mesmo tempo; 4) A perejivânie leva ao desenvolvimento da personalidade; é o fator e, ao mesmo tempo, a condição interna de uma neoformação. Segundo o soviético, o desenvolvimento etário pode ser representado como história de vivências da personalidade em formação. (JEREBTSOV, 2014).

Perejivânie, portanto, é a categoria na Psicologia Sócio-Histórica que possibilita ao pesquisador enxergar os fenômenos da existência humana no processo de evolução do sistema que os gera. Nesse sentido, compreendemos que a essência da perejivânie (vivência) se revela no processo de desenvolvimento histórico-cultural dos sujeitos, podendo ser compreendida como situação social de desenvolvimento.

Para Vigotski, a situação social e as especificidades do ser humano (criança, adolescente, jovem, adulto) formam uma unidade e, portanto, perejivânie não diz respeito meramente a uma particularidade da pessoa e nem ao ambiente social em que ela se encontra, mas à relação entre os dois. Tal processo se explica porque ambiente social não existe em absoluto; ao contrário, ambiente social tem sentidos diferentes para o ser humano. Ou seja, mesmo vivendo na mesma situação social, cada uma terá sua perejivanie (vivência) de modo diferenciado.

De acordo com Jerebtsov (2014, p. 19) perejivânies (vivências) revelam processos de “formação pela personalidade da sua relação com as situações da vida, a existência em geral com base nas formas e valores simbólicos transformados pela atividade interna, emprestados da cultura e devolvidos a ela”. Perejivanie (vivência) portanto, vista como situação social de desenvolvimento liga-se ao processo de significação, ou seja, aos significados e sentidos que os homens produzem sobre dada realidade:

A perejivânieé a unidade sobre a qual é difícil dizer se representa a influência do meio sobre a pessoa ou uma peculiaridade da própria pessoa. A perejivânieconstitui a unidade da personalidade e do entorno tal como figura no desenvolvimento. Portanto, no desenvolvimento, a “unidade dos elementos pessoais e ambientais se realiza em uma série de diversas vivências da criança”. (VIGOTSKI, 1996, p. 383).

Encaminhando-nos para uma síntese, podemos então inferir que perejivânies (vivências), portanto, podem ser compreendidas como o resultado das relações com outros, reduzidas ao plano interno. (JEREBTSOV, 2014, p. 21). Nesse caso, a perejivânie é o que permite compreender como cada pessoa se relaciona com o mundo e como esse mundo é subjetivado, visto que ela envolve a produção de afetos e sentidos.

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Tal análise, entretanto, não se produz de forma simples, pois requer o entendimento de como a pessoa toma consciência do meio e o concebe, de como ela se relaciona afetivamente com certos acontecimentos e de como esse relacionamento afetivo com o meio (re) orienta a produção de sentidos que são produzidos sobre o mundo que a constitui e que é constituído por ela.

Na tentativa de ilustrar o modo como essa categoria tem sido empregada na realização de pesquisas com dados empíricos, analisamos a seguir trechos de uma tese de doutorado na qual a pesquisadora, fazendo uso dessa categoria, analisa e explica o processo histórico de desenvolvimento de professores e alunos envolvidos com práticas educativas bem sucedidas. Informamos que a pesquisadora fez uso do termo “Vivência” e por essa razão esse será o termo usado nas análises.

3 A categoria Perejivanie (vivência) em pesquisas sobre formação de professores e práticas educativas

A pesquisa tratada nesse relato foi realizada em nível de doutoramento entre os anos de 2011 e 2014. A pesquisa foi intitulada “O sócio-afetivo mediando a constituição de práticas educativas bem sucedidas na escola” e teve o objetivo de investigar as mediações constitutivas de professores e alunos que desenvolvem práticas educativas bem sucedidas. A investigação envolveu 01 professor de matemática e 04 de seus ex-alunos. Os sujeitos foram escolhidos por serem reconhecidamente (em âmbito nacional e internacional) sujeitos de histórias bem sucedidas em educação.3

A pesquisa de natureza qualitativa foi realizada num primeiro momento com o professor, por meio de entrevista semiestruturada e do tipo reflexiva. Em um segundo momento, a pesquisadora reuniu-se com os alunos e propôs a escrita de um memorial por cada um deles que foi realizado em momento posterior. A pesquisadora escolheu esses instrumentos de produção de dados por entender que estes possibilitariam a apreensão das significações produzidas pelos sujeitos.

3 A história de sucesso do professor e dos alunos vem sendo divulgada amplamente pela mídia local e nacional desde 2011. A divulgação mais

recente foi veiculada em reportagem do Fantástico exibida na Rede Globo em 16/03/2014, como parte da série Educação.com. Para mais detalhes, consultar o link http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/03/escola-publica-de-cidade-do-piaui-tem-alunos-motivados-e-otimos-resultados.html.

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Nesse texto, os dados descritos e analisados são referentes a trechos das entrevistas que foram realizadas com o professor e parte dos memoriais desenvolvidos pelos alunos. Os trechos escolhidos evidenciam como a categoria vivência, orientada pelas ideias de Vigotski, fundamentou o processo analítico dos dados produzidos. O procedimento de análise empregado teve como base a proposta desenvolvida por Aguiar e Ozella (2013), conhecida como “Núcleos de Significação”. Esse procedimento analítico, segundo a pesquisadora, permite a apreensão, por meio das significações expressas pelo pensamento verbal, das mediações sociais constitutivas dos indivíduos em atividade. Em outras palavras, a apreensão das significações permite o acesso aos determinantes sócio-históricos e culturais da vida dos indivíduos que normalmente dizem respeito aos fatos vividos, isto é, as situações sociais, que foram mediando as escolhas pessoais, as decisões, as necessidades, as motivações de cada pessoa, etc.

Em síntese, a pesquisadora esclarece que a análise orientada por esse procedimento a levou à constituição dos núcleos de significação que representam a síntese das múltiplas determinações constitutivas de um professor e de alunos que vivenciam práticas educativas bem sucedidas.

Os trechos destacados a seguir (identificados como pré-indicadores) foram usados pela pesquisadora para esclarecer sobre o início da carreira e o processo de identificação do professor com a docência e, sobre sua relação com os alunos no processo ensino e aprendizagem da matemática. Sobre o início da carreira e o processo de identificação com a docência, a pesquisadora, destaca os seguintes trechos de uma das entrevistas realizada com o professor:

Ser professor era algo que eu não cogitava. Não passava pela minha cabeça. Eu queria era ser jogador de futebol. (primeira entrevista) : (MARQUES, 2014, p. 178): [...] E... Eu acho que o meu envolvimento com outros professores que viviam de sala de aula... Eu acabei me apegando muito com essa questão e... Já comecei no primeiro ano e já comecei a ir arrumar uma vaga para dar aula [...]. Passei dois

anos e meio trabalhando no primário e também no Ensino Fundamental II que era o

ginásio na época... Até que algumas... Fui tomando rumo e fiquei só no Ensino

Fundamental II e que acabou sendo melhor pra mim e... O inicio de carreira foi muito difícil, não foi fácil [...] (primeira entrevista) (MARQUES, 2014, p. 178)

A partir desses pré-indicadores, a pesquisadora analisa que:

O processo de formação inicial de Torricelli foi marcado por singularidades que mediaram sua identificação com a docência no Ensino Fundamental II (5º ao 9º ano); essa singularidade foi o envolvimento do professor com a sala de aula ainda no inicio do curso. O ingresso em contexto profissional levou-o a se relacionar com alunos com os quais passou a produzir sentidos que o faziam sentir-se mais seguro com relação a atividade. Isto é, os significados revelados no discurso mostram que o professor passou por uma intensa e singular situação social geradora de sentidos de segurança e

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conforto, significando que nessa etapa de ensino ele havia se encontrado, tomado rumo. A produção de novos sentidos caracteriza mudança na relação do

professor com a realidade (a futura profissão), indicando que essa situação social produziu desenvolvimento, portanto, constitui-se em vivência. (VIGOSTSKI,

1996). (MARQUES, 2014, p.182)

A pesquisadora identifica a formação inicial vivida com pessoas experientes como situação social geradora de desenvolvimento, identificada por Vigotski (1996) como vivência. Nesse processo ocorre a tomada de consciência do homem na sua relação com o meio. Portanto, Marques (2014) entende que a identificação com a docência foi um processo mediado por situação de vivência.

A pesquisadora também faz uso da categoria perejivâniepara explicar a relação do professor com a ideia de fazer os alunos aprenderem matemática. Para a pesquisadora, as significações revelam uma consciência produto de vivência:

[...]. E eu acabei... Quando comecei a dar aula, a querer sonhar muito com estes meus alunos... Mas... Assim... O que eu mais queria era que eles aprendessem aquela Matemática da série que ele estava e o embasamento deles era muito pouco.

(primeira entrevista). (MARQUES, 2014, p. 184)

Agora, vejamos a análise desse trecho realizada pela pesquisadora orientada pela categoria vivência:

O professor considerava que tal realização significava querer sonhar muito, algo difícil de conseguir. (...) o meio social no qual vivia o levava a acreditar que dificilmente a escola conseguia cumprir a função social de garantir que os alunos efetivamente aprendessem e se desenvolvessem. O professou passou a significar a aprendizagem dos alunos como um sonho. (...) Na sua história de vida escolar, o professor Torricelli passou por muitas dificuldades, relata que “não foi um aluno com grandes pendores”, tinha que se esforçar muito para aprender, tinha “que estudar muito.” Essas significações revelam que o professor foi fortemente afetado pela

situação vivida na condição de aluno. (...) a situação social vivida na adolescência

mediou a constituição de sentidos sobre ser aluno que mudariam sua relação com

os estudos, fazendo-o acreditar que para ser aluno é preciso se esforçar bastante, o

que significa, para ele, estudar muito. O que o professor viveu na adolescência na

condição de aluno levou-o a desenvolver forte senso de responsabilidade, estado

afetivo que vai mediar sua vida como professor. (MARQUES, 2014, p. 185)

A compreensão da pesquisadora apoia-se na premissa de que todos os fatos vividos, mesmo no passado não apagam da consciência os sentidos produzidos em função da vivência, podendo esses sentidos mediarem a atividade consciente dos sujeitos em contextos diferentes e em diferentes momentos históricos, conforme explicita o autor da Psicologia Socio-Histórica:

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[...] na perejivânie se reflete, por uma parte, o meio em sua relação comigo e o modo que o vivo e, por outra, se põem em manifesto as peculiaridades do desenvolvimento do meu próprio ‘eu’. Em minha perejivânie se manifestam, na medida em que participam, todas as minhas propriedades que se formaram ao longo de meu desenvolvimento em um momento determinado.4 ( VIGOTSKI, 1996, p. 383)

Em relação aos memoriais, a pesquisadora continua procedendo da mesma forma, ou seja, seleciona trechos das narrativas e explica que escolhe aqueles trechos que apontam para situações e relações vividas pelos alunos no processo de escolarização carregadas de afetos. Nesses trechos, verificamos que a pesquisadora escolhe certas situações e relações vividas no cotidiano escolar que sinalizam para o modo como esses alunos foram afetados pelas ações dos professores. A seguir trazemos dois trechos referentes à história de vida de uma das alunas que foi identificada pelo nome de Cecília:

Ao final do período eu estava sentada em um banco do departamento e o professor BB me chamou em sua sala, eu nem imaginava o que ele queria comigo. Ele me deu

um livro pra eu estudar e disse que era pra eu apresentar pra ele e pouco tempo depois passei a estudar na sala dele e ganhei bolsa de iniciação cientifica.

(memorial de Cecília) ( MARQUES, 2014, p. 284)

Com o apoio do professor BB que aguentou meus choros nas horas complicadas tive a oportunidade de concluir o mestrado e logo ingressar no doutorado. (memorial de Cecília). ( MARQUES, 2014, p. 284)

Esses trechos descritos no memorial de Cecilia ensejaram a seguinte análise por parte da pesquisadora, fazendo uso da categoria vivência:

Na Universidade a relação com os professores continua sendo uma mediação capaz de produzir em Cecília estados afetivos que, segundo Espinosa (2008), aumentam a capacidade de agir e de pensar. Das inúmeras experiências partilhadas pela aluna na sua vida acadêmica, ela significou aquela que lhe parece ser o momento decisivo no processo de transformação da sua condição de aluna: “Ao final do período eu estava sentada em um banco do departamento e o professor BB me chamou em sua sala [...] Ele me deu um livro pra eu estudar [...] pouco tempo depois passei a estudar na sala dele e ganhei bolsa de iniciação cientifica.” Essa situação tem para Cecília significação especial e evidencia que a aluna demonstra consciência de que aconteceu algo determinante que mudaria sua vida. Isso mostra que a participação na iniciação científica, a confiança do professor e o fato de sentir-se apoiada nos momentos difíceis, “Com o apoio do professor BB que aguentou meus choros nas horas complicadas”, representam vivências para a aluna, porque promoveram o desenvolvimento e a expansão de novos sentidos pessoais relacionados aos estudos. Cecília não apenas conseguiu concluir o Ensino Superior, mas também o desejo por continuar aprendendo e se desenvolvendo a motivam a continuar dando saltos cada vez mais longos na sua vida escolar, desejo que fica muito evidente quando ela afirma:“Penso em terminar o doutorado e fazer concurso pra alguma Universidade

4 Tradução livre do espanhol “en la vivencia se refleja, por una parte, el medio em su relación conmigo y el modo que lo vivo y, por outra, se

ponen de manifiesto las peculiaridades del desarrollo de mi proprio “yo”. En mi vivvencia se manifiestan en qué medida participan todas mis propiedades que se han formado a lo largo de mi desarrollo en um momento determinado.”

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Federal e incentivar jovens a seguir a carreira acadêmica e trabalhar com muito amor”. ( MARQUES, 2014, p. 285)

Por fim a pesquisadora conclui sua análise do trecho destacado que envolve situações da vida de Cecília dizendo o seguinte:

As vivências, segundo Vigotski (2010), são fonte inesgotável de novos afetos e, por isso mesmo, alteram a compreensão da realidade além de possibilitar a sua efetiva transformação. Foi isso que aconteceu com Cecília. Se antes, o sentido de estudar para ela representava a espera por recompensas e elogios, os afetos constituídos nessa nova relação conduzem-na a produção de novos sentidos. Estudar não é uma atividade realizada apenas para garantir-lhe algo imediato, é algo que a projeta para novos horizontes. Realiza-se com Cecília o que Vigotski (2003, p. 77) considera a meta da educação, “a criação de um ser humano que olhe para além do seu meio.” ( MARQUES, 2014, P. 285 )

As análises realizadas pela pesquisadora confirmam as ideias de Vigotski sobre a categoria perejivânie constituir-se como unidade dialética que explica o desenvolvimento da consciência do homem na sua relação com o meio social. No caso da pesquisa em tela, a pesquisadora analisa que as vivências constituídas em momentos distintos da vida do professor Toricelli (tanto pessoal como profissional), e dos alunos, assim como o desenvolvimento da prática educativa revelaram-se mediações importantes na produção de afetos que potencializam o desenvolvimento da consciência desses sujeitos. Com isso, entendemos que essa categoria, junto a outras que a Psicologia Sócio-Histórica nos apresenta, possui potencial heurístico a ser explorado em pesquisas que tratam de explicar o humano em seu processo histórico de desenvolvimento.

4 Considerações finais

O objetivo desse artigo foi discutir acerca do valor heurístico da categoria Perejivanie (vivência) idealizada por Vigotski e sua utilização no desenvolvimento de pesquisas em educação. A investigação que partiu das obras de apropriadores e do próprio Vigotski (1996) possibilitou a compreensão acerca da categoria perejivânie como a unidade que explica o desenvolvimento da consciência humana na relação com o meio. Isto é, perejivânie é a categoria que possibilita a compreensão do desenvolvimento histórico social da consciência humana. É importante esclarecer que perejivânie diz respeito a momentos históricos que indicam transformações, portanto, não se trata de analisar tudo o que foi vivido pelos indivíduos, mas,

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as peculiaridades constitutivas determinantes na definição das atitudes do sujeito frente dada situação.

Essa mudança de atitude dos sujeitos frente ao mundo e às pessoas reitera a ideia de que as significações se transformam no curso da vida que se vive, e que essas transformações indicam que houve mudança na relação do individuo com o mundo. Esse pressuposto encontra respaldo na categoria vivência, desenvolvida por Vigotski a fim de explicar a relação dialética entre homem e realidade. O psicólogo russo esclarece que a perejivânie não é algo apenas experimentado, mas também um trabalho interior, um trabalho mental, algo emocionalmente forte, que altera a relação do indivíduo com o mundo, porque envolve a produção de afetos.

Considerando a importância dessa categoria para o avanço do campo científico, sobretudo, para o campo da educação, nos propomos analisar resultados de pesquisa educacional que, fazendo uso dessa categoria, explicam como professores e alunos na relação com o meio social vivem situações que são determinantes para o desenvolvimento de suas consciências e, consequentemente, para o futuro dos processos educativos dos quais fazem parte. Os enxertos aqui analisados apontam para a possibilidade real de utilização da categoria e seu potencial heurístico no desenvolvimento de pesquisas, desde que estas partam do pressuposto de que homem e mundo se constituem dialeticamente.

REFERÊNCIAS

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ESPINOSA, B. de. Tratado da reforma do entendimento. São Paulo: Editora Escala, 2007. JEREBTSOV, Serguei. Gomel - a cidade de L.S. Vigotski . Pesquisas científicas

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LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa, Portugal: Horizonte Universitário, 1978.

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TOASSA, Gisele. Emoções e vivências em Vigotski. Campinas, SP: Papirus, 2011.

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Referências

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