Estilo
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Embora de caráter regionalista, a obra de Guimarães
Rosa supera o regionalismo tradicional, que ora
idealizava o sertanejo, ora se comprazia com aspectos
meramente pitorescos, com o realismo documental ou
com a transcrição da linguagem popular e coloquial.
Essa superação deve-se à riqueza de sua linguagem e
ao caráter universal das questões morais e metafísicas
presentes em sua obra.
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Criando um estilo absolutamente novo na ficção brasileira,
Guimarães Rosa estiliza o linguajar sertanejo, recria e
inventa palavras, mescla arcaísmos com vocábulos eruditos,
populares e modernos, combina de maneira original as
palavras, prefixos e sufixos, constrói uma sintaxe peculiar e
explora as possibilidades sonoras da linguagem, através de
aliterações, onomatopéias, hiatos, ecos, homofonias etc.
No cerne dessa linguagem nova, na qual prosa e poesia
confundem-se, estão as indagações universais do homem:
o sentido da vida e da morte, a existência ou não de Deus e
do diabo, o significado do amor, do ódio, da ambição etc.
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No que se refere à construção narrativa, observamos o
predomínio da introspecção, o rompimento com a
linearidade episódica, que se fragmenta em sua
estrutura, a valorização dos aspectos psicológicos das
personagens em detrimento das ações e a opção pelo
fluxo de consciência como elemento norteador do
processo narrativo. Quanto à temática, esta
apresenta-se profundamente marcada pelo existencialismo,
questionando sempre o “estar no mundo” e o sentido
da existência e focalizando a solidão do homem e sua
angustiante dualidade entre uma existência autêntica
ou inautêntica.
A terceira margem do rio
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“amo os grandes rios, pois são profundos
como a alma do homem. Na superfície são
muito vivazes e claros, mas nas profundezas
são tranqüilos e escuros como os sofrimentos
dos homens. Amo ainda mais uma coisa de
nossos grandes rios: a eternidade. Sim, rio é
uma palavra mágica para conjugar a
Resumo do conto
• A terceira margem do rio conta a história de um homem que evade de toda e qualquer convivência com a família e com a sociedade, preferindo a completa solidão do rio, lugar em que, dentro de uma canoa, rema “rio abaixo, rio a fora, rio a dentro”.
Por contradizer os padrões normais de comportamento, ele é tido como um desequilibrado.
O narrador-personagem é seu filho e relata todas as tentativa da família, parentes, vizinhos e conhecidos de estabelecer algum tipo de comunicação com o solitário remador. Contudo o pai recusa qualquer contato.
• A família, inicialmente aturdida com a atitude inusitada do pai, vai-se acostumando com seu abandono. Com o tempo, mudam-se da fazenda onde residiam; a irmã casa-se e vai embora, levando a mãe; o irmão também muda-se para outra cidade. Somente o narrador permanece.
Sua vida torna-se reclusa e sem sentido, a não ser pelo desejo obstinado de entender os motivos da ausência do pai: “Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio-pondo perpétuo.”
Um dia, dirige-se ao rio, grita pelo pai e propõe tomar o seu lugar na canoa. Mediante a concordância dele, o filho foge, apavorado, desistindo da idéia: “E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. (...) Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado.”
O narrador-personagem nos dá a conhecer um ser humano cujos ideais de vida divergem dos padrões aceitos como normais. Trata-se do pai do narrador, o qual com sua atitude obstinada, ao mesmo tempo, afronta e perturba seus familiares e conhecidos, que se vêem obrigados a
questionar as razões de seu isolamento e alienação.
O único a persistir na busca de entendimento da opção do pai é o narrador, que não descuida dele e chega a desejar substituí-lo. A escolha do isolamento no rio instiga permanentemente o filho. Este é levado a questionar o próprio existir humano.
Análise da obra
• A terceira margem do rio, da obra Primeiras estórias, de Guimarães Rosa, é narrado em primeira pessoa e é o mais famoso e o mais aberto conto do autor. Existe no conto uma intertextualidade bíblica com Noé.
Tempo
Neste conto o tempo cronológico é de um longo período, toda a vida do narrador. Mas a intensidade com que as impressões e o amadurecimento do narrador são trabalhados dão enfoque ao tempo psicológico.
Espaço
O espaço é delimitado pela presença concreta do rio, caracterizando a paisagem rural de sempre. Desse espaço, como foi comentado
anteriormente, emanam magia e transcendentalismo aos olhos do leitor, no ir e vir do rio e da vida.
• Os personagens são: filho (narrador-personagem), pai (“virara
cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia”), mãe, irmã, irmão, tio (irmão da mãe), mestre, Padre, dois soldados e jornalistas.
Esses personagens, sem nomes, acabam se caracterizando como tipos sociais, por suas funções na história. A observação desse
aspecto já mostra, no pai, a tendência ao isolamento. Sempre fora a mãe a responsável pelo comando prático da família. O pai, sempre quieto. O filho e narrador não foi aceito na infância para
companheiro do pai no seu desafio. Na maturidade, quando tem a oportunidade, acha não estar preparado para ir rumo ao
• Toda essa estranha história vem vazada no já comentado estilo típico de Guimarães Rosa. A oralidade é reproduzida na fala do narrador: Do que eu
mesmo em alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem ralhava no diário com a gente.
• As frases, curtas e coordenadas, independentes, garantem um ritmo lento e pausado à leitura: Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo
n'água, proava para cá concordando.
• A sintaxe é recriada de maneira inusitada, provocando estranhezas durante a leitura: "não fez a alguma recomendação", "nosso pai se
desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a
• • A repetição também é um recurso expressivo comum ao autor, como no caso: e o rio-rio-rio, o rio sempre fazendo perpétuo.
• Neologismos também estão presentes ("diluso", talvez variante de diluto, diluído; ou "bubuiasse") ao lado de termos regionais
como "trouxa", no sentido de comida e roupas, típico no falar dos boiadeiros; além de outras palavras pouco comuns: encalcou,
entestou etc.
• As figuras de linguagem reforçam o lado poético do conto como exemplificam a gradação "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!", a antítese "perto e longe de sua família dele", além do próprio
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Sem dúvida, todos esses recursos geram dificuldade ao leitor que desafia a obra rosiana. Mas, uma vez enfrentados, eles permitem o acesso ao mundo do "encantatório", ao mundo do desconhecido, da terceira margem, que só poderia ser recriado por uma linguagem também recriada e nova,
capaz de refletir todo o deslumbramento desse universo. A temática deste conto é a loucura.
Desde o título, o leitor já depara com o insólito da obra rosiana: o que vem a ser a terceira margem do rio? A expressão provoca o entendimento a fim de despertá-lo para o mundo do inconsciente, do abstrato. A terceira margem é aquilo que não se vê, que não se toca, que não se conhece. O pai, ao ir à procura da terceira margem do rio, busca o desconhecido dentro de si mesmo; o isolamento é a única maneira encontrada para procurar entender os mistérios da alma, o
incompreensível da vida. A estranha história do homem que abandona sua família para viver em uma canoa e nunca mais sair dela é o argumento exemplar usado pelo autor para discorrer sobre o medo do desconhecido.
O espelho
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O espelho é o centro da obra Primeiras Estórias,
de Guimarães Rosa, onde o narrador, em primeira
pessoa, conta de sua luta para provar a falta de
lógica e de sentido do mundo. Diante de um
espelho, foi descobrindo com o passar dos dias a
mentira que é a aparência humana. Num
processo de “desimaginar-se”, vai verificando que
o homem, como todas as coisas, não passa de
uma metáfora. No limite do absurdo, ele chega a
ver sua “forma” invisível.
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O tema da identidade é tratado através da metáfora do
ato de se ver e se reconhecer no reflexo dos espelhos.
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No conto reaparece a estrutura narrativa inovadora,
trata-se da relação diálogica de um narrador que não
se identifica nominalmente e que interpela o leitor por
"senhor". O narrador relata uma experiência insólita:
Se quer seguir narro-lhe; não uma aventura, mas
experiência, a que me induziram, alternadamente,
séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo,
desânimos, esforços. /.../ O senhor, por exemplo, que
sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na
verdade – um espelho?. Assim, o leitor é chamado a
• De tema metafísico, transcendente, o conto não é uma narrativa com história, intriga, no sentido tradicional. É uma experiência, como o próprio narrador personagem declara.
• Seguindo um método próprio, o narrador desenvolve a sua busca durante anos, experimentando as diferentes formas que podem brotar de sua própria imagem no espelho e eliminando todas, na tentativa de encontrar a sua verdadeira essência, livre de qualquer ilusão que os seus olhos pudessem criar.
• Após anos dessa experiência, o personagem chega ao ponto de não conseguir ver nenhuma imagem, quando está diante de um
espelho. Então, resolve parar por um bom tempo com as
experiências e não dirige mais o olhar a nenhum espelho. Porém, num dia, ele retoma essa experiência e consegue ver apenas um esboço muito mal feito do seu rosto, um quase rosto. Nesse
instante, o narrador se sente contente e tranqüilo e convida o leitor a refletir sobre o que é de fato a vida.
• O elemento anedótico consiste na situação absurda, relatada pelo narrador, de que é possível ver outras pessoas, objetos e até
animais no lugar da própria imagem no espelho. O narrador passou a acreditar nessa louca idéia, quando ainda era jovem e estava num lavatório, onde de súbito, se deparou com um perfil humano feio, desagradável que lhe gerou nojo e repulsa. Porém, essa figura era ele mesmo dentro de um jogo de ângulos produzido por dois
espelhos: um fixo na parede e outro numa porta lateral. A partir desse acontecimento, o narrador inicia uma busca pelo seu eu
através dos espelhos: comecei a procurar-me - ao eu por detrás de
mim - à tona dos espelhos.
• O conto é como um jogo da verdade. O espelho é o instrumento da análise. O narrador vai descendo em suas experiências até não
encontrar mais sua imagem: as máscaras (aparência) vão sendo destruídas. Por fim, começa a emergir no espelho uma outra imagem ...um rostinho de menino, de menos-que-menino.