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A Saga da cosmologia

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Academic year: 2021

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A Saga da cosmologia

Os mitos de origem de deuses e de homens, do céu e da Terra estão presentes na cultura desde seus primórdios. Uma visão da cosmologia, isto é, da ordem global do mundo, parece ter sido formulada muito cedo pelas civilizações antigas, cada qual a seu modo. No período helenístico clássico bem como no período renascentista, épocas de grande fertilidade do racionalismo no ocidente, foram propostos modelos cosmológicos “científicos”, no sentido de que buscava-se caracterizar a estrutura segundo a qual o mundo estava organizado. O mundo contudo era entendido, em essência, como o sistema solar e as estrelas fixas. A Via-Láctea, que é visível a olho nu, era conhecida desde a antiguidade. Contudo, foi a partir dos anos de 1600 que se começou a entender o que era, inicialmente por Galileu que a identificou como aglomerado de estrelas. Nos anos de 1700, Charles Messier catalogou uma centena de objetos celestes difusos: as nebulosas (nebulae). No mesmo período William Herschel descobriu inúmeras outras “nebulae" e, fazendo o posicionamento das estrelas no céu, foi o primeiro a propor uma forma para a Via-Láctea, dispondo, porém, o sol no seu centro.

Hoje pode nos parecer surpreendente, mas foi somente no começo do século XX, com o advento da moderna astronomia, que foi possível estabelecer métodos de medida de distâncias em larga escala, dos quais resultou a noção de que o universo transcende a nossa galáxia, a Via-Láctea, sendo esta uma galáxia ordinária dentre tantas outras. Apenas em 1912, a partir do trabalho de Henrietta Leavitt se tornaria possível desenvolver o método de se estimar distâncias além do que o método de paralaxe (cujo limite é de aproximadamente 1,6 x 103 anos luz)

permitia, quando esta estudou as propriedades das estrelas Cefeídas. Ainda, foi somente em 1918, que o grupo de astrônomos do Observatório de Monte Wilson, liderados por Harlow Shapley, estabeleceu que a Via-Láctea tem a forma de um disco cujo diâmetro é da ordem de 300.000 anos-luz, 10.000 anos-luz e espessura, estando o sistema solar a uma distância de 60.000 anos-luz do centro. Para Shapley, contudo, a galáxia (termo por ele cunhado) ainda era pensada como a totalidade do universo. Esta não era então uma opinião unanime. O grupo de astrônomos do Observatório Lick defendia a idéia dos

“universos ilha'' apontando as nebulosas como evidência. Estas seriam objetos semelhantes a própria Via-Láctea e fora dela. Na tentativa esclarecer a questão, a Academia Nacional de Ciências norte-americana promoveu um debate, em 1920, sobre a natureza das nebulosas, que ficaria chamado de “o grande debate''. Aí se confrontaram Shapley e Herber Curtis, do observatório Lick, não se havendo porém chegado a um veredito final sobre a natureza das nebulosas. Ironicamente, a sombra do grande Shapley, em Monte Wilson, estava aquele que iria mostrar que Curtis é quem estava certo: o ascendente Edwin Hubble.

A teoria da gravitação de Einstein, isto é, a Teoria da Relatividade Geral (TRG), foi finalizada em 19151. O interesse

inicial de Einstein pela cosmologia deveu-se à tentativa de construir um modelo de universo a partir de suas equações. Em 1917 supôs um universo estático fechado, sem fronteiras, permeado de matéria de forma homogênea. Ao colocar tais ingredientes em suas equações originais (as de 1915) constatou não haver solução com tais características. Em uma especulação desesperada, Einstein modificou suas equações da gravitação originais introduzindo um novo termo que seria identificado com uma repulsão cósmológica através da sua constante cosmológica, Λ. Mostrou então que seu modelo estático era solução das equações modificadas, tendo a constante cosmológica o papel de impedir o colapso gravitacional do universo2. A TRG se tornaria daí em diante o fundamento teórico pelo qual se poderia conceber e descrever diferentes modelos de universo e, de fato, surgiriam soluções das equações de Einstein correspondentes a cenários de universo dinâmico; sendo de particular importância as soluções obtidas em 1922, pelo matemático russo Aleksandr Friedmann3. Nas soluções de Friedmann assumia-se que o universo era espacialmente

homogêneo e isotrópico, em expansão e sem a inconveniente constante cosmológica. A suposta expansão, contudo, havia surgido no modelo de Friedmann apenas como conjectura e não por constituir-se uma base experimental. Retrospectivamente sabemos que desde 1912 Vesto Slipher havia sugerido que as nebulosas espirais e algumas elípticas se afastavam de nós a grandes velocidades, havendo reiterado suas suspeitas em 1915 quando mostrou que 11 de 15 nebulosas observadas apresentavam desvio para o vermelho, indicando o afastamento relativo. Contudo, conforme já dissemos, era controverso entre os astrônomos se tais objetos eram ou não extragalácticos.

Em 1924 Hubble descobriu estrelas cefeídas na nebulosa de Andrômeda e mediu de forma segura sua distância até nós. Ficou então provado que tratava-se de um objeto extragaláctico, pondo fim ao “grande debate”. O

1

Einstein,A., Sitzungsberichte Preussische Akademie der Wissenchaften 2, p. 844 (1915). Publicado em Ann. d. Phys.

49 (1916).

2

Einstein,A., Sitzungsberichte Preussische Akademie der Wissenchaften 1, p. 142 (1917). 3Friedmann, A., Zeitschrift für Physik 10, p.377 (1922).

Shapley

Curtis

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impacto da descoberta de Hubble, alargando de forma colossal a escala do universo, o colocava lado a lado aos grandes da astronomia como Ptolomeu, Copérnico ou Galileu. Das observações de Hubble, neste período, surgem as primeiras evidências da distribuição homogênea e isotrópica das galáxias4. Quem transitava durante este período em

meio a comunidade astronômica americana era o físico-astrônomo (e padre) belga George Lemaître, que já nutria grande entusiasmo pela idéia de um universo em expansão. Isto o levou a propor, baseado na TRG, um modelo expansionista tipo-Friedmann, de modo independente, no qual aparecia uma relação linear entre distância e velocidade, entre os pontos do substrato material5. Foi somente depois de ter seu trabalho publicado que Lemaître

soube, por Einstein, da precedência de Friedmann. No campo da observação astronômica o cenário de universo dinâmico não tardaria a se revelar. Quando Hubble anunciou a recessão das galáxias6, em 1929, segundo a lei que hoje leva seu nome, as atenções dos teóricos se voltaram para as soluções ou modelos de Friedmann-Lemaître. O que Slipher havia visto, mais de uma década atrás, era na verdade um indício da expansão do universo. Em uma coletiva à imprensa, durante sua visita ao

Observatório de Monte Wilson, em fevereiro de 1931, o próprio Einstein renega sua solução de 1917 em favor das soluções expansionistas7. Contudo, nem

todas as peças se encaixavam com perfeição: nas estimativas de Hubble a constante H0, que hoje leva seu nome, era de aproximadamente 500 Km/s/Mpc. Assim, a idade do universo teria que ser menor que seu inverso e, portanto, aproximadamente 2x109 anos, o que resultaria em um

universo mais jovem que a Terra8. Isto ficou conhecido como o poblema da escala temporal, somente contornado nos anos 50. A premissa de homogeneidade e isotropia passaria a ser designada o Princípio cosmológico.

Dos anos 20 do século XX até nossa época a cosmologia desenvolveu-se, por um lado no sentido de aperfeiçoar os métodos observacionais para melhor ajustar os parâmetros do modelo de Friedmann-Lemaître, bem como para certificar-se de que este modelo realmente correspondia ao nosso universo observável. Por outro lado houve uma proliferação de soluções cosmológicas, das equações de Einstein, propiciando intenso debate teórico sobre os possíveis cenários alternativos de universo.

Nos anos 30, ao estudar as curvas de rotação de estrelas, originalmente no aglomerado de COMA, Fritz Zwicky dá-se conta de que a matéria visível não permite explicar tais curvas9. O aglomerado teria que ser mais massivo do que era possível inferir pela matéria

observável. Introduz então a idéia de matéria escura10. Medidas posteriores revelariam que este ingrediente misterioso representa, na verdade, em torno de 23% do conteúdo material total do universo11.

Na “outra ponta” da física, isto é, no domínio do muito pequeno, os anos 30 foram marcados por importantes descobertas tendo sido até chamados a “Decas mirabilis'' da física nuclear. Das experiências feitas por Rutherford, em 1920, que revelou o próton (o “primeiro'') através da primeira transmutação nuclear induzida pelo homem, este previu que haveria um segundo constituinte nuclear, o qual chamou de nêutron12. Somente em 1932 James Chadwick o descobriria13, no laboratório Cavendish da Universidade de Cambridge, então sob direção de Rutherford (que sucedera J.J. Thomson). O neutron livre revelou-se instável e seu decaimento em próton com emissão de um elétron (e anti-neutrino), o chamado decaimento beta, abriu uma nova janela para o estudo das interações nucleares que, com o tempo, mostrariam serem duas: a fraca e a forte. Com efeito em 1934, Enrico Fermi propôs a primeira teoria da interação nuclear fraca14, propondo um mecanismo para explicar o decaimento beta. A realização da fusão nuclear em 1934, por Rutherford e colaboradores15, começava-se a comprovar experimentalmente os mecanismos de síntese dos elementos

4

Hubble, E., Astrophysical Journal 62 (1925) e Astrophysical Journal 63, 64 (1926) 5

Lemaître, G., Annales de la Societé Scientifique de Bruxelles, 47 A, p. 49 (1927) 6

Hubble, E., Proceedings of the National Academy of Sciences 15, p. 169 (1929) 7

N.A. :É bastante propalada a história de que Einstein disse ser a constante cosmológica o maior erro de sua vida.

8

N.A.

:

Os métodos de datação do nosso planeta, hoje consagrados, também haviam sido estabelecidos no início daquele século. Rutherford publicou, em 1907, no Journal of Royal Astronomical Society of Canada 1 sua estimativa da idade da Terra, com base na abundância relativa da radioatividade dos elementos pesados. No mesmo ano Boltwood, que se interessara pelos métodos de datação radioativos após uma conferência de Rutherford em Yale, em 1904, fez estimativas que alcançaram 1,3 x109 anos. Somente a partir daí ficou estabelecido que a idade da Terra era da ordem de bilhões de anos, sendo que o número hoje aceito é de 4,5 x 109 anos. Os métodos de datação radioativa poriam fim à polêmica travada entre físicos, encabeçados por Lord Kelvin, geólogos e evolucionistas desde a segunda metade do século XIX, acerca da idade da Terra.

9

Zwicky, F., Helv. Phys. Acta.,6,110 (1933)

10N.A.: Mais apropriado talvez fosse “matéria transparente”. 11

N.A.: Como a matéria feita de átomos parece constituir 4%, vemos que 23% é um percentual elevado. 12

Rutheford, E., Proceedings of the Royal Society, A97 (1920) 13

Chadwick, J., Proceedings of the Royal Society, A136 (1932) e Nature 129 (1932) 14

Fermi, E., Zeitschrift für Physik, 88, (1934)

15Oliphant, M.L., Harteck, P. , Rutherford, E., Nature, 133, p. 413 (1934)

A galáxia de Andrômeda

Hubble

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químicos a partir dos mais leves. Tais descobertas teriam impacto decisivo na cosmologia pois permitiriam compreender o mecanismo de geração de energia nas estrelas, bem como lançar alguma luz sobre a questão das abundâncias relativas dos elementos no universo, o qual era dominado por hidrogênio e hélio (em torno de 75 % e 25% respectivamente). A questão da geração de energia nas estrelas fora inicialmente abordada por Arthur Eddington em 1920, que especulou tratar-se de fusão nuclear. Abordagens concretas de esclarecer a questão se iniciariam nos trabalhos teóricos de Houtermans16, antes mesmo da descoberta do neutron, e se completaria uma década depois com os trabalhos de Hans Bethe17.

Nos anos 40 os desenvolvimentos provindos da física nuclear começariam a compor o quadro da evolução cósmica. George Gamow, um jovem físico russo e ex-aluno de Friedmann (que falecera prematuramente), uniu aspectos provenientes da TRG e da física nuclear para dar um novo passo na construção do modelo cosmológico. Juntamente com seu aluno de doutorado Ralph Alpher buscou descrever como o universo em sua fase primordial, quente e muito densa, poderia ser a causa da abundância relativa dos elementos nele observados. Conforme mostrou a teoria do universo em expansão podia explicar a abundância de H e He no universo: a chamada nucleossíntese primordial. A alta densidade e temperatura iniciais propiciaram a fusão nuclear. Com a expansão do universo e o seu esfriamento ocorreu o término das reações, de modo que apenas os elementos químicos leves se formaram. A formação dos elementos pesados permaneceria ainda um mistério. Este artigo18, intitulado “The Origin of Chemical Elements”, ficou também conhecido como o artigo

αβγ

(alfa, beta, gama), devido aos nomes de Ralph Alpher, Hans Bethe e George Gamow. Na verdade Hans Bethe não era co-autor do trabalho, mas Gamow, que era muito brincalhão, o convenceu a por seu nome. Assim o leitor faria a associação com as três primeiras letras do alfabeto grego.

No campo teórico a TRG viu surgir em 1949 a primeira solução cosmológica, das equações de Einstein, com violação de causalidade, isto é, na qual era em princípio possível a um dado observador voltar ao passado, obtida pelo matemático Kurt Gödel. Tal patologia se devia à presença, na solução, das chamadas curvas do tipo-tempo fechadas, CTC (de closed timelike curves), ou linhas de mundo tipo-tempo fechadas, CTW (de closed timelike worldlines). A solução de Gödel19, como ficou chamada, veio a público sob o título “An example of a new type of cosmological solution of Einsteins field equations of gravitation''. Embora sem conexão aparente com o universo observável, a solução de Gödel reacendia, no âmago da gravitação, uma antiga discussão da física: a da seta do tempo.

Em 1952 o astrônomo Walter Baade20 mostrou que as distâncias entre as galáxias eram duas vezes maiores que aquelas obtidas por Hubble e, consequentemente, dobrando a idade do universo. Isto se deveu à descoberta, por ele feita, de duas “populações'' distintas de estrelas em Andrômeda: as do núcleo (mais velhas) e a dos braços espirais (mais jovens). Hubble usara as cefeídas dos braços como padrão, em suas predições dos anos 20. As do núcleo, porém, é que constituíam o padrão correto. Em 1958 Allan Sandage, que era aluno de Baade, chega a estimativa de aproximadamente 13,2 x 109 anos21, ou, de modo equivalente, H aproximadamente igual à 74 Km/s/Mpc, que é essencialmente a medida atualmente aceita. Ficava assim, finalmente, resolvido o problema da escala temporal.

Durante a década de 1950, a cosmologia do modelo padrão concorreu com o modelo do Estado Estacionário (em inglês, a Steady-state Cosmology) proposto por Hermann Bondi e Thomas Gold22 e separadamente por Fred Hoyle23. Neste modelo propunha-se um Princípio cosmológico perfeito, isto é, incluindo o tempo, e não apenas o princípio cosmológico tradicional que se aplica à seção espacial do universo. A matéria era continuamente criada, não se aplicando a ele as equações de Einstein. A propósito, foi Hoyle quem cunhou o termo Big Bang, em um programa de rádio da BBC chamado “The Nature of Things'', para designar os modelos expansionistas de Friedmann-Lemaître. Era, na verdade, uma designação pejorativa para ridicularizar aqueles que acreditavam que o universo tivesse um começo, fosse na forma de um átomo

primordial que explodira (que era o pensamento de Lemaître) ou na forma do Ylem (versão mais refinada de Gamow). A ironia da história é que assim ficaria designado o modelo padrão da cosmologia, a partir de então. Em 1958 a tradicional Conferência Solvay de física, tendo como “chairman'' do encontro W. Lawrence Bragg24, teria por tema „‟La structure et l'évolution de l'univers''. Os “combatentes” dos dois lados concorrentes pelo modelo mais correto da cosmologia lá estariam reunidos: Hoyle, Lemaître, Bondi, Gold, Sandage e Baade entre outros. Entre os mais antigos ativistas da área lá estava também Harlow Shapley. Evidentemente o encontro não selou um veredicto para a disputa.

16Atkinson, R. and Houtermans, F., Aufbaumöglichkeit in Sternen, Z. für Physik 54, p. 656-665 (1929) 17Bethe, H. A., “Energy Production in Stars”, Physical Reviews 55, 5, p. 434-456 (1939)

18

Alpher,R., Bethe, H., Gamow, G., Physical Review, 73, 7 (1948). 19

Gödel, K., Rev. Mod. Phys., 21, 447-450 (1949) 20

Baade, W., Transactions of the International Astronomical Union, 8, p.397 (1952) 21

Sandage, A., Astrophysical Journal, 127, p. 513 (1958). 22

Bondi, H., and Gold, T., Monthly Notices of the Royal Astronomical Society, 108, p.252 (1948). 23

Hoyle, F., Monthly Notices of the Royal Astronomical Society, 108, p. 372 (1949)

24N.A.: Bragg sucedera Rutherford à frente do Cavendish, após o falecimento deste em 1937. Desde “quasares'' até a estrutura do DNA foram descobertos, pelos que lá trabalhavam, durante o período de sua direção.

Gamow

(4)

Hubble deixaria a cena nesta década, falecendo em 1953, após sofrer uma trombose cerebral antes de completar 64 anos. A decisão de dar-lhe o Prêmio Nobel de Física havia finalmente sido tomada pelo comitê da fundação Nobel, após anos de divergências quanto as suas contribuições serem ou não à Física. Infelizmente, para Hubble, a decisão foi tomada tarde demais. Einstein, que viria a falecer em 1955, afastara-se da cosmologia. Em seus últimos anos encontrava-se mais voltado à sua generalização da TRG, a teoria do campo unificado.

A questão da nucleossíntese de elementos pesados seria resolvida neste período por Hoyle, o casal Burbidge e W. Fowler25, no artigo clássico ”Synthesis of elements in stars”, que ficaria chamado de B2FH. A formação

dos núcleos pesados se daria durante as etapas intermediárias da morte das estrelas e o processo de sua formação ficaria chamado nucleossíntese estelar. Isso “livrava'' a expansão do universo do ônus de ter que explicar a formação dos núcleos pesados, na medida em que sua síntese se dera por outras vias que não a cosmológica. Esse trabalho renderia o Prêmio Nobel de Física à Fowler, em 1983.

A partir dos anos 60 a cosmologia do modelo padrão começaria a se impor como paradigma dominante. Uma grande descoberta em favor do Big Bang ocorreu quando, em 1964, o alemão Arno Allan Penzias e o norte-americano Robert Woodrow Wilson, acidentalmente, detectaram radiação em microondas proveniente de todas as direções do céu, isotropicamente. Sua correspondente temperatura era de aproximadamente 3K. Na realidade, Gamow, Alpher e Robert Herman a haviam previsto em trabalhos de 1948, estabelecendo que esta devia ter o espectro de um corpo negro e estimando sua temperatura, inicialmente em 50K (Gamow) e logo em seguida em 5 K (Alpher e Herman). Naquele início dos anos 60, porém, os físicos Robert H. Dicke, James E. Peebles e colaboradores haviam refeito independentemente o cálculo original e preparavam-se para construir uma antena que pudesse detectar a radiação de origem cósmica. Foi quando Penzias, que soube do trabalho de Dicke por intermédio de um amigo o procurou com sua “radiação misteriosa”; a qual Dicke reconheceu ser aquilo que procurava. O artigo de Dicke e colaboradores que explicava a origem da radiação cósmica26, entitulado “Cosmic Black-Body Radiation”, seria publicado no mesmo volume em que Penzias e Wilson publicariam a descoberta27. A explicação natural que o modelo do Big Bang fornecia para tal radiação consistia em considerá-la o registro do período em que o plasma do universo primordial se esfriara o suficiente para permitir a formação de átomos (matéria neutra) “libertando'' os fótons do plasma primordial. Somente nesta transição, chamada a recombinação ou última superfície de espalhamento, é que o universo teria se tornado transparente. As medidas da assim chamada radiação cósmica de fundo em microondas (RCFM)28, passaram então a ser uma valiosa fonte de informação sobre o universo observável. O próprio Hoyle abandonaria, a partir daí, o modelo do estado estacionário29. Seu temperamento polemizador o levaria contudo a ainda propor o modelo estacionário modificado. Até o fim de sua vida, em 2001, se recusava a aceitar que homens de ciência pudessem considerar razoável que todo o universo, toda a física e todas as suas leis, que prevêem os fenômenos a partir de suas causas, que são, por sua vez, efeitos de causas anteriores, igualmente reguladas pelas mesmas leis, pudesse emergir de uma singularidade irracional. A descoberta da RCFM renderia a Penzias e Wilson o Prêmio Nobel de Física de 1978.

Na “outra ponta'' da física (novamente), isto é, no domínio da física de partículas, muita coisa se passara até então. Após as descobertas do elétron, próton e neutron sucederam-lhes uma série de novas partículas, das quais já não se sabia dizer ao certo quais eram “elementares”. A descoberta da antimatéria ocorreu ainda em 1932 através do pósitron, o “elétron positivo'', por Carl Anderson30

. A avalanche de novas partículas surgidas nas décadas de 40 e 50 exigia um novo modelo teórico que fizesse a identificação de quais são as estruturas elementares da matéria e de como estas formam a diversidade de partículas conhecidas, a exemplo do neutron ou do próton, não mais encarados como elementares. Destacamos, neste contexto, duas grandes sínteses promovidas a partir dos anos 60. O modelo de Weinberg-Salam-Glashow, que unificou as interações

nuclear fraca e eletromagnética, dita agora eletro-fraca, e a cromodinâmica quântica, a QCD (de Quantum Cromodynamics), em artigo publicado por Murray Gell-Mann31 e colaboradores em 1973, que descreveu a física da

interação nuclear forte e das partículas que por ela interagem. Ficaria a partir daí estabelecida a classificação atual das partículas elementares. A matéria sendo constituída de quarks (up, down, charm, strange, top, botton) e Léptons (

elétron, muon, tau, neutrino eletrônico, neutrino muônico, neutrino tauônico). Os quanta associados aos campos, por

intermédio dos quais a matéria interage, seriam os bósons vetoriais (gluons, fóton, W+, W -, Z0). Este cenário não correspondia (não corresponde) ainda a uma descrição unificada das interações nucleares e menos ainda levando-se em conta a quarta (e mais fraca) interação: a gravitação. Inspirados pelo bem sucedido esquema de unificação eletro-fraca iniciou-se um amplo programa de construção de teorias de grande unificação: as GUTs (de Grand Unified

Theories). Este esquema consistia basicamente em valer-se de um campo escalar, o campo de Higgs, cujo quanta

associado seria o bóson de Higgs, que ao adquirir um estado específico de mínima energia redefine o vácuo pré-existente. Isto provoca um “embaralhamento'' das propriedades dos outros campos existentes diversificando as características das forças por eles mediadas. Usando o termo apropriado, provoca uma quebra espontânea de simetria. Antes da quebra espontânea as forças estariam unificadas. A dinâmica destes campos e quantas precisava

25

Burbidge,E.M., Burbidge, G.R., Fowler,W.A. and Hoyle, F., Rev. Mod. Phys., 29, p. 547-650 (1957) 26

Dicke, R. H., Peebles, P. J. E., Roll, P. G., Wilkinson, D. T., Astrophysical Journal, 142, p.414 (1965) 27

Penzias,A. and Wilson,R., Astrophysical Journal, 142, p. 419 (1965). 28

N.A.: Em inglês Cosmic Microwave Backgound Radiation (CMBR ou CMB) 29

Hoyle,F., Nature, 208, p. 111 (1965). 30

Anderson, C.D., Proceedings of the Royal Society, 41A (1932).

31Fritzsch, H. , Gell-Mann, M. and Leutwyler,H., Physics Letters B 47, p. 365 (1973)

(5)

conciliar-se com o cenário do universo expansionista, já que os processos de diversificação das forças na natureza, deveriam ter ocorrido no ambiente de um universo em expansão na fase inicial, quando as altas energias estavam disponíveis. Ao mesmo tempo, a teoria das interações fundamentais (sem a gravitação) permitia avaliar processos que teriam ocorrido nos instantes iniciais da expansão. Assim, as condições experimentais nos aceleradores de partículas propiciavam cada vez mais uma “janela aberta'' para o entendimento dos processos físicos no universo primordial.

Parecia assim configurar-se aos cosmólogos que a dinâmica do universo em que vivemos estava, em seus aspectos gerais, entendida, sendo descrita pelo modelo expansionista de Friedmann-Lemaître. Os problemas da cosmologia referiam-se agora à fase primordial, onde outras interações poderiam ter papel mais relevante, ao entendimento da natureza da matéria escura, bem como ao mecanismo pelo qual se formaram as estruturas. Dos problemas da primeira categoria destacamos inicialmente o problema do horizonte e o problema da planura. O “problema'' do horizonte consistia em que não seria esperado o elevado grau de homogeneidade observado na RCFM, para separações angulares muito grandes no céu. Isto indicava que tais regiões teriam mantido contato causal antes da era em que a radiação desacoplara da matéria (estimada em 300.000 anos após o Big Bang). O “problema'' da planura relacionava-se ao fato de que a evidência experimental indicava que o universo seria essencialmente plano (curvatura pequena) enquanto que argumentos teóricos sugeriam que esta seria a situação menos provável da evolução do universo. Podemos ainda citar o chamado problema dos monopolos magnéticos. A predição de existência de tais partículas supermassivas são decorrências naturais das GUTs, e deveriam ser abundantes no universo atual. Como não havia evidências experimentais das mesmas, parecia que algum outro mecanismo em ação no universo primordial impediu sua proliferação.

É neste cenário que viu-se nascer nos anos 80 os chamados modelos inflacionários. Proposto por Alan Guth32, no

artigo entitulado The Inflationary Universe: A Possible Solution to the Horizon and Flatness Problems, postulava que o universo primordial passou por uma fase de crescimento exponencial produzida por uma densidade de energia do vazio, negativa, que age como uma força gravitacional repulsiva. Matematicamente, isto significava que a teoria do universo inflacionário trazia assim de volta a constante cosmológica. O modelo original de Guth seria reformulado por parte de Andrei Linde33 e de modo independente por Andreas Albrecht e Paul Steinhardt34. Ao novo modelo inflacionário chamou-se a nova inflação, em oposição à velha inflação, de Guth. O status da inflação é, ainda hoje, controverso. Em artigo de divulgação recente35 Peebles declarou “... não arriscaria decidir qualquer aposta sobre se a inflação realmente ocorreu. Não estou criticando a teoria, mas simplesmente dizendo que se trata de um trabalho admirável e pioneiro ainda a ser testado.''

Apesar do alto grau de homogeneidade da RCFM, a comunidade dos cosmólogos esperava encontrar algum grau de não-homogeneidade, muito pequeno. Tais variações seria uma prova de que havia regiões em torno das quais a matéria poderia se aglomerar, por ação gravitacional (local), enquanto o universo se expandia a partir da recombinação, agindo como “sementes'' para a formação das galáxias. Em vão se buscou tais variações durante os anos 70 e 80, usando-se detectores em balões e aviões U-2. O passo seguinte era por os detectores no espaço, isto é, em um satélite. A NASA, unificando propostas de certos grupos de pesquisa, resolveu financiar o satélite COBE, o Cosmic Background Explorer, destinado a investigar a RCFM. O satélite comportaria os detectores Dirbe, Firas e DMR, cada um medindo diferentes aspectos da radiação. O DMR era, em particular, aquele que deveria medir as variações da RCFM, construído pelo grupo de George Smoot, da universidade de Berkeley. O COBE seria lançado a bordo do ônibus espacial, em 1988, mas com a tragédia do Challenger, em janeiro de 1986, seu futuro tornou-se incerto. Afastado do programa do ônibus espacial, o COBE somente seria lançado em novembro de 1989, acoplado a um foguete Delta, da empresa McDonnel-Douglas. Após três anos de acúmulo, análise e reanálise dos dados, o veredito final foi oficialmente divulgado em abril 1992, durante uma conferência da American Physical Society. O porta-voz da equipe foi Smoot, que confirmou, com precisão nunca antes alcançada, o espectro de corpo negro e a presença das variações na RCFM. A equipe havia feito segredo sobre o conteúdo de sua apresentação, constando como uma comunicação regular a ser feita em 12 minutos. Quando os presentes se deram conta do que acabavam de ouvir, houve grande excitação. Nesta ocasião Hawking diria ser esta “a maior descoberta do século, senão de todos os tempos''. As análises dos dados do COBE renderiam a John Mather e George Smoot o Nobel de Física de 2006. Nos termos da Fundação Nobel: “for their discovery of the blackbody form and anisotropy of the cosmic microwave background radiation".

A partir desta década de 1990, uma série de equipamentos de alta precisão seriam postos no espaço, a exemplo do programa Great Observatories Program (Grandes Observatórios Espaciais) da NASA. Começando pelo

Hubble Space Telescope (HST), o Telescópio Espacial Hubble, em 1990, tornando-se operacional em 1993; seguido

pelos telescópios Compton (1991), Chandra (1999) e Spitzer (2003). O Compton (homenagem a Arthur Holly Compton), que operou na faixa dos raios gama do espectro eletromagnético, apresentou problemas; sendo desativado em 2000 quando foi lançado contra a atmosfera. O Chandra (em homenagem a Subrahmanyan Chandrasekhar) opera na faixa do raio-x. O Spizer foi projetado para operar na faixa do infra-vermelho. Por razões óbvias, o mais popular dos quatro, fora dos círculos científicos, é aquele que opera na faixa do visível: o Hubble.

Em fins do anos 90 ocorreu o fato, talvez, mais surpreendente da cosmologia em nossa época: observações de red-shift provenientes de supernovas do tipo Ia, indicando que a taxa de expansão do universo está se acelerando. Em 2002 a NASA lançou o satélite Wilkinson Microwave Anisotropy Probe, o WMAP, capaz de realizar observações

32

A. H. Guth,A. H., Phys. Rev. D 23, 347 (1981) 33

Linde,A., Phys. Lett. B 108, 389 (1982) 34

Albrecht,A. and Steinhardt, P.J. , Phys. Rev. Lett. 48, 1220 (1982) 35

Peebles, P.J., ``O sentido da moderna cosmologia'' in Scientific American Brasil, 27, ``O passado e o presente do Cosmos'' (Edição especial)

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mais detalhadas que o COBE, e que corroborou, em suas medidas, o cenário de expansão acelerada. A situação era tão chocante que levou uma década para que a comunidade de cosmólogos se sentisse segura de que a expansão acelerada era um fato. Até esta descoberta era crença corrente que na era pós-inflacionária (e pós-recombinação), o universo sofria uma expansão desacelerada, uma vez que a gravitação não favorece o afastamento relativo seja da matéria convencional, ou seja, da matéria escura. O modelo mais simples, ajustável aos dados experimentais disponíveis, supõe que a matéria escura é fria (não relativística) e há mais um ingrediente exótico no universo: a energia escura (mais um nome infeliz). Matematicamente modelada pela constante cosmológica,

Λ

, a energia escura seria o ingrediente responsável pela taxa de expansão acelerada. A este se chamou o modelo

Λ

-CDM (de

Λ

-Cold Dark

Matter). A volta da constante cosmológica levou ao surgimento de modelos alternativos para modelar a energia escura. Surge então o modelo de Quintessência, no qual um campo escalar é quem conduz o universo à expandir-se aceleradamente. A diferença entre o modelo de quintessência e o Λ-CDM está em que neste último a equação de

estado, entre densidade de energia escura e sua correspondente pressão, não muda. No modelo de quintessência esta equação de estado pode mudar. Surgiram ainda outros modelos quintessenciais não envolvendo o campo escalar.

Quando eu encerrava a feitura destas anotações, na primeira quinzena de setembro de 2008, o LHC, (o Large Hadron Collider), finalmente entrou em operação, no CERN (Organisation Européenne pour la Recherche Nucléaire, antes Conseil Européen pour la Recherche Nucléaire), às 04:00 da manhã, hora de Brasília, no dia 10 de setembro. Entre suas missões inescapáveis: encontrar o bóson de Higgs. Prosseguindo a trilha aberta pelo COBE e WMAP, para melhor medir as pequenas sutilezas presentes na RCFM, seria lançado o satélite Planck, em 31 de outubro deste ano. Paralelamente a isto, grandes esforços tem sido empreendidos por grupos em todo o planeta, no intuito de detectar as ondas gravitacionais. O projeto do interferômetro espacial LISA, Laser

Interferometer Space Antenna, irá por no

espaço uma antena para detecção de ondas gravitacionais, a ser lançada em 2015, e medirá, entre outras, ondas de origem cósmica. A perspectiva (hoje talvez fantasiosa) de tirar proveito delas, no futuro, para “olhar'' o universo através do espectro de emissões gravitacionais por ele produzidas, representaria uma verdadeira revolução nos métodos da astrofísica. Quero, em síntese, chamar a atenção para o fato de que ao mesmo tempo em que somos confrontados hoje com grandes mistérios pelas evidências cosmológicas, como entender a natureza da matéria escura, da energia escura e a expansão acelerada, continuamos ``aqui em baixo'' abrindo novas frentes que possam nos dar pistas de como elucidar tais mistérios. Como sempre foi, assim sempre será, enquanto existirem a humanidade e nela a prática da ciência.

Texto: Marcelo Lima Coordenador do Museu Interativo da Física da UFPA Três momentos da Radiação Cósmica de Fundo

Referências

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