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Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de História. Memorial

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Universidade de São Paulo

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de História

Memorial

de Livre Docência em História Contemporânea

Prof. Dr. Lincoln Ferreira Secco

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1. Prefácio

Hesitei em escrever um novo Memorial. Quando ingressei na docência universitária apresentei um que me satisfez plenamente. Não poderia fazer melhor. Mas era preciso reescrever a minha história com novos olhos e deixar aquele outro texto ao largo com suas expectativas, carregado de seu momento e de suas pretensões.

Escrever uma biografia não é fácil. Fazer a autobiografia é, decididamente, abandonar a esfera da ciência e render-se aos caprichos da memória. Mesmo compulsando documentos aqui e acolá, a insegura objetividade que perseguimos se nos escapa, lesta e incontida.

Minha trajetória enfrentou problemas para as quais minha geração não estava aparelhada para resolver. Vivemos crises num período que poderia ser delimitado entre 1984 e 2005, como tentarei mostrar mais adiante. E as crises deixaram diferentes desilusões.

Aos quarenta anos vividos, eu me pergunto: o que fizemos num país que teima em reafirmar suas heranças coloniais?

Deveria ter me limitado a um currículo meramente acadêmico. Mas não pude. Talvez, seja melhor mostrar-se por inteiro, como historiador que, sem desrespeitar os padrões científicos da universidade (espero), alimentou-se de uma vida anterior votada a uma causa. Equivocada ou não, ela foi um compromisso de geração. Não a nego. Eu a vivi.

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2. Os Anos de Formação

Tornei-me socialista. A ideia generosa que encontrei numa enciclopédia aos doze anos fundava uma concepção de mundo que já se formava em minhas relações pessoais. E enternecia a visão de uma pobreza sempre ao meu lado, no meu encalço, quase me tragando para suas misérias abissais.

A casa de subúrbio em que cresci tinha dois cômodos e uma cozinha. Sem sala. Mas com um amplo quintal, com Seringueira e Bico de Papagaio. Quando chovia, meu berço era coberto com plástico e a cama de meus pais com um guarda-chuva por causa dos furos no telhado.

Eu nasci numa época em que meu pai ainda pagava as prestações do terreno. A casa da frente era a mais “rica” do bairro. Uma fachada de vidro, típica da classe média dos anos 1970. Uma apatacada senhora que lá vivia, dona Olga, que não podia ter filhos, pediu à minha mãe que me desse para ela. Propostas assim não eram incomuns na época.

Salvo pela labuta de meus irmãos e de meus pais e pelas amizades dos circuitos em que se desenrolava minha existência cotidiana, ainda hoje me pergunto: quais os fios que teceram o sentido de minha vida? Nenhum fato marcante, nenhuma catástrofe iminente, nem fomes lancinantes, luxo ou pobreza. Apenas o lento escorrer de um rio que desaguava na inquietação intelectual, na busca de explicações, na construção de problemas que se ligavam e se recompunham, formando vastas redes.

A descoberta de minhas origens tem relação direta com minha vocação de historiador. Recentemente, em andanças pelo Arquivo do Estado de São Paulo, resolvi solicitar a pasta de meu avô no acervo do DOPS.

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Meu bisavô paterno, Carlo Secco, italiano de Vicenza, chegou ao Brasil em fins do século XIX. Radicou-se em Barbacena (MG) onde nasceu meu avô: João Secco. Logo a família voltou à Itália. Assim, aquele João Secco, brasileiro, sequer aprendeu a falar português. Foi nos anos vinte, desmobilizado depois da Guerra Européia, onde fora ferido na perna, que ele resolveu voltar sozinho ao Brasil. Na região de Araçatuba ele trabalhou numa fazenda de café do meu outro bisavô (pai de minha avó paterna, José Pacitti). A família Pacitti perdeu as terras e João Secco desposou a filha do fazendeiro, Amélia Pacitti, minha avó.

Amélia, paulista de Bragança, tinha uma boa formação. Fizera o “clássico”, tocava piano, falava francês e viajara à Europa no navio Conte Rosso. Convivi com ela até os 18 anos. Ela sempre com seu casaco preto abotoado e brancos cabelos desgrenhados. Meu avô era muito ativo na colônia italiana. Foi cantor de rádio e poeta. Tenho dele duas poesias. Uma que deve ter sido publicada no Fanfulla. Outra manuscrita, de terna beleza. Uma reflexão sobre o tempo e o amor fugidios.

Na sua pasta no acervo da polícia política, há pouca informação. Mas colhi um fato que sempre foi escondido em minha família. Ele foi preso duas vezes. A documentação não é clara, mas deixa entender que se tratava de uma perseguição à comunidade italiana durante a Segunda-Guerra. Na primeira vez, ele foi detido supostamente com material explosivo! Na segunda vez, acusado de vender gêneros acima da tabela de preços (numa fase em que ele comercializava vários produtos). Não conheci meu avô. Da infância, lembro muito das visitas de meu tio-avô Virgilio Pacitti, ex-combatente de 1932. De minha família materna pouco sei. A minha mãe é filha da opressão a que os deserdados brasileiros foram vítimas. E essa opressão se estende à dificuldade de reconstruir a nossa história. Pelos seus relatos, sei que meu avô materno era um “português de cabelo ruim”. Que minha avó, Salustiana Ferreira Pereira, era cafuza (sua

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mãe era “índia braba” e seu pai um negro descendente de escravos). Lembro-me de minha “avó de Minas”, pobre, descendo do trem do subúrbio, idosa, magra, forte, carregando sempre uma sacola de cana-de-açúcar que ela plantava e me trazia de presente. E eu chupava. Toda essa mistura só podia ter ocorrido nas extensas Minas Gerais. Minha mãe nasceu no Vale do Rio Doce e viveu no Vale do Jequitinhonha... Não sei se essa geografia, se essas origens fizeram de mim um socialista. Mas acenderam minha curiosidade histórica.

Fui historiador. Leitor na biblioteca Martins Pena, na colina da Penha. Leitor de Aldous Huxley, primeiro. De George Orwell. De Affonso Taunay. De Mario de Andrade. Das coleções do Círculo do Livro onde constava um certo Caio Prado Junior. De jornais, depois. Primeiro O Estado de São Paulo ao lado de meu pai. Depois a Folha de São

Paulo, oportunamente com tarja amarela na campanha das Diretas. Anos depois, de

volta ao Estadão. Era na História política que eu encontrava alento para uma vida não vivida: a timidez adolescente contida entre as estantes.

Via a política em todos os lugares. Em 18 de maio de 1984 comprei Helena de Machado de Assis na livraria “Edições de Ouro” (que situava-se na Rua Conselheiro Crispiniano). Escrevi a data no livro. Anotei algumas frases de cunho social: “Não é orgulho, continuou o dono da casa; é um resto de pudor que a pobreza me não tirou ainda”. E ficava a pensar na próclise que dava em meus pensamentos um tom de superioridade ao pobre. Anotei no fim da página 154 (não sei o porquê) a palavra “Anarquismo”.

Apesar das minhas origens, fui também um filho da Universidade de São Paulo. A USP e a Faculdade de Filosofia coroaram uma carreira escolar inteiramente realizada na escola pública.

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Oriundo da Escola Estadual, filho de Paulo Milton Secco, um soldado proveniente da Força Pública de São Paulo e de Ozória Ferreira Secco, uma trabalhadora “em casa de família”, eu nunca levei a vida dos abastados, mas também meus pais nunca me deixaram na fila dos deserdados. Sua exemplar dedicação aos estudos dos três filhos permitiu-me, um dia, sonhar com a Faculdade situada do outro lado da cidade.

É que eu cresci nos campos da antiga Vila Vampré. O lugar é a Zona Leste da cidade de São Paulo. Mais especificamente a área que abrange os bairros da Penha, Cangaíba e Engenheiro Goulart. O bairro da Penha, cuja ermida data de fins do século XVII, tem uma história sobejamente conhecida e chegou a sediar o governo estadual durante a Revolução de 19241. O Cangaíba apareceu por volta de 1919 e a Vila Vampré (depois

Engenheiro Goulart) nasceu com o ramal variante leste da ferrovia em fins dos anos 1920.

Lugar ainda de feições rurais, onde eu podia zunir peões de madeira, jogar bolinha de gude, correr atrás de “pipas”, chutar bola e, em dias de chuva, xadrez e botão (modalidade em que ganhei vários títulos). E zanzei muito cedo pelas ruas velhas da Penha. Lá estudei nos ginásios estaduais Santos Dumont e Nossa Senhora da Penha. Ensino em decadência, mas ainda com alguns bons professores. Ensino patriótico que nos obrigava a cantar o hino nacional e hastear a bandeira, além de cantar músicas da seleção brasileira de futebol. E foram as comemorações antecipadas do 9 de julho (que caía nas férias) que me acenderam o gosto pela história. Uma história oficial, sem dúvida. E cheia de fatos que decorávamos. Fazíamos os cartazes do MMDC, o jogral e lembrávamos que o nosso ginásio havia sido quartel em 1932.

No ano de 1984, quando eu era aluno do antigo “primeiro colegial”, eu já lera o

Manifesto Comunista (emprestado por um amigo do meu irmão, o qual trabalhava no

1 Foi na Estação Guaiaúna que Carlos de Campos passou a despachar dentro de um vagão de

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IPT). O IPT tinha um núcleo militante na Associação dos Funcionários. O que é

Revolução, de Florestan Fernandes (e boa parte da coleção Primeiros Passos)

tornavam-se nossas leituras prediletas, juntamente com jornais (entre eles o debochado

Planeta Diário). Mas não foi a leitura que me encaminhou para o tema de minha vida: a

revolução. Foi a própria história vivida.

O Movimento “Diretas Já” rebentou nas ruas e eu fui envolvido por ele. Meu professor de Matemática de nome estranho, Eupídio, ensinava maravilhosamente Geometria Analítica e números complexos e, nas horas vagas, incendiava minha mente com denúncias contra as Multinacionais e a Trilateral.

Eu me tornei politizado num comício das Diretas Já, em 1984. Tinha 14 anos. Senti emoção ao segurar a mão de um companheiro do MR-8 na hora do hino nacional (todos se davam as mãos). Gostava de Lula, admirava Prestes e queria me tornar comunista. Por isso, depois da derrota da emenda Dante de Oliveira entrei no PCB. Talvez (confesso) porque quando pequeno eu gostasse de aviões de plástico que acompanhavam as guloseimas infantis e eu achasse que eles fossem soviéticos. Via sempre no Jornal Nacional o desfile militar do Primeiro de Maio na URSS e gostava daquilo. No PCB fazíamos reuniões em frente à igreja católica do Cangaíba. Lá conheci velhos militantes do partido: Roja, Heitor Sândalo e Marcos Cordeiro (que adorava Chico Buarque). Eu ia acompanhado de meus amigos de infância: Walcir Bruno e Carlos Santiago.

Na mesma época eu me tornei secretário-geral do grêmio de minha escola. A lei que legalizava os grêmios era recente. Ia à Rua Santo Amaro, na sede partidária, onde conheci Salomão Malina. Lia o semanário Voz da Unidade. Lembro-me até hoje de um artigo de Renato Pompeu defendendo a necessidade do Muro de Berlin. Eu tinha um misto de medo e admiração pela URSS. Não queria viver lá. Nunca quis viver fora do

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Brasil. Mas gostava do fato de haver um inimigo à altura dos EUA. Foi em 1985 que me interessei por Gramsci, talvez porque eu transitava do PCB para o PT numa nova fase de nossa vida política.

O PCB tinha uma boa formação de quadros, que a direção pensava que era de massas, só que o partido não tinha as massas. Recebíamos cursos na célula do bairro. Eu fiz “História da Revolução Russa” com um militante chamado Carleta que faleceria logo depois num acidente. Conheci o Deputado Constituinte de 1946 José Maria Crispim que nem casa tinha para dormir em 1985. Dormiu algum tempo no nosso diretório. Líamos um documento chamado Alternativa Democrática para a crise brasileira, reformista ao extremo; e PC do B: a sobrevivência de um erro. O livro de Jose Luiz Del Roio sobre Berlinguer completava a nossa biblioteca. Por conta própria, lia Mao Tsetung (os quatro volumes das Obras Escolhidas) e as conferências de Stalin na Universidade de Sverdlov.

Eu não me contentava com isso e procurava mais na Livraria Tecno-científica, perto da Praça da República, importadora de livros soviéticos. Assinei lá as revistas Socialismo:

Princípios, Práticas e Perspectivas e União Soviética. Vinham de Moscou e eram em

português. Discutíamos muito Como iludir o povo, de Lênin e suas obras escolhidas da Editorial Avante em parceria com a Progresso (de Moscou). Na Sete de Abril, a Livraria Ciências Humanas, do livreiro Raul (que foi parar numa banca no prédio de ciências Sociais da USP), teve também um papel significativo. Da Kairós vinham as heresias: os livros de Trotsky. Li o “Programa de Transição” numa obra de título: A questão do

programa.

Às vezes algum camarada escrevia na grande imprensa, como Antonio Mazzeo ou publicava uma obra, como Marcos Del Roio (fui conhecê-los só muitos anos depois). Fiquei um ano só entre os comunistas. Saí do PCB quando este resolveu apoiar Antonio

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Ermírio de Moraes a governador: um grande capitalista. Atravessei a rua e fui para o Partido dos Trabalhadores (PT), pois aquele partido se reunia na Igreja...

A Cidade e os Livros

Amei apaixonadamente São Paulo. A tal ponto que, avisaram-me, eu me tornava um paulista fervoroso, realimentando os ensinamentos do Ginásio, repetindo os feitos de Buri, Cruzeiro, Túnel, 23 de maio, 9 de julho. Mas no fundo era mais o sentimento de um paulistano descobrindo a própria cidade. A minha cidade tinha um significado geográfico bem preciso. Para os moradores da periferia, numa época com pouco metrô e com ruas esburacadas, a “cidade” era como denominávamos o centro, desde a Praça da República até a Praça da Sé. E desta ao Jardim da Luz, onde meus pais se conheceram. Ele, paulista de Birigui, lotado num dos quartéis da região; ela, mineira de Itambacuri, empregada doméstica em casa de família na Rua Mauá.

Eu andava e perambulava, enquanto meus horizontes geográficos se ampliavam. Lembro-me, desconcertado, da descoberta da Praça da Sé e arredores. Eu andava desde criança com meu pai aos sábados pela zona cerealista. Mas em 1984 fui pela primeira vez sozinho àquelas lonjuras por causa dos comícios.

E a política descortina outras facetas de um adolescente. Tínhamos sempre muito medo da PM, cuja ação ilegal daqueles anos 80 foi denunciada mais tarde numa excelente reportagem de Caco Barcelos (o livro “Rota 66”). Todavia, eu desde criança me achava livre de problemas com policiais, já que era filho de um honesto militar da antiga Força Pública que atirava bem. Mas eram anos 80-90, a PM se fizera violentíssima para as gentes de periferia como eu. Com meus amigos Carlos e Walcir, perdi a conta de quantas vezes tive uma metralhadora apontada para minha cabeça nas célebres “batidas

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policiais”. Isso aconteceu, por exemplo, na noite de sábado em que fui ao centro comprar o jornal para ver se eu passara no vestibular. Fui detido dentro de uma livraria na avenida São João e liberado meia hora depois com ameaças. Bem, eu passara no vestibular!

Às vezes, a polícia “tinha razão” na sua irracionalidade. Em 1985 eu colava cartazes do Partido Comunista com meus amigos e uma viatura da Polícia Civil nos deu voz de prisão. Estávamos acompanhados de Heitor Sândalo, o Zico, então já com 30 anos de partido e que chegara fazia pouco da União Soviética. Quando o policial o viu, logo gritou: “Oi Zico, continua levando a molecada para o mau caminho...” e nos deixou em paz sob risos.

Caminhávamos, assim, com alguma raiva e vivíamos naquele estágio primitivo da luta de classes: o ranger de dentes (como dizia Florestan Fernandes). O ódio era típico de intelectuais medíocres que já éramos, leitores infatigáveis que xingavam os que tinham automóvel e telefone em casa. Por isso, acreditávamos que merecíamos mais benesses por termos a teoria marxista debaixo do braço em grossos volumes em meio a colegas que mal conseguiam ler gibis, trabalhavam como encarregados em firmas de salário mínimo ou que resvalavam para o crime e morriam como moscas nas mãos da polícia ou de outros criminosos.

A alegria não nos abandonava. Sozinho eu li Hamlet numa tarde de sábado. Em outra tentava me mortificar e sentir pena de mim mesmo lendo Werther, de Goethe. E descobria sozinho Kafka. Minha irmã estudava nos livros didáticos de História de Sergio Buarque de Holanda e José Jobson de Arruda. Eu os devorava. Fazia dos livros uma vida e tanto. Entendi Sartre, “Foi nos livros que (...) confundi a desordem de minhas experiências livrescas com o curso aventuroso dos acontecimentos reais”2.

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Meu irmão, técnico químico no IPT, era leitor infatigável dos romances e contos de Sartre e me repassava tudo o que lia. Na balbúrdia dos meus pensamentos também me embriagava de poesias na solidão do quarto. Depois saía com meus amigos. Andávamos muito a pé pelo centro em horas mortas, japona no ombro e um passe no bolso. Sem automóvel, sem dinheiro, às vésperas do alistamento militar, íamos, por exemplo, a uma festa no Ipiranga e tínhamos que voltar a pé, de bar em bar como os personagens dos contos de João Antônio: Malagueta, Perus e Bacanaço.

O centro era minha casa. Adorava estudar os nomes antigos das ruas. Rua da Princesa (depois de 1916, Rua Benjamin Constant). O trecho inicial da Rua do Carmo, agora, Rua Roberto Simonsen, em louvor desse empreendedor da Província paulista sobre o qual eu escreveria um artigo. A Rua da Fundição, que corre paralela à Wenceslau Brás, hoje Floriano Peixoto. A Rua da Freira que se fez Senador Feijó em 1916. E a do Ouvidor que se reduziu a uma ladeira pequena, pois sua maior parte transformou-se na Rua José Bonifácio (o moço), depois de ato de 1930. A Rua Quintino Bocaiúva (assim chamada desde 1916) que já tinha sido do Príncipe e da Cruz Preta, onde nasceu meu poeta preferido Álvares de Azevedo.

Nas ruas, os alfarrábios e as livrarias. A livraria Duas Cidades, pertencente à tia de um colega, povoou a minha adolescência. Foi inaugurada em dezembro de 1954 pelo frei dominicano José Petronillo da Santa Cruz na Praça da Bandeira. O nome inspirou-se na obra de Santo Agostinho, cotejando a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens. Em 1967, a editora mudou-se para a Rua Bento Freitas3, onde teve aquela história trágica

com Carlos Marighela. Foi lá que eu a conheci. Mas não a freqüentava tanto quanto a Brasiliense, onde o vendedor Chiquinho conhecia todos os títulos da Siglo Veintiuno (mais tarde ele foi gerenciar a Fondo de Cultura Econômica, em Perdizes). Substituído por um livreiro chamado Barreto.

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Ainda na Rua Barão de Itapetininga, a livraria Siciliano era meu ponto de parada e do outro lado da Praça da República a Francisco Alves (depois reaberta no “lado de cá” da Praça). Aproveitava os livros recônditos, cujos preços não tinham sido remarcados (não havia códigos de barra e a inflação galopava).

Na Avenida São João, eu e meus amigos de infância comprávamos livros baratos num saldo permanente ao lado do Rei do Mate. Não líamos a maioria deles. Mas eu li alguns, como: Vinte Cartas a um Amigo, da filha de Stalin; e Os Senhores da Direita, de Delcio M. Lima, que me foi útil para evitar o assédio da TFP sobre jovens de periferia. Um amigo do colégio estadual, de ascendência japonesa, foi cooptado e me emprestou o “clássico” de Plínio Correa de Oliveira, Revolução e contra-revolução. E também o mais conhecido Meio século de epopéia anticomunista. Eu li o primeiro, mas não podia ser convertido. Encomendei depois a um sebo de Juiz de Fora, pelo correio, a Historia

do Socialismo e das Lutas Sociais de Max Beer. O livro reforçou minhas convicções.

Da Livraria Jaraguá eu só ouvira falar que era muito freqüentada por Mario de Andrade4. Mas eu conheci os estertores do Gazeau. Fundado por Madalene e Eugéne

Gazeau. Eles chegaram a São Paulo em 1910 e criaram o primeiro sebo brasileiro localizado na esquina da rua Benjamin Constant com a Praça da Sé. Tinha um subsolo apinhado de livros5. Os sebos foram muito mais importantes na minha formação.

Freqüentei muito o sebo do Messias, na Praça João Mendes, antes que outros sebos aparecessem na Rua da Liberdade e na Álvares Machado, em geral montados por seus ex-funcionários. Também um sebo de um descendente de japoneses na rua Asdrúbal Nascimento e que tinha sido de Folco Masucci, o autor de dicionários humorísticos. Gostava muito daquele lugar e passava tardes inteiras nos seus meandros. Lá eu perdi

4 Vide: Décio de Almeida Prado, “Sebos que fizeram história”, O Estado de São Paulo, 15 de

julho de 2001.

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uma edição original de Engels por falta de dinheiro, mas comprei depois a biografia de Marx escrita pelo conselhista Otto Ruhle. E como se perdem os livros nos sebos! Eles me atraíam tanto. Comprava e comprava. Em alguns anos já tinha duzentos, depois mil, cinco mil livros. Depois vendi duzentos, doei mais duzentos, mas continuei adquirindo mais e mais. Ficava conhecido de alguns donos: Lycurgo e seu irmão Jaime tinham o sebo Treze Listras na Rua Aurora. Se não me falha a memória, o atual dono de um sebo na rua Alavares Machado (Celso) era funcionário dele. Lycurgo tinha uma coleção completa da José Olympio (Documentos Brasileiros) e uma Brasiliana. Ele me convidava para uma cachaça no bar próximo e eu tomava só um gole pequeno e despejava o resto para o santo. Ébrio, ele me confessava ter falsificado algumas dedicatórias de Mário de Andrade. Ele tinha vários livros autografados do nosso poeta modernista, alguns verdadeiros! Seu mais valioso era a primeira edição de “Há uma gota de sangue em cada poema”. Ele também colecionava edições de “Os Sertões”. Tinha todas e de vários países.

Já o Sebo Lisboa era o mais barato de São Paulo. Situava-se na rua José Bonifácio, na ladeira que deságua numa solitária entrada do metrô Anhangabaú. Com meus amigos de infância agora socialistas, Carlos Santiago e Walcir Bruno, eu olhava as Lettres de Marx e Engels a preço de banana, coleção paulística e livros da José Olympio que estavam sempre por lá. A bibliofilia tornava-se bibliomania6 e pensávamos até em

assaltar a livraria. Um dia vimos a Correspondence de Marx e Engels, das edições Costes, empilhada na entradinha do sebo e pensamos em agarra-la e fugir. Mas eram vários volumes... Antonio Lisboa, o dono pernambucano, tinha um cortiço na Vila Mariana. Era dono do local onde seu sebo se instalara. Esse era o segredo para vender barato, e se eu quisesse entrar no negócio, então que eu tentasse não pagar aluguel, dizia-me ele. Tinha começado como simples vendedor de enciclopédias de porta em

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porta. Em fins dos anos sessenta criou o seu sebo. Era conservador, politicamente. Mas seus preços baixos selaram para sempre a sorte do local. Depois, o Brandão tentou abrir ali uma filial, mas como os preços do Brandão são famosos pela altitude inatingível, ninguém mais freqüentou o lugar.

Na “cidade nova” eu freqüentei em 1985 os Irmãos Barrocco, livraria situada numa galeria da Rua Marquês de Itu. Vendia, entre outras obras, números antigos da coleção

Os Economistas em capa dura (Abril). Lá adquiri O Capital (a edição que li e anotei).

Adorava ir à Freitas Bastos, Livraria Brasiliense, Italiana, Francesa, Portuguesa (Ebradil dos meus amigos Luiz Botelho e Alexandre Pereira), pouco à livraria do Pereira ali no Copan e muito à Biblioteca da Faculdade de Direito. Eu sempre fui um cidadão do centro.

Militância

Eu tinha, então, 15 anos quando ingressei no PCB e só um pouco mais quando me vi no Partido dos Trabalhadores. Ele tinha o discurso do radicalismo, enquanto os comunistas, depois de duras lições aprendidas no seu passado de lutas, elegiam as alianças e a moderação. Não era isso que um jovem queria escutar.

O Partido dos Trabalhadores nasceu no Cangaíba antes mesmo de sua fundação oficial. O Núcleo foi formado por iniciativa de um militante que se dizia membro de uma organização chamada OSI. Não sabíamos o que a sigla queria dizer. Seu nome: Antônio Messias da Silva.

Conheci Messias quando ele era empregado do Sindicato dos Couros, cuja sede é ali numa travessa da Rua São Caetano (a rua das noivas). O sindicato tinha sido liderado por Paulo Skromov, membro da primeira direção nacional do partido (hoje morador de

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Avaré). Messias costumava usar um boné vermelho e calça e casaco jeans e andava sempre com uma bota de fábrica com bico de aço, o que parecia pesado demais para aquele corpo franzino. Mas sua mente era vibrante! Nunca conheci alguém mais dedicado a uma política refletida do que ele. Lia jornais e os poucos livros que lhe chegavam às mãos e carregava uma história que se tornava lendária para nós mais jovens: sua casa abrigara a sede do Jornal do Trabalhador em 1979.

Quando o Núcleo se reorganizou por volta de 1988, a sede oficial estabeleceu-se na casa dele: Rua Gaspar Pereira, 25 (nunca mais me esqueci do endereço). Na primeira reunião eu apareci com o militante comunista Heitor Sândalo e com dois amigos de infância aqui já citados: Carlos Santiago e Walcir Bruno (que de todos nós é o que foi mais longe na militância, chegando à Executiva do Sindicato dos Bancários). A professora de Geografia Ana Guiomar logo nos preveniu contra as tendências “erradas” do partido. Depois da vitoriosa campanha de Luiza Erundina à prefeitura paulistana, o nosso núcleo passou a reunir-se na sede da Associação Amigos de Bairro Jardim Janiópolis, que era presidida por Raimundo Nonato.

Raimundo era um piauiense forte, mas sempre sorridente. Metalúrgico, ele fora membro da Diretoria do Sindicato do ABC na gestão Meneghelli (aquela que foi cassada pela Ditadura Militar). Contava-me histórias magníficas das lutas operárias do ABC. Compadre de Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, ele sempre defendia a liderança deste. Raimundo forneceu-nos a base, a infra-estrutura para o núcleo. Ele era capaz de um raro sentimento de solidariedade e de “turma”. Afinal, ideologicamente nós íamos mais à esquerda e ele se mantinha próximo da ala moderada. Mas nós pedíamos ajuda para qualquer atividade radical e lá estava ele de prontidão. Certa vez, financiou a reprodução de um texto que usaríamos para formação política. Pasmem! Era

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“Revolução na revolução” de Régis Debray – um livro foquista e de guerra de guerrilhas no espírito guevarista.

Raimundo tinha muito controle das emoções em momentos difíceis. Mas quando era preciso lutar, agredir... Contava-nos quando tinha ido conversar com a patronal no ABC para negociar durante uma greve. Ele estava numa situação constrangedora, diante de uma mesa fina, cheia de talheres diferentes num hotel e na frente de muitas madames e senhores de gravata. Ele não teve dúvidas: entrou de macacão e comeu com as mãos. Não sei se nosso núcleo traçou uma política certa ou se tinha uma junção bastante feliz de estudantes radicais com operários igualmente radicais que se mantiveram afastados dos cargos da prefeitura depois da vitória de Luiza Erundina, cujo governo hoje causa certa nostalgia. Seu secretariado tinha Paulo Freire, Paul Singer...

Nosso núcleo tinha história, bons militantes e um efêmero boletim, que se chamou primeiro “Partido dos Trabalhadores” e depois “Flama”. Ele pode ser consultado no acervo do Centro de Documentação e Memória da Unesp.

Conheci em 1988 um notável companheiro: Salvador Pires.

Sob todos os aspectos ele me pareceu um gigante. Preveniram-me contra ele, pois era líder da FNT – Federação Nacional do Trabalho. Contavam que a FNT tinha relação com a Igreja, com a Democracia Cristã da Alemanha. Ele era um lutador incansável na fábrica e fora dela, sempre ao lado de sua irmã, Maria Pires. Era tio de meu amigo Marcos Cordeiro Pires (do PCB). Ele participara da oposição metalúrgica de São Paulo, mas não era ainda filiado ao PT. Pertencia àquela geração de trabalhadores como o Clóves Castro (atualmente militante e livreiro do PT), Prado e tantos outros. Teve uma participação ativa num episódio importante. Quem assistiu ao filme “Santo e Jesus” sabe quem foi Santo Dias. E sabe quem foi Jesus, um operário de uma fábrica no Brás assassinado pelo patrão. Salvador Pires teve papel decisivo na infrutífera luta para fazer

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justiça naquele episódio. Escrevera a coluna Voz do Trabalhador no Jornal Notícias

Populares e no jornal Família Cristã. Em 1983, quando ele trabalhava na Brasilata, o

diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, o Juruna, levou a Família Cristã aos diretores da empresa e Salvador foi demitido.

Salvador era alto, rosto alongado, fala barroca. Gesticulava muito e ficava curvado nas reuniões anotando tudo numa caderneta. Conversava como se discursasse. Certa vez nós nos desentendemos. Eu vetei na nossa chapa uma pessoa indicada por ele. Ele discutiu comigo e me disse que minha atitude não era digna de um seguidor das idéias de Florestan Fernandes. Ele tinha razão. Mas depois travamos combates comuns.

Também me lembro de Amadeu Amaral (presidente do Sindicato dos Vidreiros) e José Carlos Barbosa Madureira (Barbosinha), fundador do PT na Penha e empregado na pequena “gráfica” da Igreja de Nossa Senhora da Penha. Amadeu tinha proximidade com o Paulo Skromov. Eu atuei com ele na campanha a vereador do Artur Scavone (apoiada pelo Florestan Fernandes). Quando me tornei professor de uma escola estadual no Parque Dom Pedro e ficava uns meses sem receber salário por causa de greve ou de início de contrato era o Amadeu quem me recebia no Sindicato dos Vidreiros e me dava um café reforçado e um pão com manteiga antes das minhas aulas.

Após a derrota de Eduardo Suplicy à prefeitura em 1992, o nosso núcleo se desmobilizou. A presença institucional mais acentuada dos militantes, que trocavam movimentos por cargos em administrações e gabinetes não nos atingiu. O que ocorreu com nosso núcleo foi a decadência do padrão de vida (o Salvador teve que montar uma oficina para tentar se aposentar, o Messias caiu no desemprego e eu nunca mais tive notícias dele e o Raimundo continuou lutando na justiça pela readmissão na fábrica). Esta experiência de vida é que me afastaria de qualquer militância estudantil e me tornaria mesmo um tanto conservador diante dos hábitos de meus futuros colegas de

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Faculdade. Sofria de um preconceito “basista”, como diria Paulo Freire. Socialistas por inteiro, os trabalhadores que eu conheci tiveram inteligência e coragem para mudar sua realidade. Como historiador, mais tarde, entendi que seu primeiro protesto organizado não foi em vão. Cada geração de operários em luta permite que a próxima não necessite voltar ao ponto zero.

Primeiras Letras

Embora meu talento no ensino médio fosse a Física (especialmente a Mecânica) e, secundariamente, a Geometria Analítica, em 1987 eu ingressei, mediante vestibular, no curso de Português e Italiano (carreira de Letras). Às cinco da manhã, eu acordava para assistir à aula de introdução à língua latina às 7:50h nas colméias da Cidade Universitária. Não havia, ainda, o prédio novo. Este fato nos permitia conviver bastante com os moradores do Crusp. Logo no primeiro ano participei da invasão do Restaurante Central e fiz minha primeira passeata da Reitoria ao Masp.

As aulas da Faculdade de Filosofia eram um mundo novo para mim. Só lá faziam sentido certas brigas. Numa manhã, discutíamos a figura de Ugolino e os filhos esfaimados, devido a uma referência de Manuel Bandeira. Ficamos detidos num verso do canto XXXIII do Inferno (“Depois, mais que a dor pôde o jejum”). De repente, um aluno mais velho criticou o professor Davi Arrigucci Junior com veemência, falando que se tratava de uma dor universal e que a história concreta de Ugolino não tinha importância. Foi convidado a se retirar da sala. Anos depois, o professor Augustin Wernet nos levou ao Instituto Goethe para assistir a uma palestra de Sergio Paulo Rouanet. Um aluno mais velho (seria o mesmo?) declarou, agressivo, que todo riso era

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libertador e que o palestrante estava errado. Rouanet indagou, nervoso, se o riso das massas nazistas, nos comícios de Hitler, era libertador...

As minhas primeiras letras universitárias se deram naqueles anos que anteciparam a campanha da Frente Brasil Popular. Afastado da militância partidária, embora vinculado ao PT e aos ditames do mandato de Florestan Fernandes, eu me embrenhava na leitura de Guimarães Rosa e dos críticos e lingüistas: Saussure, Jakobsen, Wellek, Auerbach, Afrânio Peixoto, Antonio Candido e lia avidamente tudo de Carpeux. Gostava do seu estilo dialético e idealista que parecia destruir um autor no início só para nos surpreender recuperando-o com análises felizes das suas grandes obras. Li sua História

da Literatura Ocidental junto com a História da Literatura Brasileira de Werneck

Sodré, a qual acentuava os fundamentos econômicos.

Gostava de Sodré e até troquei umas poucas correspondências com ele. Mas fui formado na escola secundária lendo Caio Prado Junior, Eduardo Galeano e Leo Huberman. Além disso, nas Letras, Sodré tinha que ser cotejado com a Formação da Literatura

Brasileira, de Antonio Candido e mesmo a livros mais informativos de Massaud Moisés

e Alfredo Bosi.

O ano de 1989 despertou-me dos sonhos literários. Foi com dificuldade que abandonei um curso em que podia ouvir meu professor Davi Arrigucci Junior dizer: “O romance é a história de um herói solitário em busca de valores autênticos num mundo desgarrado”. Suas palavras ainda ecoam nos meus ouvidos. Suas aulas eram plenas de referencias a Walter Benjamin, Wladimir Propp, Bakhtin, Lukács...

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Pensava em fazer Geografia. Mas como um pequeno problema sempre me tirava a precisão do traço, temi ser reprovado em Cartografia. Desastrado, entrei na História.

Em 1990 fui aprovado no vestibular para o curso de História na USP. Ainda me sentia em casa. Já assistira a cursos e palestras de professores do Departamento de História. De certa forma, ganhava um curso mais ligado aos meus anseios políticos, acreditava eu. Mas perdia um pouco do rigor de alguns cursos das letras. Lá líamos livros inteiros e fazíamos mais cursos monográficos. Líamos, por exemplo, toda a Odisséia, na versão de Manoel Odorico Mendes. Ninguém podia freqüentar as aulas do professor David sem ler

Grande Sertão Veredas por inteiro ou assistir às aulas de Literatura Brasileira

sem ler Cultura e opulência do Brasil (Antonil), Prosopopéia (Bento Teixeira) e outros. Em Língua portuguesa, a professora Marleine Paula nos obrigava a copiar e classificar todas as orações parentéticas (aquelas introduzidas por verbo dicendi) de Dom Casmurro7.

No velho prédio desfigurado e decadente do Departamento de História eu me vi sozinho. A estrutura do curso não permitia a formação de turmas e tínhamos que nos virar por conta própria. Ingressei em grupos de estudos, que é uma marca da nossa Faculdade e pouco me aproximei do movimento estudantil que eu, por preconceito de classe, desdenhava. Mas convivi um pouco com o DCE, onde se agigantavam os alunos Mario Costa (da Psicologia) e Eduardo Bellandi (da Filosofia).

Empolgavam-me as aulas de História Moderna do Professor Wilson do Nascimento Barbosa, um dos raros professores que não ignoravam os “fatos”, afinal ele os conhecia.

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Também não tinha pena em dar notas baixas. Mas aprendi mais ainda nas conversas na sua sala.

Eu ainda vi em ação os professores Carlos Guilherme Mota, Nicolau Sevcenko, Milton Santos e Edgard Carone. Este sempre com um olhar mais distraído que interessado, embora percebesse tudo. Em História Antiga, os eruditos professores Francisco Murari Pires e Ricardo Mario Gonçalves. Estrábico, este falava por 50 minutos e ia embora, tímido. Certo dia, ele nos leu um trecho da Bíblia, sobre José e seus irmãos. E disse: “Vejam este sonho dele. É uma descrição do modo de produção asiático”. Nossa Faculdade sempre foi feliz por essas pequenas descobertas que brotavam espontaneamente numa aula, depois de muitos anos de estudo de alguns dos nossos professores. Mas como sabemos, as agências de fomento e a imprensa não consideram aula de graduação uma produção científica.

Para a professora Ilana Blaj escrevi meus dois primeiros trabalhos (manuscritos ainda) aos quais ela deu nota dez. Um era sobre a singularidade da Carta de Caminha (usei todo meu escasso conhecimento proveniente dos estudos literários, apoiando-me até em Mattoso Câmara Junior, desconhecido entre os historiadores). Outro sobre a Revolução de Avis, onde descobri o historiador (e não cronista) Fernão Lopes. Foi minha primeira incursão numa “revolução portuguesa” e na sua “geografia”. Baseando-me em Borges Coelho, estudei a disposição geográfica das cidades favoráveis ou contrárias ao Mestre de Avis.

3. Novo Interregno Militante

Abandonadas as primeiras letras, mergulhei na militância partidária. Ela estivera sempre lá, recôndita. Eram os tempos do presidente Collor e sua súcia de malfeitores.

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Bem, embora eu seja um historiador por vocação, eu sempre me achei um comunista, embora possamos discutir se, conceitualmente, existe comunista sem partido. Talvez não. Na USP eu já integrava um grupo de estudos do marxismo com alguns excelentes amigos: Sandro Wanbier, Tomas Wisiak, Marcelo Feitosa, Marcos Delgado, Luís Franco, Ana Lucia Sanches e minha querida Marianne Reisewitz, sempre introvertida. Em seguida, montei um grupo de leitura de O Capital com militantes do PT como Walcir Bruno, Carlos Santiago, Valcir da Cruz, Andre Pasador e um militante chamado Maurício. A esse grupo agregaram-se Paulo Iumatti e Rafael Marquese, mais tarde professores da USP. Depois da leitura do primeiro volume da obra, o grupo se dispersou e eu me juntei ao meu amigo Luís Fernando Franco para a leitura dos volumes dois e três. Luís era a pessoa mais inteligente da Faculdade. Tornou-se procurador federal e sua escrita fez-se um pouco burocrática.

Tempos depois, o camarada de lides suburbanas José Rodrigues Mao Jr. me colocou em contato com Ciro Yoshiyasse, aluno da Fatec. Mao estudava História na USP e soldagem na Fatec. Voltávamos da USP de trem juntos. Ele ia para o ABC e eu para a Zona Leste. A estação Rossevelt, no Brás, nos separava. Já Ciro apareceu como uma figura estranha, maneiras nobres que contrastavam com palavras duras. A esse grupo agregou-se Agnaldo dos Santos, falante e estudioso; Carlos Félix Vieira, prático e inteligente; e outros companheiros. Tempos depois, com o Ciro, encontramos no metrô Anhangabaú Marisa Yamashiro (aluna da Fatec e, depois, de Letras na USP) e creio que aquele encontro a fez se integrar no nosso grupo. E mais tarde ela trouxe sua prima, Ligia.

O nosso objetivo era discutir as teorias marxistas junto a um partido de massas. Entre altos e baixos, creio que sua sobrevivência foi um feito importante na nossa militância. Relemos os volumes 1 e 2 de O Capital. E tivemos um contato permanente com Jacob

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Gorender, Paul Singer, Rocha Barros e Florestan Fernandes. Gorender ia a algumas reuniões sob a condição de ganhar um jantar. Nada mais justo, pois ele nos dava verdadeiras aulas de graça. Era sempre autoritário. Quando meu pai pôde alugar uma linha telefônica, Gorender ligava para mim a qualquer hora e dava ordens como esta: “Procure a página dos Grundrisse onde há uma referência de Marx sobre automação”. Já Paul Singer era diferente. Cordial ao extremo. Quando marcamos uma reunião pequena com ele, a Direção Estadual do PT também marcou no mesmo dia e horário um enorme seminário nacional também com ele. Singer negou-se a ir lá, pois já havia se comprometido com nosso grupelho de jovens. Até Paulo Frateschi, presidente do partido, mandou um carro oficial na FFLCH me procurar para que eu “liberasse o Singer”.

De Florestan, ainda não tenho palavras suficientes para expressar o quanto ele foi importante para minha geração. Só as palavras que escreveu no prefácio de um livro que organizei dizem tudo: “Desejo aos jovens autores que continuem a se bater pelo essencial. Não existe outra razão para ser marxista”. Suas palavras nos condenaram ao eterno compromisso com a causa socialista.

Mestrado e Doutoramento (1994-2003)

A escolha de um tipo de engajamento é geracional. Se eu fosse vinte anos mais velho, teria me empolgado com o PMDB ou com algum grupo clandestino de esquerda. E lá ficaria, prisioneiro das lealdades do passado. Como tinha 15 anos na época em que o PT parecia mais radical do que seria, minha escolha se deu ali. Foi nas suas campanhas que

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eu asperejava os raros militantes de Direita e até brigava com a juventude janista, cujos membros, para minha sorte, desconheciam o jujútsu.

Recordo-me de uma fuga espetacular que empreendi sozinho num primeiro de maio. Uma caterva de carecas do subúrbio me perseguiu ao me ver com um símbolo da foice e o martelo estampado numa camiseta. Corri da estação Roosevelt até o acesso ao metrô. Saltei as catracas e desapareci na multidão.

Mas a história não pára. No Governo de Fernando Henrique Cardoso, abandonei paulatinamente uma militância mais dura. Eu era colaborador de uma espécie de seção cultural do Boletim do diretório regional do partido. Durante o Governo Lula, nós fazíamos menos ainda. Só recobramos ímpeto na crise de 2005 para protestar e para, depois de tudo, decidir ficar. Avaliamos que poderíamos ter saído antes, mas não ali. Seria trair nossa história, saltar do navio quando ele parecia à deriva. Nosso barco era como o Endurance de Shackleton. Só o abandonaríamos quando afundasse.

Trair a história é o que eu nunca quis fazer. Fui historiador desde o princípio. Nos anos 90 andava muito pelos sebos com minha amiga Marisa Midori Deaecto. Íamos ao Sebo Lisboa. Ela, creio eu, aperfeiçoou o amor dos livros com seu orientador Edgard Carone. Um dia ela me levou à biblioteca dele. Era, para mim, a volta ao universo acadêmico sem perder de vista o socialismo. Perdi apenas as minhas esperanças de colecionador quando ali entrei. Carone tinha tudo. A obra de Bert Andréas sobre o Manifesto

Comunista, a de Max Netlau sobre o anarquismo, a primeira edição francesa de O Capital, raridades sobre a Rússia e o PCB...

Paralelamente, freqüentei um grupo pequeno com Paulo Henrique Martinez e Bernardo Ricupero. Lemos O Mediterrâneo, de Fernand Braudel e Portugal na época da

Restauração, de Eduardo D´Oliveira França. Nossas reuniões eram no Centro de

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Corrêa e amáveis funcionários, como Márcia, Jacy e Luiz nos abrigavam. Aquela experiência de leitura me marcou indelevelmente, como se vê pela minha tese de doutoramento. Aliás, tudo o que discuti ou aprendi no centro da cidade se colou à minha memória com mais valor.

Na minha época, a pós-graduação ainda não era uma necessidade premente. Muitos amigos já eram professores de cursinhos pré-vestibulares desde o primeiro ano de graduação e ganhavam bons salários às expensas de jornadas de trabalho fatigantes. Eu mesmo dava aulas na Escola Estadual de São Paulo, uma centenária instituição do Parque Dom Pedro II. Eram 25 aulas noturnas. Tive alguns bons alunos e contava com vários colegas da FFLCH ao meu lado. Mas a degradação do ensino era ainda maior do que um decênio antes, quando eu saíra da escola. Havia alunos de segundo grau técnico que não sabiam ler e escrever. Eram analfabetos funcionais.

Lembro-me que um professor de Geografia chamado Lara, às vésperas da aposentadoria me disse na sala dos professores: “Meu jovem, saia daqui enquanto há tempo”. Eu ficara chocado. Que ele pensasse, vá lá, mas não podia dizê-lo. Mas eu me formara na USP, como ele, portanto que procurasse outro emprego ou tentasse a carreira acadêmica que ele desdenhara no início dos anos 70 para ser professor estadual. A razão? Ganhava-se o suficiente para ter um fusca e comprar um apartamento em prestações suaves. E nem era preciso dar 60 aulas semanais. Mas tudo mudara e que eu refletisse sobre isso...

Eu não pensei duas vezes. Trabalhara como bolsista no Cemap, o centro de documentação Mario Pedrosa, sob supervisão de Raquel Glezer, Ana Maria Camargo, Dainis Karepovs e de Fulvio Abramo. O professor Coggiola, que nunca me deu aula, solicitava minha colaboração ali. Ele também tinha feito uma doação de documentos trotskistas ao Cemap. Ingressei no mestrado sob sua supervisão.

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Queria estudar o marxismo. Mas como ruminar Marx era complexo, optei pelas idéias de Antonio Gramsci e sua recepção brasileira. Levei o projeto inicial para o professor Marcos Silva ler. Eu não havia sido aluno dele. Mas ele leu, anotou e deu ótimas sugestões. Fiz uma história dos debates e usos dos conceitos gramscianos na historiografia, pedagogia e na luta política. Hoje, Gramsci é muito lido, debatido e estudado nas universidades públicas. Há muitas dissertações e teses sobre ele. Mas quando escrevi, havia muito pouco. E nenhum estudo sobre a recepção de suas idéias entre nós.

A minha dissertação “A Recepção das Idéias de Gramsci no Brasil” foi financiada pelo CNPq, sendo submetida a uma banca composta pelos Professores Carlos Guilherme Mota e Marcos Del Roio. Antes, no exame de qualificação, contei com a presença do Professor Leonel Itaussu Almeida Mello.

Ingressei no programa de doutorado em História Econômica em 1998. O meu doutorado decorria de uma problemática aparentemente dessemelhante: a descolonização da África Portuguesa. Na verdade se tratava de estudar idéias revolucionárias. Escolhi inserir a revolução na longa duração para testar seus limites.

Parti da seguinte idéia: nos últimos duzentos anos a idéia de “liberdade” esteve mais associada à Direita do que à Esquerda. Desde a Revolução Francesa, os enragés preferiram erguer a espada da igualdade, enquanto os moderados tornavam-se os porta-vozes da liberdade contra o despotismo. Claro está que numa revolução, o espaço político se altera. A “Direita” é tão revolucionária quanto a “Esquerda”, isso porque a verdadeira Direita é apeada do poder.

A Revolução dos Cravos em Portugal procurou associar a liberdade e a igualdade. A liberdade vinculou-se às demandas de todos os que desejavam uma Revolução que não desembocasse numa ditadura (a “direita” socialista). A igualdade, defendida pelos

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sindicatos, pelos comunistas e pela extrema esquerda consubstanciou-se numa série de direitos sociais e no preâmbulo da carta magna.

Todavia, a atual democracia portuguesa não se vincula apenas ao ideário de abril, mas também a toda uma trajetória liberal que remonta ao século XIX, quando os liberais estavam à esquerda em toda a Europa. Durante o século XX, o liberalismo português continuou sendo de esquerda, quando o liberalismo europeu já se situava no espaço político conservador. A revolução concentrou historicamente os tempos e os dinamismos que foram decantados em duzentos anos de história européia. Ao fazê-lo, assumiu a linguagem da conjuntura: o socialismo. Depois, cindiu os pares políticos finalmente em esquerda e direita. Antes de Babel, todos se entendiam. Depois, a confusão de linguagens os separou. As diferenças entre socialistas e liberais nunca foram grandes. Queriam o fim da ditadura e a “reintegração” à Europa. O sonho realizou-se e a mística revolucionária cedeu lugar à política de gabinetes. Este era o tom pessimista do final de minha tese.

Leandro Konder lembrou certa vez que Marx antecipou alguns avanços da historiografia do século XX, nomeadamente aquela da assim chamada “Escola dos Annales8. Não

creio que tenha abandonado o marxismo na minha tese de doutorado por usar a metodologia dos Annales. Enfim, se eu tivesse que reduzir minhas preocupações intelectuais a um único problema, diria que é este: pode a política mudar estruturas estabelecidas? Falo de estruturas geográficas, mentais, econômicas e também políticas (pois a história política tem suas prisões de longa duração). Não sei até que ponto a vontade política tem força, embora eu prefira acreditar que ela mude algo.

A minha tese, financiada pela Fapesp e orientada pelo Professor Osvaldo Coggiola, foi submetida a uma banca composta pelos professores Vera Ferlini, Marcos Silva, Marcos

8 Cf. Jobson, J. "O mediterrâneo de Braudel", Anais do Museu Paulista, T. XXXIII, S. Paulo,

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Del Roio e Anna Maria Martinez Corrêa. Seu título é A Crise do Terceiro Império

Colonial Português. Economias, Espaços e Tomadas de Consciência (1961-1975). A

data de defesa: 25 de julho de 2003. Eu acabara de voltar de Portugal e já era professor temporário do Departamento de História.

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4. Docência na Universidade de São Paulo (Desde 2003)

Eu mesmo nunca me imaginei concluindo minha formação acadêmica na condição de Docente na USP. Tratava-se para mim de algo inatingível. Sempre tive um misto de admiração e crítica diante da universidade. Ela me acolheu ainda adolescente, quando tinha apenas 17 anos. Aqui tenho passado os melhores anos de minha vida, conheci minha esposa Marianne, passeamos pelos jardins da ECA com nossa pequena Maria, fiz alguns grandes amigos, vi belezas escondidas nas bibliotecas, reverenciei minha faculdade de Filosofia, domei os seus jardins e desvãos, vi a Praça do Relógio florescer e vivi as passeatas e as greves.

Minha experiência docente uspiana teve um preâmbulo. Entre os anos 2000 e 2002 eu ministrara várias aulas substituindo meu orientador. Dera aulas na Escola de Comunicações e Artes. Como meu orientador viajara para a Itália, eu tive que substituí-lo em boa parte da disciplina História das Idéias Políticas.

No início de 2003 eu vivia a angústia dos órfãos. Perdera, em novembro anterior, o meu pai e, com ele, a alegria de viver. Eu estava finalizando o doutorado e não sabia mais o que fazer. Minha amiga Marisa Deaecto avisou-me que haveria um concurso para professor temporário da USP e eu me inscrevi. Ele foi realizado no mês de fevereiro. Escolhi concorrer à disciplina História Econômica Geral e do Brasil para o Curso de Geografia. Fui aprovado por uma banca formada pelos professores Heinz Dieter Heidemann, Gloria da Anunciação Alves e Marcos Silva. Como se tratava de aprovação para um contrato temporário (duração de um ano) tive que me submeter no ano seguinte a um novo concurso. Fui aprovado por outra banca constituída pelos professores Zilda Iokoi, Antonio Carlos Robert de Moraes e Odete Seabra.

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Dava aulas para futuros geógrafos. Aulas expositivas e seminários. Bem, os seminários não deram certo por causa do número de alunos numa mesma sala de aula: 80, 100, 120...

Amansei as saudades e, no segundo semestre, tornei-me professor de História Contemporânea. Elaborei um programa amplo acerca da idéia de Revolução no século XX. A Faculdade ainda se ressentia de uma luta árdua pela contratação de professores em 2002. As coisas foram se encaminhando e os espíritos se aquietando na disciplina do estudo paciente e sério.

Ingressei como docente efetivo na Faculdade de Filosofia ao ser aprovado em concurso no dia 28 de maio de 2004. A banca foi composta pelos professores Maria Luiza Tucci Carneiro, Maria Di Lourdes Mônaco Janotti, José Ribeiro Junior, Ângela Mendes de Almeida e Manoel Lelo Bellotto.

Entre o segundo semestre de 2004 e o final de 2009 fui professor de seis disciplinas em várias turmas: História Econômica Geral e do Brasil (para Geografia) e História

Ibérica I e II, História Contemporânea I e II e História Econômica. Às vezes me via na

obrigação de montar um curso optativo. Nesses anos dediquei-me com afinco ao estudo do Terceiro Império Colonial Português em suas bases geográficas e políticas. Também coordenei um grupo de leitura da obra de Braudel.

Todavia, a voz da revolução me chamava uma vez mais. Solicitado continuamente para bancas, debates e conversas com alunos sobre temas mais ligados à História Contemporânea e à História do Brasil do século XX, tinha que reler e dar aulas sobre Gramsci, Marx e, especialmente, sobre a trajetória da idéia de revolução. Isso me conduziu a solicitar ao Departamento de História minha mudança de área. Saí da Península Ibérica para uma História mais ampla, européia, segundo o entendimento tácito da nossa Faculdade.

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Tornei-me docente permanente de História Contemporânea. Acolhido por meus colegas, senti-me dentro de uma área mais próxima de minhas inquietações.

Confesso que não tive amplo engajamento administrativo, mas cumpri com minhas obrigações docentes bem acima da média, sempre dando mais aulas do que o exigido, especialmente na graduação, onde acho que contribuo mais. Participei de muitas bancas de trabalhos finais de graduação, de mestrado, de doutorado, qualificações e concursos e formei vários alunos em iniciação científica, introdução à pesquisa e mestrado. Fui parecerista de inúmeros projetos e relatórios, membro do conselho departamental e da comissão de publicações da série teses e participei de muitas reuniões dos estudantes de graduação por ocasião de suas greves.

Na pós graduação também tenho cumprido meus deveres. Eu me vejo como funcionário público. Tive dificuldades iniciais em selecionar os alunos para mestrado. Fui precipitado, mas também tive bons acertos. Recebi sempre mais pretendentes do que a oferta de vagas. Achei difícil ler e discutir as teses. A massificação do trabalho acadêmico prejudicou minha capacidade de leitura. Eu ainda fui formado numa graduação em que fazíamos trabalhos manuscritos ou datilografados. Escrevíamos menos, com mais vagar e pensávamos mais antes de simplesmente digitar, recortar e colar como fazemos agora no computador. Como se tornou tudo mais fácil (até mesmo a pesquisa) e como tudo tem seu lado bom e seu lado ruim (segundo a dialética ingênua de Proudhon), as pessoas passaram a fazer teses de 500 páginas quando o assunto se resolveria em cem. Ainda assim, nunca deixei de ler e cumprir minha obrigação de orientador e membro de bancas.

A minha outra paixão, no entanto, não arrefeceu. Ela está na graduação (quando as vaidades ainda são menores), no contato cotidiano com os meus alunos iniciantes, na pesquisa solitária, na orientação de iniciação científica e num novo grupo de leitura de

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historiadores marxistas por mim criado e que se reúne mensalmente no prédio da Maria Antonia. Sempre preso neste meu exílio do Butantã, tentei ir à Maria Antônia buscar as esmaecidas recordações do centro da cidade.

5. O Sentido da Revolução

O fio que dá unidade à minha trajetória acadêmica é a revolução, como me disse certa vez Marcos Silva. Mesmo artigos de ocasião (políticos), resenhas, críticas de cinema e literatura, trabalhos de encomenda (nem por isso menores) e estudos que tangenciam a Geografia, a obra de Braudel e a História de São Paulo e do Brasil sempre me levaram por contraste ou não ao problema revolucionário.

Lembro-me de um artigo que escrevi com Marisa Midori Deaecto sobre Libero Badaró e que levou muito tempo para ficar pronto. Foi publicado numa revista de Campinas depois de ser recusado pela revista do Departamento de História da USP. Libero era um liberal e aquele artigo nos levou a fazer um pequeno livro (outra encomenda) sobre a “revolução” do sete de abril (que permaneceu inédito). Tudo se deveu ao fato de percorrermos em São Paulo uma estimada rua Libero Badaró.

Em 2007 andava fatigado e sem saber o que fazer. Então, recebi o convite de Emir Sader para escrever uma biografia de Caio Prado Junior. Aceitei, relutante. Conhecia a obra de Caio Prado dos tempos do ensino médio, como já disse aqui. Mas nunca achei que sabia o suficiente. A excelente orelha do livro foi escrita por Ricardo Musse. A obra editada com o inexcedível cuidado de Ivana Jinkings, foi bem recebida e mereceu várias resenhas. Recebi duas críticas. Uma delas muito bem feita pelo Prof. Marcos Silva, mas que reconheceu o valor do meu livro. Oscar Pillagallo, Lidiane Rodrigues, Agnaldo dos

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Santos, José Mao Jr., Julio Vellozo, Luiz Pericás, Eduardo Bellandi, o poeta Heitor Ferraz foram gentis em resenhar meu livro9.

Não é mera coincidência que eu tenha transitado de Braudel a Caio Prado. Tanto no historiador francês quanto no paulista a questão das temporalidades é central. Para Braudel, o maior documento sobre o Mediterrâneo era o próprio mar. Vê-lo era uma parte essencial da pesquisa. Percorrer aquele mar entre terras, dobrar as penínsulas (sempre aos pares), conhecer os mares (Adriático, Egeu...), estudar os ventos (o Mistral, o Siroco), beber os vinhos e comer os pães, tudo isso se refletia naquele livro ímpar que é La Mediterranée. Para Caio Prado Junior não foi diferente: viajar pelo Brasil, dizia ele, era também viajar no tempo.

Por isso, não me limitei aos arquivos e à bibliografia. Estudei seus roteiros e mapas e refiz, com minha esposa Marianne Reisewitz, várias de suas viagens de automóvel. Ela foi crucial nas viagens. Vi com os meus olhos e com os dela muitas paisagens. Entremeava as conversas naquelas lentas solidões do Brasil com observações ouvidas de Milton Santos.

Na confecção dos capítulos iniciei-me pelas determinações mais simples da vida de Caio Prado, pelo mais comum, para atingir as idéias mais abstratas nos capítulos seguintes. Discuti os conceitos, as obras e as polêmicas em torno delas. No último capítulo eu tentei chegar ao concreto, ou seja, ao Brasil de hoje, mostrando o atual e o ultrapassado na obra dele.

Reconstituir suas opiniões, estudos, esperanças, frustrações, sofrimentos de ordem política sem resvalar para a eleição de uma única faceta de sua personalidade pública, eis o desafio que tentei superar com as modestas competências de que dispunha. Espero

9 Houve resenhas em: Diário do Pará, O Estado de São Paulo, Estudos Avançados, Agência

Fapesp, Folha de São Paulo, Carta Capital, Valor Econômico, Jornal da USP, Teoria e Debate, Princípios, Revista O Escritor, Revista Sociologia, Linha Direta, Publish News, Revista Living e Correio Braziliense

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com isto ter me aproximado de um autor imprescindível para compreender e amar aquilo que mais importa ao historiador brasileiro: o seu próprio país.

6. A Livre Docência

Reencontrei a Geografia por acaso. Como disse anteriormente, tinha sido aprovado para ministrar aulas a alunos de Geografia da USP. Escolhi O Mediterrâneo de Fernand Braudel como o livro texto simplesmente porque não conhecia outra obra que pudesse estabelecer um diálogo entre a História e a Geografia. Depois, descobri que aquela Geografia que Braudel admirava já não era cultivada pelos novos geógrafos...

Meu problema era o tempo. De repente, me vi diante de vastos espaços.

A linguagem habitual é enganadora a respeito do tempo. “Tempo” remete a “temporal” e a “temporário”. Remete ao que passa, portanto ao que não dura. Um dicionário nos diria que temporal refere-se ao que sucede no tempo, ao mundano, portanto ao que se opõe a espiritual (que pertence, por sua vez, à ordem do eterno). A palavra temporário é mais ainda evidente: refere-se ao que tem escassa duração. Já a palavra tendência remete ao impulso habitual, permanente ou semi-permanente contrariamente ao imprevisto e temporário10.

A idéia imediata de tempo homogêneo, linear e cronometrado é típica das sociedades posteriores à Revolução Industrial. Já o tempo como eterno retorno, como repetição faz parte da constituição do homem como ser genérico e civilizado e é tributária das primeiras observações dos ciclos da natureza. Assim, o movimento lunar (“revolução”), os tropismos sazonais na reprodução dos peixes, a sucessão das pequenas eras glaciais, a repetição do circuito do dia e da noite são formas de tempo repetitivas e permanentes. Mas as sociedades do capitalismo comercial desenvolveram outra concepção de tempo.

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Na ausência de relógios precisos e onipresentes, o homem do Renascimento não podia mais encarar o tempo apenas como o eterno retorno, já que ele (ou uma parcela que se dedicava aos jogos do capitalismo) necessitava entender as diferenças de tempo e espaço como definidoras dos juros, das operações de câmbio etc. A hora do dia ainda era repartida de forma mais imprecisa e a data do calendário era raramente invocada. Quando se a invocava era relacionada a um marco importante (o São João de 1500 que vê perecer D. Miguel, o neto dos Reis Católicos). Mas esse tempo do capitalismo comercial é ainda um tempo que não se percebe como coletivo, como social e global, portanto simultâneo, o que só é possível com o advento da Revolução Industrial e das comunicações que permite a progressiva unificação dos espaços.

O historiador precisa articular as diversas temporalidades tornando-as solidárias, múltiplas, simultâneas. Marx estabelecera modelos sociais a partir do que mais tarde se chamou longa duração. Para Braudel seria preciso fazer tais modelos, como barcos sólidos que são, navegarem nas águas móveis do tempo. Ora, o que no prefácio de 1859 de Marx aparece como “a base real” ou “material” da sociedade, pode ser simplesmente o tempo longo de Braudel11, a vida material ou o gênero de vida de Vidal de La Blache.

São sempre tentativas de tangenciar uma mesma realidade básica e muitas vezes imperceptível para o historiador.

Estas combinações não surgiram à toa em minha mente. Sou fruto de uma tradição uspiana, por mais que possa criticá-la. E a seção de História e Geografia da Faculdade nasceu sob a influência da missão francesa. Os professores de antanho acostumaram-se à História de Braudel e à Geografia de La Blache, Deffontaines, De Martonne e Monbeig.

11 Fiori, J. L. O vôo da coruja. Para reler o desenvolvimentismo brasileiro. São Paulo: Record,

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Os anos sessenta se desenrolaram à luz da descoberta dos marxismos, mas não houve uma crítica demolidora da herança francesa. O Brasil padece de um certo ecletismo e a tradição uspiana não foi diferente. Marx chegou, mas não desbancou Braudel. Sentou-se ao Sentou-seu lado, desconfiado e crítico.

Por outro lado, a produção geográfica marxista é muito recente e escassa, se comparada à História e à Sociologia. Além disso, o marxismo dos geógrafos aportou ao Brasil na mesma época da vaga dos estruturalismos. Isto também ocorreu com a História. Mas os historiadores podem até ser “estruturalistas por temperamento”, mas não verdadeiramente. Sob pena de matar a historicidade de seus objetos ou mudar de profissão sem o saber.

Minha tese de livre docência concluiu minha trajetória de diálogo com a Geografia e a História (vivida). Ao me debruçar sobre o imperialismo, construí um objeto espacialmente definido: as relações entre o sul da Europa e a África no século XIX. E estabeleci um ritmo diferente daquele dos imperialismos pioneiros e dominantes. Os espaços que estudei se me apareceram lentamente ritmados e, ao mesmo tempo, submetidos a redes e centros mais dinâmicos.

A área geográfica escolhida tinha a ver com minhas experiências de pesquisa (Itália, primeiro e Península Ibérica, depois). Não parece difícil, diante da crise econômica do início de 201012, ver que a sua unidade ainda persiste.

Usei a expressão “fractal” apenas como uma metáfora, já que não sou matemático e muito menos ainda versado em Geometrias não-euclidianas. Mas creio que podemos fazer neste esquema infinitas adições numa área finita (o espaço terrestre) e sempre descobrir novas desigualdades. Não desejo, com isso, chegar ao pessimismo de uma

12 Os economistas britânicos e europeus do norte, peritos em “algarismar o amanhã” (como diria

Mario de Andrade) criaram a expressão que revela o seu preconceito e também as debilidades do Estado no sul da Europa, especialmente o grego: Pigs (Portugal, Itália, Grécia e Espanha). Nem por isso, os meridionais são menos preconceituosos ao lidarem com africanos e latino-americanos.

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desigualdade perene. Mas certamente, isto complica, embora não invalide, a construção de discursos aglutinadores.

Quando viajava entre Patrimônio de São Sebastião da Serra e Brotas (SP), olhava atento a paisagem entrecortada poucas vezes por suaves colinas e, de repente, vi uma usina que parecia arranhar a paisagem. Era uma linha vertical e prateada numa horizontalidade verde. Aquele pobre distrito de Brotas parecia “cidade dormitório” de trabalhadores rurais e de usinas da região. A usina não estava ali para atender demandas locais, “dar” empregos ou pagar impostos, mas para acumular às expensas da devastação daquele lugar.

Basta lembrar daqueles círculos concêntricos que se formam quando jogamos uma pedra n`água13. São assim as relações entre os elementos geográficos. As hierarquias

não acabam. Elas se repõem em todas as nossas relações e espaços. A questão é: que tipo de hierarquia nova podemos propor? Creio que os comunistas dos anos trinta tinham consciência de que precisavam não só da liderança da União Soviética14, mas

também de uma vanguarda. Entretanto, por mais que condenemos erros crassos da política exterior dos soviéticos, a sua hegemonia não estava fundada na exploração internacional.

7. Conclusão

Foi pequena minha experiência de vida exterior. Cambaio, sofri o receio dos tímidos e, como meu pai fazia, fiquei sempre à margem, recolhendo com imensa curiosidade os relatos dos que voltavam.

13 A palavra fractal surgiu rapidamente porque o irmão de meu camarada Ciro tinha uma empresa

com este nome bem antes que o termo se tornasse popular. Fractais são entes geométricos indefinidos que se reproduzem de forma infinitesimal.

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Meus pais eram de outra “civilização”. Viviam apenas a realidade mais geográfica e permanente de todas: o cotidiano infinitamente repetido. Nunca jantavam fora de casa. Não comiam o que não conheciam. Preocupavam-se tão somente com a reprodução da vida e com o futuro dos filhos. Que fossem honestos e estudassem. Para isto, se o soldo de meu pai não dava, minha mãe voltava a fazer “bicos” como empregada. Mas, agora, só passando roupa.

Para os limites de nossos horizontes, posso dizer que o filho do soldado e da empregada doméstica chegou longe demais. Meus pais venceram.

Ao reler “Tempos Interessantes”, de Eric Hobsbawm, tenho um sentimento parecido ao dele em relação à mãe. Às vezes tenho a impressão de que tudo o que eu fiz, tudo o que eu aceitei receber, ainda que em escala menor (títulos acadêmicos, honrarias e vaidades), foi para mostrar ao meu pai.

Pouco tempo antes de seu passamento, ele pediu que eu lesse A Ponte de São Luiz Rei de Thornton Wilder. Eu não li. Depois, encontrei uma bela edição em inglês num sebo em São Paulo. Achei a leitura difícil. Mas a obra me perseguiu. Em viagem a Bauru, entrei num sebo e encontrei uma tradução. Naquele romance apreendi a permanência dos fios da memória num sentido historicista, como diria Gramsci.

De tudo o que perdi, o que mais me dilacera a alma é o meu pai. Neste memorial, é a ele e somente a ele que pretendi dedicar as minhas saudades e as minhas esperanças.

Referências

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