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Jacques Le Goff por ele mesmo

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Academic year: 2021

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Vera Irene Jurkevics

Doutora em História das Religiões pela Universidade Federal do Paraná – UFPR Professora do Curso de História – UTP

Faculdade Leocádio José Correia – FALEC

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Resumo

O objetivo deste artigo é apresentar, em linhas gerais, o balanço que Jacques Le Goff fez de sua carreira acadêmica e sua produção historiográfica, por ocasião de uma série de encontros com o jornalista e historiador Marc Heurgon, que resultou na publicação de Uma Vida para a História. Apesar de que procuramos acompanhar, tanto quanto

possível, o desenrolar das entrevistas, isso nem sempre foi possível. Assim, buscamos manter um fio condutor de suas abordagens, agrupando informações retomadas, por eles, em diferentes momentos. Naturalmente, não se trata de um artigo biográfico, nem tampouco de uma análise do conjunto de sua obra. Trata-se apenas de uma tentativa de sinalizar os vários “pólos” de sua formação, de sua vivência como professor e pesquisador medievalista, preocupado com o passado e com o tempo presente. Para além de difusor da história, por meio de um volume substancial de publicações, Le Goff não se limitou ao meio acadêmico, à Revista dos Annales ou ainda à École des Hautes Études, colaborou, por um período, para a reforma do ensino de história na França e se dirigiu por mais de

trinta anos ao grande público através do programa radiofônico Les Lundis de l’Histoire.

Palavras- chave: Le Goff. Idade Média. Annales. École des Hautes Études.

Résume

Le but de cet article est de présenter, en général, l’équilibre que Jacques Le Goff a fait sa carrière universitaire et sa production historique, au cours d’une série de réunions avec le journaliste et historien Marc Heurgon, qui a abouti à la publication d’Un l’Histoire de la Vie. Bien que nous essayons de suivre autant que possible, réaliser les interviews, il

n’était pas toujours possible. Ainsi, nous cherchons à maintenir un fil de leurs approches, regroupant les informations incluses par eux à des moments différents. Bien sûr, ce n’est pas un article biographique, ni une analyse de l’ ensemble de son œuvre. C’est juste une tentative pour signaler différents «pôles» de sa formation, de son expérience en tant que professeur et chercheur médiéviste, concerné avec le passé et le temps présent. En dehors de l’histoire du diffuseur par un volume considérable de publications, Le Goff ne s’est pas limité à des cercles universitaire, la revue des Annales ou l’ École des Hautes Études, ont collaboré pour une période, de réformer l’enseignement de l’histoire en France et dirigé pendant plus de trente ans, le grand public grâce à l’émission de radio Les Lundis de l’Histoire.

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No último 1º de abril (2014), morreu em Paris, Jacques Le Goff, uma das maiores referências acerca da História do medievo ocidental, por fazer abordagens muito interessantes no uso das fontes documentais e sinalizar como simples fragmentos ajudam a responder a importantes questões historiográficas.

Jacques Le Goff, nesse artigo, será abordado por sua própria fala, pois não se trata de uma biografia, nem um balanço de sua obra, mas de alinhavar fatos significativos de sua vida pessoal e acadêmica com sua produção historiográfica. Os dados apresentados se referem à série de entrevistas que concedeu ao jornalista e historiador Marc Heurgon, e que resultou na publicação de Uma Vida para a História1, além do

que escreveu, como introdução, em suas obras. Nascido na cidade portuária de Toulon, região mediterrânea da França, em uma família em que várias pessoas se dedicaram à educação. Seu pai, da região da Bretanha, de tradicional família camponesa, ascendeu por meio da Marinha e do magistério, como

1 LE GOFF, J. Uma Vida para a História: conversações com Marc Heurgon. São Paulo: UNESP, 2007.

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professor de inglês na Escola Naval de Toulon. De formação católica, desencantado, abandonou suas práticas religiosas, em decorrência do Caso Dreyfrus2. Le Goff, em várias passagens salientou sua admiração e sentimentos, por seu pai, que idoso, enfermo e paralítico, contou com os cuidados da esposa, e talvez, em sua atenção, teria retornado ao catolicismo, embora o filho duvidasse de que Thomas tivesse sido “tocado” de fato. Sua mãe, Bárbara, professora de piano, era católica ardorosa e defensora de um cristianismo social. Para ela a religião, mais que os rituais litúrgicos, fundamentavam-se na prática das virtudes, embora o filho tenha destacado sua visão “dolorista” de vida, um entendimento utilitário da dor, do sofrimento, do culto ao remorso e até mesmo de renúncia da própria felicidade. A isso, somava-se sua devoção mariana, praticada num pequeno altar doméstico.

Nesse ambiente familiar, entre um pai descrente e uma mãe extremamente piedosa, Le Goff apontou que possivelmente sua vocação para historiador tenha

2 Em 1895, um oficial judeu francês, em exercício na embaixada alemã em Paris, foi condenado à prisão perpétua. Seu irmão, anos depois conseguiu comprovar sua inocência, mas a sentença, após novo julgamento foi mantida, o que desencadeou um movimento de apoio ao réu, com participação de professores, estudantes e intelectuais, como Emile Zola, desencadeando outr onda de violência contra judeus na França e na Argélia, além de um amplo debate acerca do retorno à monarquia. Somente em 1906, o Major Esterhazy foi punido como espião, enquanto Alfred Dreyfus, apenas parcialmente reabilitado em suas funções militares renunciou à sua patente.

se iniciado por ocasião de seu catecismo, quando insatisfeito com a superficialidade das explicações do sacerdote responsável pelo seu preparo para a Primeira Comunhão, passou a ler pessoalmente os Evangelhos e

descobriu que muitas coisas não eram ditas, enquanto outras, não se encontravam nos relatos bíblicos.

Por essa época começou a ler Walter Scott, romancista medieval, que delineava sedutoras imagens da luta entre saxões e normandos ou ainda a luta entre a aristocracia e as revoltas sociais de Robin Hood. Algum tempo mais tarde, conheceu Michelet, leitura mais densa, mas que o fascinou por completo.

De sua infância em Toulon, Le Goff abordou muito pouco, mas enfatizou que se tratava do lugar mais colonialista da França, com imigrantes senegaleses, marroquinos, etc. Influenciado pelo pai logo desenvolveu uma predisposição antimilitarista e ainda muito jovem teria se alinhado à Frente Popular, contra as frequentes manifestações racistas, antissemitas e reacionárias. Aos dezessete anos ingressou no Curso Preparatório de Thiers, em Marselha, cidade vizinha à sua.

Por essa época Le Goff acompanhava o desenrolar da Guerra Civil Espanhola, o início da Segunda Guerra e menos de um ano depois, a ocupação de Paris e a divisão da França: o norte submetido diretamente a Berlim e o sul, sob a República de Vichy, governo colaboracionista de Pétain. Seu pai diferentemente de muitos colegas,

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se recusou a aderir à Legião dos Combatentes, fiel ao Marechal, o que era passível de alguma represália. Tempo depois, Le Goff foi denunciado por um colega de turma, quando não desfilou para aquele presidente em visita a Toulon. Soube, através de um antigo professor que, no cargo de Secretário Geral da Juventude de Vicky, em Marselha, conseguiu preveni-lo de que em sua ficha constavam indicativos negativos do pai, e dele mesmo, embora nenhum incidente maior o tenha marcado. Concluiu todo o período preparatório passando pelas privações próprias de um período de guerra, como falta de aquecimento e de eletricidade. Em final de 1942, contraiu uma pleurisia e foi mandado para os Alpes, de onde só retornou em março do ano seguinte, e em dezembro, acabou reprovado nos exames da École Normale3.

Alguns meses após o desembarque da Normandia, Le Goff transferiu-se para a capital francesa, ingressando na Sorbonne, a Universidade de Paris, para completar a licenciatura, após sua aprovação em Grego e em Latim, obtidas em Aix, em 1944. Acreditava que era a oportunidade para preparar-se para a Agregation4, no entanto, insatisfeito, logo 3 Também conhecida como École Normale Supérieure (ENS), uma das instituições de maior prestígio na formação de políticos e cientistas franceses. Da extensa lista de Medalhas de Ouro e de ex-alunos notáveis constam, por exemplo: Émile Durkheim, Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Lucien Febvre, além do de Jacques Le Goff. 4 Concurso específico do sistema educacional francês, de ingresso de

desistiu, optando por um novo período preparatório, finalizado com sucesso em meados de 1945, o que garantiu sua vaga na ENS. Segundo sua avaliação,

esse período foi de liberdade, já que a exigência de frequência, na École, ou mesmo em cursos no exterior, era mínima. Por outro lado, oportunizava encontros com importantes intelectuais como Georges Lefebvre, Georges Friedmann e Fernand Braudel. Das amizades desse tempo, apontou Alain Tourraine5, com quem dividia alojamento e interesses culturais. Em meio a essas lembranças, Le Goff se referiu, ironicamente, à sua reprovação no exame de História da Idade Média, ministrado por Louis Halphen, de quem, nem ele, nem Tourraine, também reprovado, guardavam boas recordações, pois enquanto Halpen, enfatizava a importância da Cavalaria ou certos tipos de relações senhoriais, ou reduzia o lugar ocupado pelos reis no sistema feudal, seus alunos, leitores de Marc Bloch, defendiam questões como a noção de sociedade de produção ou os poderes essenciais dos reis taumaturgos, entre outras.

Nesse período, outro medievalista marcou sua formação, Charles-Edmond Perrin com quem, um reduzido grupo de “normalistas”, mantinha encontros

professores titulares aos liceus e algumas faculdades.

5 Eminente sociólogo francês que se dedicou à sociologia do trabalho e dos movimentos sociais, tendo cunhado a expressão “sociedade pós-industrial”. Aos 33 anos tornou-se Diretor de Estudos da École de Hautes Études, função que será explicada no decorrer do texto.

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de estudos relacionados à dinastia carolíngia, com destaque para as pequenas propriedades rurais. Le Goff apontou que apesar do assunto não ser exatamente delirante, Perrin o tornava notável.

Após dois anos do início de sua formação, Jacques Le Goff recebeu autorização para passar um ano em Praga, entre 1947-48, como bolsista, se preparando para a diplomação em Estudos Superiores, que lhe rendeu o certificado em Letras.

Durante o período que antecedeu sua ida para Praga, estudou um pouco de tcheco na École des Langues Orientales, com o apoio de Perrin e que propôs como

tema para os exames finais, as origens da Universidade Charles6, criada por Charles IV, Sacro Imperador Romano Germânico, em 1348.

Assim, entre o final de 1947 e o começo do ano seguinte, pôde ler muito acerca desse tema, incluindo documentos ainda inéditos e, concomitantemente, fazer o estágio necessário para a Agrégation, no Instituto

Francês em Praga. Desse período, Le Goff destacou que testemunhou o Golpe de Praga, em fevereiro de 19487.

6 Foi a primeira da Europa Central. Modelada pelas Universidades de Bolonha e de Paris, iniciou suas atividades com os cursos de teologia, artes liberais, direito e medicina. Ao longo de sua história, a instituição passou por várias reformas, orientações e denominações. Mas a partir de meados do século XIX seu foco era se tornar uma instituição moderna, afinada com outras de renome internacional. Contou com docentes como Albert Einstein, Tomás Masaryk, 1º presidente da República da Checoslováquia e, Jaroslar Heyrovsky, Prêmio Nobel de 1959. 7 Em que Gottwald tomou o poder, estabeleceu o regime comunista,

Apesar de protegido por sua condição de bolsista francês, prudentemente voltou a Paris, mesmo porque sua pesquisa já estava praticamente pronta e seu prazo de permanência se esgotando8, mas novamente foi reprovado em Geografia, na prova de corte geológico, o que era indispensável para a Licenciatura em História. Entrevistado e entrevistador concordaram acerca da exigência inconsistente para um futuro historiador e a falta de um bom curso que preparasse os alunos para os exames finais. Sua ajuda de custo foi suspensa, embora continuasse a morar na École, por isso precisou se ocupar

de alguns trabalhos temporários, como aulas de Latim ou Grego, ou ainda como nègre, aquele que escreve por

encomenda. Le Goff apontou duas ocasiões, uma em que redigiu as memórias de Menemendjoglou, então embaixador turco em Paris, que falava fluentemente o francês, mas não dominava totalmente a escrita. A outra experiência como nègre deu-se com o Ministro

da Educação Nacional interessado em entrar para a Academia Francesa e que esperava conseguir depois publicar um estudo acerca de Richard Cromwell. Le Goff se encarregou da pesquisa, mas redigiu apenas parte do trabalho. Não gostava do republicano inglês

não como fruto de um movimento popular, mas por um movimento político sustentado no exterior.

8 Saudoso, Le Goff lembrou que só voltou àquela cidade, muitos anos depois, em 1992, quando recebeu uma condecoração da Academia de Ciência, a Medalha de Ouro Polacky, por sua pesquisa acerca da Universidade Charles.

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e, além disso, estava no 5º ano da École e corria contra

o tempo se preparando para a Agrégation, que há pouco

havia promovido “uma verdadeira revolução”, sob a responsabilidade de Gaston Berger.

Refeito o exame9 pouco depois e uma vez aprovado, Le Goff foi nomeado pelo Departamento de Relações Culturais do Quai D’Orsay, para uma vaga no Liceu de Amiens, onde permaneceu apenas um ano. Tão breve tempo no ensino secundário deu-se em função de sua vontade de se dedicar à pesquisa. Nesse ínterim, conseguiu uma Bolsa de Estudos na Universidade de Oxford, onde pôde dar continuidade aos estudos das universidades medievais. Findo o prazo em Londres, quase na sequência, conseguiu uma vaga na École Française de Rome, por mais um ano, quando a paixão

pelas bibliotecas aflorou. Pesquisou inicialmente na Biblioteca do Palácio Farnese10 e depois na Vaticana11. Como resultado de suas investigações, colocou no plano central de sua atenção o fato de que “o universitário teve origem nos mestres do século XII, renumerados pelos estudantes em troca de seu trabalho” (2007, p.

9 Fernand Braudel fez parte da Banca, e pouco tempo depois foi contemplado com a criação da Maison des Sciences de L’Homme e nomeado seu primeiro diretor.

10 O Palácio Farnese abriga, desde 1876, a École Française de Rome e mais recentemente a Embaixada da França. Possui uma biblioteca com grande acerco da história papal medieval.

11 Fundada por Nicolau V, em 1450, é a mais antiga biblioteca a fazer empréstimos públicos da Europa, tornou-se o núcleo de coleções pontifícias, herdadas das velhas bibliotecas dos papas.

84). Era o início da noção de trabalho intelectual, que lhe abriu outros tantos caminhos a percorrer.

Em meados de 1953, Brieu, ex- reitor do Institute Catholique, lhe sugeriu trabalhar com os manuais dos

confessores, redigidos para orientar os padres quando interrogavam os fiéis na confissão12. Esses compêndios datavam do século XIII, pós Concílio de Latrão (1215), que estabeleceu a obrigatoriedade da confissão anual, por ocasião da Páscoa. Para além da obediência cristã, Le Goff apontou para a importância da “origem do exame de consciência”. O trabalho com essa fonte foi bastante promissor, pois além da questão dos pecados em si, pôde analisar também os ofícios e as condições sociais dos penitentes. Na sequência, outras bibliotecas foram visitadas, como a Biblioteca de Sienna, na Toscana; a Biblioteca Mediateca, em Mântua, a Biblioteca de Florença, num antigo convento dominicano, do século XIII, hoje transformado no Museu Nacional de São Marcos, e em Pádua, a Pontifícia Biblioteca Antoniana, que enriqueceram suas investigações pela diversidade de fontes consultadas.

Nesse período publicou sua primeira obra Mercadores e Banqueiros da Idade Média13 (1956) que focou o contexto

europeu cristão, preterindo os mercadores muçulmanos

12 Le Goff sinaliza que nesse período ainda não havia confessionário, criado apenas no século XVI.

13 Obra que em 1993 estava, na França, em sua 8ª edição, alcançando algo em torno de 58 mil exemplares.

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e bizantinos que exigiriam outra abordagem por se tratar de homens de civilizações distintas. Seu interesse, naquele momento, era destacar o mercador e o banqueiro no âmbito de sua vivência, procurando desvendar os espaços sociais que eles ocupavam, na esfera do poder, no comércio, nas operações financeiras, especulando, investindo, contatando com o mundo cismático, herético e pagão, e os problemas profissionais e morais advindos dessas atividades.

Ainda em relação à Biblioteca Vaticana, trabalhando com especialistas, Le Goff passou a redirecionar sua investigação ao se interessar pela concepção de trabalho e o mundo do trabalho na Idade Média, sobretudo na esfera dos “trabalhadores intelectuais”. Com o nascimento das universidades, nos séculos XII e XIII, período marcado por uma efervescência social e intelectual e em que a escolástica universitária e o aparecimento das ordens medicantes refletiam o crescimento das cidades e a formação das corporações de ofício. Assim, os docentes das universidades compunham, como homens de ofício, a associação dos “trabalhadores intelectuais”, ou ainda “os vendedores de palavras” que, nas ruas, nas “catedrais do saber”, nos debates ou na vagabundagem intelectual, forjaram seus músculos de trabalhadores do saber, retratados na obra Os Intelectuais na Idade Média, publicado

em 1957 e reimpresso em 1985, como parte da coleção

Points Histoires.

De volta a Paris, um novo convite o esperava. Michel Mollat o indicara para assumir a cadeira de História Medieval, mas disposições burocráticas adiaram seu ingresso na Faculdade de Letras de Lille, então um acordo foi feito para que ficasse como adido14 de pesquisa no Centre Nacional de Recherche Scientifique (CNRS).

Tempos depois, Le Goff partiu para a Lille, como assistente de Mollat, interessado em diversos objetos de pesquisa, como a história da navegação, história econômica e social, história do sal e, sobretudo, dos pobres, durante o medievo, que marcaram sua carreira. Nessa instituição, Le Goff ministrou um curso sobre economia e comerciantes na Idade Média, que o levou a estabelecer uma ponte entre eles e os universitários, já que esses grupos adquiriam, naquela ocasião, tanto uma importância econômica, quanto intelectual. Por isso, respondendo a Heurgon acerca de sua tese, Le Goff sinalizou que em função de suas leituras, havia conquistado certa familiaridade com o conjunto da Idade Média, com destaque para o período entre o século XI e XIII, por isso teria se afastado do projeto inicial e decidido desenvolver sua temática em torno do trabalho intelectual nas escolas e universidades, depois publicado, na forma de artigo como Les idées et les attidudes à l’égard du travail au Moyen Âge,

14 Uma espécie de funcionário agregado àquela instituição de pesquisa.

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Tempos depois, Michel Mollat foi transferido para a Sorbonne e Le Goff passou a assistente de Guy Fourquim, completando o tempo possível nessa função. Assim, deveria retornar ao Liceu ou ao CNRS, mas não era o desejava. Recebeu um convite da Universidade de Dakar, no Senegal, mas declinou porque havia uma possibilidade de conseguir uma vaga na École des Hautes Études, na VI Secção, pois com a morte de Lucien Febvre, a direção ficou a cargo de Fernand Braudel. No começo de 1959, foi contratado pela École, como mestre assistente de Maurice Lombard, especialista em Islã medieval, mas que logo lhe garantiu liberdade de pesquisa. Três anos depois foi eleito Diretor de Estudos, algo como professor especializado, naquela instituição.

Com relação aos fundadores dos Annales, Le Goff não chegou a conhecer Marc Bloch a quem tributou o título de maior medievalista e que havia morrido alguns meses antes de sua transferência a Paris, em 1945. Admirador do historiador, vítima do nazismo, afirmou que muitas vezes, enquanto refletia e escrevia, ficava imaginando o que Bloch teria pensado a respeito, sobretudo pela característica rigorosa e precisa de suas análises. Para ele, tais pensamentos serviam como um exercício de autocrítica.

De tudo que leu de Bloch, garantiu que o que mais o impressionou foi A Sociedade Feudal, um misto de história

econômica, história social e história das mentalidades, numa concepção de história global. Também nutria apreço por As Características Originais da História Rural Francesa, resultado de estudos que Bloch havia feito no

Instituto para Estudo Comparativo das Civilizações, e por Os Reis Taumaturgos, um de seus livros de cabeceira.

Reconheceu, no entanto, que na primeira leitura não havia percebido o aspecto inovador, o que somente veio a ocorrer quando se voltou para a etnologia e a antropologia. Descobriu então os conceitos usados como: representação, imaginário e símbolo, elementos essenciais da análise da história política. Logo, seu olhar se ampliou e passou a considerar a aplicação desses conceitos em todo tipo de história, embora fosse na política que dariam maior contribuição, mesmo porque, tradicionalmente, os medievalistas focavam apenas superficialmente o lugar da monarquia no sistema feudal francês.

Le Goff destacou ainda, o vigor das palavras de Bloch, a importância que conferia ao sentido, como explicava singularmente, cada nova problemática, a comparação dos fenômenos e sistemas históricos, que defendia, ser a ossatura da história, aproximando-os das generalidades, submetidas ao acaso e à individualização, conseguindo assim, reconhecer a especificidade e a originalidade de cada época. Le Goff ainda sinalizou para relevância que a realeza tinha no entendimento

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daquele historiador, legitimada no trono francês pela sagração real, em Reims, um ritual que se desdobrava quando os reis se tornavam taumaturgos, através do toque das escrófulas. Ainda na avaliação Le Goff, é inegável a contribuição de Bloch em A Apologia da História ou o Ofício do Historiador, um tratado póstumo sobre o método

histórico, obra que prefaciou por ocasião de uma nova edição15 e que reconheceu ter lhe influenciado, anos mais tarde, na escrita de manuais escolares.

Le Goff tributou a importância de Braudel em seu crescimento profissional quando o indicou sucessivamente para Chefe de Trabalho (1959), Mestre Assistente (1960) e Diretor de Estudos (1962), na VI Seção da École Pratique des Hautes Études, encarregada de uma série de tarefas administrativas referentes ao ensino universitário e de responder às novas demandas provenientes do rápido desenvolvimento das universidades, na maioria dos países ocidentais. Por isso, os pesquisadores tinham como missão, tornar seus objetos de pesquisa em matérias de ensino. Para Le Goff, essa condição aproximava a Hautes Études das Universidades do século XII, onde S. Bartolomeu, S. Tomás de Aquino, Roger Bacon, entre outros, transmitiam suas investigações filosóficas, teológicas ou referentes às artes liberais.

A dinâmica da École era a de seminários de pesquisa,

15 A primeira, datada de 1949, por iniciativa de Lucien Febvre.

em geral, para pequenos grupos especializados. Em outros casos, como do próprio Le Goff, era mais aberto e contava com uma participação mais abrangente, desde que os interessados tivessem conhecimentos mínimos que os permitissem acompanhar as exposições e os debates, estruturados para duas horas semanais, permitindo que os pesquisadores se dedicassem efetivamente ao desenvolvimento de suas investigações. Durante sua gestão como diretor16, propôs e recebeu aprovação para que os seminários se desdobrassem em dois momentos distintos. Duas horas destinadas a encontros mais abertos e outras duas, para grupos mais restritos, em que o Diretor de Estudos atuava mais como orientador do que como docente ou orador. Como a École não estava sujeita a programas definidos, nem pelo Ministério, nem pelas Universidades, os pesquisadores tinham total liberdade de escolha quanto aos seus objetos de investigação17.

Desde seu ingresso na VI Seção, em 1959, estreitou laços profissionais e apreço pessoal com Fernand Braudel e o tinha, naquela época, como o maior historiador vivo. Assim, considerava um privilégio

16 Eleito pelo conjunto dos Diretores de Estudo, dispunha de certa autoridade e autonomia administrativa, subordinada apenas ao Ministério da Educação Nacional.

17 Diferentemente do que ocorria nas Universidades e nos cursos de Agregation em que havia programas pré-estabelecidos que exigissem um adequado preparo, mas que muitas vezes, não correspondia aos interesses do pesquisador, retardando, em muitos casos, a defesa de tese.

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tornar-se seu colaborador. Convidado a compor o quadro dos Annales, naquela ocasião declinou, mas

acabou por tornar-se, em 1960, por indicação de Braudel, Secretário da Associação Internacional dos Historiadores Economistas, após ter publicado

Mercadores e Banqueiros, o que o aproximou mais dos Annales, onde publicou diversos artigos. Ao final de

quase uma década, à frente da revista, Braudel confiou a direção a Emmanuel Le Roy Ladurie, a Marc Ferro e a Jacques Le Goff, que promoveram a ampliação de horizontes de suas orientações, identificadso como Nova História, enquanto eles próprios foram considerados como a 3ª Geração dos Annales.

Fernand Braudel, com apoio dos Ministérios de Relações Exteriores e da Educação Nacional havia assinado, em 1958, um acordo de intercâmbio, ligando a École ao Instituto de História da Academia de Ciências polonês18. A cada ano, seriam disponibilizadas dezenas de bolsas de estudo para historiadores e pesquisadores poloneses que desejassem trabalhar na França, pois a maioria era privada do que se produzia no Ocidente, em virtude da censura soviética. Do lados dos franceses, Braudel ofereceu uma das vagas para Le Goff, que foi para a Universidade de Varsóvia, em 1959, para uma curta temporada. Nos próximos anos, outras viagens e participações em seminários o colocaram em contado

18 Entidade equivalente ao CNRS francês.

com uma família em que duas irmãs eram historiadoras, uma arqueóloga e outra, recém-formada em Medicina, Hanka, tempos depois se tornou sua esposa19.

Transcorria o ano de 1960, logo depois de ter sido nomeado Diretor de Estudos da VI Seção, Le Goff teve 3 obras publicadas, quase ao mesmo tempo: um manual escolar, Le Moyen Âge, classe de quatrième, que

abordava do ano mil até o início da Renascença, com ricas ilustrações, o que representava uma renovação nos materiais didáticos. Inicialmente o livro foi considerado muito profundo para alunos entre 12 e 13 anos, mas foi indicado como material de apoio de professores e para estudantes de Diplôme d’Études Universitaires Générales (DEUG).

Le Goff admitiu que seu objetivo mais imediato não era renovar o conteúdo e a metodologia de estudo de história para jovens estudantes, mas reconheceu ter sido bastante útil, quando, vinte anos depois, foi encarregado de reformar o ensino escolar de História. A proposta era romper com o tradicional e levar, com as devidas adaptações, a prática dos historiadores e dos Annales para o ensino secundário.

Sem chegar ao conceito de “longa Idade Média”, era necessário, naquela ocasião romper com a História temática, introduzida na década de 1950, em que um tema era tratado de forma verticalizada, o que

19 O casal teve dois filhos, Barbara, nascida em 1967 e três anos depois, Thomas, em homenagens aos pais de Jacques Le Goff.

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acabou provocando um entendimento distorcido, entre os alunos, de que determinados segmentos se desenvolviam de forma autônoma em relação ao resto da sociedade, e, sobretudo de que a evolução histórica dependia fundamentalmente das inovações tecnológicas, desvinculadas da História Cultural.

Por outro lado, Le Goff destacou que, sem abrir mão de datas, o novo material não apenas apresentava, por exemplo, o ano de eleição de Hugo Capeto, mas sinalizava que na China desenvolvia-se a dinastia Song, e que em Bizâncio, governava Basílio II, enquanto no Ocidente, Santiago de Compostela foi duramente atacada, entre outros fatos marcantes ou de transformações econômicas. Somado a isso, indicava a história dos monumentos, apontando para a construção do coro da Basílica de Saint Denis ou da edificação de Notre Dame, referenciais para todos os estudantes franceses. Dessa forma, a cronologia estava presente, mas não desvinculadas ao seu contexto, além de inserir o ocidente, e de forma mais pontual, a França, no cenário mundial.

A segunda publicação, desse período foi La Civilisation de l’Occident Médiéval (1964), que Le Goff

apresentou como sendo uma síntese dos aspectos e dos problemas do Ocidente medieval, em que fez análises mais profundas e que refletiam as investigações que vinha desenvolvendo ao longo do tempo. Tratou das

estruturas primitivas na organização da vida material e mental, destacando os regimes alimentares, as condições sanitárias, a incidência das doenças, a interdependência entre o mundo físico e as mentalidades e como os condicionamentos externos agiam no mental e no comportamental. Por fim, destacou o ambiente cultural em que as universidades foram criadas, num período de grande crescimento da cristandade ocidental e que identificou como sendo o da “verdadeira realização da Idade Média, eu diria o coração da Idade Média, a Idade Média central, aquela também na qual aparecem as estruturas, os elementos de longa duração na história ocidental” (2007, p.149).

A terceira obra, uma encomenda da Editora Fischer, alemã, resultou em uma publicação de bolso, para uma coleção de 20 ou 30 volumes acerca da história universal. Tratava-se de Le Moyen Âge, publicada tempos

depois em francês e que destacou a cristandade latina em toda a sua amplitude.

Em 1969, Braudel se afastou da direção dos Annales,

logo após a École ter sido pega pela explosão estudantil de Maio de 1968. Naquele momento, encontrava-se em Chicago, como homenageado da Universidade local. De volta a Paris, posicionou-se contrário ao movimento e sua hostilidade aumentou quando teve receio de que aquela agitação pusesse em perigo a VI Seção, dividida e abalada interiormente. Por outro

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lado, estava em andamento um convênio de bolsas de estudos com a Universidade de Varsóvia, resultando em diálogos expressivos entre historiadores franceses e poloneses. Similar a este, outro acordo fora firmado com a Universidade de Praga, embora com menores frutos. Diante do clima de incertezas, Braudel, Le Goff e François Furet visitaram as duas instituições e ao final, as posições contrárias de Braudel marcaram negativamente as relações dos membros da VI Seção, quando tiveram início negociações veladas em torno de sua sucessão, mesmo ele tendo expressado anteriormente seu desejo de permanecer na direção. E, apesar da autonomia científica da instituição, o mesmo não ocorria em termos econômicos e jurídicos. Se por um lado o Ministério da Educação não interferia na produtividade acadêmica, dispunha de dispositivos administrativos, com que normatizava funções especialmente as do alto escalão.

Assim, em meados de 1972, os Diretores de Estudo, um colégio eleitoral de pouco menos de cinquenta membros, elegeu Le Goff para presidi-los, a partir de uma diretoria composta por cinco representantes. A marca da nova direção esteve na prática de uma política de recrutamento, de pesquisa e intercâmbio com outras instituições de ensino e pesquisa fora do cenário europeu, como por exemplo, Índia, China, África Negra e América Latina. Outra iniciativa de

nova administração da École foi a reformulação dos Estatutos da VI Seção, para que houvesse uma independência financeira em relação ao Ministério, para que pudesse dispor dos recursos que recebia e distribuir o orçamento de acordo com a política interna. Para legitimar esse aspecto, a Diretoria desejava conferir um caráter mais democrático e que integrasse os diferentes segmentos da École, incluindo pessoal administrativo e técnico. Por outro lado, a partir de 1973, discussões internas indicavam que a VI Seção da École Pratique des Hautes Études, já não era a mesma desde a sua criação. Em 1947, desejava-se uma entidade que fosse “prática” que, ao contrário das outras Universidades, sobretudo a Sorbonne, voltadas para o magistério, fizesse interpretação e estudos de textos e documentos, a fim de aproximar ensino e pesquisa. Le Goff salientou que o termo “pratique”, muitas vezes havia sido mal entendido, algo como se se tratasse de uma escola técnica, o que não era o caso. Por isso, com apoio da maioria dos membros, a entidade passou a se chamar VI Seção da École de Hautes Études em Scienses Sociales.

Nessa época, a autonomia financeira foi conquistada e acompanhada de mudanças democráticas na direção que passou a ser assistida por conselhos consultivos e outros deliberativos. A composição da Assembleia antes formada apenas pelos Diretores de Estudo, passou a contar com um grupo de Mestres Assistentes

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e de outros pesquisadores. No conjunto de medidas que resultou na reforma dos Estatutos, tanto Le Goff, quanto François Furet que o sucedeu, abriram mão da permanência à frente da diretoria, por um tempo superior a cinco anos.

Os novos estatutos, devidamente legitimados pelo Ministério da Educação, entraram em vigor em 1975 e estabeleceram claramente o caráter nacional da École. Dessa forma, alguns desdobramentos tiveram início, começando por Estrasburgo, cujo projeto acabou não vingando e, em Brest, onde teve curta duração. Em compensação em Lion, a École, contou com a parceria, do Centro de Arqueologia Medieval da Universidade Louis- Lumière, conseguindo bons resultados. Também em Toulouse, o projeto frutificou, com trabalhos expressivos no campo da economia, da antropologia e, mais recentemente, nas ciências cognitivas. Mas, foi em Marselha que os objetivos foram mais plenamente alcançados.

Concomitantemente, em Paris, o crescimento interno, em número de cursos, de pesquisadores, de diretorias de estudo, entre outros, acabou gerando um problema de espaço físico para o andamento de todas essas atividades. A solução encontrada foi a École ocupar dependências no mesmo prédio que a Maison des Sciences de L’Homme20, criada em 1965, 20 Instituição que visava convidar pesquisadores estrangeiros em ciências humanas e sociais, favorecer pesquisas e intercâmbios e organizar

por Fernand Braudel e Clémens Heller.

Nesse ínterim, ao lado de Pierre Nora, procurou levar mais longe a herança dos Annales, cujo efeito

constituiu no movimento da Nova História, que ampliou os horizontes historiográficos, focando sua atenção no imaginário, na “história das mentalidades”, no pensar, no agir, no viver, individual e coletivamente.

Em 1977, terminou sua gestão, como ele mesmo havia fixado, sendo substituído por François Furet, então diretor de um dos mais importantes departamentos internos, o Centre de Recherche Historique21, mas sem

que se desligasse inteiramente da instituição. Continuou atuando, tanto na pesquisa, quanto no ensino, apenas afastado das questões administrativas.

Poucos meses depois de deixar a direção da Ècole publicou, em parceria com Jacques Revel, A Nova História. Em seguida foi a vez de Para um Novo Conceito de Idade Média: Tempo, Trabalho e Cultura no

Ocidente, uma coletânea de 18 ensaios, reunidos em três domínios: tempo, trabalho e cultura, interligados e que refletiam as experiências da história do cotidiano, do tempo que se arrasta, a história do profundo e do imaginário, a história de homens que viviam o tempo da Igreja, e das horas litúrgicas, o tempo do mercador,

encontros nos domínios das ciências e dos homens, mas que por ter um caráter institucional de Fundação, não poderia ser absorvida pela École. 21 Órgão que contava, naquela ocasião, com algo em torno de oitenta

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em que tempo é dinheiro, o tempo medido não pelas badaladas dos sinos das igrejas, mas pela engrenagem mecânica dos relógios, num contexto em que as condições econômicas e tecnológicas exigiam que os homens aprendessem, mesmo que lentamente, a dominar a natureza, distanciando ainda mais o trabalho manual do intelectual, enquanto a cultura refinada das universidades combatia, cada vez mais, a cultura popular.

Em 1981, foi a vez do volumoso O Nascimento do Purgatório, fruto de uma década de pesquisa e reflexões,

“sua obra preferida”, em que se interessou, de forma mais específica pela etnologia e pela cultura popular. Durante os períodos em que pesquisou em acervos das grandes bibliotecas, teve acesso a fontes “apaixonantes”, encontrando indicativos de como, de adjetivo, o termo purgatório passou a substantivo. Se antes, os condenados do além sofriam penas purgativas, por volta de 1200, os documentos eclesiásticos apontaram para um lugar de punição, definiu-se no além, um lugar intermediário entre o Inferno e o Paraíso, expressando características da espiritualidade ocidental, e por fim seu triunfo como elemento primordial de uma sociedade mais diversificada e complexa, e suas consequências na estrutura do pensamento e da devoção.

Anos mais tarde, em 1983, em razão de seu interesse pela cidade de Paris, aceitou a proposta de colaborar

com a Régie Autonome des Transports Parisiens (RATP),

onde em pouco tempo passou a integrar o conselho de Administração do Centro Cultural Internacional de Cerisy-la-Salle. O convite veio durante a organização de um seminário que reuniu pesquisadores em ciências sociais e professores universitários ligados às questões dos problemas urbanos, o que acontecia pouco depois de Le Goff ter escrito boa parte do texto e organizado o volume, Histoire de la France Urbaine, que integrou uma

coleção organizada por Georges Duby.

A proposta da RATP, segundo o medievalista, era um desafio, mas como sempre buscou a ligação de passado/presente, aceitou a presidência daquele empreendimento, denominado de Crise do urbano, futuro da cidade, articulado em dois momentos diferentes: um

em 1984 e o segundo, basicamente um ano depois. A evidente crise urbanística por si só justificava a realização do evento, mas a questão fundamental era provocar reflexões acerca dos espaços, e mais, dos fenômenos históricos desses espaços, em particular os trajetos, definidores das relações entre os elementos de um sistema. Para Le Goff, “Os diferentes trajetos numa cidade se conjugam em redes, evidentemente de importância capital para a RATP” (200, p. 229). De qualquer forma, os colóquios foram pensados, a partir de uma perspectiva utilitária, isto é, os trabalhos deveriam servir à Régie Autonome, para que ela adaptasse

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seu sistema de transportes, de trens, de ônibus e de metrô, às condições urbanas modernas de Paris, naquela fase de transição para o século XXI. Um dos aspectos evidenciados foi o das relações centro/periferia, cidade/subúrbio. Relações sempre difíceis porque demarcam territórios, por isso, Le Goff apontou que Paris ainda parece cercada por muralhas medievais, uma espécie de “uma muralha oca”, denominada periferia. Outro aspecto, e de difícil solução, foi o do transporte coletivo versus transporte individual. O terceiro ponto

relevante foi o espaço ocupado pelo mercado, que no medievo sinalizava as transformações e os contrastes entre o campo e a cidade, que para Le Goff, atualmente, parece estar se diluindo.

Esse envolvimento com a RATP, somado aos conhecimentos adquiridos ao longo de suas pesquisas, ligando passado e presente, se desdobrou em duas obras: Por amor das Cidades e Por amor às Cidades.

A primeira publicada, em 1997, e a segunda, dois anos depois, também contou com a interlocução do jornalista Jean Lebrun. Enquanto Por amor das Cidades

enfatizou as atividades urbanas e as belezas produzidas naqueles espaços, pela arquitetura medieval, Por amor às Cidades se concentrou em apontar o caráter inovador

dos citadinos, a questão da segurança, do poder e da beleza, como também os perigos dos ataques das turbas famintas e desordenadas, além dos cercos,

quando os muros impediam o acesso à água potável e aos alimentos e transformavam os espaços internos em palcos favoráveis à proliferação de epidemias, em parte pelas condições sanitárias precárias. Le Goff apontou que, diferentemente de uma visão tradicionalista, as cidades medievais eram lugares de festa, de jogos, de encontros e grandes acontecimentos. Eram coloridas, decoradas, constituindo por si só em obras de arte.

Entre 1985-86, vivenciou uma experiência que não considerou das mais felizes, apesar de interessante. Foi indicado por Humberto Eco para fazer a adaptação do livro O Nome da Rosa para o cinema, dirigido por

Jean-Jacques Annaud. Além de outros membros da École, contou com especialistas franceses em vestimentas medievais, gestualidade, cores e formas artísticas, que trabalharam na produção de desenhos e maquetes por quase dois anos. No entanto, na fase das filmagens, todos foram preteridos e o resultado, segundo Le Goff, foi um melodrama mal feito, em que muitas sequências ficaram desordenadas ou inadequadas.

Em 1988, durante a Feira de Livros de Frankfurt, cinco editores reunidos, lançaram o desafio de uma experiência inédita, a publicação de uma coleção de ensaios históricos sobre algumas das questões mais importantes na formação da Europa, elaboradas por autores de diferentes nacionalidades, especialistas em determinadas temáticas. Cada livro, escrito em uma das

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cinco línguas, seria traduzido para as demais. Assim nasceu a coleção Faire L’Europe, fundamentada na

convicção de que o futuro dos países europeus exige uma ativa circulação de ideias, transpondo as fronteiras,

sem preteri-las, mas que, na longa duração, expusesse as rivalidades e aspirações da União Europeia.

Nesse mesmo ano, de 1988, foi publicado Memória e História, em que Le Goff trabalhou vários conceitos,

alguns numa perspectiva dual relacionados à História, como por exemplo, Passado/Presente, Antigo/ Moderno. Entre outros, destacou o de Documento/ Monumento em que abandonando o caráter dicotômico, os apontou como construções sociais, em que o primeiro, ao edificar uma série de representações, resulta ele próprio no segundo, isto é, em monumento, quando passa a delimitar as interpretações acerca de uma época, evento ou personagem.

Ainda em 1988, teve início uma série publicada em quatro volumes, uma por ano, organização compartilhada com René Remond, acerca da História Religiosa da França, não traduzida para o português.

Depois de muitos anos de pesquisa, em 1996, Le Goff publicou Saint Louis, que implicou na sua crença

pessoal de que se pode chegar até a individualidade do personagem sem desvinculá-la de sua cultura e de seu contexto. Le Goff admitiu que as fontes, inicialmente abundantes, se revelaram, majoritariamente, clichês

que refletiam apenas um estereótipo, exigindo por isso, um estudo aprofundado das alterações e dos modos de produção da imagem de Luís IX (1226-1270), o rei santo, neto de Felipe Augusto e avô de Filipe, o Belo. Assim, para desmistifica-lo, Le Goff recorreu aos escritos de seu confessor, fonte mais segura, ainda que o revelasse sob o manto de uma sociedade profundamente religiosa, mas que permitiu descortinar comportamentos e sentimentos, essencialmente humanos, posteriormente santificados. Mesmo porque argumentou o autor, o rei havia sido “programado” pela realeza e conselheiros para se tornar um rei cristão ideal, que viesse a ser santificado, santificando assim a dinastia capetíngia, afinal, as anteriores já tinham seus representantes no panteão celestial.

No ano seguinte, outras duas obras foram lançadas: O Deus da Idade Média e Em busca da Idade Média. O primeiro se configurou, como em outras

oportunidades, em conversas, desta vez com Jean- Luc Pouthier, jornalista e historiador, em que o foco recaiu sobre a imagem de Deus para diferentes segmentos da sociedade medieval cristã. Nesse sentido, Le Goff apontou que a imagem de Deus depende da natureza e do lugar de quem imagina Deus, por isso, havia um Deus para os leigos e outro para os clérigos, um para os ricos e outro para os pobres, um Deus da religião institucionalizada e outro das práticas populares. O

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segundo, Em busca da Idade Média, também contou

com um colaborador, Jean- Maurice de Montremy, jornalista, editor e escritor, que num conjunto de entrevistas realizadas entre fevereiro e julho de 2002, fizeram emergir muitas figuras do cotidiano medieval como o camponês, o monge, o guerreiro, o mercador, o banqueiro, ao mesmo tempo em que refizeram, em linhas gerias, a trajetória pessoal e a produção historiográfica do autor.

Logo após a publicação deste trabalho, Le Goff estava terminando a série de encontros com Marc Heurgon, que resultou em Uma Vida para a História,

publicada naquele ano. Finalizando as entrevistas Le Goff afirmou que S. Luís, não representava seu ponto final, ao contrário, mesmo estando com 72 anos, estava envolvido em outros projetos, o que se confirmou logo depois com o lançamento de A Bolsa e a Vida: a

usura na Idade Média, em que apresentou, com o apoio dos exemplas medievais, o entendimento que se tinha

do usurário, um ladrão do tempo, porque roubava, a Deus, uma vez que o tempo era tido como dom divino e gratuito, e, concomitantemente, aos cristãos, já que o empréstimo a juros era proibido. Mas, apontou que o mais interessante é que foi a própria teologia medieval que salvou o usurário da danação com a criação do Purgatório. Dessa forma, o agiota saiu ganhando duas vezes: a bolsa na terra e um espaço no céu.

2001 contou com dois novos títulos de Le Goff no mercado: São Francisco de Assis e em parceria com

Jean-Claude Schmitt, organizou o Dicionário Temático Medieval,

em dois volumes, em que vários autores trabalhando temas diversos, cobriram aspectos econômicos,

políticos, sociais, comportamentais, além de crenças e de práticas mágico-religiosas.

Ainda enfatizando a importância da relação e do compromisso do historiador com o presente e o futuro, questão apontava várias vezes durante toda a série de entrevistas com Heurgon, Le Goff apontou, por ocasião da entrevista, realizada em 1996, que fazia 25 anos que estava à frente do programa radiofônico

Lundis de l’Histoire, para colocar esse trabalho ao alcance

do grande público. Defendeu que tratava-se de algo “relativamente culto”, mas abordando obras que “testemunharam o interesse do público, a vitalidade e o progresso da história” (p. 243). Com relação à sua visão pessoal, argumentou que, tanto como historiador, como cidadão, é fundamental que se esteja compromissado com o presente, pois partindo do passado, uma de suas atividades essenciais, deve-se pensar, apreender, orientar, o que pensamos sobre o futuro, ou ainda, nos orientar “na direção do que desejamos que ele venha a ser” (p. 258).

Como medievalista deu o exemplo de como foi pensado o futuro pelos homens e mulheres da Idade

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Média, na perspectiva da salvação, o Juízo Final ou para os milenaristas, a busca de uma sociedade perfeita. Por suas preocupações com o futuro, Le Goff aceitou integrar a Académie Universelle des Cultures, ao lado de

Bronislaw Gewremek, Umberto Eco, André Miquel, Françoise Héritier, Michèle Perrot, entre outros. Todos preocupados, de alguma forma, em lutar contra a intolerância, para fazer nascer uma compreensão recíproca entre as culturas e repensar sempre se a diversidade é compatível com o que aparece como objetivo essencial, para atingir o universal.

De forma prática, a Academia estava se dedicando a um manual escolar, que buscava superar a grande dificuldade que é a de ser compreensível para crianças de diferentes culturas, como as chinesas e as

árabes, mas que “não fosse unicamente a tradução de uma versão ocidental” (p. 245). O grupo todo compartilhava que a educação, mais que essencial, é a condição primordial que permite ter esperança de progresso no mundo. Para ele, para além das catástrofes mais trágicas e humanas, uma delas, no século XX, foi o desmoronamento da noção de progresso. Por isso, esses estudiosos das culturas, desejavam, pragmaticamente, estimular as crianças a recusarem tudo o que sugere desprezo, intolerância e ódio, tudo que leva à perseguição e à guerra. Nesse sentido, defendeu que a pedagogia precisa, com todos os recursos possíveis, lutar para transcender o saber, mas também para traduzir esse saber em comportamentos e atitudes positivas.

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